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CHÂTELET, François. Logos e Praxis
CHÂTELET, François. Logos e Praxis
LOGOS E PRAXIS
Tradução de
R o l a n d C o r b isie r
Paz e Terra
Traduzido do original francês:
LOGOS ET PRAXIS
© Société d’Édition d’Enseignement Supérieur, 1962
Capa:
R a g n ar L a g e r b la d
19 7 2
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário
Prefácio
Apêndice 315
Prefácio
8
I
O Materialismo Dialético
e a Crítica Contemporânea
14
pressão de estar um pouco na situação do escravo do
Menon; lembram-lhe, constantemente, o elementar e,
muito cedo, percebe que o consideram, seja qual for o
saber que possa possuir, de cabeça muito fraca. Esse
leitor esqueceu que não escapa ao domínio da ideologia
da classe dominante e que é idealista, mesmo se declarar
o contrário ou pretender desinteressar-se de tal questão.
A pedagogia converte-se, então, em polêmica e em retó
rica: polêmica que visa ridicularizar toda atitude não
materalista, a opor ao vazio e à mentira do idealismo a
solidez provada dos enunciados da filosofia marxista;
retórica que tende mais a exaltar sem restrições os fun
dadores do materialismo contemporâneo, esses gigantes
do pensamento que, afinal de contas, tudo previram (não
é possível, com algum cuidado, encontrar a citação que
corresponda a cada problema atual?) e a mostrar, ge
ralmente a título programático, as possibilidades que
oferece à humanidade, em todos os domínios do pensa
mento, a crença nos princípios do marxismo.
Esses caracteres gerais, de natureza formal, da maior
parte das atuais exposições da filosofia geral materia
lista, não deixam de ter relação com o conteúdo que
expõem. Nelas encontramos, misturadas a referências
históricas e citações muitas vezes preciosas e belas e
enunciados científicos importantes, demonstrações su
perficiais, refutações injustas ou levianas assim como
afirmações dogmáticas apresentadas em terminologia
monótona e sem matizes. Admite-se, em geral, que a viga
mestra do sistema é o enunciado segundo o qual a ma
téria existe anteriormente e exteriormente ao espírito4.
15
Esse princípio da precedência — a um tempo ontoló
gica, cronológica e “gnosiológica” — da materialidade
sobre o pensamento, conteria, desde que corretamenta
interpretado, o segredo da verdade. Como é possível,
contra o idealismo (solipsista ou teológico) demonstrar
a validade desse princípio? Pode-se, desde logo, na se
qüência do materialismo chamado ingênuo, apelar para
a prática quotidiana e lembrar que “o pudim se come”
pois é necessária toda a astúcia dos partidários de Ber-
keley, confessos ou não, para negar esse fato e preten
der que a natureza seja apenas um feixe de sensações
subjetivas. Mas, além da experiência banal, é à ciência
que convém referir-se. Esta, não deixa chance alguma
às operações idealistas. Não mostra a fisiologia, sem equí
voco possível, que o surgimento de uma representação
na consciência está ligado ao fato de que um agente
exterior vem tocar os órgãos sensoriais, determina o apa
recimento de um influxo nervoso que é transmitido ds
transmissor em transmissor até a zona cortical onde, em
virtude de processos muito complexos, transforma-se em
representação desse objeto exterior6. A existência de re-
16
presentações imaginárias, não pode constituir uma ob
jeção dirimente, tanto quanto a possibilidade, para o
pensamento, de criar termos abstratos. Dados imaginá
rios e conceituais têm a mesma raiz nesses movimentos
nervosos primeiros que nascem do contato do corpo com
o mundo no qual vive.
Em nível inferior, nos seres pouco evoluídos, essas
incitações provocam apenas movimentos reflexos sim
ples; em seguida, à medida em que se complica o sistema
nervoso na escala animal, os reflexos se tornam mais
ricos e mais ágeis; fenômenos de condicionamento se
produzem e sensações cada vez mais ricas e cada vez
mais claras aparecem; ao nível humano, a prodigiosa di
ferenciação do aparelho nervoso permite não só o con
siderável desenvolvimento do sistema dos reflexos e das
ligações condicionadas, mas também a elaboração de um
segundo sistema de sinalização7. Graças a este, o ho
mem torna-se capaz de pensamento e de palavra.
18
ciladas da superstição, da religião e do idealismo, e afir
mar o primado da matéria9.
Esse primado, atestado pela análise fisiológica, pela
ciência da evolução, é também claramente confirmado
pelo estudo geológico e paleontológico. A idéia da cria
ção do mundo por qualquer princípio transcendente tor
nou-se inaceitável. O que prova a pesquisa científica é
que, anteriormente à época em que o homem apareceu,
sucedsram-se eras geológicas ao longo das quais, de
acordo com as leis da causalidade física, formações quí
micas constituíram-se, permitindo o nascimento e o de
senvolvimento do vegetal e do animal10. Trata-se de
épocas cujos vestígios e estruturas podemos atualmente
prescrutar. Em outras palavras, houve um tempo em
que alguma coisa existia efetivamente, em que alguma
coisa se produziu: a erosão alpina, por exemplo, na qual
pensamento algum, manifestamente, estava presente.
A idéia de que se constituiu uma “representação”, da
realidade — mesmo formaliter spectata, para retomar a
expre:são kantiana — mostra-se portanto absurda. E a
idéia, cara ao empirocriticismo, de um complexo sujeito-
objeto, anterior à diferenciação dos termos, é contestada
pelos fatos estabelecidos. A matéria, com a estrutura
que a ciência física revela, existiu anteriormente ao es
pírito; existe sem ele. Não render-se a essas evidências
é mergulhar na ilusão e no misticismo; é opor a dados
objetivos crenças subjetivas.
De fato, o idealismo, em todas as suas diversas for-
19
mas, ideologia da classe dominante, não pôde elaborar-
se, desenvolver-se e durar, senão explorando o medo do
homem em face do desconhecido, sua debilidade diante
da natureza e, para a época contemporânea, salientando
as dificuldades de crescimento das ciências experimen
tais. Há, sem dúvida, problemas que permanecem pen
dentes e é normal que, influenciados pela concepção
obscurantista do mundo, apresentada pela religião e
pelas doutrinas irracionalistas, os cientistas tenham sido
freqüentemente levados a salientar essas dificuldades, a
desencorajar-se e apelar para explicações não-materialis-
ta s11. O conhecimento da verdade do materialismo mar
xista permitirá, doravante, evitar semelhantes erros. As
ciências provam a validade do materialismo; este, po
rém, estabelecendo alguns princípios claros que definem
um rumo e um programa, por sua vez, os orienta e lhes
dá o método de conjunto do qual careciam. Esse mé
todo pode ser caracterizado em poucas palavras: trata-
se de ter sempre presente ao espírito a idéia segundo a
qual é correta e fecunda toda pesquisa que mostra a
anterioridade da matéria, que assegura o triunfo do ma
terialismo. Assim, é trabalho científico e sério — contra
todas as sutilezas e os arcanos em que se refugia o vita-
lismo — afirmar que a estrutura celular pode formar-se
a partir de matéria viva a-celular12.
Entre as obscuridades que não deixará de salientar
a crítica antimaterialista, encontra-se a que sempre se
invocou a propósito do materialismo e que constitui, de
20
fato, o argumento característico do bergsonismo: como
explicar, a partir da relativa simplicidade dos movimen
tos nervosos, a riqueza da consciência? Como dar conta
da individualidade do pensamento tomando como ponto
de partida apenas a estrutura orgânica? De modo mais
geral, como evitar os impasses do epifenomenismo se,
para explicar o conteúdo do pensamento, adotam-se, co
mo base única, os fatos corporais, registráveis objetiva
mente, que o acompanham? A questão é capital e, na
medida em que as ontologias e teorias do conhecimento
marxista, atuais, visam constituir um sistema geral,
preocupam-se em responder a essa pergunta. A dificul
dade para essas teorias, ao menos aparentemente, não
é considerável pois defendem uma concepção, não ape
nas materialista, porém materialista-diaZéíica13. Vol
taremos a tratar do significado desse termo, do sentido
que lhe atribuem, talvez levianamente, as exposições
contemporâneas do marxismo em França e do alcance
que, em conseqüência, conviria atribuir-lhe. Digamos,
porém, desde logo, que as filosofias gerais materialistas
das quais se procura, neste capítulo, resumir o estilo e
o conteúdo, inspiram-se no Engels da Dialética da Na
tureza 14, atribuem à noção de dialética uma amplitude
bastante grande: incluem nessa categoria, — e, sem
dúvida, sem pensar que o pensamento da identidade há
23
dade admite como ponto pacífico a contradição do pólo
positivo e do pólo negativo13; a própria matemática —
apesar dos preconceitos do formalismo da identidade que
a governam — reconheceu, além das simplicidades do
cálculo elementar, a existência de contradições: as do
-j_ e do — 5 10, do infinito em extensão e do infinito por
divisão, também a do & do cálculo infinitesimal que é
ao mesmo tempo uma quantidade e uma ausência de
quantidade20.
Assim, seja qual for o domínio da ciência para o
qual nos voltemos, a dialética, definida com a amplitude
que acabamos de indicar, manifesta-se como a lei mais
geral que rege os fenômenos. Determinante em física e
em química, também o deve ser em fisiologia e psicolo
gia: o erro do materialismo é o de ter pretendido redu
zir os fatos de consciência aos fatos corpóreos; ora, é
claro que há duas realidades diferentes por natureza;
essa diferença, porém, não implica de modo algum a in
dependência da consciência em relação ao corpo; este,
em virtude de sua organização própria, a engendra dia-
leticamente. Os resultados adquiridos pela fisiologia
pavloviana já mostraram, sobre certos pontos, como se
opera semelhante causalidade dialética. Pretender que
tudo tenha sido esclarecido nesse, domínio, é antepor a
preocupação maníaca do fato às hipóteses geralmente
confirmadas pela razão científica. Uma vez que a natu
reza é dialética, o é evidentemente em todas as suas
“regiões”; e, o que importa, é orientar os trabalhos cien
tíficos nessa direção. Graças ao emprego dessa lei da
24
dialética, em suas quatro formas21, abrem-se perspecti
vas de um saber sistemático positivo capaz de integrar
todos os resultados das ciências e desenhar um quadro
de conjunto da realidade e de sua evolução2-. Pode-se,
então, pelo jogo dessa nova causalidade, discernir as
principais etapas da evolução que conduziu os corpos
25
mais simples à complicação do organismo humano e,
daí, ao pensamento.
Uma objeção, no entanto, ameaça surgir no espírito
idealista. Reduzindo assim, mesmo dialeticamente, o
“superior” ao “inferior”, não se retoma necessariamente
a ótica do epifenomenismo? Que acontece então com a
liberdade humana, com o poder do pensamento, com a
individualidade do ego consciente? Esse argumento, com
efeito, declara a filosofia geral materialista, repousa nu
ma incompreensão do processo dialético23: a realidade
mais rica, engendrada a partir da realidade menos rica,
libera-se, por assim dizer, em relação a esta e se torna
capaz de reagir sobre ela. Assim, o pensamento nascido
da matéria será capaz, pela prática, pelo trabalho, de
transformá-la, de imprimir-lhe sua marca. Essa idéia da
reação do engendrado sobre o engendrante é particular
mente clara no domínio da história: a ideologia, quer
dizer o conjunto dos pensamentos e das instituições vi
gentes em determinada época, é uma superestrutura;
suas formas e seus conteúdos diversos têm como causa
a situação material do homem nessa época — sendo cla
ro que se deve compreender a situação material não só
como situação natural, mas principalmente como situa
ção social em que o nível das forças produtivas e a na
tureza das relações de produção desempenham pápel de-
26
terminante24. A ideologia, portanto, quer seja homogê
nea, quer oponha correntes contraditórias, é produzida
por dado estado de fato, que ela reflete -5. Todavia, por
que é consciente da situação, poderá, por sua vez, influir
no dado: poderá, por exemplo, denunciar sua injustiça
ou organizar uma ação política que produzirá — é o
caso das revoluções — uma transformação radical das
relações de produção que permitirá uma modificação do
nível das forças produtivas e, mais profundamente ainda,
uma transformação no ambiente “natural” do homem20.
Seria considerar unilateralmente o processo dialético e
ignorar os fenômenos de interação que se produzem entre
a causa e o efeito.
O materialismo marxista não desconhece, pois, nem
a existência, nem o papel do pensamento: salienta, pelo
27
contrário, as condições nas quais o espírito humano po
de ser verdadeiramente eficaz e exercer um poder efeti
vamente real. Constitui, assim, o único humanismo au
têntico. Voltado contra o idealismo, que visa sempre, se
jam quais forem seus disfarces, afastar o homem de sua
tarefa prática, difundir concepções místicas com as quais
as classes dominantes procuram fazer com que os explo
rados aceitem a infelicidade e a opressão, a minimizar,
sob o falacioso pretexto de “fundá-los”, a importância
dos resultados científicos, a lançar a dúvida e o descré
dito sobre a técnica e a exaltar doutrinas em que se de
monstra que “o homem anda de cabeça para baixo27”,
a teoria marxista do ser e do conhecimento, apresenta
uma visão clara e científica das origens e da situação
real da humanidade. Graças às descobertas dos funda
dores da doutrina, pela firme sustentação dos princí
pios e pelo uso do instrumento dialético, novo impulso
me. Ao contrário, desde que surge, torna-se imensa força ativa, ajuda
ativamente sua base a cristalizar-se e afirmar-se; toma todas as pro
vidências para ajudar o novo regime a completar a destruição da ve
lha base e das velhas classes, e a liquidá-las” . J. Stalin, A propósito
do marxismo em lingüística, Últimos escritos, pp. 14-15. Semelhante
perspectiva é comentada por G. Besse e M . Caveing, op. cit. 4* parte,
19* lição e por R. Garaudy, id., principalmente na 4* parte, cap. II,
2 e cap. III, B; cf. igualmente R. Garaudy, Humanismo marxista,
p. 203: “As relações entre a base e a superestrutura não são de modo
algum mecânicas. A superestrutura não está simplesmente “colocada”
sobre a base, para protegê-la, como a palavra sugere. É, ao contrário,
“oposta” a ela, no sentido de que reage contra ela, a contradiz em
certos aspectos, para acelerar ou deter seu desenvolvimento” .
27 Foi a operação tentada, no começo do século, pelo empirocriti-
cismo e suas variantes, denunciada por Lênin, op. cit.; mais recen
temente, é, segundo R. Garaudy, na época do capitalismo em decom
posição, o sentido das obras de W . James e J. Dewey, Teotia mate
rialista... p. 326, de Bergson, pp. 331 ss, de Merleau-Ponty, pp. 332-
359, dos estudos semânticos, pp. 362-363 e. finalmente, de todas as
pesquisas filosóficas que não consideram absolutamente verdadeiros
todos os principais enunciados do materialismo dialético.
28
foi dado às disciplinas experimentais28. A justeza da
concepção materialista, que as descobertas recentes e os
acontecimentos contemporâneos constantemente confir
mam, proporciona, além disso, à humanidade, a possi
bilidade de libertar-se dos preconceitos religiosos, do
obscurantismo, e constitui a poderosa alavanca por meio
da qual a ação em favor de um mundo de justiça triun
fará.
Às sutilezas do idealismo, é preciso opor a clareza
dos princípios cuja evidência pode ser por todos compro
vada. Não se trata, de modo algum, de rejeitar tudo o
que foi elaborado pela filosofia passada, mas de repensar
suas aquisições à luz do marxismo, à luz do pensamento
materialista e dialético, aquele que, para defender e ilus
trar o princípio essencial: “a matéria existe anteriormen
te e exteriormente ao espírito”, soube definir as quatro
leis da dialética, permitindo, assim, a constituição de um
método universal isento, enfim, de incerteza29.
30
fiança em relação aos enunciados fundamentais do ma
terialismo ou, ao menos, a preocupação de criticá-los e
pô-los à prova. Debitará, então, essa “incompreensão” 34
na conta de hábitos mentais há muito enraizados na
profissão filosófica; e chegará a considerar essas obje-
ções um produto de dimensões psíquicas individuais.
Esses processos de nada lhe servirão na medida em que,
apresentando-se, desde logo, como filosofia, obriga-se a
aceitar o debate filosófico como tal; deve supor a boa fé
do interlocutor e reconhecer que, no diálogo, cada um
parte com as mesmas chances de atingir a verdade. Em
outros termos, uma vez que afirma ser a manifestação
contemporânea do racionalismo, obriga-se, ao mesmo
tempo, a admitir que, a uma demonstração correta, ne
nhuma ótica individual, nenhum hábito de espírito pode
resistir. E, quando invoca a pressão da ideologia domi
nante, comete uma petição de princípio, pois a própria
idéia dessa pressão só pode ser admitida por aqueles que
reconhecem a validade de suas perspectivas de conjunto.
De fato, na posição adotada por essa filosofia geral
materialista, nada, a não ser um subterfúgio, autoriza a
evitar a discussão filosófica tal como se costuma travá-la.
E é preciso dizer que a ontologia (ou a teoria do conhe
cimento materialista), se considerarmos suas produções
atuais, não está de modo algum em situação de triun
far. A crítica antimaterialista — e por essa expressão
designamos as objeções provenientes da filosofia perennis
e as que emanam dessas novas correntes chamadas exis
tenciais — fará, em primeiro lugar, recair sua dúvida
sobre o sentido e a validade do enunciado fundamental:
“a matéria existe exteriormente e anteriormente ao es
pírito”. Perguntará, e é difícil negar-lhe o direito de
31
fazê-lo, o que querem dizer as palavras então emprega
das . Verificará que, na demonstração dada pelo materia
lismo a propósito desse enunciado, há ambigüidade. Nin
guém jamais negou, dirá inicialmente, que “o pudim se
coma” e Berkeley jamais pretendeu que sua demonstra
ção mudasse o que quer que seja no fato empírico tal
como se apresenta3r-: quer a “matéria” seja coisa-em-si
ou feixe de representações, propõe-se, ein todo caso, como
empiricamente real e é uma fraude confundir o imate-
rialismo do autor dos Diálogos de Hilas e Filonus com
o solipsismo — quem jamais foi filósofo solipsista? —
ou com qualquer irrealismo. É bem verdade, observará
a crítica, que o materialismo só se atém a essa argumen
tação elementar nas polêmicas exteriores. A prova que
prefere utilizar é a proporcionada pelas ciências positi
vas: fisiologia, ciência da evolução, paleontologia, geo
logia36. Não percebe, porém, que confunde então dois
aspectos da objetividade sobre os quais há muito tempo
costuma a reflexão interrogar-se37. O problema posto
32
é o de sentido que convém atribuir à noção de matéria.
Lênin, por exemplo, declara que a matéria é “aquilo que
atuando em nossos órgãos produz a sensação; .. .é a
realidade objetiva que nos é dada na sensação” 38; admi
te, pois, como ponto pacífico, que a materialidade é o
que nós percebemos e a causa da percepção. Há, com
efeito, duas definições que não coincidem exatamente
ou a propósito das quais seria preciso demonstrar, ao
menos, que remetem a realidades idênticas: de um lado,
com efeito, a materialidade é apreendida como aquilo
que se mostra — tò fainómenon — na percepção; de
outro, é considerada causa eficiente do ato de perceber.
Essa é uma assimilação que é perigoso fazer quando não
se provou sua verdade filosófica. De um lado, há, sem
dúvida, o mundo percebido que é horizonte da consciên
cia e ergue diante dela sua opacidade e seus reflexos;
esse mundo é vivido tanto quanto é percebido, e sua
objetividade é uma objetividade de ser, a de algo irre
dutível que está aí sem mim, mas sempre diante de
mim, e, de certo modo, por mim; de outro, há o mundo
estudado pelo físico e pelo biólogo, universo de ondas e
de forças, distribuído em um suscetível de ser estudado
experimentalmente e quantificado. Mas, quem garante
que esse dois mundos se correspondem? Com que direito
se confunde o ser, tal como aparece na imediatidade vi
vida, e a construção do cientista? 39 Responderão que não
se trata de modo algum de assimilá-los totalmente, sa-
33
bendo-se que o conhecimento científico é mais rico e mais
profundo do que a apreensão perceptiva, mas que, pre
cisamente, aquele explica esta, que o mundo percebido
se explica pelo conhecimento conceituai que dele nos dão
as ciências positivas10; acrescentarão que estas — à mar
gem de uma crise de nominalismo sempre provisória e
agora superada — sempre souberam que experimentam
com aquilo mesmo que os homens percebem e que acre
ditam na existência real de entes científicos cujas leis
estabelecem.
Responderá a crítica, por sua vez, que é atribuir con
fiança excessiva, filosoficamente excessiva, ao cientista
e às ciências, aceitar sem demonstração seus preconcei
tos; insistirá mostrando de que modo o vivido, por sua
riqueza, por sua diversidade, excede sempre a descrição
científica que dele é possível fazer. Concluirá afirmando
que, nessa fase, aparece um primeiro aspecto do dogma
tismo da filosofia geral marxista: confundir, como se
essa assimilação fosse ponto pacífico, o dado tal como
se mostra na vida e na percepção e o objeto-material,
a coisa-científica, tais como são conhecidos pelo cientis
ta -11. Ora, devemos salientá-lo, essa crítica contemporâ
nea não se faz em nome de um idealismo de tipo berke-
leyano ou mesmo fichtiano. Provém, freqüentemente,
42 Entre os autores aos quais nos referimos neste capítulo para ex-
por a argumentação antimaterialista, nenhum pode ser considerado
seriamente idealista. J. Wahl, F. Alquié, J.P. Sartre, M . Merleau-
Ponty, propõem, uns e outros, explicitamente, e sob perspectivas di
ferentes, a independência do ser em relação à consciência; quanto aos
autores “cristãos”, J. Lacroix, H. I. Marrou, J. Y. Calvez, P. Bigo,
inscrevem-se, ao que parece, na corrente realista tradicional.
43 Sobre as acusações de cientifismo, de objetivismo e de naturalismo,
dirigidas seja a Marx, seja a Lênin e ao materialismo dialético con-
35
tologia utiliza constantemente as idéias de verdade, de
existência, de ser, de objetividade, sem jamais interro
gar-se a respeito de sua significação, seu alcance filosó
fico e o direito que temos de empregá-las. Acabamos de
verificar a ambigüidade dessa noção de objetividade que
significa, ora o fato de dar-se ou de ser dado à cons
ciência, ora a possibilidade para um fenômeno de ser
integrado na rede das relações universais estabelecidas
pelas disciplinas positivas. É ilegítimo não reconhecer
essas duas significações, mesmo que fosse para redu
zi-las em seguida a uma só. Mas, a carência é particular
mente grave quando se trata com semelhante desenvol
tura o problema do enunciado verdadeiro. Há como que
uma recusa em filosofar no fato de admitir, como não
constituindo problema, que alguma coisa possa ser co
nhecida autenticamente; e, considerar o verdadeiro co
mo um reflexo puro e simples do real “na” consciência,
é aceitar o mais ingênuo objetivismo. Sem dúvida, é justo
dizer que um enunciado é verdadeiro quando é adequa
do ao seu objeto; mas, a filosofia consiste em perguntar
como se dá tal possibilidade, e de que modo, em todo
caso, se conhece e justifica essa adequação. Ora, acres
centa a crítica antimaterialista, é inevitável, a partir do
momento em que se formulam semelhantes questões,
inerentes ao correto exercício da filosofia, que sejamos
remetidos do objeto ao sujeito; pois, na idéia de um enun
ciado verídico, seja científico e cercado de todas as pre
cauções experimentais, está implícita a noção de um
poder de verificação ou de legitimação pelo qual a ver
dade advém, poder esse que não pode ser senão o pró-
36
prio sujeito 44. É inevitável que se abra, assim, uma
problemática obscura, difícil de resolver ou mesmo inso
lúvel; mas a filosofia só começa se admitirmos seme
lhante problemática e a exigência profunda de legiti
mação que a implica. O materialismo, porque se tornou,
sem procurar disso justificar-se, o depositário das cren
ças realistas e positivistas do século passado, menospre
za uma questão que se tornou tradicional na filosofia;
a da possibilidade do verdadeiro, e por meio dela, a do
“valor da ciência”; considerando esse problema resolvi
do antes mesmo de o ter proposto, representa uma re
gressão do pensamento situando-se numa perspectiva
que é, no mínimo, anterior à crítica kantiana45.
Assim, embora pretendendo o título de filosofia, es
sas exposições gerais da teoria marxista não compreen
dem que é necessário distinguir dois planos, duas atitu
des, dois domínios diferentes por essência. Há o domí
nio da existência quotidiana, que é também o das ciên
cias positivas, o domínio “mundano”, no seio do qual
o fato como tal — presença imediata na percepção natu-
37
ral, eficácia na ação ou presença controlada nos labo
ratórios — constitui a única justificação exigida para a
validade de um enunciado. Quando o geólogo, por meio
de observações precisas e de manipulações experimen
tais, mostra que tal camada de terreno, na qual discer
ne vestígios humanos, é mais recente do que outra, em
que nenhum desses vestígios foi descoberto, apesar de
múltiplas investigações, quando, além disso, auxiliado
pelo químico e pelo biólogo, mostra de que modo a exis
tência de determinadas condições naturais e a ordem
normal de evolução dos seres vivos tornam inteligível o
aparecimento de animais muito evoluídos, tem o direito,
cientificamente, de afirmar que “a materialidade des
provida de consciência precede a materialidade dotada
de consciência”. As idéias de materialidade, de consci
ência e de anterioridade, são por ele recebidas como se
não constituíssem problema; e isso é legítimo. O filó
sofo não pode contentar-se com semelhante modo de
justificação; exige que as noções sejam plenamente elu
cidadas; quer, sobretudo, que o conceito de anteriorida
de revele sua significação e seu fundamento40 (veremos
como, a propósito do uso feito por essa filosofia geral
materialista da dialética, como se desenvolve sobre es
se assunto a argumentação crítica). Admite que, além
dessa região “mundana”, desenham-se os contornos de
um domínio — estranho para aqueles que permanecem
na atitude natural, no qual se impõe a exigência do fun
damento último, em que todo conceito deverá mostrar
seu significado último e “confessar” a origem do poder
de validação que possui, se é que o possui. Ora, a onto
logia e a teoria do conhecimento materialistas ignoram
esse segundo domínio: conhecendo as ciências e seus re
sultados, os aceitam, sem mais. Reivindicam, no entan
38
to. o título de filosofias. Não haverá nisso uma contradi
ção grave ou, em todo caso, fraqueza ou cegueira?
Essa insuficiência do materialismo manifesta-se, co
mo já vimos, na obscuridade da definição da materia
lidade, interpretada ora como horizonte da vida, ora
como tò fainómenon, ora como objeto conhecido ou a
conhecer, como realidade científica. Suas relações com
o espírito, que, para a teoria marxista, é segundo em re
lação à matéria, também não são claras. Freqüente
mente, com efeito, a matéria é compreendida de modo
puramente negativo ou indefinido, para retomar a ex
pressão kantiana: é considerada o que não é espírito,
aquilo que o precedeu; é representada como o não-espí-
rito que, no entanto, engendrou o espírito (na evolução)
ou o suscita atualmente (na percepção)47. Essa, porém,
não é uma definição aceitável: com efeito, ou bem a
espiritualidade é, de qualquer modo, deduzida da maté
ria, retornando-se finalmente a uma posição análoga à
de Epicuro, Helvetius ou Vogt, de acordo com a qual a
consciência aparece como se fosse manifestação, atribu
to ou espécie da matéria, concebida como substância ou
gênero último; nesse caso, permanece de pé o conjunto
das críticas dirimentes e dos fatos acumulados contra
o materialismo mecanicista; ou então, admite-se que há
mais no espírito do que na matéria — e essa parece ser
a perspectiva do marxismo — e, nessa hipótese, tratar-
se-á, ainda, de materialismo?48 Para que fosse assim, se-
39
ria preciso garantir a dedtição filosófica, que permitis
se passar da materialidade (justificada negativa ou re
lativamente) à espiritualidade de que qualquer um ex
perimenta em si mesmo o caráter positivo. Em suma, o
materialismo, por essa série de argumentos, acha-se
acuado ao seguinte dilema: ou admite, sem razão filo
sófica, a atitude realista49 e os resultados das ciências
positivas e trai a exigência filosófica à qual pretende
submeter-se; ou, então, submete-se a essa exigência e,
nesse caso, chega apenas a resultados medíocres, confu
sos e obscuros60.
As filosofias gerais marxistas têm, como salienta
mos, uma resposta pronta: o que a crítica chama de
confusão e obscuridade é, de fato, o resultado do em
prego de um método agora comprovado: o método dia
lético. As objeções antimaterialistas, desconhecendo o
caráter dialético da realidade e do pensamento, e das
ciências que os refletem, enxergam dificuldades que
uma doutrina que soube romper com os preconceitos da
lógica da identidade sabe facilmente superar. Basta com
preender, como atesta o progresso do pensamento'tanto
filosófico quanto científico, desde que Marx e Eneels
souberam forjar o instrumento materialista dialético,
que a realidade está em vir-a-ser, que este envolve em
seu curso uma multidão de interações, que procede por
saltos e que toda mudança progressiva na quantidade
acarreta, em certa fase, uma brusca mudança qualitati-
40
va. Os mistérios da passagem da matéria ao espírito, do
movimento nervoso à consciência, das dificuldades da
definição, a um tempo relativa e absoluta, da materia
lidade, dissipam-se então. Vimos os numerosos exem
plos dados pela ontologia e pela “gnosiologia” materia
lista para provar a validade dessa ótica de conjunto,
exemplos tomados das ciências da natureza, da histó
ria, das matemáticas, da lógica e da linguagem quoti
diana.
Devemos, sem dúvida, reconhecer que o não-mate-
rialismo ou o antimaterialismo não está de modo algum
convencido por essa técnica dos exemplos. A crítica sus
citará, inicialmente, objeções propriamente formais, que
já assinalamos: surpreender-se-á com a facilidade que
leva os filósofos marxistas a incluir no pensamento dia
lético simples oposições lógicas — o branco, o preto, que
são unicamente termos contrários —, mudanças efe
tivas ligadas ao fato do devenir — a semente, a flor, o
fruto —, fenômenos de tensão estudados pelo físico, ten
sões expressas por meio de palavras contraditórias, - +
e, ciclone e anticiclone, diferenças reais ou concentuais
e contradições propriamente ditas. Acusará, então, seu
interlocutor de esquematismo; não terá dificuldade em
mostrar que, de um lado, na exposição geral, aceita um
modelo pronto que não procura de modo algum apro
fundar e justificar e, de outro, recorre, para ministrar
a prova, a simples exemplos, heterogêneos extraídos ar
bitrariamente das disciplinas do pensamento e das mais
diversas regiões da realidade.
A crítica contemporânea, porém, desenvolverá sua
argumentação especialmente contra a materialização da
dialética, operada pela filosofia geral marxista. Não se
trata de que a filosofia não-materialista atual recuse,
geralmente, a idéia de dialética51. Pelo contrário adota-
43
ser apreendido como seqüência do estado precedente e
como anúncio do estado seguinte"3. Assim sendo, afir
mar que existe uma temporalidade da natureza, é pro
jetar sobre o dado uma propriedade que só pertence à
consciência. De fato, o tempo das coisas só pode ser o
tempo de uma consciência que se acha em face das coi
sas e as temporaliza. Para convencer-se disso, basta vol
tar à experiência de si: que chamamos de temporalida
de, no sentido originário, senão essa mudança que ex
perimentamos precisamente porque guardamos a lem
brança da situação que não é mais e sentimos abrir-se
diante de nós o abismo do futuro. Se não há um especta-
dor-ator, de certo modo onipresente, que faça existir es
se acontecimento como tendo surgido antes dêsts ou
tro, resta apenas a absoluta diversidade dos fatos he
terogêneos. Assim, o esforço filosófico tendente a elu
cidar a estrutura da temporalidade conduz do tempo
das coisas ao tempo da consciência e, daí, à consciência
do tempo (ou temporalizante), única que se apresenta
como temporalidade real54.
Essa argumentação, prossegue o antimaterialismo,
pode ser retomada a propósito da noção de história que
se acha implícita na idéia de história natural. Assim
como o tempo remete à consciência, assim também a
44
história remete ao homem55. Pela palavra história, de
vemos, com efeito, entender o local dramático em que
uma ação ligada ao próprio passado retoma esse passa
do em função do futuro que projeta. As diversas posi
ções da bola no plano inclinado não são acontecimentos.,
mas simples fatos justapostos: o que constitui um acon
tecimento, é o fato de que um cientista diante desse
fenômeno, à luz do que sabe, invente um novo conceito
que, conforme sua justeza, determinará de certo modo
o futuro. Em outros termos, para que haja história, é
preciso que haja um desejo ou uma vontade, um homem
que realize um ato, em certa situação e tendo em vista
certo fim (que não é necessariamente refletido como
histórico). A erosão alpina nada desejou e nada quis:
só é histórica por metáfora. Isso é evidente para quem
quer que tenha elucidado a ligação entre historicidade
e temporalidade. Só pode ser qualificada, a rigor, de
histórica, a ação humana, e, em conseqüência, o mé
dium em que ela se desenrola; a humanidade, enquan
to sofre, deseja e quer, secreta a temporalidade; fora
dela, há apenas um dado bruto que exige a temporaliza-
ção na medida em que se apresenta como horizonte do
conhecimento e da ação do homem. Não podemos dei
xar de observar, desde logo, a ressonância kantiana des
ta demonstração; ao sujeito transcendental, substituiu-
se o sujeito existencial; o homem, pelo fato que percebe,
não impõe apenas ao fenômeno o ser no tempo; porque
existe, impõe também à situação a ser vivida como tem
po, ou, mais precisamente, como história.
Encontramos aqui um tema constante do pensa
mento não-materialista contemporâneo e do nomina
lismo latente que o anima. As propriedades atribuídas
aos objetos pelas ciências não são consideradas proprieda-
45
des reais (ou de importância real); são antes considera
das significações de certo tipo, significações intersubje-
tivas cuja raiz se encontra no ser humano considerado
seja como consciência, seja propriamente como existên
cia™. E esse existente é considerado irredutível: descre
ve-se, mas não se deduz. Em semelhante perspectiva, a
dialética, tal qual o materialismo a define, torna-se in
teiramente incompreensível: não poderia ser concebida
como estrutura do movimento da natureza e da socie
dade. Que significa, por exemplo, a luta dos contrários?
Pode ser que se trate de uma noção lógica: um conceito
só se põe opondo-se; ou mais precisamente, de acordo
com a sugestão de Spinoza, toda definição é uma nega
ção e, como tal, implica em sua compreensão o termo
negado. É a razão pela qual as diversas disciplinas cien
tíficas — pelo fato de se exprimirem num contexto —
apelam para relações de contrariedade que são, aliás, de
tipos extremamente diferentes: o positivo e o negativo
não se opõem do mesmo modo no domínio da eletricida
de e no domínio matemático. Mas, seja o que for dessa
diversidade, a contradição (ou a contrariedade) é da
ordem da linguagem científica; remete a uma consciên
cia que a estabelece, a põe em forma. Dir-se-á que, nes
se contexto científico, a oposição dos termos reflete con
tradições reais e que há luta efetiva, ruptura geradora
de movimento e de progresso entre o + e o — do mate
mático, o pólo positivo e o pólo negativo do eletricista,
as forças de atração e de repulsão do físico, o ciclone e
o anticiclone do geógrafo? Seria falar, segundo a crítica
do materialismo, com a maior leviandade: para que ha
ja luta real, é preciso que um dos termos seja efetiva
mente positivo em relação a outro efetivamente negati
vo. Ora, na natureza, só poderia haver plena positivida-
de: o sinal — é tão positivo quanto o sinal +, o cátodo
46
tão positivo quanto o ânodo e a alta pressão quanto a
baixa pressão. Se falamos de luta, é unicamente por me
táfora ou, mais precisamente, por antropomorfismo. Se
existe dialética nas noções científicas, é apenas em vir
tude de certas exigências da linguagem e da consciên
cia57.
Assim também, prossegue o antimaterialismo, há
lirismo em pretender que a flor refute ou negue o botão
e que seja, por sua vez, refutada pelo fruto. A planta
amadurece, dá nascimento a um botão que desabrocha
e em seguida engendra a fruta: trata-se apenas de su
cessão de estados, todos positivos e diferentes uns dos
outros. A consciência tomará a akmé de cada um desses
estados e interpretará a seqüência dos fatos como com
bate dramático do seguinte contra o antecedente; assim
fazendo, romantiza. “A seriedade, a dor e a paciência”
do negativo só aparecem no nível do homem e da his
tória humana. Na idéia de uma dialética da natureza,
há uma transferência ilegítima de uma realidade revela
da ao nível da ação do homem, entregue ao trabalho e
à história, para a realidade natural. O ser humano é efe
tivamente agente dialético, reconhecem certos antima-
terialistas; transforma o dado por uma ação negadora
e o objeto original ou a situação nova que faz surgir
constituem, sem dúvida, uma superação; o devenir que
constrói e ao qual, ao mesmo tempo, se acha entregue,
é certamente dialético: a burguesia industrial engendra,
em função de uma necessidade própria, sua contradição,
o proletariado, que não pode deixar de trabalhar pela
supressão das classes. Essa lei histórica tem um senti
47
do, pois corresponde à prática econômico-social do ho
mem. O dado natural, ao contrário, nada manifesta de
semelhante: o terciário é diferente do secundário, a flor
diferente do fruto e a ciência tem por fim elaborar con
ceitos que expliquem a passagem de um estado ao esta
do diferente, e nada mais58.
Assim, mesmo quando reconhecem a existência do
devenir real da natureza, independente da consciência,
os adversários do materialismo surpreendem-se com que
se possa considerá-la submetida às leis da dialética. Ora
negam que se tenha o direito de falar de uma história
da natureza, a não ser no seio dessas “ontologias regio
nais” que são a cosmologia e a geologia; ora admitem
essa possibilidade, mas recusam a essas disciplinas qual
quer importância filosófica; em todo caso, declaram va
zia de significação real a idéia de um movimento dialé
tico da matéria que explicaria o devenir natural e o
aparecimento do homem e da história humana. O essen
cial da argumentação consiste, devemos insistir nesse
ponto, na concepção desses pensadores a respeito da lu
ta dos contrários e da negatividade. Ambas as noções
são consideradas por eles em termos de consciência:
58 Cf. esta observação de J.P. Sartre, Id. pp. 148-149, sobre a idéia
de Engels de que Darwin teria verificado em sua doutrina da evolu
ção o princípio da dialética materialista: “ . . . s e Darwin mostrou
que as espécies derivavam umas das outras,, sua tentativa de explica
ção é de ordem mecânica e não dialética... Quanto à luta pela vida,
não poderia produzir uma síntese nova pela fusão dos contrários: tem
efeitos estritamente negativos uma vez que elimina definitivamente os
mais fracos. Basta, para compreendê-lo, comparar seus resultados com
o ideal verdadeiramente dialético da luta de classes: neste último
caso, com efeito, o proletariado fundirá em si a classe burguesa na
unidade de uma sociedade sem classes. Na luta pela vida, •js fortes
fazem pura e simplesmente desaparecer os fracos”. Cf., ibid., p. 217:
“Não há “luta de contrários’* no seio da unidade material. Para di
zer a verdade, não há nem mesmo contrários: o quente e o frio são
simplesmente graus diversos na escala termométrica, passa-se progres
sivamente da luz à obscuridade: forças iguais e de sentidos opostos
se anulam e produzem simplesmente um estado de equilíbrio. A idéia
de uma luta de contrários é a projeção das relações humanas nas rela
ções materiais” .
48
contradição e negatividade alimentam-se, em última aná
lise, desse poder reservado ao espírito humano de não
ser mais ele próprio. Para esses pensadores, se o movi
mento dialético e não: aZloíosis (mudança) ou kínesis
(movimento) vem ao mundo, é sempre pela mediação
do existente humano que, no seu ato ou sua presença,
tem por propriedade ser “distância de si mesmo em re
lação ao objeto, e mesmo distância de si mesmo em re
lação a si mesmo”59. Sem o existente humano, haveria
apenas a positividade compacta do dado.
Percebe-se o sentido dessa crítica: consiste em opor
a uma visão pretensamente científica e objetiva uma
perspectiva mais humana e mais real que não pode dei
xar de recorrer ao papel determinante da subjetividade
como tal. O que se põe em questão, em suma, é a possi
bilidade, para a filosofia geral materialista, de construir
um humanismo que atribua à humanidade o lugar que
lhe compete e, em particular, reconheça seu papel na
construção de seu próprio destino. O erro do materialis
mo, comprometido com uma posição cada vez mais cien
tífica, está em considerar o indivíduo humano como
coisa™, que recebe do exterior as determinações que o
levam a ser o que é, a fazer o que faz, está em despre
zar — malgrado suas afirmações em contrário — o ca
ráter decisivo da tomada de consciência e silenciar so
bre a dimensão que confere ao existente humano sua
originalidade de ser: a liberdade01.
Esse preconceito de objetividade da filosofia mate-
49
rialista, prossegue a crítica, é encontrado em todos os
níveis: o devenir histórico é considerado como uma sé
rie de acontecimentos determinados pela infra-estrutura
e a categoria utilizada pelo historiador marxista é a de
causa6-', no domínio da crítica e da história do pensa
mento, tal poeta ou tal pintor é vinculado imediatamen
te ao meio social, econômico, que o leva a exaltar a tris
teza do destino individual, se pertence à burguesia deca
dente, ou a pintar reuniões de mercadores satisfeitos,
se participa de um mundo no qual triunfa a economia
mercantil; de modo mais geral, a situação, considerada
no sentido mais objetivo do termo, é considerada o fator
essencialmente determinante. Sem dúvida, o marxismo
fala de uma reação da superestrutura sobre a infra-es
trutura e admite que um escritor tenha “ manias” . Mas,
se o faz, é sempre em termos de causalidade; e, em úl
tima análise, a escolha do indivíduo é limitada ao aci
dental, permanecendo o essencial, produto da infra-es
trutura63.
Depois do materialismo e depois da dialética, é a ex
plicação materialista em história que, por sua vez, se
contesta. Ao longo desta pesquisa tentaremos mostrar
que tal refutação interpreta o materialismo histórico tal
como é apresentado por Marx com uma curiosa ampli
tude e só é válida contra as “ revisões” atuais04. Impor
ta, no momento, mencionar seus principais argumentos.
50
É evidente, antes de mais nada, que, ainda nesse nível,
o antimaterialismo contemporâneo não retoma as po
sições tradicionais do espiritualismo e do idealismo: não
interpreta o devenir humano como límpida manifesta
ção de uma vontade providencial, nem mesmo como re
sultado do desejo ou da vontade de alguns personagens
que as circunstâncias ou sua “ forte personalidade” pu
seram em condições de efetuar a contingência. Ao con
trário, as críticas do materialismo histórico parecem
conceder-lhe, de início, alguns de seus temas fundamen
tais03. O indivíduo é considerado “jogado” em um mun
do que não desejou, com uma estrutura existencial dada,
a braços com uma situação histórica que lhe é imposta.
Sua “ facticidade” é dupla: de um lado, ele é, faça o que
fizer, e, de outro, é isto e não aquilo: francês, burguês
e gago e não italiano, bem falante e proletário. Seu tra
balho, seus desejos, suas relações humanas, sua manei
ra de viver e de sentir não são nem o resultado de uma
graça (ou de uma desgraça), nem o fruto de seu capri
cho, mas fatos. E os fatos se compreendem à luz do pas
sado e do meio econômico e social: o proletário na Fran
ça, no meio do século XX, vive no seio de uma classe
que quer a paz e isso faz parte da história06.
Todavia, acrescenta o antimaterialismo, nada se dis-
52
Esse modo de conceber a ação e o papel do sujeito
leva a adotar, em relação ao problema da explicação na
história, uma atitude que contradiz a posição de rigor e
de objetividade definida pelo materialismo histórico. Ao
longo deste trabalho, repetimos, deveremos mostrar se
efetivamente o fato de considerar a história uma ciên
cia, aproximativa, sem dúvida, mas rigorosa, implica
que se renuncie a atribuir à primeira pessoa o lugar que
lhe compete. Os críticos do marxismo estão convencidos
disso e se comprazem, a esse respeito, em retomar, com
maior ou menor clareza, os argumentos expostos por
Dilthev e reformulados em óticas diversas, pela “ filoso
fia crítica da história” 09. A partir do momento, dizem
eles, em que o sujeito é interpretado — por motivos fi
losóficos — como irredutível poder de escolha, como lu
gar em que a significação se atualiza, torna-se absurdo
falar de determinismo histórico. O devenir faz aparece
rem situações que definem, quer dizer, limitam, e mar
cam o horizonte dos indivíduos; mas, o próprio de uma
situação é ser ambígua: este a considerará derrota, fu
turo bloqueado e ameaça de morte, aquele a apreende
rá como luta a encetar, futuro difícil e médium do he
roísmo70. É, portanto, debalde reduzir o sujeito histó
rico a uma causalidade qualquer, seja econômica, psí
quica ou ideal. Os pensadores subjetivistas consideram,
aliás, que, freqüentemente, o materialismo substitui a
determinação que era habitualmente considerada pelos
53
historiadores clássicos, a do caráter ou da vontade, uma
causalidade na aparência mais científica, mas igual
mente “ dogmática” e, finalmente, naturalista. Pois, em
suas perspectivas, o sujeito é liberdade: nada determina
Constantino a fundar Bizâncio; dirá o especialista que
os acontecimentos o solicitaram a edificar um centro
romano que estivesse ao abrigo das ambições bárbaras;
mas, essa não passa de uma interpretação, a que se po
de dar atualmente, agora que se pôde comparar o des
tino diverso do Império do Oriente e o do Ocidente. Cons
tantino nada sabia de tudo isso e seu ato fundador foi
uma aposta, triunfante, assim como a dos revolucioná
rios franceses da Comuna foi uma aposta perdida. As
sim sendo, se quisermos sistematizar uma visão “ con
creta” da história, deveremos evitar o excesso de objeti-
vismo que consiste em privilegiar o aspecto econômico
da evolução humana71. É evidente que a dimensão eco
nômica e social não deve ser desconhecida e que o “ idea
lismo” clássico que reduz os atores do devenir a psykai,
mais ou menos bem dotadas ou mais ou menos bem in
tencionadas é insuficiente; mas, igualmente insuficien
te é o método que pretende limitá-los ao papel de “ pro
dutores” ; é preciso “ inflar” a noção de situação a fim
de nela integrar todas as determinações próprias da exis
tência humana72. O econômico não deve ser concebido
como fato decisivo, mas com essa mansira de existir
54
muito importante que é vivida desta ou daquela manei
ra — e, em particular, como importante ou não — de
acordo com a própria existência do sujeito. Trata-se, em
suma, de um esforço de síntese que não recusa o cará
ter material do dado, que pode ser estudado objetiva
mente, mas que o recobre com alguma outra coisa que é
o sujeito, a inexplicável escolha cujo caráter contingen
te se impõe a quem quer que reflita sobre a noção de
ato humano. Sem dúvida dificilmente se verá em seme
lhante ótica, que uma história científica possa vir a lu
me. A essa última idéia, julgada ingenuamente positi
vista, o antimaterialismo histórico contemporâneo subs
titui ou o que chama de “ a colocação em perspectiva” ,
a partir da situação atual do historiador, ou uma espé
cie de crítica que visa esclarecer o dinamismo profundo,
oriundo do próprio indivíduo histórico, e, no entanto,
dele ignorado, graças ao qual os atos desse indivíduo
assumem sentido de conjunto. Seja o que for desse pro
blema epistemológico, a história rerum gestarum não
tem mais o caráter de disciplina objetiva, mas como um
dado de importância capital (porque, no plano ontoló
gico, o sujeito é considerado como ser temporalizante
que secreta a história = res gestas), e, por natureza;
ambígua, que uma primeira pessoa, igualmente ambí
gua, decifra e exalta em função de sua situação, de seu
projeto73.
De sorte que o devenir não tem um sentido, mas, de
acordo com uma fórmula célebre, sentido apenas; e, a
realização desse sentido, projetado existencialmente pelo
agente histórico (e pelo historiador) é, finalmente, pro
blema de vontade. Vê-se claramente, nesse nível, o as
55
pecto freqüentemente moral que assume a crítica con
temporânea do materialismo histórico. O que condena
no marxismo é a ênfase dada às motivações objetivas
que o leva a por entre parênteses o que permite um jul
gamento moral74: para poder condenar a ação de um in
divíduo, para poder apreciá-la, é necessário concebê-la
como livre; para todos esses pensadores, parece que a
idéia kantiana: “a liberdade é a ‘ratio essendi’ da lei mo
ral” é considerada definitiva, embora permaneça tácita.
Além disso, em sentido mais moderno, a filosofia parece
ser concebida, para eles, menos como saber daquilo que
é do que como reflexão arriscada sobre a vida, reflexão
graças à qual um sujeito, atualmente, pode reconhecer
sua situação e agir com lucidez. Compreende-se melhor,
nessa ótica, porque certos adversários do materialismo
estão prestes a reconhecer a precedência histórica da
matéria em relação ao espírito — como afirmações cien
tíficas — , sem que isso os leve a concordar com as ou
tras teses do marxismo. Admitem que o terciário prece
deu o quaternário; que o homem primitivo é o resulta
do de uma complicação orgânica; pensam, no entanto,
ao mesmo tempo, que isso não é interessante75. Pois a
vontade humanista, moralista, os obriga a situar-se no
56
âmago do drama do indivíduo, sofrendo e combatendo,
a braços com a adversidade da situação. Que importa a
pedra polida e a lenta progressão da humanidade, se a
verdadeira questão não é a do começo, mas a do destino!
O essencial é esse ser singular que está diante dos meus
olhos, que carrega com ele sua salvação ou sua decadên
cia, que arrisca sua vida ou sua dignidade em uma deci
são quotidiana. Se quero compreendê-lo, e compreendê-
lo para ajudá-lo, é menos à sua gênese do que à sua vi
são do mundo que me devo dirigir, à sua maneira de
existir. É de pouca importância que, antes do homem,
tenha havido pedras e amebas: atualmente um cogito
se interroga e se acha interrogado; a existência de um
ser vivo tem mais sentido do que a vida suposta e re
construída do Australopiteco. Ciência e saber filosófico
objetivo estão englobados na mesma recusa, a recusa
de uma especulação inoperante que repele para a região
remota das idéias ou de um passado morto a solução de
um problema que o menor olhar que encontra o meu
suscita com urgência e necessidade. Eis por que os ensi
namentos da ciência — nessa perspectiva que é muito
próxima da de Kant — são considerados, ao menos, co
mo insuficientes: o que importa, é ajudar o homem a
forjar para si um destino; a pretensão à objetividade é
considerada ingênua e logo, aos olhos desse humanismo,
a história, naturalis encontra a história sacra entre as
ocupações inventadas pela cultura para tentar esconder
a inquietação do homem em face do sentido de sua exis
tência.
Assim, o marxismo trataria com leviandade os pro
blemas da subjetividade; e, desse modo, se exporia a
uma grave contradição: defendendo uma explicação ob
jetiva da história, é levado a considerar o indivíduo co
mo determinado; mas, propondo uma prática política,
deve apelar para a responsabilidade das pessoas. Quan
do condena a covardia, a crueldade ou a hipocrisia des
te ou daquele, põe-se em contradição com sua teoria fi
losófica que define a consciência como reflexo e efeito
de um devenir e que apresenta a ideologia como produ
to do vir-a-ser. Como conciliar esse apelo feito à liber-
57
dade e ao julgamento com aquilo que o antimaterialis-
mo considera negação da liberdade?70 Essa dificuldade
é sintomática, segundo a crítica, da ruptura existente
entre a prática marxista, enxertada na vida, e sua teo
ria filosófica que, cega pelo preconceito objetivista, su
bestima o papel do sujeito, diminui a importância da
“ tomada de consciência” individual e se priva de toda
visão realmente humanista. Assim como a crítica do ma
terialismo apoiava-se na irredutibilidade do eu, assim
como as críticas à concepção dialética do ser material
fundavam-se na idéia da onipresença necessária de uma
consciência (ou de uma existência humana) negadora
e unificante, assim também a crítica feita ao materia
lismo histórico põe em evidência a obrigação em que se
encontra para explicar o ato do homem em manter a
dimensão que lhe é tradicionalmente concedida: a li
berdade.
58
apenas uma teoria vaga e não justificada, tomando ao
século X IX positivista seus preconceitos e seus mitos:
acredita ter ultrapassado, pela introdução de considera
ções dialéticas muito confusas, as insuficiências do ma
terialismo mecanicista: nem por isso deixa de permane
cer em ótica pré-kantiana; declara desenhar os contor
nos de um novo humanismo; suprime de fato o que há
de mais precioso no homem, a personalidade irredutí
vel. E essa carência geral, essa incultura de conjunto,
manifesta-se de modo especial, devemos repetir, no cons
tante menosprezo por toda pesquisa de uma prova uni
versalmente válida, de um saber apodítico que encontre
em si mesmo seu próprio fundamento. O marxismo co
locar-se-ia assim, na crença e na paixão sem fazer o me
nor esforço para delas libertar-se77: sua adesão às ciên
cias, sua fé na realidade das coisas, sua decisão de su
por uma lógica da história — posições que qualifica to
das de racionais — tornam patente seu engajamento
na atitude natural ou naturalista, engajamento jamais
criticado, jamais posto em questão. Talvez haja uma jus
tificação filosófica da sociologia, da economia política,
da política marxista. Em todo caso, não é a filosofia ge
ral materialista atual que pode proporcioná-la78.
Essa filosofia responderá a tais argumentos com ex
trema vivacidade; diante de tamanha incompreensão,
59
abandonará sua bonomia e sua tranqüilidade: adotará
claramente, o tom polêmico. Perguntará — e para ela
é uma questão decisiva — em que ponto de vista se co
loca a crítica para arbitrar esse pseudoconflito entre a
exigência filosófica e a concepção materialista. Devol
verá, assim, a objeção que lhe era dirigida: condenavam-
na por despreocupar-se em legitimar seus enunciados;
em nome de que pretende o pensamento não-materia-
lista chegar a princípios plenamente legitimados? A que
critério se refere? Afirma situar-se no ponto de vista
fundamental, no “pensamento” , na “ razão” , na “presen
ça” , no “ sentido” ; atribui-se, assim, arbitrariamente, a
possibilidade de julgar a partir de uma zona neutra,
prévia a qualquer opção entre o materialismo e o idea
lismo; não tem, no entanto, direito algum de fazê-lo,
concedendo-se uma prerrogativa em si ilegítima79. En
quanto afirma recusar qualquer pressuposto, pressu
põe que há um além ou um aquém, à luz do qual é per
mitido invalidar ou validar a atitude do cientista idea
lista, julgar a objetividade e optar, com toda lucidez,
pelo primado da matéria ou pelo do espírito.
Essa “ zona neutra” prévia, esse lugar universal só
existe para aqueles que nele pretendem encontrar-se. O
que de fato existe — e, ao ver da filosofia geral mate-
60
rialista que se funda em enunciados de Engels80, esse
é um dado histórico sobre o qual não cabe mais discus
são — , é uma oposição que domina todo o vir-a-ser do
pensamento: a do materialismo e do idealismo. E essa
oposição, a propósito da qual é inútil tergiversar, apa
rece na escolha que se faz no começo>81. Se escolhermos
como ponto de partida a consciência, e a interrogação
que dirige a si mesma, tenderemos imediatamente para
uma “ gnosiologia” idealista que, negando, no ponto de
partida, a existência do objeto e privilegiando a do sujeito,
correrá logo o risco de resvalar para o solipsismo ou a
teologia82. Se preferirmos considerar inicialmente o ob
jeto, a fim de determinar em que condições objetivas se
acha refletido na consciência, seremos levados a atribuir
toda a importância às ciências positivas e todo seu po
der à razão humana; estabeleceremos, então, as bases
de uma teoria do conhecimento materialista. Do mesmo
modo, se considerarmos o problema ontológico em sua
61
generalidade, é evidente que se abrem apenas dois ca
minhos: o do idealismo, que começa por colocar a rea
lidade do espírito, esforçando-se em seguida em dele de
duzir a essência e a existência da matéria, da natureza;
a do materialismo que, ao contrário, afirma a prece
dência da matéria e, em seguida, graças às informações
proporcionadas pelas disciplinas positivas83, mostra co
mo, dialeticamente, a natureza engendra a consciência
e a espiritualidade. A história do pensamento filosófico,
nessa perspectiva, perde qualquer obscuridade: fundan
do-se em um texto de Engels, considerado decisivo, as
exposições atuais do marxismo assim a simplificam: de
um lado, há os pensadores que sustentam o caráter pri
mordial do espírito em relação à natureza — “ esses cons
tituem o campo do idealismo” — ; de outro, há os que
consideram a natureza como o elemento primordial:
constituem “ as diferentes escolas do materialismo” 84. O
único problema, então, é o de saber que caminho é con
veniente trilhar: os fundadores do marxismo o indica
ram claramente, e é justo segui-los.
Assim como não há zona neutra, prévia, também
não existe terceiro caminho que permita conciliar os
termos dessa oposição irredutível. Pretender definir
62
esse terceiro caminho, tentar qualquer síntese, leva a
estabelecer a pior confusão, que só poderá ser desfeita
retornando-se à clara contradição inicial85. Entre os
dois “campos” , nenhuma área de entendimento é pos
sível: é absurdo, nessa ótica, cuja nitidez não podemos
deixar de reconhecer, não só admitir a possibilidade
“ gnosiológica” de uma dúvida de estilo cartesiano, mas
também de supor a existência de um elemento primeiro
indeterminado — o complexo ou a dualidade sujeito-
objeto80, por exemplo. Lênin, aliás, expõe claramente,
em Materialismo e empirocriticismo, as implicações últi
mas dessa concepção de conjunto quando define o ma
terialismo como postulação sustentada contra a postu
lação adversa, a do idealismo87. Afastar a idéia da pos
tulação filosófica necessária e a da escolha obrigatória,
é expor-se a construir sistemas “ acéfalos” cujo protó
tipo é o empirocriticismo.
Em outros termos, há uma tomada de partido, uma
“posição” partidária em filosofia, como nos outros do-
63
mínios88. Nenhum juízo, nenhuma doutrina tem di
reito de pretender fazer abstração de semelhante toma
da de posição. Há, no entanto, ao que parece, uma
obscuridade. Que significa essa postulação? O termo é
geralmente empregado pela epistemologia, para desig
nar um enunciado admitido como verdadeiro, embora
não mantenha e nem prove sua verdade senão no inte
rior do sistema do qual é o fundamento; que, portanto,
não é verdadeiro absolutamente, mas apenas relativa
mente a um dado sistema de referência e precisamente
ao sistema de referência que adota. Isso equivale a
dizer que nenhum conjunto de postulados e que ne
nhuma axiomática podem impor-se como verdadeiros a
não ser por uma escolha arbitrária feita pelo indiví
duo em função de alguma intuição prévia e de outra
ordem. Esse modo de considerar o problema não pode,
de modo algum, ser o do materialismo: não se trata,
absolutamente, de escolher arbitrariamente entre o idea
lismo e o materialismo, mas de optar por este último,
que é verdadeiro, contra o primeiro, que é falso 89. Assim,
o problema que se pretendia afastar, apresenta-se nova
mente, embora um pouco menos complicado. Admitindo
essa visão maniqueísta da história da filosofia e a noção
64
de escolha obrigatória, é preciso ainda saber que partido
convém escolher: onde está o vício e onde está a vir
tude?
A essa interrogação, os teóricos atuais do marxismo
procuram responder. Percebem a importância do pro
blema: vêem que precisam, ao mesmo tempo, defender
a noção de postulação e mostrar porque convém adotar
os principais enunciados do materialismo; encontram-
se, assim, compelidos a justificar a idéia — e, é preciso
dizê-lo, à primeira vista aberrante — de 'postulado ver
dadeiro', não têm a possibilidade nem de recorrer a parte
ante a um fundamento metafísico (análogo àquele ao
qual se refere a epistemologia formalista dos matemá
ticos, a “ intuição metafísica” de Hilbert, por exemplo),
nem de apelar, a parte post, como justificação, para o
êxito ou a eficácia da hipótese de trabalho escolhida90
(embora, na polêmica, entreguem-se freqüentemente às
facilidades de semelhante pragmatismo)91. De fato, só
resolvem a dificuldade transpondo-a para outro plano;
se, a seu ver, os princípios do materialismo dialético são
verdadeiros é porque refletem adeqüadamente e no nível
do conceito uma opção real que é justificada — dada
como justa, nos dois sentidos do adjetivo — por seu con
teúdo histórico: o “ campo” materialista seria validado
porque exprime, em sua generalidade, o ponto de vista
da classe operária; do mesmo modo, o “ campo” idealista
mergulharia necessariamente no erro e, hoje em dia, no
irracionalismo, no obscurantismo, porque traduz os in
teresses das classes exploradoras que, na época do impe
rialismo, sentem seu fim próximo e se esforçam, falsifi-
65
cando o conhecimento, em deter o movimento da his
tória.
Assim, a postulação filosófica que adota como prin
cípio fundamental o primado da materialidade e o ca
ráter dialético da realidade, implica e reflete uma esco
lha mais profunda, de ordem política. A posição de par
tido, simplesmente"-: trata-se, para o filósofo, de situar-
se nas perspectivas de conjunto do proletariado que luta
contra a exploração, de desentranhar as noções filosó
ficas imanentes que orientam essa luta e de ajudar,
assim, o seu desenvolvimento, iluminando-o, e levando a
luta também para o domínio ideológico. Essa transpo
sição do filosófico em político compreende-se facilmente
pela referência à teoria do reflexo, viga-mestra das
gnosiologias marxistas atuais. Cada doutrina filosófica
exprime, com particularidades devidas, sem dúvida, à
individualidade dos autores, o ponto de vista de uma
classe ou de determinada camada social. Assim, Platão
é um “ filósofo idealista da Grécia antiga, inimigo do
materialismo e da ciência, adversário da democracia
ateniense e defensor da aristocracia reacionária de Ate
nas” 93. Bergson, um “ filósofo idealista francês, místico,
inimigo do socialismo, da democracia e da concepção
materialista, científica do mundo94. Assim também, as
diversas escolas materialistas representam os diversos
níveis da luta de classes ou das camada sociais explo
radas: luta dos democratas contra os aristocratas na
Antigüidade, da burguesia contra as estruturas feudais
no século X V III, por exemplo95. O materialismo dialé
66
tico adota o ponto de vista do proletariado, da classe
oprimida, na época do capitalismo industrial.
Mas, essa opção política, feita pelo filósofo ao esco
lher o postulado materialista, é, ao mesmo tempo, uma
opção pela verdade, pela ciência, pela objetividade, pela
Razão e pelos valores humanos. O enigma contido na
idéia dessa postulação verdadeira explica-se pelo fato de
que, adotando ao mesmo tempo o ponto de vista da
classe operária e o materialismo dialético que o reflete
abstratamente, o filósofo escolhe, ao mesmo tempo, o
verdadeiro. E isso porque a classe operária como tal é
portadora da verdade. Quando a burguesia, nos séculos
X V II e X V III, esforçava-se em quebrar os quadros feu
dais que não mais correspondiam ao estado das forças
produtivas, produziu pensadores que defenderam os di
reitos da Razão e da ciência, como Descartes, ou parti
dários confessos do materialismo, como Helvetius ou
d’Holbach; Descartes, no entanto, permanecia sob o do
mínio da teologia90 e o materialismo francês permane
cia mecanicista. Esses filósofos só conseguiram alcan
çar uma parte da verdade: a burguesia, da qual refle
tiam os objetivos, era uma classe ascendente e inovado
ra, mas visava substituir a opressão feudal por outro tipo
de opressão; como classe ascendente, queria a objetivida
de; como classe interessada em manter a exploração do
homem pelo homem, não podia nem ver nem querer
toda a objetividade. O mesmo não acontece com o pro
letariado: este, em razão das condições históricas de sua
formação, de seu desenvolvimento, e de sua tomada de
consciência, engendra um partido revolucionário, che
67
fes políticos07 e teóricos98 que se acham, de certo modo,
habilitados por sua situação de partido, de chefes e teó
ricos do proletariado, a procurar, de acordo com o mé
todo conveniente, e a descobrir o que é verdadeiro nos
diversos domínios da ciência e aquilo que, em determi
nadas circunstâncias, constitui o bem e até mesmo o
que é esteticamente belo. Tal foi o caso de Marx e En-
gels que souberam, antes de qualquer pessoa, tomar par
tido simultaneamente em favor da classe operária e do
materialismo filosófico.
O que “ fundamenta” , portanto, em última análise,
a opção pelo postulado materialista, é o papel histórico
do proletariado. Essa noção, que efetivamente se encon
tra na obra de Marx, nos textos anteriores a 1860, em
particular09, ensejou, tanto por parte dos defensores do
marxismo, quanto de seus historiadores, numerosas in
terpretações. Não seria justo omitir a de Georges Lu-
kács, em sua obra célebre História e consciência de
classe que, apesar de seu caráter, ao que parece, errô
neo, representa uma tentativa de compreensão em pro
fundidade do marxismo, de importância e riqueza excep-
68
cionais100. Deve-se mencionar, também, a tese segundo
a qual a descoberta, por Marx e Engels, da missão da
classe operária estaria ligada a uma intuição ética que
teria ocorrido a esses dois pensadores, impressionados
com a situação atroz imposta pelo capitalismo de mea
dos do século X IX às classes exploradas 101. No presen
te capítulo, porém, poremos entre parênteses essas in
terpretações, por mais interessantes que sejam, pois tra-
ta-se de restabelecer esquematicamente a argumentação
formulada por essas filosofias gerais materialistas, que
constituem, atualmente, as apresentações oficiais do mar
xismo, as que são habitualmente admitidas e que susci
tam as críticas filosóficas mais significativas da situa
ção ideológica atual.
De fato, para esses teóricos, a idéia de “ missão his
tórica do proletariado” acha-se justificada de modo mui
to simples. As análises econômicas de Marx e de Engels,
os acontecimentos históricos a partir da Internacio
nal dos Trabalhadores, mostraram que a classe operária
é a classe radical, a que não pode se libertar da opres
são senão suprimindo a própria sociedade de classes.
Todos os movimentos revolucionários anteriores, os que
foram dirigidos pelos mercadores e artesãos de Atenas
contra as famílias nobres, os desencadeados pelos bur
gueses franceses e ingleses nos séculos XVTI e XVni, vi
savam assegurar a vitória de uma nova classe contra a
ordem antiga, supondo, no entanto, a manutenção na
69
servidão econômica de uma parte da humanidade, os
escravos na Antiguidade, o “povinho” das cidades e dos
campos na época moderna. Ora, de acordo com o que é
ensinado no Manifesto com unista 102, o regime capitalista,
em razão de radicalizar a exploração do homem e fazer
aparecer a verdade das relações sociais, torna possível
a tomada de consciência pelos oprimidos da raiz real de
sua miséria e a organização de um combate tendo por
objetivo o desaparecimento de toda alienação política e
econômica. Tornando-se assim classe “ para-si” 103, o pro
letariado, não só empreende a luta decisiva em sua ação
quotidiana — o operário que milita contra o patronato
capitalista age objetivamente em favor da supressão da
propriedade privada dos meios de produção e, assim,
contra o fundamento real do regime de classes — , pro
porcionando ainda no teórico que sabe colocar-se em seu
ponto de vista a perspectiva graças à qual todo o mo
vimento da história torna-se inteligível. Tomar o partido
da classe operária, aderir filosoficamente ao materialis
mo dialético, que é a Weltanschauung dessa classe, tra
balhar concretamente nas fileiras do Partido que a re
presenta, em suma, inscrever-se voluntariamente na
classe histórica que está destinada a realizar a história,
é, para o filósofo, tornar-se capaz de considerar o real
tal qual é, “ sem acréscimo de nada estranho” 104, e, ao
mesmo tempo, de posse assim do bom método, determi
nar o que é moralmente bom e o que é esteticamente
válido.
Mais ainda: a classe operária não é apenas a “ últi
ma” classe; “ é a classe que pelo seu trabalho está dire
70
tamente a braços com a natureza” 103. Assim sendo, e
de acordo com um esquema que é retomado da dialética
hegeliana do Senhor e do Escravo, pode “ conceber sem
mistificação as relações do pensamento e do ser e trazer
assim uma solução completa ao problema fundamental
da filosofia” 100. Nessa ótica, o proletariado é, em suma,
diretamente filósofo: a experiência que faz da realidade
material e das relações sociais em sua existência quoti
diana, lhe revela, melhor e mais profundamente do que
aos teóricos que vivem na abstração, a verdade filosó
fica 107. Esta se acha depositada, não no falso saber ela
borado pelos representantes das classes exploradoras,
mas na ação trabalhadora e militante do operário, mais
exatamente no Partido revolucionário que é a vanguar
da esclarecida do proletariado e na experiência acumu
lada pelos seus chefes 108. O que o proletariado cons
ciente compreende, de modo particular, é a importância
da prática social e é também o caráter errôneo de toda
concepção do mundo que considera a realidade como
espetáculo: porque está em luta direta contra a natu
reza, apreende imediata e concretamente a mentira da
filosofia idealista e da religião e o modo unilateral, a
insuficiência com que o materialista mecanicista enfoca
105 Ibid.
106 Ibid.
71
e resolve o “problema fundamental” . Justifica-se, assim,
a fórmula de Marx: “ o proletariado é o herdeiro da fi
losofia” 100.
Elemento motor da história contemporânea e cons
ciência verídica da relação do homem e da natureza, a
classe operária nada tem a temer dos resultados obtidos
pela ciência. Assim como a burguesia, em sua fase as
cendente, apoiava-se nas disciplinas experimentais a fim
de denunciar a ideologia mistificadora do feudalismo
decadente, assim também o proletariado aceita e utiliza
em seu combate as lições do pensamento científico. Po
de, no entanto, ir mais longe do que os pensadores do
século X V II: sua posição histórica de classe “ última” , o
desenvolvimento das forças produtivas, o progresso das
técnicas, a própria obra de Marx e de Engels no domínio
das ciências do homem, permitem-lhe compreender em
seu verdadeiro sentido as leis que refletem os proces
sos da realidade objetiva, e confiar espontaneamente na
ciência e na Razão. De modo mais geral, a classe ope
rária, em seu próprio interesse, procura espontaneamen
te a verdade, que só lhe pode ser útil na medida em que
sua descoberta acelera o movimento da história e apres
sa o triunfo de seus objetivos. Eis por que combaterá
com a maior energia todas as falsificações que procura
rão impingir os representantes das duas classes explo
radoras. A verdade do proletariado, praticamente reali
zada nas lutas travadas pelos operários contra o capita
lismo e pelos Estados socialistas contra os Estados im
perialistas, teoricamente desenvolvida pelo Partido revo
lucionário em sua doutrina, é, de fato, a verdade da hu
manidade toda. São necessários todos os artifícios, todas
as violências das classes em declínio para que essa idéia
72
não seja aceita como evidente por todos aqueles que não
se beneficiam da exploração110.
É, pois, uma só e mesma coisa dizer que o proleta
riado tem uma missão histórica e designá-lo como “ clas
se universal” . Na verdade, a expressão correta dessa vi
são verídica da realidade é a tarefa do partido que orga
niza a ação da classe operária. Este, considerando ape
nas sua tarefa teórica, reúne e compreende as experiên
cias múltiplas e, graças ao método materialista dialé
tico, delas extrai lições de conjunto que lhe servirão para
guiar o militante em seu trabalho político, o cientista,
o filósofo e o artista em suas pesquisas. Se é verdade,
com efeito, que a ciência, a arte, a filosofia são super
estruturas refletindo a classe que as suscita, se é ver
dade que existe, como Marx provou, uma economia po
lítica liberal, que exprime, sob as aparências de uma
pseudociência, a alienação do trabalho em regime capi
talista m , e que há uma filosofia que, como Engels dei
xou claro, tende a manter os privilégios dos proprietá
rios, o idealismo, também é verdade que há uma arte e
110 Em relação a todo este assunto, cf. Garaudy id., pp. 151, 152,
e Teoria m aterialista..., pp. 318-319: “ A classe operária não é ape
nas a classe ascendente em dado momento da história. É a última
classe que exercerá uma dominação de classe; tem a missão histórica,
pela ditadura do proletariado, de criar as condições da sociedade sem
classes, do comunismo, e de instaurá-la; essa classe operária não vê
ascender, depois dela, nenhuma classe nova que estivesse destinada a
ser seu coveiro. Eis por que não precisa, em momento algum de sua
evolução, falsificar nem tentar deter a marcha do tempo. Pode explo
dir todos os freios da história porque nada tem a temer da história.
Identifica-se com a ciência” .
111 É assim que R . Garaudy, Humanismo marxista, pp. 261 ss. justi
fica a idéia de posição de partido em todos os domínios científicos e
na arte, pela referência à crítica feita por Marx à economia política
burguesa: “ Para descobrir, atrás do que a economia política burguesa
considerava como um dado inicial, a propriedade capitalista, por
exemplo, uma relação entre os homens e uma relação contraditória,
era necessário colocar-se em um ponto de vista diferente do ponto
de vista burguês: do “ ponto de vista” daquele que sofre essa contradi
ção, que é esmagado ou dilacerado por ela” .
73
uma ciência que refletem o ponto de vista do proleta
riado11-. Desde então, para quem sabe ver, as coisas se
tornam muito claras: o partido da classe operária e seus
dirigentes, pelo fato de resumirem em seu saber a ótica
da classe “ universal” possuem a capacidade de definir,
nos diversos campos do conhecimento e da cultura, a
perspectiva justa e têm o direito de interferir para orien
tar as pesquisas113. No caso preciso do trabalho filosó-
113 Cf. R . Garaudy, id.t p. 277: “ Essa função do partido não cons
titui entrave, mas estímulo ao intelectual criador: a lembrança dos
princípios fornece-lhe as coordenadas sociais de todo pensamento e
de toda criação, dá profundidade e coesão às suas análises e às
74
fico, importa elaborar obras que correspondam às exi
gências do momento na luta contra o “ campo” dos ex
ploradores, de participar, no campo de batalha ideológi
co, do combate militante. A posição de partido em filo
sofia, que se funda em uma posição de partido em polí
tica, determina certo estilo de filosofar do qual a preo
cupação política jamais estará ausente.
Tal é a concepção de conjunto, com certas variações
devidas precisamente às circunstâncias114, afirmam as
filosofias gerais marxistas, concepção que a filosofia tra
dicional e as diversas correntes subjetivistas ignoram.
Os pensadores que criticam o materialismo dialético pre
tendem, quando não têm a ingenuidade ou a hipocrisia
de desconhecer deliberadamente o problema político, co-
locar-se “ acima das classes” e repensar o conjunto das
questões de seu ponto de vista, à luz apenas de sua “ vi
vência” ou de qualquer razão abstrata. As refutações
que elaboram são freqüentemente hábeis: não atingem,
porém, seu objeto, pois esquecem ou fingem esquecer o
fato fundamental, a existência de uma luta de classes
que repercute em todos os setores do pensamento. Na
realidade, a afirmação, atualmente, de que é possível si
tuar-se nessa famosa “ zona neutra” , nessa “ esfera pré-
objetiva” , anterior à escolha entre a postulação idealista
e a postulação materialista, a partir da qual poderíamos
julgar da validade de uma ou de outra (assim como a
75
pretensão de julgar em nome de que não se sabe que
concepção objetivista da pesquisa biológica, a respeito do
debate entre os partidários de Mendel e os mitchourinis-
tas) remete a essa idéia, historicamente absurda, de
que é permitido situar-se fora da luta de classes. E aque
les que sustentam semelhante tese, queiram ou não, pro
porcionam um auxílio real ao campo dos exploradores,
detêm o movimento da história e dificultam o desabro-
chamento dos valores mais altos da justiça e da solida
riedade .
76
referem ao domínio propriamente político — seria pre
ciso que, por um lado, a análise sociológica e histórica
pudesse definir de maneira incontestável a existência de
uma classe proletária conceituada univocamente, e por
outro, que se pudesse, a partir do estudo de fatos, defi
nir com suficiente precisão o conteúdo dessa consciên
cia proletária genérica e discernir na evolução, ao me
nos a partir do século passado, a existência e a constân
cia de uma vontade única da classe operária. Ora, pros
seguirá a crítica, mesmo admitindo a validade de con
junto da análise econômica de Marx, e reconhecendo
que há certa unidade de situação dos explorados no
mundo inteiro, resta que, para o estudo sociológico ri
goroso, por motivos históricos igualmente importantes,
essa unidade se fragmenta em elementos diversos e que
é impossível, do ponto de vista sociológico, falar em um
proletariado mundial. E fácil notar qiie, já nos traba
lhos históricos de Marx, a noção de proletariado está
longe de ser unívoca; atualmente, com o progresso dos
meios de investigação, verifica-se que o “ fato proletário”
interfere com outros fatos, o fato nacional, o fato pro
fissional, o fato da migração e da colonização, de tal
sorte que uma pesquisa deve antes falar, se quiser per
manecer fiel aos dados, de uma multiplicidade de cama
das sociais exploradas, com interesses objetivos diferen
tes, que podem entrar em conflito umas com as outras
por causas objetivas ou unir-se contra a exploração, de
acordo com as circunstâncias115.
Essa diversidade de fato também se encontra quan
do se examina a consciência desses grupos. A diversi
dade das situações em que se encontram os diferentes
proletariados nacionais, e, no interior deles, as rivalida
des que podem surgir entre as profissões “ refletem-se”
precisamente na consciência dos proletários. E fácil atri
buir essa diversidade à ação da classe exploradora e do
77
aparelho de Estado nos países capitalistas: é mais cien
tífico verificar que o proletariado de determinado país,
em conseqüência de determinada conjuntura histórica,
pode adotar, por exemplo, uma atitude “ xenófoba” ou
entregar-se ao reformismo, renunciando à luta de clas
ses . Interpreta-se a história com estranha latitude quan
do se vê nessa luta apenas um conflito entre dois cam
pos bem delimitados e com clara consciência de seus
interesses e ideais. Assim como há contradições no seio
da classe dos proprietários dos meios de produção, se
nhores do Estado, o fato é que existem antagonismos
entre as diversas camadas de explorados e que falar de
uma consciência proletária genérica constitui mais um
voto piedoso do que uma observação. Marx e Lênin, aliás,
não insistiram nos “ erros” que pode cometer a consciên
cia proletária e na necessidade de uma ciência118 e de
um partido que saibam explicar a situação e mobilizar
a energia operária sempre arriscada a ignorar seus ver
dadeiros interesses.
Se há uma classe proletária lúcida, não pode pois
ser em virtude de uma situação objetiva que, mecani
camente — ou dialeticamente — produziria a capaci
dade de apreciação justa em todos os domínios da ação
e da cultura. É curioso observar, a esse respeito, salien
tará ainda a crítica antimaterialista, que esses filósofos
marxistas que afirmam, de um lado, admitir a jurisdição
dos fatos como única, usam, para justificar a noção de
missão histórica do proletariado, idéias que não estão
isentas de misticismo. É sem dúvida tentador atribuir
— nas pegadas do jovem Marx 117 — significação espe
cial ao sofrimento a que está condenada a classe ope
rária no regime capitalista e ver na situação de extrema
privação que lhe é imposta a condição dialética de sua
116 Cf. Lênin, Que fazer?, II, A espontaneidade das massas e a cons
ciência da social-democracia, Obras Escolhidas, t. I, pp. 195-217.
78
completa liberação; e parece igualmente cômodo — e os
críticos do materialismo parecem o ter admitido algu
mas vezes118 — atribuir um poder histórico extraordi
nário àqueles cuja profissão põe em contato direto com
a dura materialidade e assim experimentam em sua
vida quotidiana a relação autêntica com o mundo sen
sível. A análise efetiva, porém, tanto filosófica quanto
sociológica, mostra o quanto são aproximativas seme
lhantes noções. É verdade que, na obra de Hegel, a dor
e o trabalho desempenham o papel de mediadores de
excepcional importância; deverá, porém, uma concepção
científica admitir, sem maior aprofundamento, conceitos
que só adquirem significado no seio do idealismo de
Hegel e que constituem a parte mais mística, a menos
válida, do legado hegeliano? Em todo caso, terá sentido
condenar o hegelianismo que faz “o homem andar de
cabeça para baixo” e tomar ao sistema suas idéias mais
contestáveis?
Na verdade, a tentativa de fundamentação que vai
da afirmação da verdade da opção materialista à posição
de uma classe universal incumbida de cumprir o destino
da humanidade suscita um novo messianismo, cujas con
seqüências tanto filosóficas quanto políticas são graves.
Faz do materialismo dialético uma filosofia da história.
Observa-se aí uma contradição; pois, precisamente, as
filosofias da história, de Santo Agostinho a Hegel, pas
sando por Vico, Herder e Comte, caracterizam-se por seu
desdém para com a análise objetiva rigorosa, pela von
tade de salientar um elemento único de formação ou
de transformação, mesmo em detrimento da diversidade
imposta pelos acontecimentos, e pelo seu aspecto não-
científico. Tudo se passa como se, para semelhante in
terpretação do marxismo, a ótica de conjunto do mate-
79
rialismo constituísse mera laicização de dados que se
tornaram tradicionais por meio de certas concepções
cristãs: a alienação do proletariado é o pecado original;
seu sofrimento é o análogo da Paixão do Cristo e o ho
mem total, por vir, o homem liberto de todas as contra
dições, evoca o momento da Ressurreição dos Corpos, o
Fim dos Tempos119.
Essa idéia de uma virtude específica do proleta
riado, que teria a capacidade de fazer o que convém para
realizar o destino da humanidade, de querer o que é pre
ciso querer para realizar as mais altas virtudes, é tão
manifestamente insuficiente no domínio da prática que
os teóricos materialistas freqüentemente criticaram o
“ espontaneísmo” e insistiram no fato de que a Weltans-
chauung proletária, para adquirir toda sua força e toda
sua clareza, deve refletir-se no partido operário (que re
colheu, ele próprio, a herança dos fundadores do mar
xismo) . Na verdade, o agente histórico eficaz, para os
pensadores já mencionados, parece ser menos o proleta
riado, “ classe para-si” , do que o partido que exprime seu
estado de espírito e mobiliza sua vontade. Assim, entre
o elemento propriamente conceituai da doutrina — o
materialismo dialético — e a “ visão do mundo” proletá
ria, introduz-se um termo mediato: o partido operário.
A crítica filosófica poderá, a esse propósito, propor-se
múltiplas questões; verá, no fato de que é necessário re
correr à mediação de uma organização à qual aderem os
indivíduos a prova de que a teoria do reflexo é incapaz
de explicar a prática e que não há “ consciência prole
tária” , mas antes uma consciência que escolhe esta po
lítica e não outra, estes valores e não aqueles; preo
80
cupar-se-á, então, com o alcance que se pode atribuir a
semelhante fundamentação. Pois, se é obscuro afirmar
que as quatro leis da dialética são verdadeiras porque,
afinal de contas, exprimem em alto grau de elaboração
a concepção proletária, torna-se inaceitável considerá-
las válidas porque são reconhecidas como tais pelo par
tido que se declara operário; que prova temos de que é
esse partido e não aquele outro — pois há vários parti
dos que invocam o marxismo e a classe operária. — que
reflete os interesses do proletariado? Será legítimo sub
meter a apreciação filosófica à variação das situações
políticas? Quem tem razão, o Lukács que escreve Histó
ria e consciência de classe, ou o Lukács que redige Exis
tencialismo ou Marxismo? Não se abrirá caminho à con
tingência, ao arbitrário e ao dogmatismo confiando a
uma organização, a dirigentes que podem ser dominados
pela paixão e que, em todo caso, são obrigados, pela sua
própria situação de políticos, a levar em conta as con
junturas históricas, o cuidado de fixar a “ linha” ideo
lógica? O exemplo recente, que se convencionou chamar
de stalinismo, mostra a que desoladores excessos, a que
sectarismo e também a que versatilidade é arrastada a
pesquisa teórica.
Finalmente, assim apresentada sob os auspícios do
espírito de partido que constitui sua justificação última,
o materialismo dialético perde todas as características
próprias de uma doutrina filosófica. A idéia de que há
um espírito de partido em filosofia é, na verdade, uma
confissão: a confissão de que o problema filosófico como
tal, e especialmente o do fundamento, devem ser afas
tados como desinteressantes, e que a única questão que
realmente importa é política e que a mensagem filosó
fica deve ser considerada uma arma como as outras, lan
çada na luta ideológica. Depois de Lênin, o materialis
mo filosófico manifesta-se como um mito 120, que, para
melhor convencer a camada flutuante dos “ intelectuais” ,
assume todos os aspectos de uma filosofia, embora tenha
81
por fim único permitir uma vitória do proletariado ou,
mais exatamente, desse partido ou desse Estado que afir
mam refletir os objetivos da classe operária. Sob essa
luz, todas as variações, todas as contradições dos teóri
cos materialistas se compreendem; de acordo com o mo
mento histórico e as exigências da luta, tal aspecto ssrá
silenciado, tal outro será exaltado, tal pensador não-
materialista será qualificado de “ idealista” que faz o
jogo da classe exploradora ou de “ companheiro de jor
nada” provisoriamente extraviado; o materialismo se
apresentará ora como uma filosofia geral, que resolveu
em suas linhas gerais o problema do ser e do conhecer,
ora como prudente disciplina positiva que se contenta
em resumir os resultados das ciências121. A doutrina em
seu conjunto é um “ Proteu inapreensível” 122 que, na dis
cussão, foge constantemente, passa sem deter-se de um
plano a outro, misturando, sem a menor preocupação de
clareza, a pesquisa filosófica, certos resultados científi
cos e considerações políticas, e que encontra, como últi
mo argumento, uma objurgatória de ordem moral: aque
le que não aceita os enunciados fundamentais do ma
terialismo ajuda um regime que mantém no mundo a in
justiça, a desordem e a miséria.
Que aceite ou não o “ marxismo prático” — enten-
de-se por isso a política que invoca o marxismo — , que
se preocupe ou não com política, a crítica antimateria-
lista admite geralmente como refutação decisiva o fato
de que o materialismo dialético, ao menos tal como é
exposto na França, em particular, pelos seus teóricos
oficiais, não é uma filosofia, que se apresenta como filo
sofia uma doutrina vaga e contraditória que, contraria-
82
mente à tradição da filosofia, postula seus princípios e
não consegue justificar-se senão referindo-se a um prin
cípio extra filosófico, não justificado, a confiança na
ciência ou o espírito de partido. Limitado ao seu aspecto
sociológico ou considerado como doutrina econômica,
considerado igualmente como perspectiva política, o mar
xismo poderia ser admitido e discutido como tal. A dis
cussão torna-se impossível a partir do momento em que
pretende ser uma concepção filosófica, uma vez que se
recusa a formular em termos filosóficos o problema da
prova ou do fundamento e que resolve esse problema por
meio de simples postulação ^ . Dizer que não há “ zona
neutra” , lugar a partir do qual se possa julgar o “ valor
da ciência” , por exemplo, é confessar que se renunciou
a fazer filosofia, que se renunciou ao universal e talvez
mesmo ao livre exercício do pensamento.
83
losófico. Eminentemente contestável em seu conteúdo, o
materialismo dialético logo revela, na polêmica, sua ca
rência essencial: sua incompreensão da problemática pró
pria de um pensamento que reivindica o título de filo
sofia, a elaboração de uma prova ou de um fundamento
que não proceda de outro critério que não seja a exi
gência da livre reflexão esforçando-se, em face da di
versidade dos fatos e dos julgamentos, na pesquisa mais
aprofundada e menos preocupada com as convenções.
O teórico materialista não aceitará essa derrota: re
cusará, por sua vez, o tribunal da livre reflexão, afir
mando que se trata, no caso, de um ardil do idealismo
— e, conseqüentemente, da ideologia dominante em re
gime capitalista — e que a pretensão de julgar fora da
opção fundamental, idealismo-materialismo, é em si ina
ceitável. Retomará os argumentos de acordo com os
quais é desconhecer o caráter superestrutural da filoso
fia conceder a qualquer princípio, seja qual for, vivên
cia, consciência empírica ou transcendental ou razão de
sencarnada, o direito de ditar leis sem levar em conta a
tomada de posição inicial. O debate desemboca assim na
obscuridade e na confusão. O esclarecimento que se es
perava alcançar, partindo da situação característica da
França ao longo desses últimos quinze anos, revela-se
impossível. Tratava-se de saber qual dos dois, se o ma
terialismo ou o antimaterialismo, traz a prova de sua va
lidade. Ora, a exposição esquemática dos argumentos
trazidos de parte a parte mostra que a noção de prova,
na qual supunham poder apoiar-se, se não para resol
ver, ao menos para pesar o positivo e o negativo, não é
compreendida por uns e por outros do mesmo modo.
Mais precisamente, parece que a refutação antimateria-
lista mantém a idéia da prova tal qual se apresenta ná
tradição filosófica: provar um enunciado, é tentar tor
ná-lo aceitável por todo indivíduo de boa-fé, é propor co
mo legitimação única a de um pensamento que chegou a
libertar-se do particularismo e da paixão.
Esse critério, as filosofias gerais marxistas parecem
aceitá-lo inicialmente; chegam mesmo a erigi-lo em prin
84
cípio absoluto. Mas, nas demonstrações que apresen
tam, verifica-se que admitem, na extrema confusão, um
modo de legitimação diferente. Parece que hesitam cons
tantemente — hesitação ou astúcia? — entre um tipo
de justificação filosófica, caso em que são rapidamente
vencidas na discussão, e algum outro tipo de legitimação
que não chegam, por cegueira, ou não querem, por pro
paganda, definir. De qualquer maneira, a interpretação
da idéia da prova no domínio teórico constitui o ponto
de ruptura mais nítido, embora nem sempre o mais re
conhecido, entre o materialismo e seus adversários con
temporâneos .
Assim, o debate que opõe o materialismo dialético
"oficial” e seus críticos, a esterilidade e a confusão dos
resultados aos quais chega, a hipoteca que faz pesar so
bre o pensamento essa confusão exige que se formule
mais precisamente a questão da prova: de um lado, o
antimaterialismo recusa-se a admitir como válida outra
pedra de toque além de uma pesquisa que não aceita
“ fato” algum senão aquele que o pensamento livre e au
dacioso reconhece como fato incontestável; de outro, o
materialismo que, desastradamente, tenta mostrar que
semelhante método leva a validar qualquer opinião, mé
todo esse que admite como “ fato” decisivo dados que são
apenas dados, em sua própria opinião.
A digressão que fizemos, ao formular tão difícil
questão, parecerá talvez excessiva. Não é possível evi
tá-la quando se quer sair da ambigüidade em que se
debate, e na qual às vezes se compraz, a pesquisa teó
rica atual.
85
II
O Exercício da Filosofia
e o Projeto do Enunciado
Integralmente Legitimado
86
há mais na obra de Marx, no marxismo-leninismo, do
que na versão que dele atualmente nos apresentam, na
França em particular. O meio de verificar a validade
desse pressuposto, dessa hipótese, é perguntar se o filó
sofo tem razão em querer semelhante prova, é saber o
que reclama então e a que exigência atende quando o
faz. Assim sendo, as primeiras questões que se impõem
são as seguintes: que é, para o filósofo, a prova filosófica,
e por que a procura? Essa procura corresponde realmen
te à vontade filosófica tal qual se manifesta desde Pla
tão? A que tipo de prova chega então o filósofo? A esse
conjunto de questões, três respostas são concebíveis: ou
bem o exercício da filosofia é efetivamente esse esforço
para construir um enunciado totalmente legitimado e
o filósofo é, então, bem sucedido, ou capaz de ter êxito
em semelhante empresa; ou bem a filosofia é outra coisa,
que será conveniente determinar, por exemplo, uma vi
são do mundo expressa sistematicamente; ou, enfim, é
realmente essa tentativa de fundação integral do enun
ciado, que jamais completamente realizada, exige, por
isso mesmo, sua superação.
Trata-se, pois, de examinar o que quer dizer: prova
em filosofia e, isso, para o filósofo. Há audácia em for
mular semelhante questão que equivale, em suma, a per
guntar o que é a filosofia, isto é, o que pretende o filó
sofo. A preocupação em dissipar a confusão da situação
ideológica atual fará, talvez, perdoar essa audácia.
87
pois, acrescentar alguma qualificação ao substantivo
“ concepção” , graças à qual uma diferença ou uma opo
sição aparecerá. Essa qualificação é variável: freqüen
temente contentam-se em esclarecer: concepção geral do
mundo. Diz-se, assim, alguma coisa, pois distingue-se a
filosofia do que não o é, conferindo-lhe a generalidade.
Esta, no entanto, é difícil de entender como tal: é pre
ciso, para compreender o conteúdo de tal definição, refe
rir-se a uma concepção do mundo que não fosse geral,
quer dizer, uma concepção especial ou individual. É evi
dente, desde esse momento, que o progresso, embora
ainda não muito claro, é sensível: de um lado, há ho
mens que têm sobre a realidade uma visão de conjunto,
unindo os diversos aspectos do dado em um todo e que
exprimem essa “ visão” em um contexto, o contexto filo
sófico, precisamente; de outro, há homens que, em sua
linguagem, limitam-se a refletir sua própria maneira de
ver e de sentir ou da coletividade natural, profissional
ou institucional da qual participam. A distinção, no en
tanto, não é ainda bem nítida, e é difícil dar-lhe um
conteúdo preciso e real: pode-se, por exemplo, opor “bom
senso” e “ filosofia” , “ afetividade” e “ razão” , “ imediatida-
de da vida” e “reflexão” e assim por diante. Mas, desta
vez, diz-se demais e dificilmente se percebe porque os
dois termos se opõem: percebe-se, confusamente, sem
dúvida, o que os distingue, mas não a significação e a
importância dessa distinção.
A fim de que apareça com nitidez, seria necessário
que a idéia de concepção não-geral do mundo fosse de
terminada e que se pudesse atribuir-lhe algumas quali
dades intrínsecas. Assim, a oposição assumiria um con
teúdo e a idéia de filosofia atributos mais bem definidos.
Ora, o pensamento grego nos fornece um conceito de
grande riqueza graças ao qual um novo progresso se tor
na possível: o conceito de doxa. Desculpamo-nos por con
servar o vocábulo grego: a tradução implica o risco de
introduzir ambigüidades: “senso comum” , “ bom senso”
e “ opinião” , aceitáveis literalmente, devem, no entanto,
ser evitadas, a primeira expressão por ter um matiz pe
jorativo desagradável, a segunda por conservar em fran
88
cês algo da bona mens cartesiana, e a última, finalmen
te, por remeter a a priori sociológicos que devem ser
evitados. A doxa pode ser descrita como um sistema de
crenças manifestando-se na prática, na conduta, nos sen
timentos e nas falas, crenças tais que, quem as possui
nada mais deseja, e pensa, graças a elas, que atinge ne
cessariamente a satisfação em todos os domínios: êxito
na ação, felicidade na alma e justeza no julgamento.
Por si, a doxa é certeza que não sonha sequer em con
frontar seu conteúdo com qualquer outra “ visão do mun
do” : se o homem da doxa fala, é para dizer e não para
discutir; situa-se, de início, na esfera da plenitude sa
tisfeita e, se lhe ocorre utilizar a linguagem de modo
não utilitário, o faz na afirmação segura de seu valor.
Assim, considera-se como se tivesse recebido de nascença
uma espécie de graça que o premune não, sem dúvida,
em relação a qualquer malogro ou qualquer inexatidão,
mas do grave malogro e do erro que arruina. Essa “ gra
ça” , que é seu apanágio, lhe indica o que convém fazer
e pensar no momento adequado: suas crenças refletem,
em suma, exatamente, graças a uma espécie de harmo
nia preestabelecida, o ordenamento e a distribuição do
mundo. Ele sabe e não cogita de perguntar-se se sabe
realmente pois vive seu saber como se correspondesse
imediatamente ao que é. O privilégio do homem que
vive na d o m é análogo ao que experimenta o poeta ins
pirado: mesmo que não me sinta inspirado, apreende-se
como possuidor de uma virtude que lhe garante que não
falhará essencialmente, que saberá fazer, sentir e conhe
cer, quando for necessário. Considerada fora da contes
tação filosófica (ou da contestação de outras doxoi,
achando-se as duas coisas ligadas), a “ opinião” situa-se
espontânea e constantemente em um universo onde não
há outra coisa a fazer ou a pensar senão o que ela reco
menda: não considera ainda (ou mais precisamente,
ainda não possui) a oposição do erro e da verdade; sim
plesmente, ela, possui o sentido — que não compreende
e não procura compreender — e tudo o que não é ela é,
a seus olhos, desprovido de sentido.
89
Em si, é fácil aproximar o homem da doxa do indi
víduo pertencente a essas coletividades antigas onde o
laço social é naturalmente tão estreito que nenhum de
seus membros poderia constituir-se separado. Cada um
se reconhece nos valores, nas práticas e nas “ idéias”
adotadas pelo grupo e nenhum solicita outra coisa além
desse reconhecimento imediato, recebido como plenamen
te satisfatório: os deuses dos ancestrais são deuses pro
tetores — não de todo homem, o que permitiria supor
que se preocupam com os outros — , mas daquele que
precisamente tem esses deuses como protetores; as prá
ticas agrícolas e artesanais legadas pelos pais, são práti
cas eficazes; e a maneira de viver é a que convém exata
mente à satisfação do desejo. A inserção na coletividade
(notemos que, evidentemente, não se trata, em uma
perspectiva histórica, senão de um limite) é tão completa
que a outra coletividade, cuja existência outra é experi
mentada nas trocas e na guerra, não chega a assumir
importância; é totalmente relegada à estranheza da
outra, daquilo que o filósofo chamaria de inconcebível.
Qualquer inquietação que apareça, permanece interior ao
grupo: resulta, por exemplo, do temor de não viver com
os deuses ou de compreendê-los mal. Deve-se observar
que a certeza da doxa concerne não só os sentimentos
e a “ visão do mundo” mas ainda as téknai e a distribui
ção dos privilégios sociais: nesse sentido, a “ opinião”
constitui a expressão de uma atitude existencial que des
preza, como sem alcance real, todo modo de existência
diferente e que se apreende como absolutamente satis
fatória. Tal é, ao que parece, o verdadeiro estado da
certeza imediata que parece menos ser a presença irre
dutível do hic et nune sensíveis, do que a constante igual
dade consigo mesmo nos sentimentos, ligada à plena sa
tisfação da existência dada (dada e não conquistada por
um esforço qualquer, do pensamento ou da ação).
A doxa não formula questões: constitui antes uma
coleção de respostas. Esclareçamos que, evidentemente,
este último enunciado vale apenas em si, pois o homem
da doxa para-si, não formula nem questão nem respos
ta: a linguagem é utilizada por ele como comentário,
90
pontuação ou substituto da ação. O único questionário
é o que lhe impõe sua existência e as respostas que ele
dá são, a seu ver — quer dizer, na etapa histórica em
que se encontra — inteiramente satisfatórias. Todavia,
em função de um devenir próprio que não poderíamos
aqui estudar, — tarefa da ciência histórica — , sobrevêm
um momento no qual as condições da existência se trans
formam de tal maneira que a coletividade não mais pode
permanecer enclausurada em seu particularismo; ao
mesmo tempo, no interior dos próprios grupos, o desen
volvimento das técnicas de produção suscita relações so
ciais novas que são fermentos de dissolução do antigo
vínculo social. No caso do mundo grego, por exemplo,
que, por motivos geográficos e históricos é particular
mente significativo, o desenvolvimento simultâneo da
técnica artesanal e da economia mercantil, o aperfeiçoa
mento dos processos, o aparecimento de uma classe ser
vil importante, o crescimento do número de indivíduos
que, voluntária ou involuntariamente, desprendem-se dos
constrangimentos impostos pelos géne constituem causas
efetivas que contribuem para arruinar a certeza das cren
ças tradicionais. A esse respeito e a títulos diversos, em
bora as produções literárias assinalem considerável atra
so em relação às consciências, obras como as de Hesío-
do, Ésquilo e Heródoto manifestam essa dúvida que vem
corroer as grandes certezas herdadas dos tempos pas
sados. Os grupos, interiormente debilitados, entram em
contato cada vez mais íntimo uns com os outros; novas
coletividades aparecem, fundadas não no sangue ou no
lugar (o génos e a k h ióm e) , mas nas circunstâncias for
tuitas que unem os interesses; as guerras se multiplicam
e se tornam senão mais cruéis, ao menos mais radicais
em seus efeitos: o indivíduo — mesmo que fosse grego
— passava brutalmente da categoria de homem livre à
de escravo e a desgraça essencial e definitiva irrompe,
não mais em sua forma natural, mas em sua forma his
tórica; e a experiência dramática da produção, da “ po
lítica” e da guerra vem contestar o sólido empirismo dos
antigos: eis aí a idade de bronze a qual, sem dúvida, não
revela a violência, mas lhe dá um aspecto humano. Os
91
deuses do grupo são finalmente causa do infortúnio da
coletividade vencida: mas, há também responsáveis,
aqueles que, em sua certeza, deram ordens ou ditaram
soluções, cujo erro é dolorosamente sentido por todos;
outros agiram de maneira diferente e triunfaram. A
existência quotidiana, tornando-se diretamente histórica,
povoa-se de incertezas e a satisfação de sentir e de fazer
é substituída pelo problema vital da ação bem sucedida.
O conflito entre diferentes doxoi assume um aspecto
particularmente revelador ao nível dessa formação polí
tica que é a polis. A cidade grupa duas classes sociais
propriamente ditas: os homens livres e os escravos; estes,
no entanto, por causas múltiplas, não contam e os anta
gonismos surgem na própria classe dos cidadãos. As di
versas camadas sociais que a constituem disputam a
“ renda nacional” fornecida pelo trabalho das terras, os
lucros comerciais, a pilhagem, a colonização: opõem-se
a respeito do modo mais conveniente de conceber o des
tino do Estado para que a “ Cidade seja feliz e unida” ;
e essa oposição se manifesta em todos os domínios, pelo
aparecimento de doxoi contraditórias no que se refere
aos deuses, à virtude, à lei. Dionisos, por exemplo, volta
a ser uma divindade importante na Ática no momento
em que os pequenos agricultores que cultivam a vinha se
aliam politicamente aos comerciantes do litoral que ven
dem o vinho; à antiga pedagogia que visava formar
guerreiros de costumes sóbrios e sentimentos piedosos
opõe-se uma nova paidèia que procura educar cidadãos,
hábeis em defender seus interesses e os do Estado na
Pnix e afeitos às novas têchnai; à idéia tradicional de
virtude que repousava na moderação e o temor da ybris
inspiradas pelo terror da Moira substitui-se uma concep
ção mais “progressista” que oscilará constantemente
entre o humanismo e o cinismo; a própria noção de
Estado suscita dissenções, opondo-se o modelo ateniense
ao modelo espartano. Seria fácil multiplicar os exem
plos dessa diversidade: a cidade de Péricles tornar-se-á
o lugar de disputas apaixonadas em que se manifestam
as diferentes doxoi: a tragédia, a comédia são a ocasião
92
de dramatizar esses conflitos; a descrição de aconteci
mentos passados deixa de ser pretexto à poesia e permi
te apreender a diferença das civilizações, de confrontar,
nos fatos, as opiniões dos políticos e dos chefes milita
res . A própria especulação muda de aspecto: não expri
me-se mais poeticamente, nos poemas grandiosos, mas
essencialmente “ dogmáticos” ; assume força argumenta-
tiva. Surgiu o diálogo, como expressão da luta dos inte
resses e das paixões das individualidades e das classes
sociais.
Todavia, esse diálogo ainda não é troca ou discus
são; é confronto. Mais precisamente, se a doxa renun
ciou a essa certeza que a autorizava a não ver o outro,
nem por isso renunciou a apresentar seu próprio con
teúdo como verdade. Nasceu a oposição da verdade ao
erro, mas cada uma das doxas julga que é a verdade.
Ainda não se pergunta e não se admite ser perguntado:
afirma-se aquilo de que se está convencido em face de
um outro que, por seu lado, está persuadido da exce
lência de suas “ idéias” . A inquietação não leva ainda a
duvidar de si: reconhece o outro, sem dúvida, mas logo
se dissipa apresentando como verdade determinada con
cepção do mundo. A técnica do discurso não consiste em
saber quem tem razão, mas de que maneira pode-se fazer
triunfar sua “ opinião” , o problema da justeza sendo igno
rado ou posto entre parênteses. O discurso dogmático,
que está ligado às novas formas da civilização e que em-si
traduz a falência da certeza, não se tornou ainda um
instrumento de pesquisas: continuou sendo uma manei
ra de dizer. Mais precisamente ainda, a linguagem con
tinua sendo a linguagem do interesse e da paixão e sua
força persuasiva é posta a serviço daquele que compreen
deu que, na nova vida política, é um meio de triunfar
ainda mais poderoso do que no passado. Alguns sofis
tas, aliás, compreenderam isso admiravelmente, como se
verifica graças aos raros textos subsistentes e median
te concepões que lhes atribui Platão: entre as diversas
ieknai graças às quais o indivíduo bem dotado pode de
senvolver seu poder e aumentar sua satisfação, a arte
93
do discurso é a mais importante e é capaz, quase sempre,
de substituir eficazmente todas as demais.
Para-si, cada uma das doxas se apresenta como ver
dade: qual, no entanto, dessas opiniões, é posse efetiva
do verdadeiro? A circunstância histórica é tal, na Grécia
clássica, que nenhuma delas pode pretender esse privi
légio e é apenas paradoxo aparente afirmar que o “mi
lagre grego” e, em particular, a vontade de filosofia,
foram engendrados pela própria confusão e por essa es
pécie de falsidade que caracterizam a situação helénica
nos séculos V e IV . Os acontecimentos, com efeito, dão
sucessivamente razão a cada uma das partes conflitan
tes e, no conflito que opõe a tradição ao progresso, a
agricultura ao comércio e ao artesanato, a oligarquia à
democracia, a natureza à história, a ordem dada à justi
ça desejada, Aristófanes a Hipérboles e a Cleon, Sparta
a Atenas — esse acúmulo indicando a riqueza do pro
blema e de modo algum a pretensão de esgotá-lo — cada
opinião pode encontrar exemplos e argumentos que lhe
dão razão. O drama, aliás, é precisamente esse: Crítias
vê mais longe e com mais justeza que seus adversários
democratas; é ele, no entanto, quem morre revoltado em
combate absurdo e que, legitimamente, endossa a res
ponsabilidade da traição; Sócrates apreende genialmente
a significação da tragédia política de Atenas e seus ata
ques contra a democracia permanecem irrisórios e esté
reis; que nos permitam mesmo declarar: Platão torna
plenamente inteligível a estrutura desse destino da “ Gré
cia da Grécia” e, no entanto, malogra em sua ação pes
soal e elabora somente soluções ideais. O devenir, con
forme sua necessidade, tece os fios de tal maneira que
nenhuma doxa pode impor-se como decisiva: cada um
sente, em contato com o acontecimento, sua limitação e
sua particularidade, mas cada vim logo a domina por
uma afirmação furiosa que sempre encontra no aconte
cimento uma prova que lhe basta. O interesse de cada
grupo social, de cada individualidade, pode, em última
análise, pretender a verdade, pois cada ação violenta,
94
em seu tempo, soube triunfar ostentando argumentos da
razão.
Desse excepcional encontro de circunstâncias nas
cerá o que se costuma chamar de filosofia. Os homens
falam e dizem, com habilidade, de acordo com seus dons,
seus interesses e suas paixões; vestem-nos de argumen
tos e multiplicam os exemplos irrefutáveis: infelizmen
te, cada um desses homens sabe que sua fala persuasiva
pode ser interrompida bruscamente por um aconteci
mento irreversível, o ato de seu interlocutor que o mata
(ou que nele faz nascer tal temor que prefere nada mais
d izer). No começo, não o sabe bem: pensa que a nova
vida política confere ao discurso desinteressado uma es
pécie de imunidade; mas por que o adversário gago, de
sastrado na palavra ou, simplesmente mais forte, deter-
se-ia em semelhante aparência? O poder do discurso logo
manifesta sua fragilidade: os processos se multiplicam,
os banimentos e os assassínios tornam-se mais numero
sos. Manifestando sua efemeridade, o discurso da doxa
redescobre por-si o que já era em realidade: substitutivo
da força ou meio de dissimular uma força insuficiente.
Desde então, falar, discutir, parecem brinquedos de pou
ca importância. Paralelamente, o absurdo da existência
humana parece impor-se: não só cada interesse é capaz
de encontrar os argumentos que o justificam, mas tam
bém, de acordo com as circunstâncias, cada um pode
triunfar e impor pela violência seu ponto de vista
aos outros. Aristófanes traduz mais grosseira e mais
diretamente do que Sócrates essa perplexidade do cida
dão que assiste ao êxito dos indivíduos menos qualifica
dos e vê manifestarem-se como justas as piores teses e
as mais incoerentes. E o êxito final do Paplagoniano em
Os Cavaleiros revela o caráter irrisório de todo ato his
tórico que mergulha necessariamente no nãosenso e
suscita quando muito uma interpretação cômica. Em
outra perspectiva, Tucídides descobre como único remé
dio para esse doloroso absurdo a existência de um homem
que, como Péricles, seria capaz de impor, pela irradiação
95
de sua personalidade e uma série de felizes circunstân
cias, a ordem justa.
A lição é de um pessimismo apavorante: nada en
trou em lugar da antiga certeza, a não ser o jogo de
uma violência cega que distribui suas provas ao acaso.
A Moira reaparece sob um aspecto ainda mais conster-
nador, pois agora se sabe que nada preside o acaso a não
ser o jogo caprichoso de uma sorte reduzida à pura con
tingência. O ato filosófico, o de Sócrates, e principal
mente o de Platão, representa a vontade corajosa de sair
dessa situação insustentável e de restituir ao homem a
esperança de assistir ao êxito duradouro de uma ação
sensata. Caberia estudar com precisão as circunstâncias
históricas que permitem a essa vontade definir seus fins
e realizar-se numa obra; também caberia mostrar porque
essa vontade necessariamente malogra. Devemos con
tentar-nos, aqui, em salientar os traços gerais da empre
sa filosófica nascente, traços graças aos quais será pos
sível elucidar a oposição da filosofia à doxa. O primeiro
ato filosófico consiste precisamente em tomar consciên
cia da tragédia da existência histórica e recusar as so
luções parciais até então satisfatórias: o “ bom tempo
antigo” de Aristófanes, o homem providencial de Tucí-
dides, a “ boa vontade” de certos sofistas e o individua
lismo egoísta e gozador de alguns outros, a moderação
e a exaltação das virtudes tradicionais defendidas pelos
políticos representantes das classes médias, tudo isso é
rejeitado como insuficiente e, finalmente, como ingênuo.
A experiência filosófica inicial é a da inanidade dessas
soluções: um olhar suficientemente amplo sobre a his
tória de Atenas e da Grécia durante essa cruel guerra
do Peloponeso mostra que nenhuma delas é aceitável,
nem mesmo a da violência, pois todo vencedor, pela pró
pria necessidade de sua vitória, determina-se como ven
cido em potencial. A técnica que corresponde a essa to
mada de consciência consiste em igualar todas as do-
xoi, em colocá-las lado a lado num diálogo que se recusa
a escolher qualquer uma delas. Desde então, no mo
mento em que cada uma afirma e desenvolve sua argu
96
mentação, vê a outra negá-la e achar argumentos e
exemplos que a destróem. Sócrates não toma partido:
não pode fazê-lo, pois deveria escolher uma doxa, e ne
nhuma é capaz de provar sua validade. Os diálogos cha
mados socráticos são um impressionante resumo dos ma
logros do pensamento grego durante o século V:as di
versas crenças que inspiraram os homens são relaciona
das de tal maneira que cada uma delas logo confessa
sua incerteza. Percebe-se, nessa perspectiva, uma pri
meira significação dessa generalidade que se costuma
atribuir à concepção filosófica do mundo. E, inicialmen
te, a possibilidade de unir, não ainda numa totalidade,
mas num conjunto, as diversas visões parciais, de modo
a mostrar sua parcialidade e a fazê-las destruir-se mu
tuamente. No começo, nada mais é do que uma nega
ção utilizando como prova essencial a multiplicidade
das óticas individuais. Para que essa negação pudesse
ser efetuada, era necessário que o devenir histórico en
gendrasse, de um lado, essa multiplicidade; e, também,
que as opiniões múltiplas se projetassem sobre o fun
do de uma experiência comum. As lutas sociais do sé
culo VI, as guerras médicas e, principamente, o anta
gonismo de Sparta e Atenas, proporcionaram, ao que
parece, esse horizonte único. O destino próprio da de
mocracia ateniense certamente contribuiu para enri
quecê-lo. Contra as doxoi, invocando cada uma o teste
munho de um elemento desse horizonte único, o filóso
fo invoca o horizonte em seu conjunto; mais precisa
mente, na medida em que o invoca em seu conjunto e
que esse conjunto é contraditório, mostra o absurdo do
recurso ao que se costuma chamar de experiência, pois
cada um pode nela encontrar o exemplo que legitima
sua crença.
Nesse nível, o progresso é considerável: cada doxa
se apresentava imediatamente como a verdade e situa
va a outra no erro; agora, o simples fato de que sejam
grupadas em um discurso único e imparcial as múlti
plas opiniões basta para precipitá-las todas no erro. Uti
lizando a incerteza real que faz reinar a violência his
97
tórica, o filósofo arruina a atitude mesma da doxa mos
trando a falsidade da opinião em geral. Esse, porém, é
apenas o primeiro momento de sua tarefa; acontece que
a exigência da certeza perdura, que o homem — e, con
seqüentemente, o filósofo também — quer saber o que
se deve pensar e como convém comportar-se para che
gar à justeza e à felicidade. Resta que a inocência da
crença primitiva, que ignorava a oposição do erro e da
verdade, não é mais praticável: e, doravante, a aboli
ção de todas as soluções aceitas revela a urgência em
definir uma atitude graças à qual poderá esboçar-se
uma solução verdadeira. Ora, como irá, no começo, de
finir-se o filósofo? Que elementos possui para responder
a essa exigência de certeza? “Nada sabe” , segundo a
fórmula célebre; sabe apenas que os homens pensam sa
ber e se enganam; sabe, também, que os fatos que cada
um invoca para justificar-se não são de modo algum
decisivos, tão grande é a variedade dos fatos e a tal pon
to o interpretá-los depende da paixão. O único fato que,
portanto, subsiste para o filósofo é a existência de uma
linguagem que todos querem persuasiva e a multiplici
dade das doxoi opostas. Restam, em suma, o crédito em
favor da forma do discurso e a contradição que se ma
nifesta nos conteúdos dos diversos discursos.
Dessa extrema pobreza, o filósofo vai fazer uma ri
queza: e é para a estrutura discursiva da linguagem
que visa persuadir, que vai apelar. Tendo feito surgir
o erro da contradição, esforça-se em construir o discur
so coerente, capaz de suscitar, pela exclusiva virtude das
palavras, e apoiando-se em erros parciais, a adesão de
todos os interlocutores sérios. A todas as crenças, subs
titui unicamente sua confiança no logos. Cada uma das
doxas fala: esta define a coragem desta maneira; aque
la fornece da mesma virtude uma idéia diferente. A par
tir dessa oposição e dos exemplos que cada um empre
ga, é possível dizer o que é a coragem: a coragem é isto
ou aquilo, segundo as doxoi; isso equivale a dizer, uma
vez que ninguém pode impor sua concepção, que a co
ragem é isto e aquilo, quer dizer, que é ainda essa outra
98
coisa que não é nem isso nem aquilo, mas que dá con
ta de uma e de outra: e essa outra coisa é o que a co
ragem é em verdade ou ainda, seu conceito. Não se tra
ta, pois, de modo algum, de uma tentativa de somação
que reteria o que há de comum nas diversas perspecti
vas: a experiência mostra suficientemente que seme
lhante tentativa está condenada ao malogro; a ambi
ção é maior: consiste, graças à arte do diálogo, — a
dialética no sentido platônico — em, formulando as
questões adequadas, obrigar o outro, não só a confessar
a insuficiência de sua posição, mas também a descobrir
o enunciado verdadeiro. De fato, cada um, falando, co
nhecia o verdadeiro, mas, perturbado pelo interesse, de
le ze afastava. E a técnica filosófica consiste em utili
zar a preocupação de coerência daquele que fala para
revelar esta verdade: colocar em sistema as doxoi é ar
ticulá-las de tal modo que, no desfecho do colóquio, a
definição justa se imponha com nitidez a todos os inter
locutores de boa fé. Essa “ concepção geral” está pois
em relação dialética — no sentido moderno — com as
visões parciais: no momento em que as nega, formula
sua verdade e, por isso mesmo, a verdade.
O triplo sentido do termo logos resume essa dialé
tica capital que conduz da expressão imediata da cren
ça ao discurso filosófico. Enquanto palavra, o logos é
antes de mais nada declarativo; manifesta o sentimen
to e designa um objeto sem inquietar-se com sua jus
teza; é o fato da plenitude subjetiva que exterioriza sua
crença e canta seu universo. Se alguma contestação sur
ge, o logos se torna discurso: conhece sua verdade e, em
face do erro do outro, argumenta e tende a fazer valer
seu conteúdo como único admissível; é uma organiza
ção da paixão no seio da vida “ política” . Todavia, a ex
periência revela a diversidade dos interesses e o fato de
que cada discurso, para-si, é legítimo e, em si, errôneo:
dessas disputas, ninguém sai convencido. Será preciso
deixar de falar e entregar-se à pura violência? Perdida
a inocência, será preciso admitir a barbárie como solu
ção única? O filósofo recusa esse caminho; se o homem
99
que fala é capaz, às vezes, de convencer os outros, então
a linguagem possui em si mesma as promessas de sal
vação: é preciso encontrar uma “ arte” tal que esse po
der da linguagem se torne mais convincente do que a
paixão e a violência, de tal modo que o logos se transfor
me em razão. O filósofo é aquele que consegue suscitar
a adesão do homem presa do interesse mostrando-lhe,
apenas pela linguagem, o que é verdadeiramente e dá
a razão de suas palavras, uma razão ao qual o outro não
pode resistir: o filósofo é o dialeta — no sentido platô
nico — , aquele que sabe formular as questões e dar as
respostas convenientes.
Percebemos aqui a ligação existente, na noção de
filosofia, entre a idéia de generalidade e a de legitima
ção. Uma concepção do mundo só pode pretender ser
geral se for capaz de converter à sua perspectiva as vi
sões parciais, somente, portanto, se for capaz de dar
a razão de sua generalidade. É justo, conseqüentemente
— e é incontestável — reclamar da filosofia que seja
outra coisa além do desenvolvimento da crença, por mais
rico de fatos que possa ser esse desenvolvimento, por
mais evidente que seja seu “ êxito” . E, dar razão, legiti
mar, justificar — também se pode dizer fundamentar.
Está implícito no exercício da filosofia que nela se pro
cura evitar toda e qualquer postulação: a tal ponto que
é desse modo exato que se distingue formalmente do
exercício matemático cuja estrutura é hipotético-demons-
trativa: o filósofo não quer formular enunciado algum
que não seja geral — no sentido em que acabamos de
definir esse termo — , isto é, que possa ser admitido por
todo homem de boa fé, seja em que situação for. Deve-se
observar, desde logo, que se trata, no caso, de um pro
grama ao qual a simples coerência do discurso não sa
tisfaz plenamente. Esse programa, pode-se afirmar que
o pensamento filosófico, ao longo de sua história, esfor
ça-se efetivamente em realizá-lo com as armas, as pre
ocupações, os instrumentos que cada época lhe fornece;
pois, afinal de contas, trata-se sempre, para o filósofo,
de construir um discurso tal que cada um que o conhe
100
ça possa nele encontrar os meios graças aos quais poderá
pensar com justeza e, ao mesmo tempo, viver na satis
fação.
Na origem, pois, generalidade, legitimação e aceita
bilidade podem ser equiparadas: o filósofo prova a gene
ralidade de sua concepção graças a um discurso que im
plica a adesão de todo interlocutor de boa fé. Com a
preocupação de coerência daquele que fala, obriga o ho
mem da doxa a renunciar à sua parcilidade e a substi
tuir sua visão abstrata por uma apreensão sistemática
e ordenada do real. O logos não é mais considerado ex
pressão imediata da crença nem uma tékne particular
mente cômoda: constitui o domínio no qual se constrói
o enunciado verdadeiro. Nele, e por suas virtudes pró
prias, a existência quotidiana se reflete e transforma
de tal maneira que desaparecem os absurdos e as am
bigüidades. De fato, à experiência irrisória e incoeren
te da vida imediata, substitui-se a experiência do rigor
proporcionado pelo discurso que pretende ser realmen
te persuasivo. A formação do conceito correspondente a
essa tentativa de dar à palavra tal consistência e soli
dez que não permita a ninguém entendê-la de outra ma
neira. Seria possível, sem dúvida, apresentar o signifi
cado da nascente empresa filosófica de outra maneira
e opor, por exemplo, em perspectiva análoga, a dúvida
à reflexão, o sensível ao inteligível, o empírico ao racio
nal: essas são, no entanto, categorias muito elaboradas
e historicamente posteriores. Parece claro que a filoso
fia adquire sua fisionomia autêntica a partir do momen
to em que um homem se preocupa em falar não para
afirmar ou persuadir, mas para convencer, em organizar
sua palavra de modo tão “ verdadeiro” que ninguém
mais possa acusá-lo de falar enquanto é ele próprio ou
para si mesmo, mas, como seja que homem for — digno
desse nome (e a restrição tem importância na socieda
de grega) — falaria.
Foi necessário, no entanto, ao longo desta análise,
todas as vezes em que era evocado o interlocutor do fi
101
lósofo, acrescentar que esse interlocutor devia ser hones
to e de boa fé a fim de que o diálogo tivesse sentido.
Pode acontecer, com efeito, que o homem da doxa ao
qual se dirige o filósofo se recuse a discutir com ele,
que compreenda o perigo que representa para sua pai
xão a argumentação filosófica e que se afaste pura e
simplesmente pretextando precisamente a importância
dessa paixão ao lado da qual os exercícios verbais são
apenas lúdicos. Nesse caso, o filósofo está desarmado.
Também o está quando o homem da doxa admite con
versar, mas considera sem importância o fato de con
tradizer-se ou de grupar experiências contraditórias em
um todo. O filósofo é igualmente impotente se, em ní
vel ainda mais sutil, seu interlocutor declara falar ape
nas por hábito ou polidez e sem que se deva dar o me
nor crédito ao que ele diz ou ao que não diz. Devemos
lembrar aqui — depois de muitos — a importância ca
pital do final do Georgias, quando Cálicles afirma —
com muito arrebatamento, mas também com astúcia —
que continua a discutir para agradar Georgias, embora,
para ele, o colóquio não tenha mais significação algu
ma1. E. Weil desenvolveu essa idéia com admirável segu
rança: basta remeter à sua demonstração2 e salientar
com ele que “ o filósofo socrático” realiza seu propósito
sempre que a doxa aceita a filosofia: se a recusa, ne
nhum recurso é possível. E a eventualidade extrema —
a que doravante pesará sobre o desenvolvimento de todo
o pensamento filosófico — é que a paixão, irritada pela
argumentação filosófica e pelo efeito qus produz sobre
os ouvintes menos avisados, tome a decisão de negar a
filosofia: a marte de Sócríates assinala irremediavel
mente os limites do discurso convincente.
102
Para afastar a eventualidade de uma condenação,
o filósofo pode evidentemente manter-se em silêncio e
renunciar a convencer seus concidadãos: na intimida
de de si mesmo, fruirá a satisfação proporcionada pelo
conhecimento do que é. Infelizmente, essa solução é, de
fato, impraticável: a filosofia, nascida do diálogo, não
pode renunciar a convencer sem logo perder-se e se cor
romper. Revelando a parcialidade das diversas doxoi, o
filósofo visa, entre outros fins, tornar manifesta a to
das a boa organização política, a que permite a cada um,
conforme sua natureza, obter um contentamento dura
douro: entre os conceitos que procura definir em verda
de, há o da justiça e, entre as condutas que tenta de
terminar, há a conduta justa. Desde então, o filósofo
não pode deixar de pretender-se justo: e como o seria
se vive na Cidade injusta? Como escapar da desonesti
dade se participa, enquanto cidadão, de açõss imorais?
O exemplo mostra que a melhor natureza se corrompe
numa ordem política submetida às flutuações e às de
sordens da doxa: Alcibíades, o mais bem dotado dos ho
mens, traiu sua pátria; Crítias pereceu, sedicioso e de
sonrado. Sócrates não pode permanecer siencioso: ca
lando-se, aceitará, sem dizer palavra, a violência dos ou
tros, e então cairá inevitavelmente na imoralidade. Não
há “ torre de marfim” para o filósofo: é um daímon que
o impele a lutar contra as visões parciais e errôneas e
contra a violência, pois somente na medida em que rei
nar a justiça poderá filosofar com a segurança de alcan
çar o conhecimento verídico e o comportamento do sá
bio. Para ele, a alternativa não está entre a palavra e o
silêncio, mas entre a palavra e a corrupção, entre o ris
co da morte e a imoralidade.
Descobrir o conteúdo dessa alternativa, é revelar a
implicação necessária existente entre o exercício da fi
losofia e o ato pedagógico e político. Seria relativamen
te fácil mostrar como, no sistema platônico, as três ta
refas, filosófica, política e pedagógica, se organizam
e permutam constantemente seus fins e seus interesses:
a estrutura da Republica testemunha sua estreita liga
103
ção. Sócrates morreu em uma cidade injusta porque
quis; por ter pretendido definir a justiça: importa dora
vante modificar a ordem política, a fim de que o filóso
fo possa viver permanecendo filósofo. Tratava-se, inicial
mente, de estabelecer em lugar das desordens do dis
curso uma palavra coerente; importa, agora, lutando
contra as desordens políticas, assegurar a sobrevivência
daquele que se recusa a contradizer-se. A própria exis
tência do filósofo torna-se aquilo mesmo que a filosofia
põe em jogo. Logo, porém, o empreendimento manifes
ta-se difícil e cai numa espécie de círculo vicioso: para
que o filósofo viva, é preciso que a justiça reine; mas,
para que isto seja possível é necessário que os homens
acreditem na filosofia, que já sejam filósofos; ora, se
assim fosse, a justiça já reinaria. Ou ainda: o discurso
coerente, capaz de promover a boa ordem, o que garan
te a segurança do filósofo, não pode só ser ouvido num
mundo no qual o filósofo, porque nele se acredita, já tem
sua segurança garantida. Na Cidade injusta, a pedago
gia filosófica é ineficaz: aos que são dominados pela pai
xão apresenta-se como um jogo estéril ou um disfarce
do interesse. E não há meios, pelo discurso, de romper
o reino da violência que se engendra a si mesma.
Ainda uma vez, tendo compreendido o perigo que o
espreita, o filósofo se acha desarmado: sua ação, que
está toda na palavra, acha-se condenada antecipada
mente ao malogro. Sem dúvida, pode esperar ou confiar:
esperar que uma cidade apareça, na qual seus dirigen
tes compreendam a filosofia; esperar que o acaso faça
nascer reis filósofos ou filósofos reis. Essa é uma solução
bem aleatória que somente uma crença infundada —
uma crença do tipo da doxa — pode entreter. Não res
ta, pois, senão a ação propriamente dita, a que não he
sita em recorrer à violência. Entre a violência do apai
xonado e a do filósofo que se tornou político, há sem dú
vida uma diferença: a primeira é cega, a segunda é ilu
minada pelo logos. Mas, não será isso uma espécie de
malogro, uma confissão da importância do discurso em
existir por si mesmo como discurso coerente? Na reali
104
dade, esse malogro teria pouca importância se fosse
acompanhado de um êxito efetivo, se o filósofo pudesse
instaurar — mesmo pela violência — a ordem filosófica
(voltaremos a essa questão, precisamente, a propósito
do marxismo), pois seria capaz, em seguida, de criar as
condições que lhe permitiriam fazer-se entender pelos
outros e justificar sua ação. Mas, o fato é, queremos di
zer, é histórico, que o filósofo, quando tentou o caminho
da atividade política ativa, pouco tempo após o nasci
mento da filosofia, não logrou êxito: nenhum sobera
no fez de Platão seu primeiro ministro e a aventura na
Sicília terminaria em malogro. Por motivos históricos,
a Calípolis permanece uma utopia: depois da morte de
Sócrates, esse malogro constitui o segundo acontecimen
to que vai contribuir para dar à filosofia seu aspecto tra
dicional. Desarmada no nível da palavra, a filosofia é
vencida no campo da ação. Resta-lhe calar-se ou espe
rar a morte sem significado. Resta-lhe também tornar-
se retórica e renunciar a si mesma ou aceitar esse he
roísmo da paixão que é sua própria negação.
Tais eventualidades são, de fato, irrealizáveis: a
exigência da justificação surgiu e as condições que a
fizeram nascer perduram. A incoerência das ãoxoi sub
siste e a incapacidade da violência em resolver os proble
mas humanos é tão aguda como sempre. A recusa da fi
losofia é possível; enriqueceu-se mesmo com argumen
tos novos e persuasivos: mas a idéia de um saber que
superasse as “ opiniões” unificando-as, a idéia de uma
conduta que levasse em conta a violência sem a ela re
correr como prova, permanecem. Mesmo aqueles que re
nunciam ao ato de filosofar têm escrúpulo em repudiar
a palavra que parece carregada de significação mágica
e perturbadora. Finalmente, a morte de Sócrates reve-
la-se, contraditoriamente, normal e injusta, e o malogro
de Platão mostra, ao mesmo tempo, a ingenuidade e a
justeza da ambição filosófica. Um novo caminho está
aberto — que o pensamento platônico impelido por sua
necessidade própria já havia amplamente utilizado —
e que será durante longos séculos o caminho real da fi
105
losofia: o que corresponde a consolidar a filosofia con
tra a doxa, o que pretende dar a prova da inanidade da
paixão, o que tenta fundar a exigência de um funda
mento com as próprias provas do interesse e do desejo.
Essa procura entusiástica e todavia ordenada de uma
ordem de fato que esteja na raiz do direito, essa vonta
de jamais desarmada de erguer contra a “ lucidez” do
cínico ou a “ força” do coração, um mundo efetivo que
prove a estupidez da violência imediata e a inanidade
da reivindicação individual determinam exatamente es
se movimento que leva da filosofia nascente à metafí
sica, de Platão a Aristóteles, e daí a tudo o que se cos
tuma chamar a filosofia perene, até Hume e Kant. A con
denação de Sócrates, de um lado, e, em outra medida,
o malogro político de Platão — acontecimentos que, re
petimos, são o fruto do devenir histórico — compelem,
de certo modo, o filósofo a uma vontade nova: tratava-
se, antes de mais nada, para ele, de utilizar o crédito de
que desfruta o discurso coerente para determinar con
ceitos que permitam pensar o real e a conduta com jus
teza; à luz dessas experiências dolorosas, verifica então
a insuficiência da palavra, mesmo justa: a “ maldade”
de Cálicles, o “ bom senso” de Anitos, a “ ininteligência”
de Dionísio tornam ineficaz a “ demonstração” filosó
fica. E a infelicidade é que os fatos, em sua crueza, dão
razão — uma razão fundamentalmente não razoável —
a esses adversários da filosofia. O ser está de seu lado,
com suas ambigüidades, e não do lado do discurso bem
organizado, não do lado do diálogo entre pessoas de boa
fé. O logos mostra que é, de fato, o que era aos olhos de
seus detratores: um divertimento inútil e, em todo ca
so, perigoso para aquele que o pratica. A lição do real
não dá razão ao filósofo e o filósofo sabe que tem ra
zão: se a vontade filosófica não fosse justificada, então
haveria apenas a violência e a desordem, nem mesmo o
silêncio, mas o discurso utilitário. Todavia, um recurso
é oferecido pela necessidade própria da reflexão que a
necessidade histórica, aliás, torna efetivamente viável:
a que consiste em mostrar que o mundo que renega a
106
filosofia não é o mundo verdadeiro, mas uma ilusão, uma
aparência.
A exigência de ordem, a recusa da contingência e
daquilo que os ensaístas contemporâneos chamam de
absurdo, levam os filósofos a legitimar, não mais ape
nas logicamente, mas também ontologicamente seu dis
curso. O que dizem, não é a obra de uma palavra que
irrisoriamente contradiz o mundo, é a revelação do
mundo real, que não se percebe imediatamente, mas
que, à luz da reflexão e para a reflexão, existe muito
mais do que o mundo dado. Desde logo, o filósofo deixa
de ser uma simples subjetividade que, em virtude de uma
mania ou de um daímon, exprime seu desacordo com as
maneiras de viver e de pensar da doxa: torna-se o intér
prete fiel do que é verdade e escapa à maioria. Como sa
lientou admiravelmente E. Weil — em cujo pensamento
esta análise repousa constantemente — , ganha o pen
sador por não poder ser contestado (ou condenado) a
justo título: se algo deve ser culpado, não é este ou
aquele homem, mas o próprio ser3. Tratá-se, evidente
mente, de um subterfúgio: mas é importante e susten
tou durante muito tempo a vontade do metafísico; Aris
tóteles, exilado e perseguido — ao menos segundo a le
genda, que é bela e significativa — pode invocar não o
que ele pensa, mas o que é: pode designar o objeto que
lhe impõe dizer o que é; e Platão, antes dele, havia in
ventado os eidos, graças aos quais Sócrates, seu porta-
voz, sai da palavra para entrar no domínio sólido e re
confortante daquilo que é em realidade. O caráter pleo-
107
nástico desta expressão deixa de ser chocante se nos
lembrarmos que a situação histórica permitira aos an-
tifilósofos desarticular a realidade e a verdade, o fato
e a expressão coerente do fato, a “ ontologia” e a lógica.
A vontade filosófica, atribuindo-se por tarefa a revelação
do que é verdadeiramente, esforça-se em fazer desapa
recer esse hiato, em reconciliar o discurso e o real, isto
é, em revelar o real não-contraditório que corresponde
à expressão não-contraditória.
Além dessa aparência, que se chama de mundo, há
pois outro universo do qual a filosofia é conhecimento.
A generalidade permanece generalidade da aparência,
mas só é tal graças à mediação desse outro dado ime
diato. Mais precisamente, o dado, que não se dá, cons
titui a generalidade desse dado que se dá e permite pen
sá-lo com justeza, segundo a generalidade. A legitima
ção do fato não está mais apenas no conceito, está no
próprio objeto que confere ao conceito seu peso e sua
autoridade e que se pode, por exemplo, chamar de Idéia.
A reflexão filosófica se desdobra: é inicialmente refle
xão do fato no discurso, em seguida reflexão do discur
so em um fato superior e definitivamente probante. Apa
rece, assim, esse mundo das essências que, pela media
ção do logos, constitui a verdade da existência. O mo
vimento de pensamento que conduz dos frutos ao con
ceito de fruto e daí a esta entidade: o Fruto, por mais
aberrante que pareça, é o resultado de obstinada tenta
tiva de anular a violência cínica e os ímpetos descon
trolados do coração. O que se costuma, perpetuando um
jogo de palavras cuja importância já se salientou várias
vezes, chamar de meta-física, cria um além-mundo on
de as ambigüidades se tornam diferenças, os antagonis
mos oposições claras, a desordem organização. Esse cal
mo universo não é uma dublagem: é uma concretiza
ção, ou ainda, um produto da reflexão sobre este mun
do que é, de fato, inconcebível. Nele a filosofia encon
tra a satisfação, as razões para recusar definitivamente
as doxoi e também um sério motivo para sua coragem.
108
Agora, a segurança foi obtida: Sócrates não é um insen
sato, nem um criminoso; falava em nome de uma rea
lidade que os outros não viam, mas que existe; condená-
lo, não é triunfar sobre um homem, mas querer ser cego
e insensato.
Todavia, o filósofo deve ainda provar a realidade
desse além-mundo, pois, até agora, é o único a conhecer
sua existência, a saber que é em si. Para os outros, a
Idéia (ou a Essência ou a “ verdadeira e imutável natu
reza” ) não se dá: permanece uma invenção, produto de
uma reflexão vaticinante. A tarefa filosófica consiste,
portanto, de um lado, em tornar manifesto o caráter fe-
nomênico deste mundo e, de outro, em fazer aparecer
o que não se dá imediatamente. Trata-se, em suma, de
uma espécie de troca; o que é real para a maioria deve
confessar sua irrealidade e o que não se apresenta como
real deve provar sua realidade; o ser-aí será revelado co
mo falso-ser, o ser que não está aí como ser verdadeiro.
Em outras palavras, o empreendimento filosófico con
serva seu caráter pedagógico: importa levar aquele que
é ainda uma criança a reconhecer a puerilidade de suas
crenças e a viver em contato com o mundo sólido e cla
ro das essências. O acento, porém, se deslocou: à educa
ção do logos, convém agora atribuir um fundamento
ontológico; é a alma que se deve converter a fim de
torná-la capaz de perceber o que está oculto. A procura
da generalidade transforma-se em esforço de revelação:
modificação da alma, que descobre seu vérdadeiro poder,
e revelação do ser efetivamente real. É claro, a partir
daí, que essa educação se acha compelida a apresentar
as provas de sua legitimidade e de seu sentido no pró
prio seio da existência quotidiana e, em conseqüência,
a encontrar no ser-aí as manifestações da essência. A
troca torna-se uma dialética: confessando sua inessen-
cialidade, o ser fenomenal deve negar-se e fazer conhe
cer o que é. E, ao mesmo tempo, o além-mundo deve
mostrar-se como aquilo de que a aparência é aparência.
Entre o falso-ser e o ser, não poderia haver exclusão nem
mesmo corte — ao menos no início. Nesse sentido, a fi-
109
losofia exclui o misticismo que, desde logo, se acha em
comunidade com o ser e, assim, se afasta do quotidia
no como de um dado, por natureza, inessencial e des
provido de importância. Em outros termos, para o filó
sofo, algo do ser já deve estar na aparência, pois, caso
contrário, restaria para ele o desespero silencioso neste
mundo e, no além, a fruição silenciosa; inversamente,
o ser deve apresentar-se como o ser da aparência, senão,
de acordo com a observação de Aristóteles, ele seria, mas
inutilmente4.
O problema da prova, do fundamento, acha-se ago
ra delimitado de modo muito mais preciso; trata-se de
descobrir, a partir da diversidade, dada imediatamente,
não só a prova de que há o verdadeiro, mas ainda o meio
ou o caminho que permitirá conhecer o que é verdadei
ro. Da contradição e da confusão dos fenômenos, con
vém extrair os traços que são ao mesmo tempo sinal e
manifestação da essência, e tirar do desespero ou do
tédio quotidiano razões de esperança e de satisfação.
Esse esforço alimenta a vontade metafísica de Platão e
Aristóteles a Descartes e os cartesianos. Existe, sem dú
vida, no seio dessa vontade, grande variedade de con
teúdos; sem dúvida, a época e o gênio de cada pensador
trazem grande diversidade de preocupações e de solu
ções. Trata-se sempre, no entanto, de fazer ver o que
não é visto e de revelar o objeto estável e “lógico” do
qual o discurso filosófico é a expressão fiel; insistamos,
trata-se de revelá-lo àqueles mesmos que a animali
dade, a paixão, o interesse, a tradição ou a ignorância
mantêm no seio de uma vida falsa e geradora de infe
licidade. Essa apresentação da tarefa metafísica poderá
parecer estranha: o positivismo habituou-nos a consi
derar a “ realidade metafísica” como o produto inútil e
malsão da imaginação e do medo; chegou-se mesmo a
sustentar, interpretando o marxismo de maneira sim
plista, que ela representava como tal um instrumento
110
de opressão. É verdade que o débil desenvolvimento das
técnicas de produção e a falta de consciência de classe
daqueles que trabalham efetivamente tornam possível
a atualização da vontade metafísica; é verdade, tam
bém, que a obra do metafísico é utilizada pelos que se
beneficiam com a afirmação de um mundo diferente e
mais verdadeiro do que este mundo em que sofremos.
Mas, nem por isso é justo fazer da metafísica um pro
duto direto da fraqueza humana ou do interesse de
alguns em explorar a maioria. Ao contrário, o metafí
sico se apresenta, inicialmente, como aquele que se es
força em responder, pela revelação de uma realidade
oculta, à pergunta do homem da doxa que sofre e per
cebe confusamente que existe outra coisa além desta
dolorosa irrisão; é aquele que recusa os horrores da Guer
ra do Peloponeso, que se revolta com a sorte de certos
cidadãos, que quer “ reabilitar” , por uma demonstração
de fato e não pela retórica, o cientista Galileu, e aquele
que, prudente e sorridente, incorre na condenação de
três Igrejas. A tentativa de constituir um discurso coe
rente visava contrapor-se à violência ingênua ou cíni
ca; seu malogro de fato leva a constituir o universo das
essências: que essa solução não seja a boa, isso não quer
dizer que haja em sua raiz qualquer intenção delibera
damente má. Uma questão estava proposta, que o meta
físico resolvia com as armas que lhe eram oferecidas (e
a solução platônica dura até Spinoza e Leibniz). Na ori
gem da vontade metafísica, há a procura de uma ra
zão: a razão dada não é certamente satisfatória; não
podia ser, aliás; resta que a busca do fundamento não
é de modo algum insensata.
A rigor, a metafísica, nessa perspectiva, é, por defi
nição, racionalista. Assinalaremos, nas páginas seguin
tes, os limites dessa racionalidade. Nem por isso o me
tafísico deixa de estar animado pela intenção corajosa
de dar razão e de escapar, pela mediação do saber (pos
suído ou apenas indicado), ao jogo consternador dos
impulsos animais, das j&^ivaÇõe^ psíquicas ou das “li
vres escolhas” , termos aos quais finalmente se reduz a
“racionalidade” do universo na ótica do não-filósofo.
Para empregar palavras mais modernas, poderíamos di
zer que o filósofo — enquanto se torna metafísico —
recusa a contingência do pormenor e procura uma ge
neralidade precisamente, graças à qual o que parece
ahstrato, separado, encontra finalmente seu lugar no
seio da organização do mundo efetivamente real. Ora a
operação metafísica simplifica arbitrariamente sua ta
refa rejeitando no inessencial o que a ela se apresenta
como “ sem razão” ; ora quer descobrir nos fatos contin
gentes algum indício revelador (ou que assinale) a ra
zão; ora, em fase de maior elaboração, utiliza o próprio
fato da contingência para postular a necessidade de
uma razão. Em todos os casos, importa ao metafísico não
abandonar aquilo que se dá ao puro fato de dar-se e de
ir do “ mostrado” à demonstração: a seus olhos, nada do
que é justo — no duplo sentido da justeza e da justiça
— se não pode, ao mesmo tempo, dar conta do próprio
fato dessa existência. É importante salientar essa “ na
tureza” da metafísica se quisermos compreender seu ma
logro. Pois é precisamente na medida em que essa pes
quisa da razão última se converte em injustificável pos
tulação que o empreendimento metafísico confessa sua
impotência: se chega a bom resultado é por deficiência
de seu poder e não por desfalecimento de sua vontade.
Platão e Spinoza continuam a dar exemplo de raciona-
lismo, mesmo que os tipos de racionalidade por eles pro
postos fossem a prova de seu caráter desarrazoado.
O grande problema da metafísica é, pois, o de des
cobrir a substância. Há sempre grande dificuldade, sem
dúvida, em utilizar termos como Essência, Idéia ou
Substância; sua distinção é imprecisa e suas significa
ções são numerosas. Resta que a vontade do metafísico
— desejoso de fundamentar uma predicação absoluta
mente legítima e de assegurar uma conduta coerente —
esforça-se por distinguir entre o acidental e o substan
cial, entre o ser provisório e fluido e o ser constante e
sólido. Trata-se, para o metafísico, de fazer ver a pouca
112
importância daquilo a que a maioria atribui interesse e
o caráter decisivo da realidade que só ele conhece. A di
ferença entre os metafísicos não é diferença entre as
vontades, mas diversidade entre os tipos de separação
que introduzem entre o essencial e o inessencial. O que
distingue Aristóteles de Platão, Leibniz de Descartes,
não é a oposição das intenções mas, inicialmente, o con
teúdo que atribuem à substância, não a maneira pela
qual a definem (formalmente), mas o modo pelo qual
preenchem essa definição. Isso permite compreender, em
parte, porque, impelido pela necessidade interna de sua
própria história, o pensamento metafísico acaba por
preocupar-se principalmente com as diferenças existen
tes entre as essências, isto é, a empenhar-se em tornar
clara a estrutura do conteúdo do ser verdadeiro, muito
mais do que a significação de sua vontade e da relação
que mantém a essência e o ser-aí. E o motivo pelo qual,
também, é fácil — esquecendo sua origem — acusá-la
de sutilezas excessivas: na verdade, cada época — de
acordo com sua problemática política e moral, seu ní
vel técnico e científico — , cada pensador — de acordo
com seu gênio — trazem às questões propostas por Pla
tão novas respostas, elaboradas sempre, porém, na mes
ma ótica: qual deve ser a substância, o essencial exis
tente, para que, revelada, essa substância permita um
discurso coerente e uma conduta satisfatória e mostre
a insuficiência das doxoi e dos comportamentos que a
elas se ligam? Como deve ser essa substância para que
se imponha como verdade do mundo da paixão e do in
teresse, quer dizer, como sua negação e seu fundamen
to? E posteriormente: qual deve ser a ordem das essên
cias para que seja conjuntamente ordem em-si e reor
ganização da aparência, quer dizer, explicação da de
sordem?
É evidente que o pensamento metafísico, ao longo
de sua evolução, nem sempre foi capaz de realizar posi
tivamente sua vontade. Aconteceu-lhe, por motivos que
113
a história da cultura pode estabelecer, malograr, não
descobrir a realidade verdadeira e isso apesar de sua
esperança e de sua coragem. O resultado desse malogro
é o que se chama de atitude cética, que se assemelha à
do cínico ou do ingênuo que permaneceu no nível da
doxa, e o ceticismo passa muitas vezes por uma antifi-
losofia. Essa identidade é apenas superficial. O cético,
como o filósofo, e na mesma perspectiva metafísica, pro
cura o ser substancial; essa procura, porém, não chega
a resultado algum: em lugar da clara solidez da essên
cia, é o vazio da imaginação que se apresenta e a deses
pera. A partir daí, o único existente com o qual se pode
contar é a aparência contraditória e confusa. Tudo se
passa como se a tomada de posição antifilosófica fosse
justa; de fato, é antes justificada. Mais precisamente,
o cético não parte da reprovação da metafísica: pro
curando uma razão, encontra a ausência de fundamen
to. Se encontra o homem da doxa, é porque lhe dá razão
e não porque participe de suas certezas. Da atitude me
tafísica, só pôde guardar a forma à qual não conseguiu
dar conteúdo: resta-lhe calar-se, rir ou manifestar com
desespero seu malogro. E mesmo a incompreensão dessa
situação dolorosa: filosófica em sua forma, e antifilo
sófica em seu conteúdo, que permite o desenvolvimen
to dessas pobres “refutações” de acordo com as quais o
ceticismo se contradiria pois demonstra a inanidade de
toda demonstração e estabelece a verdade da não-verda-
de. Semelhantes críticas ignoram simplesmente que o
ceticismo é o resultado de um movimento e que, se há
contradição, está entre termos sucessivos e não justa
postos: animado, inicialmente, pela vontade de saber,
o cético se choca em seguida com uma impossibilidade
que julga definitiva. A rigor, se nos colocamos, como
convém, no nível da vontade, o cético é tão metafísico
quanto o que se costuma chamar de dogmático: é um
metafísico que não teve êxito.
114
3
O pensamento metafísico procura a Substância.
Todavia, o problema das provas que é capaz de apresen
tar permanece urgente e intato. O discurso coerente
não basta para suscitar a adesão de todos; precisa mos
trar alguma coisa; mas, o que deve mostrar não é o que
se mostra imediatamente. Como provar, então, que o ser
revelado é o ser verdadeiro? É nesse nível, precisamen
te, que se define o malogro da metafísica; é aí que en
contra sua refutação efetiva. Se considerarmos as diver
sas doutrinas metafísicas, de Platão aos cartesianos,
perceberemos que á prova produzida, com matizes e
modalidades diversas, é sempre do estilo da revelação.
O pensador, para tornar incontestável sua doutrina e
fazer aparecer o conteúdo da realidade verdadeira, ape
la sempre para alguma coisa que parece a percepção.
A noésis platônica, o ato do nous poietikós, a fantasia
kataleptiké, os diversos tipos de intuitus do cartesianis-
mo, são, de certo modo, tomadas de contato direto com
o essencial existente; são meios de apreensão que não se
oferecem a não ser após o esforço de mediação filosófi
ca. Mas, a posse do ser é análoga, em sua estrutura, à
posse do fenômeno no nível da percepção. Há duas ma
neiras de ser: uma fenomênica, à qual corresponde um
conhecimento sensível e um saber enganador, e outra
“ essencial” , a que corresponde o conhecimento filosófico
e um saber legítimo. E assim como a segunda não passa
da primeira invertida, assim também a apreensão da
essência é da mesma natureza da apreensão do dado
imediato, embora afetada de predicados contraditórios.
À intuição sensível e às suas modalidades, que alimen
tavam as certezas da doxa, substitui-se a intuição espi
ritual graças à qual se atualiza a vontade metafísica. A
descrição dessa intuição é muito importante e se torna
cada vez mais rica na proporção das próprias dificulda
des que suscita: isso permite compreender porque a teo
ria do conhecimento assume importância cada vez maior
115
na elaboração da metafísica, porque o problema da na
tureza dessa essência, que é a alma, apresenta-se de mo
do cada vez mais preciso. Percebe-se melhor, também,
porque a metafísica é necessariamente espiritualista:
precisa supor que um existente possui um poder de co
nhecimento não-sensível graças ao qual a essência se
tornará manifesta, poder que esteja aí, embora não ime
diatamente utilizado. Basta, para convencer-se dessa
necessidade, lembrar as contradições e as dificuldades
que encontra a metafísica materialista (no sentido em
que esse termo se opõe não à idealista, mas à espiritua
lista), contradições e dificuldades tais que delas o espi
ritualismo facilmente triunfa.
A metafísica, em última análise e se considerarmos
as coisas de modo muito geral, apela pois para a evidên
cia. O movimento de legitimação, que a levara da defini
ção do discurso coerente à procura de seu fundamento
ontológico, a conduz a determinar a maneira pela qual
esse ser é conhecido em verdade. A procura do famoso
“ critério da verdade” termina por essa afirmação de que
a realidade autêntica se dá àquele que quiser fazer o
esforço de voltax-se para ela e isso porque o homem pos
sui por natureza o que é necessário para apreendê-la.
O fundamento último da ciência filosófica é, para o me
tafísico, o ato mesmo de ciência do filósofo que vê cla
ramente o que é (mesmo que fosse incapaz, como Pla
tão, de fazer corresponder a essa apreensão do que é,
no mais alto grau, um discurso mais do que sugestivo).
Assim, a metafísica é teórica — no sentido etimológi
co — : sua pedagogia tem por fim primeiro (primeiro,
pois não lhe é difícil utilizar em seguida seu saber em
alguma tarefa prática, moral ou política) permitir a
contemplação do autenticamente real, uma contempla
ção que produza a clareza na alma e acarrete imedia
tamente sua adesão. Todavia, que diferença há entre o
“ estado de alma” do homem da doxa e o do metafísico?
O primeiro, dir-se-á, é um estado de simples certe
za ao passo que o segundo é verdade, assim como o ates
ta o sentimento de evidência (ou de presença, ou de sa
116
tisfação, ou de plenitude). Essa diferença, no entanto,
é percebida apenas pelo metafísico; para aquele que per
maneceu no nível da doxa (ou para o observador “ ex
terior” ou “ imparcial” , para o psicólogo), não é de mo
do algum decisiva: pois essa obrigação de aderir ele
também a sente. À experiência da mediação operada pe
lo metafísico, oporá sua experiência ativa da vida. Sem
pre lhe será fácil voltar contra a argumentação do fi
lósofo uma argumentação análoga: dirá que o pretenso
ser verdadeiro é um produto da imaginação, que a es
sência é aparência. E cada um só terá como prova a
certeza que experimenta. Teremos oportunidade, em
trabalho mais extenso e mais fundamentado historica
mente, de mostrar como os diversos sistemas metafísi
cos esforçam-se por legitimar a doutrina da evidência
que adotam sem consegui-lo inteiramente. Poderíamos
evocar com precisão a acusação formulada contra Des
cartes de fazer um círculo quando fundamenta o valor
da evidência; mostraríamos facilmente que o cartesia-
nismo — como todos os sistemas — deve aceitar esse
círculo ou reconhecer a validade absoluta de um intui-
tus que não encontra outro fundamento além de si-
mesmo. O problema seria, sem dúvida, menos simples
para Aristóteles ou para Leibniz que se esforçam pre
cisamente por atenuar as dificuldades apresentadas pe
lo “ intuicionismo” platônico ou cartesiano: veríamos,
no entanto, que, finalmente, é sempre a presença do es
sencial que serve de legitimação última.
Sem dúvida, o metafísico poderá ainda afirmar que,
contrariamente às doxas variáveis e múltiplas, o saber
filosófico é único e estável. Infelizmente, o pensamen
to metafísico definiu, ao longo de sua história, o ser es
sencial de tantas maneiras diversas que é impossível
aceitar essa resposta. À multiplicidade das doxas corres
ponde, de fato, a multiplicidade das doutrinas metafí
sicas. Em última análise, nada mais resta que permita
distinguir fundamentalmente a opinião da filosofia.
Assim, a recusa da opinião e o desejo de instaurar um
saber legítimo para negar e superar a certeza dada
117
levam a atribuir-se a certeza. A vontade metafísica
queria legitimar o discurso coerente, e o fez descobrin
do o universo das essências mas, quando lhe foi neces
sário, diante da incompreensão da antifilosofia, provar
que esse universo das essências é o único que autoriza
a fundar o saber verdadeiro e a conduta conveniente,
só pôde apelar para a intuição (espiritual ou intelec
tual), para a experiência (metafísica), quer dizer, para
uma referência do tipo daquela que a opinião utiliza
va. Negando o conteúdo da doxa, não pôde a metafí
sica desprender-se de sua forma. A vontade metafísica
malogra, não porque procure um fundamento, mas
porque não consegue apresentar um que seja efetiva
mente aceitável; sua vocação, que era de nada admitir
que não fosse legítimo, converte-se, irrisoriamente, nu
ma afirmação que ela declara legítima porque não che
ga a legitimá-la.
Um único dos “ sistemas” metafísicos parece ter
tomado plena e corajosa consciência dessa dificuldade
revelada pelos temperamentos diferentes de Kant e de
Hegel: o de Spinoza. Não há, em sua perspectiva, pro
blema de legitimação. Enquanto verdade e admissão
da metafísica, o spinozismo situa-se imediatamente na
esfera do legitimado. Não só o ser essencial se dá, mas
se dá enquanto dado. Trata-se, simplesmente, para o
filósofo, de saber: o problema da justificação desse saber
não é pois decisivo, na medida em que o justificado se
apresenta como tal na totalidade orgânica de suas de
terminações. É admirável que cada uma das partes da
Ética comece por uma série de axiomas e de definições:
encontra-se aí como que uma afirmação grandiosa e
altiva da dificuldade, acompanhada pela certeza de que
não é possível deixar de aderir ao conteúdo da doutrina;
a exposição more geometrico é por assim dizer o desen
volvimento dessa certeza. Resta, no entanto, uma difi
culdade dirimente: mesmo que aceitássemos em sua to
talidade o spinozismo, mesmo que encontrássemos em
cada momento do desenvolvimento uma razão para con
cordar, subsistiria uma questão que o sistema não per-
118
mite resolver universalmente. Essa questão pode ser
assim formulada: por que Spinoza é o homem que soube
entrar em contato imediato com o Ser? Assim, o mais
admirável produto da vontade metafísica, revela o limi
te último do esforço de legitimação tal como é conce
bido pelo metafísico: mesmo que nos colocássemos ori
ginariamente no Absoluto e recolhêssemos o assentimen
to universal, seria ainda necessário mostrar por que o
Absoluto se dá dessa maneira, por que é relativo, pode
ríamos dizer, parafraseando a bela frase de Hegel.
Revela-se, pois, a metafísica, como uma doxa de tipo
especial que tampouco é capaz de provar a autenticida
de da “ Substância” quanto a opinião é capaz de provar
o valor da “ aparência” . Vontade em sua origem e for
ma, manifesta-se desde logo como expressão de certa
crença, a da elite, crença daqueles que o devenir, de
acordo com seu curso próprio, coloca em situação tal que
lhes permite apreender a insuficiência das crenças da
das, embora nem por isso sejam capazes de elaborar um
saber efetivo. Eis por que a metafísica é utópica: não
aceita a desordem atual; vê que há uma ordem a pro
mover; mas, afinal de contas, não pode provar que sua
ordem é a boa. A razão profunda é que não passa da
negação pura e simples da doxa: qusria repeli-la; não
passa de sua contradição abstrata. Seu esforço para en
contrar, naquilo que nega, a prova do valor daquilo que
afirma malogra constantemente. Continua a ser do do
mínio do coração: é paixão sublimada. De sua vontade
grandiosa, subsiste uma esperança: a que nos é dada
pelo fato de a violência não proporcionar satisfação ao
homem. Mas esse é apenas um programa, que a voca
ção metafísica não cumpriu.
119
então? Deveremos renunciar à filosofia e entregar-nos à
contingência da opinião, à solução da violência? Deve
remos, simplesmente, lembrando-nos da esperança des
pertada pela filosofia, “ compor” com a violência e, re
nunciando a promover uma ordem, organizar-se tecni
camente na desordem? Afinal de contas, não está pro
vado que o mundo das aparências seja definitivamente
inabitável: semelhante vida certamente não proporcio
nará a plenitude e a satisfação; mas será, ao menos,
uma vida isenta de desejos quiméricos e de coragem inú
til. Para levar a bom termo essa empresa modesta e li
mitada à individualidade, basta convencer-se de que a
exigência do fundamento — por mais humana que seja
— permanece sem efetividade para um homem e, ha
vendo somente homens, a Substância está ausente. A
simples procura da quietude sem satisfação pode adotar
diferentes formas: ora tenderá a desenvolver tanto quan
to possível um saber do objeto tomado em si mesmo, a
fim de permitir aos homens a satisfação de suas neces
sidades; ora tentará fazer reviver em cada um os te
souros acumulados pela tradição e renovar as belas cer
tezas da doxa; ora se empenhará em exaltar — uma
vez que tudo é paixão — alguma paixão particularmen
te nobre ou bela ou útil (a do nobre, do belo ou do útil,
por exem plo). Desabrocha, assim, um novo ceticismo:
não se define como avesso da metafísica (à maneira da
quele que evocamos alguns parágrafos atrás), ou aves
so da filosofia (à maneira do de Cálicles), mas, de certo
modo, como colapso da filosofia. Não se entrega nem à
violência nem ao desespero sorridente ou raivoso: reco
nhece que há somente fatos fundamentalmente desor
denados, que o homem (cada homem) é um fato contin
gente e que convém arranjar-se da melhor maneira
nessa situação cuja solução ou transformação seria in
sensato imaginar.
Adotar semelhante atitude, é reconhecer a disjun
ção do Saber e do Absoluto, é situar o Absoluto em exte
rioridade inacessível e limitar o saber à pessoa de um
homem, isto é, à paciência e ao talento individuais. Se-
120
melhante tomada de posição pode ser indefinidamente
retomada e prolongada: à exigência do metafísico, o in
divíduo poderá sempre opor a contingência do aconte
cimento e o caráter insensato e perigoso dessa procura
obstinada da razão; poderá sempre mostrar, no momen
to adequado, o acidental, que nada explica, pedir que lhe
“ deduzam a caneta tinteiro” e exigir que lhe digam se
existe realmente uma Idéia do “ cabelo e da escória” . Há,
no entanto, como limite dessa nova doxa, a constante
eventualidade da violência e o apelo constante lançado
pelo homem para dela libertar-se em definitivo, e achar
a satisfação. Na realidade, a honesta renúncia à filoso
fia é como a aceitação da morte, da brutalidade, da
opressão; e o desejo de conciliar com a desordem, a sub
missão à desgraça. Escolhendo uma espécie de salvação
na “ existência positiva” , o antimetafísico, ao mesmo
tempo, na medida em que reconhece a violência como
fundamental, acaba por atribuir-lhe valor. Não seria
essa uma dificuldade real se fosse verdade que o homem
em geral aceitasse como justos o sofrimento, a aliena
ção em suas diversas formas. Ora, é um fato que não
os aceita.
É, portanto, impossível não levar em conta esse mo
vimento no sentido da vida satisfeita que a vontade filo
sófica suscitou em sua origem. Não há terceiro caminho
entre C á lic ^ e Sócrates: reconhecer, com reservas, ma
tizes ou ( jjeções de pormenor, a visão do mundo de Cá-
licles é, finalmente, expor-se a correr o risco de ser cí
nico ou vítima do cinismo. O único recurso do “homem
positivo” é então o de desejar que, durante sua breve
existência, a desgraça não lhe aconteça e que ele seja
“ bem sucedido” sem fazer nem suportar nenhum mal
em excesso. Indefinidamente reiterável, semelhante ati
tude mostra-se indefinidamente insuficiente.
Não é verdade, no entanto, que haja um Saber abso
luto no qual o homem possa reconhecer-se e pelo qual
possa realizar-se. Resta pois a hipótese de que o Abso
luto existe, mas não é um Saber. Semelhante solução
dá à filosofia novo impulso: assinala, ao mesmo tempo,
121
o declínio da metafísica e sua renovação. De um lado,
com efeito, denuncia com energia a “ ilusão transcen
dental” que levou os pensadores, cedendo à esperança
da Razão, a erigir em Substância os produtos da ima
ginação e da elocubração; a partir do momento em que
se abandona o terreno da experiência, nenhum enuncia
do pode ser verdadeiro: a melhor prova dessa tese é
que é possível demonstrar a igual validade de duas for
mulações metafísicas contraditórias. A propósito da
Alma, do Mundo e de Deus, é possível multiplicar os
enunciados sem encontrar a menor contradição interna:
e isso não acontece porque se diz de cada vez alguma
coisa verdadeira, mas porque, a rigor, nada se diz. Isso
não significa, de modo algum, que não haja um saber:
a perfeição da matemática e a solidez da física provam
que o homem pode conhecer alguma coisa e conhecê-la
com rigorosa objetividade; todavia, esse saber universal
que, por isso mesmo, é, de certo modo, absoluto, não
é um saber do Absoluto: o que apreende é apenas a exis
tência fenomênica e não essa Coisa-em-si da qual o me
tafísico imaginava apreender a essência. Esta, escapa
sempre ao conhecimento, pois o simples fato de conhe
cê-la a transforma e lhe confere um stahis relativo ao
homem. O que importa, pois, para filosofar com serie
dade, é criticar a Razão e mantê-la nos limites de seu
uso legítimo: nesse domínio teórico, só é permitido de
senvolver experimentalmente a ciência, no sentido res
trito do termo, permanecendo convencido de quç é in
capaz de proporcionar uma posse integral do ser-em-si.
Por outro lado, no entanto, há um domínio no qual o
uso da Razão pode desenvolver-se de acordo com sua
vocação: o da vida moral. O Absoluto, que é recusado
ao homem no nível teórico, se dá em toda sua riqueza
no nível da Ação da Liberdade. Constituindo-se como
vontade livre, desprendendo-se, pela escolha de um des
tino humano, das determinações mundanas, o indivíduo
tem acesso ao além dos fenômenos. Somente fazendo-se
“ legislador e sujeito” , ou então personalidade que se cria
a si-mesma como querer, que emerge de sua situação
122
relativa e conquista a “ integral determinação” . As obras
da ciência, as ambições do Saber parecem bem modes
tas quando comparadas a essa tarefa grandiosa e peri
gosa, a de fazer a Razão no Ato ou, mais precisamente,
de ser si mesmo a Razão agindo. Ser metafísico, o indi
víduo humano só se realiza na esfera prática: nenhuma
prova, aliás, pode ser dada do êxito dessa empresa, a
não ser aquela que o sujeito se dá a si-mesmo conhe-
cendo-ss como realização da lei moral. Não cabe pro
curar no mundo fenomênico sinais desse êxito: o Abso
luto torna-se enfim o que sempre foi, uma “ tarefa infi
nita” , um ideal. Resta que o homem pode encontrar a
plenitude e tem o direito de esperar a completa satis
fação, como ser livre e não como ser cognoscente.
Essa solução — a respeito da qual nos deveríamos
estender longamente para desenvolver toda a riqueza
que contém, — é de grande beleza. Representa uma to
mada de consciência muito importante do sentido da
vontade filosófica e mostra que, em suma, essa vontade
é, antes de tudo, o aprofundamento da vontade huma
na em geral: aquela que consiste para o homem em
definir-se (ou “ conhecer-se” , mas a fórmula tem uma
ressonância excessivamente psicológica), a fim de co
nhecer a maneira que lhe permita ser duradoura e ge
ralmente satisfeito. Ora, essa vontade, até então, acre
ditara que lhe competia descobrir a essência do homem
e determinar a ligação existente entre essa essência e o
universo total das essências. Situara o problema e a so
lução, após a condenação de Sócrates e o malogro sici-
liano, em plano teórico, reservando-se para aplicar à
conduta o que tivesse aprendido ou mesmo fazendo da
Teoria a conduta que proporciona a plenitude. Ora, a
diversidade contraditória das respostas que havia formu
lado ao longo de sua história provou que não conseguia
de modo algum escapar à paixão. Deveria, então, con
tentar-se com um cálculo prudente e esforçar-se em es
tabelecer as condições de uma existência tranqüila, sem
nada mais esperar das essências, nem possibilidade de
transformação do dado nem fruição? A filosofia moral,
123
tal como foi definida por Kant, esforça-se em retornar
à própria fonte da vocação filosófica (que traduz a aspi
ração do hom em ): a vontade não tem que procurar
num além existente o que poderá satisfazê-la; a deter
minação da conduta conveniente não é uma conseqüên
cia do Saber; ou então a aspiração do Saber não pode
ser integralmente satisfeita. É nela mesma que pode
encontrar realização e plenitude, enquanto se conhece
como vontade universal capaz de ser pura atividade de
criação de si, autodeterminação, além de todo dado e,
especialmente, além do eu patológico. Não se sai da
paixão criando seres de razão, mas agindo contra a pai
xão, em geral, querendo-se como ser moral. Assim, o
êxito da filosofia — que será também êxito do homem
— está nas mãos de cada indivíduo, que sozinho con
sigo mesmo, deve provar a cada momento a derrota da
paixão ao existir como ser livre.
Dissipou a filosofia da reflexão todas as dificulda
des? Estabeleceu definitivamente os princípios de “ toda
metafísica futura” ? Permanece o fato de que se expri
me, como todas as demais doutrinas filosóficas, em um
discurso; resta igualmente que não apresenta provas
irrecusáveis de seu valor. Explica, sem dúvida, porque o
ry •or>'Hf'ionado não é da ordem do Saber: nem por isso
deixa de sabê-lo. Em outros termos, demonstra por uma
crítica do Saber e da Ação que o conhecimento é rela
tivo e que só o ato moral é portador de caráter absoluto.
Mas, com que direito faz essa crítica? Em nome do que
a empreende e a considera concluída? Mais precisamen
te: que justificação há da validade de seus preceitos
morais? À essas questões, a reflexão não pode respon
der; se quisesse fazê-lo, precisaria ainda refletir sobre si
mesma: a crítica seria obrigada a criticar-se a si mesma
e não haveria razão alguma para que se detivesse nessa
constante indagação. Finalmente, querendo superar o
“ dogmatismo” do saber metafísico e o “ empirismo” dos
técnicos da existência, a filosofia da reflexão acaba por
negligenciar completamente o problema da prova da va
lidade de seu próprio procedimento e de seu conteúdo.
124
Ainda melhor: na esfera moral que é, para ela, deci
siva, interdita-se qualquer tentativa de justificação, pois
nada do que aparece pode atestar a moralidade dè um
ato, nem mesmo a consciência que o sujeito tem de si
próprio.
Que resta, então, da esperança filosófica do discur
so totalmente coerente e legitimado (quer dizer, verda
deiro e probante)? Que resta mesmo dessa admirável
corrente de pensamento que, de Platão a Kant, tentou
proporcionar ao homem a satisfação, revelando-lhe o
que é verdadeiramente? Dever-se-á retornar à prudência
dos técnicos da existência quotidiana? Dever-se-á decla
rar secundária a vontade filosófica e considerá-la um
empobrecimento de alguma empresa mais bela e mais
eficaz, a do Artista, por exemplo, que experimenta o
Absoluto de modo afetivo?
125
conferiu existência, por uma decisão arbitrária que não
pode justificar. Queria encher o vazio do Pensamento,
desembaraçado das crenças comuns, pela plenitude do
Ser; não fez senão substituir às crenças oriundas da
paixão, crenças essas nascidas de sua vontade de ven
cer a violência e a incoerência. Levarão essas observa
ções necessariamente ao retorno à doxa ou a desarticular
fundamentalmente o Ser e o Saber?
Semelhantes observações, uma vez que se evitem a
exaltação romântica e a falência positivista, abrem novo
e grandioso caminho. O que os apologistas da vida quo
tidiana, o que os pensadores críticos puseram em ques
tão, é, afinal de contas, o exercício da metafísica: sua
operação, no entanto, não teve um caráter suficiente
mente radical; não fiseram incidir a interrogação no
axioma mais profundo que domina o pensamento meta
físico e explica seu desenvolvimento e seu fracasso. É a
esse último estágio que se deve chegar ao querer abar
car o conjunto do movimento que conduz das afirma
ções platônicas às renúncias sublimes de Kant e tornar-
se capaz de ir além das dificuldades dirimentes encon
tradas. De fato, uma idéia decisiva encontra-se cons
tantemente de Platão a Kant, embora só se manifeste
na época moderna e seja nos Antigos corrigida por in-
tuições de outra ordem, a idéia segundo a qual existe
uma cisão essencial entre o objeto do discurso e o dis
curso, entre o Ser e o Pensamento, entre a verdade e a
certeza. A própria maneira como nasceu a vontade filo
sófica, o modo pelo qual foi ulteriormente levada a cons
truir-se, contribuíram para desenvolver essa perspecti
va. O metafísico é aquele que supõe que, devendo dizer
a verdade, deve encontrar o meio pelo qual o Ser e a
ordem do Ser se refletem em seu pensamento subjetivo
e pelo qual sua certeza individual se transforma em ver
dade absoluta; concebe o discurso como linguagem se
parada do Ser que deve encontrar o Ser por meio de
uma técnica adequada. É exatamente isso que exprime
a fórmula escolástica segundo a qual a verdade é
adaeqwatio rei et intellectus: por mais justa e incontes-
126
tável que seja, tal fórmula implica uma separação pré
via e não legítima da coisa e do intelecto. Ora, essa
ótica conduz às conseqüências que conhecemos: na me
dida em que o intellectus jamais pode sair de si mesmo
para confrontar a adequação efetiva da idéia que ele
forma e da res, ou bem devemos supor certos caracteres
intrínsecos da idéia, arbitrariamente escolhidos para
provar sua validade, ou recorrer a outra garantia que
escapa, por natureza, à prova, sendo assim sempre sus
cetível de contestação, ou bem, mais banalmente e mais
gravemente, admitir que não há verdade ou que há so
mente sucedâneos da verdade ou que a verdade não é
humana.
Essas últimas soluções são perfeitamente aceitáveis:
a melhor prova está em que são aceitas, seja na vida
quotidiana, seja pelos filósofos decepcionados. Todavia,
são o epitáfio da filosofia. O caminho qus permanece
absrto consiste em renunciar a esse axioma inicial da
metafísica e adotar como ponto de partida o axioma
contraditório, mesmo que apenas para experimentar seu
valor e sua fecundidade. Admitiremos então que o dis
curso, fundamentalmente e por essência, já exprime o
Ser, de modo talvez limitado e parcial; que a subjetivi
dade não está cortada do dado mas é, em todo caso, seu
reflexo ou sua reflexão; que a certeza não é o oposto da
verdade, mas o modo pelo qual a verdade pode mani
festar-se. Admitindo essa perspectiva, não se procederá
gratuitamente: não se fará senão tomar consciência da
profunda preocupação que animava os metafísicos; cada
um pretendia harmonizar seu pensamento com o Ser e
dele fazer o Pensamento; cada um conferia pois ao dis
curso a propriedade de representar, quando bem suce
dido (ou verdadeiro), a realidade tal qual é; mas, ao
mesmo tempo, cada um se tornava incapaz de ter êxito
em seu discurso, a não ser subjetivamente, uma vez que
supunha, na origem, que o Ser era outro que não o dis
curso, outro que não o pensamento humano. E, assim,
conduzia inevitavelmente ao criticismo que, no fundo,
equivale a verificar essa alteridade fundamental e dela
127
tirar todas as conseqüências. Importa, para salvar a fi
losofia e com ela a racionalidade, compreender que o Ser
não é o outro em relação ao discurso, mas antes seu
medium imposto, que todo discurso é, dssde logo, dis
curso do e sobre o Ser e que é finalmente o ser enquanto
se exprime (parcialmente ou totalm ente). Assim tam
bém, o pensamento subjetivo, o do indivíduo que vive
seu desejo ou que, a seu modo, experimenta o mundo,
nem por isso é relegado à esfera da pura contingência:
reflete, ainda, a seu modo, a realidade; por falsa que
possa ser sua “representação” ainda é representação do
dado5.
Mas, conceber assim as relações do Ser e do discur
so, não é retornar aos caminhos que conduzem ao rela-
tivismo, ao ceticismo e à ruína da filosofia. Não se frag
menta o Ser em tantas modalidades quantas são as de
discursos possíveis, e a verdade não desaparece a partir
do momento em que se reduz a uma coleção disparatada
de certezas diferentes? Já mostramos que, apesar de sua
vontade de constituir-se contra a diversidade e as con
tradições das doxoi, o discurso metafísico era incapaz
de provar que é outra coisa além de uma doxa mais
elaborada e mais sistemática. Todavia evita-se realmen
te a dificuldade declarando que a doxa diz qualquer coisa
do Ser e perde assim essa gratuidade, essa contingência
que lhe atribuía a metafísica? Para responder a essa
questão, é preciso insistir ainda uma vez na vontade do
metafísico e na natureza de seu discurso. Este pretende
refletir o que é tal como é; tenta tornar-se outro pas
sando de um conteúdo subjetivo a um conteúdo obje
tivo; tem êxito, mas apenas para-si; o Ser que reflete e
que acredita ser-em-si absolutamente e, afinal de con
tas, ser-em-si apenas para si; traduz a experiência de um
indivíduo (ou de uma coletividade) e o que descobre
como Substância, é aquilo em que o pensamento (indi
vidual ou coletivo) se reconhece e aquilo por meio do
128
que se compreende; a realidade essencial revelada por
ele é efetivamente pensada de tal maneira que nela de
vem desaparecer as dificuldades, desfazerem-se as con
tradições, resolverem-se os problemas implícitos na ex
periência do sujeito ou do grupo: assim, o ser-real do
metafísico é a verdade do fato vivido na medida em que
aquele traduz e exprime este, elevando-o à clareza do
conceito. Mas, inversamente, o fato aceito é a verdade
do ser-real pois constitui sua matéria e seu conteúdo
vivo. O metafísico era sensível apenas ao primeiro as
pecto; é do segundo que o filósofo, passando pela prova
crítica e preocupado em reconciliar o Absoluto e o Saber,
deve tirar as conseqüências.
De fato, o discurso é, em geral, a unidade do Pensa
mento e do Ser; tal discurso é a verdade de tal experiên
cia. Nessa ótica, abre-se um novo caminho: o discurso
verdadeiro seria o que formasse um sistema de todos os
discursos possíveis, que mostrasse como esses últimos
se organizam e se encadeiam; o ser-real manifestado
nesse discurso total seria, ao mesmo tempo, o sistema das
diversas realidades subtanciais reconhecidas pelos meta
físicos; e a experiência correspondente seria a totalidade
das experiências possíveis e englobaria assim o conjun
to das perspectivas oferecidas à existência humana. O
objeto da verdade filosófica não seria um outro exterior
ao Pensamento, mas o próprio Pensamento enquanto é
sempre pensamento do Ser. À substância morta, e ina
cessível por definição, substituir-se-ia a vida do sujeito.
O fato de tomar consciência da unidade primordial do
Ser e do Pensamento no seio do discurso traria a pos
sibilidade de realizar efetivamente essa unidade, em um
discurso que incidisse precisamente, não sobre o Ser dos
metafísicos, mas sobre essa unidade ou os diversos es
forços de unificação. E, se cada discurso define indisso
luvelmente uma figura do ser e a figura do pensamento
que a reflete, então o discurso que reflete todos esses
discursos traduzirá, não somente o Pensamento em seu
conjunto sistemático — o que seria o sonho de uma his
tória racional — , mas exprimiria o Ser na totalidade de
129
suas determinações e integraria toda a riqueza da expe
riência .
Tal possibilidade, no entanto, não será singularmen
te abstrata? Ela o seria se o desenvolvimento do pensa
mento metafísico em sua forma e em seu conteúdo não
indicasse o caminho a seguir. De fato, cada experiên
cia do homem, quer se exprima na linguagem inacabada
da opinião, da arte ou da religião, quer se eleve ao con
ceito no discurso metafísico, encontra na substanciali-
dade ao mesmo tempo seu fundamento e sua limitação.
A consciência, apreendendo o que julga ser o ser-real,
encontra inicialmente a satisfação e frui a plenitude que
ele lhe oferece; seu contentamento, porém, não poderia
durar. Quando procura desenvolver sua intuição e fazer
prevalecer sua perspectiva junto de outrem, quer dizer,
a exprimi-la como ponto de vista universal e mostrar as
experiências quotidianas que a confirmariam, percebe
que seu esforço está condenado ao fracasso e que deve
contentar-se em afirmar sua posição; ao conhecer essa
situação de fato, fica indignada e sofre; é presa entre o
desejo de desvendar o ser-outro que lhe traria a satis
fação e a obrigação em que se encontra de reconhecer
seu ser-aí que põe em dúvida aquilo no sentido do que ela
tende; imobiliza-se, então, no sofrimento e perde-se no
vaivém que a leva de sua esperança à sua situação trá
gica ou, então, corajosamente, define alguma substân
cia que melhor corresponda à sua ansiosa procura, nega
o que havia aceito como ser-real e se supera, afirmando
uma realidade mais rica que integra o conteúdo de sua
experiência renovada. Esse caminho do “ negativo” é o
próprio caminho que conduz ao Espírito, considerado
nesse estágio último no qual a consciência, tendo-se per
dido no ser-outro e, encontrando-se solitária e entregue a
si-mesma, descobre o lugar em que é indissoluvelmente
ela-mesma e o outro, onde a unidade do Ser e do Pensa
mento, do objeto do discurso e do discurso se realiza.
Em outros termos, a possibilidade de uma realização da
vontade metafísica é dada na própria inquietação do
metafísico que, ao mesmo tempo que postula seu êxito,
130
percebe sua fraqueza, sofre, a oposição de outrem e, es
forçando-se em dominá-la, vai além de si-mesmo. O
meio que permite realizar o discurso absolutamente ver
dadeiro e superar a renúncia crítica e o golpe de força
romântico não é exterior ao ato filosófico: está presente
nele e consiste simplesmente no conhecimento do que
esse ato pretendia realizar, conhecimento que ele não
podia ter antes que o Espírito houvesse percorrido as
etapas necessárias à sua formação. A via do Saber abso
luto já está no movimento que conduz de saberes par
ciais a saberes parciais: o Saber absoluto não passa do
difícil encaminhamento que leva de uns aos outros e
que conhece a razão dessa progressão.
Ü3 tal modo que a questão proposta, referente à pos
sibilidade de um discurso que fosse o sistema de todos
os discursos possíveis, não pode receber uma resposta que
não seja ao mesmo tempo um saber efetivo satisfazendo
a questão apresentada. Se fosse de outra maneira, per
manecer-se-ia na atmosfera crítica, indagando sobre o
direito de dizer antes mesmo de dizer o que quer que
seja. O que é necessário, a partir do momento em que
compreendeu o sentido da empresa filosófica, é realizá-
la percorrendo as diversas etapas que assinalam o per
curso paciente e doloroso da consciência no encalço de
um conteúdo em que a completa igualdade se estabeleça
entre o Ser e o Pensamento. Ora, esse caminho existe;
basta segui-lo para perceber sua verdade. Mostra ele
como a consciência, alienando-se em um objeto no qual
acredita reconhecer-se e atingir a plenitude, perde-se
nesse objeto, retorna a si descobrindo que é ela-própria
que se havia hipostasiado e prossegue, de conquista em
fracasso, sua formação. Não há critério exterior que
possa provar a verdade do que então se diz: é a vida do
conteúdo, em sua necessidade, que se impõe e consti
tui a prova. O erro do dogmatismo metafísico era o de
imobilizar-se em uma figura mantida como ponto de
vista universal; o erro do relativismo é o de reconhecer
a verdade parcial de cada figura; a experiência efetiva
do desenvolvimento da metafísica — que resume e ex
131
prime o movimento da existência humana à procura da
satisfação — torna manifesto o caráter profundamente
sistemático do curso real do pensamento. Essa experiên
cia pode ser seguida historicamente, compreendendo que
cada atitude do homem em face do real que ele vive à
sua maneira, que cada doutrina filosófica, cada obra —
no sentido amplo — esforça-se em ir além da atitude,
da obra, da doutria que a precederam; sem dúvida, cada
uma, em seu movimento por ultrapassar o que é dado,
imagina atingir o Absoluto; mas, nós que vimos depois
e temos diante dos olhos o conjunto do processo, com
preendemos sua limitação e aprendemos com clareza que
é simplesmente a negação, a superação, e a inclusão do
momento anterior. O Espírito, desde então, não é senão
a história racional da consciência que se forma e se faz
precisamente Espírito; não há que provar que é real
mente o Espírito pois tudo lhe é interior, sendo o sistema
de todas as verdades e de todos os erros possíveis (pos
síveis significando aqui, ao mesmo tempo, reais).
Essa formação histórica só adquire plena significa
ção no momento em que, tendo-se concluído, desemboca
na vida imanente do próprio Espírito que desenvolve sua
necessidade. Aqui, ainda, é irrisório pedir qualquer le
gitimação da ordem e do conteúdo propostos: nada po
deria julgar esses logos que constitui o juiz supremo na
medida em que integra em sua racionalidade toda espé
cie de intuição, de critério ou de idéia que se queira.
A única contestação que se poderia fazer seria construir
um discurso do mesmo tipo, diferente em certo modo.
Qualquer outra contestação, incidindo sobre o método ou
sobre a legitimação, torna-se antecipadamente absurda
pelo ponto de vista adotado. Sem dúvida, o indivíduo
pode ainda protestar que não se acha nessa ordem que
lhe é apresentada, sem dúvida pode afirmar que ele
ainda existe, com seu sofrimento e sua inquietação, fora
dessa serena arquitetura. Seu protesto é normal: o
logos não pretende ser o pensamento de todo homem;
não pretende, principalmente, ser o pensamento do in
divíduo. Visa precisamente ao contrário; quer ser a ex
132
pressão do pensar ele próprio enquanto é pensamento do
Ser ou ainda enquanto é o Ser que se exprime e conhece
sua racionalidade. A subjetividade dirá que essa solução
não lhe convém: mas, dizendo-o, insere-se ela própria no
sistema, ou porque reitera em sua reivindicação uma
atitude histórica compreendida e superada, ou, mais ge
ralmente, por que se inclui na categoria da subjetividade
a propósito da qual o Espírito mostra precisamente que
é o momento parcial e abstrato do pensamento que se
compraz na insatisfação.
O drama da metafísica parece pois resolvido: o que
queria está, doravante, realizado. Procurava a unidade
do Ser è do Pensamento: esta se realiza a partir do mo
mento em que se compreende que o pensamento é semprfl
pensamento do Ser e que não há entre os dois termos
relação de alteridade. Mais precisamente, a alteridade
é ainda tim fato pensado. Quando se apreende essa di
mensão fundamental, então desaparecem as dificulda
des que levam ao criticismo, ao romantismo ou à antifi-
losofia. Não cabe perguntar que representação do pen
samento corresponde à natureza do Ser: o discurso verí
dico é aquele que integra todas as representações, as
organiza e elabora, assim, as categorias que são as do
Pensamento e do Ser. Tal discurso, contanto que o rea
lizem — . Hegel o fez e não houve pensador algum para
contestar que o tenha feito — escapa, desde então, a
qualquer tentativa de contestação do tipo daquela que
metafísica e filosofia da reflexão costumavam suscitar.
O caminho que Platão havia definido encontrou, ao que
parece, o homem que soube segui-lo sem titubear: as
contradições da doxa são dissipadas, o pensamento al
cança a satisfação na clara limpidez do conceito e a tota
lidade da experiência humana é integrada, tanto quanto
é razoável esperá-lo, no Saber do filósofo.
6
A vontade que suscitou a empresa filosófica é von
tade de provar absolutamente; transmitiu-se e realizou-
133
se diferentemente de acordo com as épocas e os pensa
dores. Mas, tratava-se sempre de elaborar um discurso
tal que nele e por ele os problemas apresentados pela
existência quotidiana fossem resolvidos ou dissipados
como falsos problemas; tratava-se, também, porque a
existência quotidiana o exigia, de que esse discurso fosse
capaz de legitimar sua ambição junto de outrem e de
trazer uma satisfação real (ou a eventualidade de uma
satisfação que seria o resultado de alguma ação indica
da pelo discurso), mostrando o que é tal qual é. Nesse
sentido, o antimarxismo tem razão de queixar-se da de
senvoltura do materialismo dialético em relação ao pro
blema da legitimação, à problemática do fundamento e
da prova. O marxismo-leninismo não se submete a essa
exigência; chega mesmo a considerá-la uma frivolidade,
quando não a despreza pura e simplesmente. O verda
deiro problema, no entanto, — aquele em função do qual
se organiza todo o presente trabalho — é o de saber o
que acontece com essa idéia da prova que está efetiva
mente no centro do pensamento filosófico, de Sócrates-
Platão a Hegel. A filosofia reclama uma prova, uma le
gitimação definitiva, quer dizer, plena e universalmente
convincente, daquilo que é dito: mas, ela mesma, que
traz? Sócrates foi condenado porque não conseguiu
convencer seus juizes; Platão fracassou porque não pôde
convencer Dionísio de Siracusa e sua Calípolis admirável
provoca a ironia dos conservadores e dos revolucionários;
desde então, desde Aristóteles, as metafísicas sucederam
às metafísicas, em construções grandiosas e profundas
mas nenhuma chegou a suscitar a adesão de todos e
para sempre. Deveremos, pois, admitir com Kant que a
prova não é da ordem do discurso, ou com o romantis
mo, que a prova se encontra no sentimento do Absoluto
que experimento neste instante? Nos dois casos, a filo
sofia confessa sua impotência e se reporta, para vencer
suas dificuldades, a tipo de atividade extrafilosóficos.
Sem dúvida, há a Fenomenologia do Espírito e a
Ciência da Lógica. Não estará, nesse nível, resolvida a
questão? Está resolvida; mas, observando bem, não será
134
porque deixou de ser formulada? De fato, abolindo a
alteridade do Ser e do Pensamento e fazendo do discurso
sua unidade efetiva, Hegel recusa e supera a problemá
tica tradicional da prova: todo discurso é legítimo, por
definição, porque exprime certo modo de apreender a
realidade (sempre admitimos que se tratasse de um dis
curso dado). E quando Hegel apresenta seu próprio dis
curso como absolutamente verdadeiro, não é porque sou
besse encontrar um instrumento capaz de medir a con
formidade de sua obra com o Ser, mas porque esss dis
curso constitui a razão de todas as doutrinas, de todas
as atitudes possíveis, porque mostra sua parcialidade
tornando-a inteligível e porque nenhum dicurso — admi
tindo que o trabalho de Hegel tenha sido bem sucedido
— pode constituir efetivamente sua limitação e sua refu
tação. O filósofo não está obrigado a provar: deve se
guir a ordem do processo que conduz dos saberes parciais
ao Saber absoluto, deve desenvolver a necessidade do
logos. O simples fato de elaborar um discurso tal que
toda expressão do Ser, que todo conceito seja nele in
cluído e nele encontre seu lugar, é prova de verdade.
Nada mais há a que procurar porque aqui a integrali-
dade do Ser se pensa e se reflete.
Isso significa, claramente, ao que parece, que o fi
lósofo deve afastar-se definitivamente da procura estéril
de um critério ou de um index da verdade; que é mesmo
irrisório perguntar por que sinais se reconhece uma
idéia verdadeira e querer determinar a que estrutura
ontológica correspondem esses sinais. Tudo se passa co
mo se o pensamento metafísico supusesse uma espécie
de defeito ou falha original do pensamento subjetivo e
do discurso que o exprime e, desde então, se atribuísse
por tarefa descobrir o caminho da purificação e da ver
dade. Esse caminho já se encontra no próprio exerci sio
do discurso; não há um pecado essencial, mas uma in
suficiência que se corrige por si mesma. O problema não
é nem o da possibilidade do erro, como julga a metafí
sica, nem o da possibilidade da verdade, como compreen
deu o criticismo, mas o do efetivamente verdadeiro; e
135
esse problema se resolve na realidade do discurso que,
como tal, é capaz de convencer, porque consegue cons
tituir um sistema de todos os discursos. Não será retor
nar por um atalho às perspectivas do intuicionismo me
tafísico? Não nos encontraremos, novamente, diante do
fato consumado de uma revelação que nos limitamos a
oferecer? Seria assim se o discurso filosófico hegeliano
se contentasse em opor sua própria concepção às con
cepções que considera errôneas: esforça-se — pouco im
porta que a empresa tenha ou não tido êxito — não só
em integrar em si as demais posições, mas ainda em
mostrar como a verificação dessas posições deve levar a
essa atitude lógico-ontológica de acordo com a qual não
poderia haver outra solução para o problema da verdade
senão a Ciência. Podem multiplicar os discursos filosó
ficos não-hegelianos: é difícil fazê-lo com perfeita legi
timidade se, inicialmente, não se prova, de certo modo,
que se superam as atitudes e as categorias compreen
didas pelo hegelianismo; se, em seguida, não se mostra
que há uma doutrina da prova diferente daquela que é
proposta pelo filósofo hegeliano; se, enfim — e não é a
condição menos difícil de realizar — não se consegue
convencer do fato de que não ocorre o abandono a algu
ma emoção da subjetividade, ansiosa de liberdade, e que,
sob o nome de filosofia, propõe uma angústia, bem
“ fundamentada” uma vez que existe, mas sem relação
com os problemas universais definidos pelos filósofos.
Semelhante ótica, a do hegelianismo, chega pois, ao
que parece, a certificar-se desse fato de que constitui
toda solução, que toda doutrina que a ela se opõe é in
definidamente reiterável, mas é por ela incluída e que
a única maneira de refutá-la seria deixar de falar nela.
O círculo está desde então percorrido: vinte e três sé
culos permitiram que o problema proposto por Platão
fosse resolvido. Resta ser filósofo e hegeliano ou re
nunciar ao hegelianismo, renunciando, porém, ao mes
mo tempo à filosofia e desprezando sem direito toda a
grave problemática que ela suscitou.
136
III
O Êxito da Filosofia
e a Exigência de Superação
137
zida, nem situada em seu verdadeiro lugar; e, diante da
realidade desse protesto, o filósofo não pode fazer outra
coisa senão reconhecer sua possibilidade; pouco lhe im
porta, aliás: o que conta, para ele, é o fato de que, se
acontece à subjetividade — ávida em manifestar sua li
berdade abstrata — pretender contestar a ordem racio
nal, é fácil doravante demonstrar que, assim agindo, re
vela-se insensata ou criminosa. A filosofia não tem a
ambição de tornar os homens racionais; não supõe que,
pela magia do logos, seja capaz de suprimir a confusão
e a tendenciosidade do pensamento; sabe que a oposição
da subjetividade é indefinidamente reiterável. Sua mis
são é demonstrar o que é a Razão, de fazer aparecer o
que querem realmente os homens e de revelar de modo
claro o que é legítimo, em dado momento do devenir
humano, querer e esperar. A antifilosofia — inspiran
do-se sempre, em graus diversos, no estilo de Cálicles —
conservará sempre o recurso de assinalar, com ironia ou
amargura, a decalagem subsistente entre a realidade re
velada pelo filósofo e a existência empírica; esquecerá,
se pretende fazer prevalecer a seriedade da vida contra
a vaidade do conceito, que essa diferença entre o exis
tente e o real é precisamente uma diferença que o filó
sofo conhece, que soube elevar ao conceito e a propósito
da qual mostrou que pode ser causa de irritação para o
indivíduo, mas não fonte de insatisfação para o homem
que se compreendeu a si mesmo.
Poderá, semelhante saber, receber uma qualificação
análoga às que se costuma atribuir às doutrinas filosó
ficas? Estaremos em presença de uma “ ontologia” ma
terialista ou espiritualista, de uma “ gnosiologia” empi-
rista ou racionalista, de uma “ metafísica” realista ou
idealista? Será necessário forjar algum termo original
que convenha melhor à definição dessa nova perspecti
va? Na verdade, parece que o sistema hegeliano, na me
dida em que pretende ser o êxito da filosofia, sustenta
também estar além de semelhantes qualificações. Estas,
com efeito, designam e não designam senão óticas par
ciais e, conseqüentemente, falsas, que o saber total nega,
138
supera e engloba e das quais dá razão enquanto resu
mem atitudes “ existenciais” limitadas ou constituem ca
tegorias fragmentárias do Pensamento. Mas, dir-se-á, a
filosofia hegeliana não é racionalista, idealista, espiri
tualista? Não afirma que “ o que é racional é real e o
que é real é racional” -, que “ só a Idéia Absoluta é o Ser,
somente ela a Vida imperecível, a Verdade que se sabe
tal, toda a Verdade” \ que o Saber absoluto é idêntico
ao “ Espírito que se sabe a si mesmo como Espírito” 4?
Formular semelhantes julgamentos sobre o hegelianis-
mo, é situá-lo precisamente em um nível que ele supe
rou, o da discussão e das disciplinas parciais (o proble
ma voltará a apresentar-se, de saber se essa superação é
efetiva, se essas qualificações, finalmente, aplicam-se ou
n ã o ): o que o sistema revela, é que a teoria do conhe
cimento tradicional do racionalismo — para tomar ape
nas esse exemplo — só tem sentido e verdade porque se
opõe a uma teoria do conhecimento empirista que por
si mesma extrai sentido e verdade dessa oposição. Na
realidade, o Saber absoluto, se é realmente tal, suprime
as diferenças e as contradições entre as “ escolas” filo
sóficas, reconduzidas ao seu estatuto de opiniões provi
sórias e necessárias, adotada pelo Espírito ao longo de
sua formação dolorosa e paciente.
Assim sendo, não será frívolo o debate que constitui
o objeto do presente trabalho? Não pertencerá precisa
mente a essa esfera da discussão que opõe “ pontos de
vista” , opiniões, preferências, mas que não poderia fazer
surgir um saber verdadeiro? Mais precisamente, a ques
tão essencial, em torno da qual se desenvolve o debate,
a da precedência efetiva da materialidade em relação à
consciência, ao Espírito, terá acaso sentido filosófico?
139
Parece que agora conhecemos a razão desse vaivém ob
servado no começo desta análise, que remete das res
postas do materialista às objeções de seus adversários,
sem que seja possível deter-se em um conceito defini
tivo: trata-se de uma discussão por natureza estéril, pois
cada uma das posições encontra ao mesmo tempo seu
conceito e seu limite na posição oposta. O materialista
apresenta provas cuja legitimidade é, a jvisto título, con
testada pelo antimaterialista; essa contestação, no en
tanto, opera-se sobre um fundo real, o da ciência, da
vida política que é da alçada da análise materialista.
Na verdade, as duas posições, ao que parece, são abstra
tas. Marx, aliás, escrevia em 1843: “ O espiritualismo
abstrato é o materialismo abstrato; o materialismo
abstrato é o espiritualismo abstrato da matéria” 8. O
antimaterialismo criticava a teoria marxista por ser
pré-crítica: não será preciso rejeitar ambas as atitudes
como pré-hegelianas? O problema decisivo, segundo o
marxista, tal como o apresentamos no começo deste tra
balho, o da precedência da matéria, tem uma significa^
ção propriamente científica ao ver do filósofo hegeliano,
e é às ciências especializadas que convém pedir a res
posta; mas, que essa resposta seja favorável ao materia
lismo não prova de modo algum que tenhamos o direito
filosófico de resolver do mesmo modo a questão das rela
ções do Pensamento e do Ser. Nesse sentido, a crítica
antimaterialista é, para ele, em parte justificada. A vali
dade dessa crítica não implica, de modo algum, no en
tanto, que se possa desde logo, com toda tranqüilidade,
desenvolver doutrinas da subjetividade empírica ou
transcendental: o filósofo hegeliano estará então de
acordo, ao que parece, com o marxista em observar que
essas doutrinas esquecem seu fundamento histórico e as
condições reais de que procedem.
Parece, pois, que, com a solução desse problema da
140
prova, trazida pelo hegelianismo, problema que o con
flito atual do materialismo e do antimaterialismo tinha
levado a formular, aparece ao mesmo tempo a resposta
à questão que estava na origem deste trabalho, respos
ta ao mesmo tempo desorientadora e plenamente satis
fatória pois suprime a própria pergunta. O materialismo
e as doutrinas da subjetividade que a ele se opõem cons
tituem atitudes sempre reiteráveis e sempre insuficien
tes. Adotá-las e defendê-las atualmente, agora que sua
limitação se tomou manifesta, corresponde a revelar,
aquém da pesquisa filosófica, apenas uma preferência.
Tal preferência, principalmente quando se trata da
“preferência” materialista, ligada que se acha a movi
mentos sociais tão importantes, está sujeita a uma aná
lise histórica visando a determinar sua origem e signifi
cação; mas, não poderia pretender constituir, tanto
quanto a doutrina oposta, uma nova teoria filosófica.
141
essas modernas formas de Estado — dados graças aos
quais uma correta determinação da essência objetiva do
Estado tornou-se possível — verão aparecer formações
históricas cuja existência empírica irá aproximar-se cada
vez mais do Estado real, até se confundirem com e le 0.
O que torna legítima essa esperança, é o fato de que a
realização do Saber absoluto não é vim acidente, um
êxito devido ao gênio de um homem, mas o produto de
uma época, dessa época que começa com a construção do
Império napoleônico7 e que é “ propícia à elevação da
filosofia à ciência” — propícia, em todos os domínios,
à passagem da opinião ao conceito8.
Todavia, que acontece empiricamente com os ho
mens — queremos dizer: que acontece no devenir cole
tivo dos Estados modernos? E não podemos evitar esta
questão ingênua: a filosofia esforçava-se em trazer a
satisfação ao homem (àquele que é digno do nome de
homem; ora, doravante, graças à análise hegeliana,
àquele que sabe o que é ser um hom em ); o êxito da filo
sofia deve ser também, a satisfação efetiva do homem
ou, ao menos, levando em conta a decalagem — expli
cado pela filosofia — entre a existência empírica e a rea
lidade, esboçar as condições ou as possibilidades da sa
tisfação. Ora, (e trata-se de um fato histórico, de um
“ acontecimento” , tão importante para o destino da von
tade filosófica quanto a condenação de Sócrates ou o
malogro siciliano de Platão) a evolução dos Estados
modernos, e essencialmente, para esse período, da Prús
sia, da Inglaterra e da França, não “ confirma” de modo
algum a descrição filosófica. Esse divórcio entre o em
pírico e o real manifesta-se em vários domínios: antes
142
de mais nada, acontece que, na realidade, apesar da di
fusão e do êxito da Ciência, a filosofia não ensarilhou
as armas. O presente trabalho é uma prova indireta
disso: seria mesmo concebível, se efetivamente a argu
mentação absolutamente convincente tivesse sido for
mulada, de que o debate entre materialismo e antima-
terialismo fosse abstrato; de modo geral, é claro que,
depois da morte de Hegel e embora tenham tido suas
obras considerável audiência, pensadores cuja seriedade
é impossível contestar continuaram a escrever, desenvol
vendo perspectivas que contrariam ou não levam em
conta a teoria hegeliana. Essa contestação ou esse des
prezo não provam sem dúvida sua legitimidade; podem
ser o fruto da subjetividade descontente ou da opinião
empenhada em afirmar sua força; mas, sua própria rea
lidade manifesta a limitação do Saber absoluto, mesmo
que fosse absoluto. É possível que Husserl, porque o
ponto de partida de sua obra era epistemológico, tenha
sido levado a negligenciar, no início, os trabalhos hege-
lianos, por motivos contingentes; é possível que Bergson,
(porque na França; nos fins do século X IX , Hegel era
pouco conhecido e a situação na qual se encontrava a
isso o predispunha), tenha sido levado a adotar como
objeto de sua reflexão problemas psicológicos. Mas, a
realidade é que a epistemologia, a psicologia (mesmo
que revelassem sua insuficiência) puderam desenvolver-
se fora do hegelianismo; e é um fato que filósofos de
importância considerável e de erudição e honestidade
insuspeitáveis — não se trata de limitar a lista a Berg
son e a Husserl — situaram-se (com ou sem razão) numa
ótica diferente da de Hegel (diferente não significa, no
caso, — talvez seja esse o aspecto grave? — contraditó
ria ou oposta). Mesmo que se tratasse, nessas obras,
— o que é dificilmente sustentável — de manifestações
da ignorância, da parcialidade do poder da empiria,
nem por isso sua existência deixaria de por em questão
o poder de persuasão do Saber absoluto. O hegelianismo,
143
portanto, se não é compreendido, deveria também poder
justificar essa não-compreensão.
Essa objeção é, na verdade, excepcionalmente gra
ve: em primeiro lugar o filósofo hegeliano deveria po
der mostrar que toda contestação do Saber absoluto, ou
negligência em relação a ele, — levando-se em conta as
deficiências devidas a Hegel e ao mundo histórico no
qual viveu — leva ou a assumir uma atitude não-filosó-
fica, sempre possível, mas cujo caráter inumano foi pro
vado pelo sistema, ou a adotar uma perspectiva da qual
o sistema mostrou a insuficiência. Mas, mesmo que che
gasse a proporcionar essas provas, deveria ainda mostrar
a necessidade e a legitimidade (histórica) dessas con
testações e dessas negligências: seria assim compelido a
revelar as razões pelas quais o Absoluto não pode, final
mente, ser compreendido e deve ser ultrapassado em
alguma empresa posterior. E, se satisfaz a essa segunda
exigência, deve reconhecer que o hegelianismo não era
suficiente, não havia tudo “ previsto” e desenhava ape
nas uma imagem imperfeita da Ciência. Mas, se chegar
mos a esse ponto extremo, não ficará reduzido a essa
alternativa que, como filósofo hegeliano, lhe é difícil
enfrentar: ou bem cada doutrina filosófica exprime seu
tempo; a de Hegel, nesse sentido, conseguiu pleno êxito,
e convém agora — de acordo com a perspectiva defini
da por Hegel, mas que não é uma perspectiva hegeliana
(pois Hegel pretende o Saber absoluto) — elaborar o
“ absoluto-desse-tempo” ; ou então, chegou a ocasião para
que o Absoluto se revele; Hegel acreditou que a França
de Napoleão ou a Prússia de Frederico Guilherme in
eram “ propícias à elevação da filosofia ao conceito” ;
precipitou-se na apreciação; é agora que surge essa épo
ca privilegiada; mas, neste caso, que prova, do caráter
definitivo de sua revelação, poderá dar tal pensador?
Sem dúvida, não poderá dar essa prova. Assim, aquém
das exigências definidas por Hegel para que a filosofia
se realize e apesar dessas exigências, mostrar-se-á uma
oposição tradicional: ou bem o filósofo postula que che
gou ao Saber absoluto e espera que essa postulação seja
144
legítima ou bem reconhece que todo saber só tem como
prova a época da qual é o saber, que ele enuncia o rela
tivo, que é uma simples teoria da existência quotidiana
historicamente compreendida e, portanto, que o desejo
de uma satisfação universal e duradoura é frívolo.
A essa contestação do poder do logos pelo desenvol
vimento original do pensamento filosófico, acrescenta-se
outra mais grave. De fato, nada anuncia, na história
do último terço do século X IX , a passagem dos Estados
existentes a uma forma de organização mais adequada
à Razão. Ao contrário, a situação se desintegra continua
mente, na Alemanha, em particular, embora o hegelia-
nismo seja amplamente difundido e considerado, ao
menos por certos círculos dirigentes, como doutrina ofi
cial, e as esperanças de liberalização do regime tornam-
se cada vez mais ilusórias. Frederico Guilherme m não
toma providência alguma provando que pretende man
ter sua promessa de 1815 e de 1819; ainda mais, o pro
cesso de Hambach mostra claramente sua oposição ao
movimento democrático. Após a morte de Hegel e até o
advento de Frederico Guilherme IV, o rei e o governo,
apesar da permanência de alguns liberais no ministério,
reforça o caráter autoritário do regime prussiano: o pro
jeto hegeliano de uma hierarquia de Estados que asse
gurasse a mediação entre o poder e as diversas camadas
de cidadãos não encontra nem mesmo esboço de reali
zação. A situação agrava-se ainda depois de 1840: ao
passo que Frederico Guilherme m havia podido, depois
da vitória sobre o império napoleônico, alimentar a es
perança da outorga de uma constituição, seu sucessor,
quase imediatamente após sua ascensão ao poder, adota
uma posição francamente “ reacionária” ; demite os ad
ministradores liberais, esforça-se em eliminar das facul
dades os professores que não sustentam a estrita orto
doxia cristã, submete a imprensa a uma vigilância rigo
rosa, dá à censura poderes exorbitantes e estimula a
propaganda religiosa e antiliberal. Assim, o Estado real
cuja estrutura Hegel via surgir no movimento que havia
levado os Estados existentes à sua forma moderna, re
145
vela-se Estado ideal, como esperança da Razão. A de-
calagem entre a realidade do Estado e a experiência que
os homens dele têm, longe de atenuar-se, cresce a tal
ponto que, para o pensador liberal, o Estado dos Princí
pios da Filosofia do Direito, situa-se, no reino da Uto
pia, com a Calípolis platônica.
Em face da contestação do conceito pela empiria,
quer se trate da discussão do Saber absoluto por dou
trinas que pretendem, com ou sem razão, escapar ao
seu império, ou da oposição manifesta no devenir dos
Estados ao devenir do Estado, é possível adotar várias
atitudes. Pode, o filósofo, em primeiro lugar, ver nisso
a prova da vaidade e da inanidade de uma empresa co
mo a de Hegel — e de toda outra empresa do mesmo ti
po — que pretenda conter toda a riqueza e toda a di
versidade do real nos limites estreitos demais do con
ceito; em tal ótica, o erro de Hegel teria sido o de es
quecer que o conceito se alimenta nas fontes vivas da
subjetividade, termo de referência fundamental, irredu
tível às construções lógicas; o que convém, não é que
rer conceder-lhe, no e pelo saber, uma libertação que
a subjetividade recusa, mas deixá-la enquanto tal, es
forçar-se pela liberdade — se lhe for dada — de acordo
com sua exigência própria; o que convém, em todo caso,,
é renunciar a essa visão utópica segundo a qual a satis
fação pode ser proporcionada pelo logos: se há uma sa
tisfação, não poderia ser conferida nem universalmen
te nem no universal; e, em particular, é vão esperar que
o reconhecimento seja dado no Estado, formação histó
rica sujeita às flutuações do acontecimento.
É possível, ao contrário, sustentar firmemente o di
reito do conceito e defender a perspectiva hegeliana.
Essa atitude implica, no entanto, duas posições muito
diferentes. De um lado, com efeito, é possível — como
acabamos de indicar — admitir como irrefutáveis os
princípios que presidiram à elaboração do pensamento
hegeliano e verificar, ao mesmo tempo, que, por moti
vos ou causas a determinar, a obra de Hegel deve ser
retomada à luz dos novos acontecimentos que ele não
146
soube ou não pôde prever. Nessa eventualidade, de
acordo com a maior ou menor “ fidelidade” a Hegel, o
pensador se esforçará em reinterpretar Hegel pondo em
evidência os aspectos de sua concepção confirmados pe
lo devenir do pensamento e da sociedade e atribuindo à
situação histórica de Hegel ou à sua personalidade as
idéias errôneas que desenvolveu; ou então se empenhará
em reconstruir um sistema de tipo hegeliano integrando
os novos elementos surgidos e mostrando também em
que e porque a obra hegeliana deve ser superada; nes
se caso, observemos ainda uma vez, pois o assunto é,
importante, encontrar-se-á em face da eventualidade se
ja de reconhecer o caráter historicamente relativo do
saber filosófico (o filósofo é capaz de saber o que é e o
que é possível para seu tempo e em seu tempo), seja de
afirmar, tentando demonstrá-lo — mas, o exemplo da
obra hegeliana não seria então uma grave hipoteca —
que soube desvelar integralmente o Absoluto. Assim,
paradoxalmente, o hegelianismo, que deveria encerrar
a era da filosofia, lhe abriria um novo caminho, dando-
lhe novas forças. Devemos notar, desde logo, que seme
lhante defesa do conceito não pode deixar de suscitar
a ironia antifilosófica que verá nessa floração de siste
mas reinterpretando ou descobrindo o Absoluto uma
prova da incapacidade do logos de apreender o real e de
sua ingênua pretensão. E não devemos reconhecer que
essa ironia tem procedência?
Há, no entanto, outra maneira de defender e de
fazer valer o hegelianismo e, com ele, o logos. A defasa-
gem existente entre aquilo que o conceito revela como
real e a empiria, suscita, não uma reação de descon
fiança em relação aos conceitos ou a preocupação de
forjar outros mais adequados, mas uma vontade, a de
realizar o conceito aqui e agora, no seio mesmo da em
piria, por meio de uma ação. Essa resolução é de capi
tal importância e teve historicamente conseqüências
decisivas. Reconheceu-se aqui a posição adotada, depois
que se desvaneceram as esperanças liberais na Alema
nha, em face da atitude de Frederico Guilherme III, por
147
esse movimento confuso e diversificado dos “ Jovens-he-
gelianos” . Não se trata, neste trabalho, que não é his
tórico, de analisar precisamente as múltiplas posições
assumidas e as diversas motivações políticas e filosófi
cas que estavam em sua origem. Queríamos simples
mente tentar discernir a significação que pode ter se
melhante atitude para nós que procuramos ver com
clareza o debate entre materialismo e antimaterialis-
mo. É claro, desde logo, que implica uma confiança to
tal na teoria hegelina, em geral, e, uma vez que o pro
blema político estava no centro do hegelianismo de es
querda, à do Estado racional em particular. Os Jovens-
hegelianos, como Hegel, e contra a filosofia romântica
utilizada contra eles, julgam que o Estado é o “ divino
na terra” e que é somente nele que o homem pode al
cançar a satisfação; como Hegel também, pensam que
importa criar um regime no qual — de acordo com as
noções desenvolvidas pelos teóricos do século X V III — o
interesse de todos coincide com o interesse de cada um,
no qual a vontade individual queira o que é objetivamen
te racional razoável. E aderem, ao que parece, nem
sempre aceitando seus pormenores, a essa organização
sutil do Estado graças à qual a unidade necessária do
poder se concilia harmoniosamente com a diversidade
dos elementos que compõem a nação.
Mais precisamente, em face do caráter reacionário
cada vez mais acentuado do Estado prussiano, parece-
lhes que o sistema político definido por Hegel, como
correspondendo à essência do Estado, constitui o tema
cm torno do qual devem travar a batalha liberal. Con
tra o regime de opressão e de autoridade instaurado
pelo governo, defendem o liberalismo de Hegel e en
contram em sua obra provas e sólidos argumentos. É
um fato, aliás, se considerarmos a situação criada de
pois de 1840, que o projeto hegeliano parece extrema
mente “ progressista” . A confiança dos Jovens-nege-
lianos na análise política do mestre harmoniza-se mui
to bem com a estratégia política que convém à epoca.
Todavia, a essa aceitação dos resultados adquiridos
148
pelos Princípios da Filosofia do Direito acrescenta-se
grave restrição: a insuficiência do hegelianismo — que
é, senão uma insuficiência de Hegel, ao menos um er
ro de seus discípulos que se contentam em ensinar o
sistema — é de propor e de descrever o Estado racio
nal sem nada fazer para que ele exista. A satisfação
proporcionada pela compreensão do que é permanece
uma satisfação ideal, vima falsa satisfação; o saber
absoluto é absoluto, sem dúvida, mas continua sendo
Saber. O divórcio observado e compreendido pela ciên
cia entre o conceito e a existência empírica não desa
parece pelo fato de ser compreendido; importa ainda
suprimi-lo empiricamente. Para consegui-lo, é preciso
agir e denunciar a baixeza, a injustiça e o absurdo do
regime autocrático que contradiz o que está realmen
te contido na Idéia do Estado®.
Em suma, o erro do hegelianismo foi supor que,
demonstrando que o real é racional e conhecendo a
diferença entre o real e a existência empírica, que a sa
tisfação deveria nascer apenas da determinação do que
é o Estado em sua essência objetiva. A satisfação deve
ser também empírica; é preciso, pois, realizar na em-
piria o Estado racional. Importa, doravante, usar o
conceito, não só para compreender o que é, mas para
fazer existir o que deve ser. A tarefa teorética da filo
sofia acrescenta-se, assim, uma missão crítica; o con
ceito que reflete a realidade deve ser também uma
arma para aqueles que querem que o real se torne ra
cional. Essa definição do papel da filosofia pela crítica
implica uma dupla dimensão: supõe, não só que a obra
149
teorética tenha sido suficientemente realizada e que
convenha, doravante, utilizar seus resultados, deven
do-se, portanto, passar, de certo modo, da ciência à apli
cação dessa ciência10, mas também — e esse é um ponto
ao qual deveremos voltar — que a ciência como tal é
incapaz de trazer a satisfação e que somente sua rea
lização pode permitir o êxito de suas finalidades últi
mas. Preocupado em desenvolver polemicamente sua
perspectiva, o movimento jovem-hegeliano despreza, além
disso, suas implicações filosóficas e se esforça em apli
car o “ liberalismo” hegeliano à crítica do Estado atual:
utiliza, em particular, o racionalismo, desenvolvendo-o
em direções precisas contra as concepções românticas e
religiosas defendidas pelos partidários da autocracia:
tenta mostrar a que escandalosas falsificações se entre
gam aqueles que fizeram de Hegel um pensador que
teria desejado a confusão da autoridade política e da
autoridade religiosa; chega a exaltar o papel libertador
dos filósofos da Aufklärung que precisamente utilizaram
o conceito como arma para denunciar a irracionalida
de de sua época11.
Elabora-se, assim, uma “ filosofia da praxis”1'- vi
sando eliminar os elementos irracionais da existência
empírica. Na medida em que é precisamente no nível do
que deveria ser a Razão objetivada, no nivel do Estado,
que esses elementos se manifestam, essa filosofia assu-
150
me um caráter diretamente político: “ Nossa época só é
compreendida pela filosofia, nossa tarefa é ajudar nos
so tempo a fazer de tal modo que não só compreenda a
filosofia, mas que a realize... A filosofia transforma-se
em convicção política, a convicção política em força de
caráter, a força de caráter em ação” 13. A tarefa que o
movimento assume, de acordo com a fórmula enérgica
do jovem Marx, é chegar a um “ devenir-filosofia do
mundo” 14. A empresa não deixa de envolver ambigüida
des filosóficas sobre as quais deveremos insistir. A praxis,
iluminada pela razão, propõe-se acelerar o movimento
do devenir, revelar a racionalidade nele contida e ven
cer a má vontade dos governantes que se recusam a
compreender a necessidade e o valor do Estado racional.
Aceitando o valor da teoria, nega-lhe, como tal, eficácia;
é pela ação crítica que a teoria “ passará para os fatos” .
A ciência deixa de ser um resultado para tornar-se um
programa, e sua realização repousa doravante na
acuidade crítica e na coragem cívica dos filósofos que
saibam denunciar o que está morto e saibam fazer pre
valecer o ponto de vista da Razão. Precisam conquistar
aliados e tornar-se propagandistas, militantes da racio
nalidade.
Satisfazer o homem real, aplicando os princípios
elaborados pela Ciência, acelerar o movimento da his
tória, usar o conceito para dar à luz a racionalidade
contida no devenir, tal é o programa corajoso da crítica.
É lícito perguntar, no entanto, se tal coragem não sig
nifica uma espécie de regressão em relação às desco
bertas do pensamento kantiano e do hegelianismo. Não
implicará, essa atitude, em graves confusões, que con-
151
denarão o movimento jovem-hegeliano a travar uma po
lêmica inútil, da qual sairá vencido e definitivamente
esterilizado? Não levará, de fato, a pretexto de preten
der tornar reais as conquistas hegelianas renunciar a
elas? Verifica-se, com efeito, em primeiro lugar, que a
idéia de uma aplicação prática da ciência compromete
gravemente sua noção tal como a definiu Hegel15. Se é
preciso tornar o real racional, utilizando os conceitos
elaborados pela ciência filosófica, é evidentemente por
que esta última, saber do racional, não é saber do real;
seu objeto não é, pois, como dizia Hegel, o Ser na tota^
lidade de suas determinações, mas apenas um aspecto
do real — no sentido mais banal e mais geral — , o as
pecto racional. Se importa lutar pelo “ devenir-filosofia
do mundo” , é porque subsiste uma separação entre a fi
losofia e o mundo, uma cisão entre o logos e o Ser. A
teoria não pode mais ser considerada visão fiel — refle
xo ou reflexão — da integralidade do dado: torna-se
apreensão de uma parte do dado, aquela que precisamen
te não é dada imediatamente e que se esconde sob a di
versidade, a confusão e a irracionalidade do existente.
Sem dúvida, o hegelianismo de esquerda retém a for
mulação célebre do Prefácio dos Princípios da\ Filosofia
do Direito: “O real é racional (ou razoável)” ; mas, sua
interpretação dessa tese destrói, ao que parece, seu al
cance e sua significação. Enquanto a realidade é, para
Hegel, a unidade dialética da essência e da existência,
nessa perspectiva, fraciona-se novamente em duas de
terminações estranhas uma à outra: de um lado, o nú
152
cleo da realidade, racional e conhecido pela filosofia e,
de outro, o existente cuja irracionalidade é revelada pe
la crítica que o considera suscetível de racionalização.
Na verdade, essa relação estabelecida entre a essência
e a existência, revela-se ambígua: por um lado, os dois
termos diferem absolutamente — como o racional do ir
racional — , mas, de outro, em certa medida, o existen
te, uma vez que é efetivamente “ racionalizado” , guar
da alguma coisa das determinações da essência. Trata-
se, em todo caso, de uma ruptura total com a perspecti
va hegeliana e de um retorno às concepções tradicionais
da metafísica: a filosofia, graças aos processos que lhe
são próprios, descobre o ser oculto e importante; e o fi
lósofo, homem que sabe o valor da Razão, esforça-se em
transformar o mundo em função de sua descoberta.
Todavia, o que distingue a crítica do pensamento
pré-hegeliano, é que ela se consagra integralmente à
sua tarefa de transformação, admitindo que, em rela
ção ao mais importante, a tarefa da filosofia está cum
prida de modo satisfatório10. Salienta, pois, o caráter es
sencial da existência empírica, a satisfação dos indiví
duos em sua vida quotidiana. Embora mantenha o “ va
lor” do logos, insiste na necessidade de uma praxis que
torne o dado “ lógico” ; esforça-se, pois, contrariamente
a Hegel (que mostrava a ligação dialética dos dois ter-
153
mos) em preservar inicialmente sua diferença a fim de,
em seguida, igualar o dado empírico e o ser-refletido.
Ao mesmo tempo, designa esse termo como ideal. O que
a ciência demonstra como sendo o racional é também
aquilo que é preciso fazer existir e que, portanto, ao mes
mo tempo, determina uma missão e estabelece suas mo
dalidades. Assim, o ser-racional afasta-se ainda um pou
co mais da empiria; opondo-se a ela como a essência à
existência — conforme a condição — , dela difere como
o ideal do real, o objeto da vontade do dado da percep
ção. A vocação filosófica, agora que a ciência está com
pleta e que revelou, ao mesmo tempo, sua perfeição e
empiricamente sua insuficiência fundamental, reduz-se
a querer o racional. Esboça-se, assim, como foi muitas
vezes salientado, um retorno a Kant e a Fichte. A teoria,
a visão, requer a prática. Ainda aí, a oposição a Hegel
é manifesta; este sempre insistiu, precisamente porque
se propunha mostrar as falhas da filosofia da reflexão
e do voluntarismo fichtiano dela decorrente, no absur
do que representa para o filósofo, preocupado com a
ciência, indicar o que deve ser: “A filosofia é o fundamen
to do racional, é a inteligência do presente e do real e
não a construção de um além que se encontraria sabe
Deus onde, ou antes, sabemos bem onde se encontra: no
erro, nos raciocínios parciais e vazios” 17; ao que, acres
centa: “ Para dizer ainda uma palavra sobre a preten
são de ensinar como deve ser o mundo, observaremos
que, de qualquer maneira, a filosofia chega sempre tar
de demais” 18. Ciência do Ser, a filosofia hegeliana con
sidera a moral, na significação habitual do termo, como
um fato do qual importa descobrir a realidade: “ que
querem os homens?” e não como um conjunto de.pres
crições individuais e coletivas: “ que deveriam querer?
que devo querer?” Para o filósofo, é absurda a ambi-
18 Ibid., p. 32.
154
ção de impor um dever, porque nada pode justificar o
conteúdo desse dever senão aquilo que é, aquilo que já é
desejado pelos homens: “ O que o conceito ensina, a his
tória o mostra com a mesma necessidade” 19. A missão da
ciência filosófica é elevar ao conceito o que é (e, por is
so mesmo, o que é possível). Contra essa atitude, ao
mesmo tempo modesta e altiva, a crítica desenvolve efe
tivamente, nas polêmicas que trava, uma doutrina que
somos obrigados a qualificar de moralizante: e, para
doxalmente, essa doutrina resulta, para encurtar pala
vras, da superestimação e da incompreensão do hegelia-
nismo. De um lado, a filosofia política de Hegel, corri
gida no sentido exigido pela época, parece-lhe conter o
alfa e o ômega de todo pensamento político; de outro
lado, é considerada abstrata, descrição de uma racio
nalidade que não é real. Aos olhos dos jovens-hegelianos,
Hegel diz o que é verdade, mas que não é; adotam então
uma solução que repugna à estrutura do hegelianismo:
o autor dos Princípios da Filosofia do Direito descreve o
ideal.
E, ao mesmo tempo, com certa ingenuidade, a crí
tica se prepara para “ atravessar o Ródano” 20. Retorna às
perspectivas tantas vezes denunciadas por Hegel como
inaceitáveis, características dos pensadores da Idade das
Luzes.21 O filósofo recupera seu estatuto e seu privilé
gio de indivíduo que tem a ocasião de possuir a Razão
19 ibid.
20 Empregamos, por comodidade, essa expressão já habitual em lín
gua francesa embora interprete de maneira errônea a fórm ula antiga
“ saltar o Rubicon” .
155
e que, como tal, tem o doloroso e exaltante encargo de
ensiná-la. Tudo se passa como se o fato de mostrar que
a empiria está desprovida de racionalidade levasse a iso
lar a Razão, a promovê-la juiz e a conferir àqueles que
a possuem a obrigação de fazê-la triunfar. A consciên
cia do jovem-hegeliano é, ao mesmo tempo, infeliz e
confiante: infeliz porque experimenta o divórcio entre
o que sabe ser bom e racional e o que existe; confiante
porque conhece a solução para os males da humanidade
— solução que lhe traz Hegel “ reinterpretado” — e por
que esse conhecimento lhe dá a “ convicção prática” . Se
rá necessário, para o presente trabalho, determinar o
sentido dessa situação contraditória do hegelianismo de
esquerda e verificar sua validade filosófica. É importan
te, agora, observar a oposição profunda existente entre
a Ciência hegeliana e a decisão daqueles que querem
realizá-la. Trata-se de uma posição que, por mais con
fusa que seja historicamente, traz uma contestação de
cisiva ao próprio exercício da filosofia, por mais bem su
cedido e científico que seja.
O rejuvenescimento do hegelianismo implica, por
tanto, na realidade, uma discussão dos princípios e dos
resultados da obra hegeliana. Seria muito fácil atribuir
essa contestação à ininteligência è à paixão partidária:
se desprezou certos aspectos do sistema que nos parece
ram decisivos, foi, sem dúvida, porque a crítica não
pôde chegar, apesar de suas afirmações, a uma perspec
tiva radical; mas, a dúvida que suscitou, a propósito do
valor do sistema e de suas ambições, tem como origem
a situação da Alemanha e, talvez, da Europa no segun
do terço do século X IX : situação tal que não é mais pos
sível pretender que apenas o logos, por mais bem suce
dido, por mais incontestável que se possa mostrar em
seu desenvolvimento e em seus resultados, proporcione
a satisfação. De fato, no sistema completo, idêntico ao
próprio Ser que se compreendeu, a alteridade desapare
ceu e o Pensamento experimenta sua livre plenitude.
Nem por isso, no entanto, o homem empírico está satis
feito: continua infeliz e submetido à opressão. Livre co
156
mo logos não está liberto como indivíduo e não tem
nem mesmo o poder de fazer conhecer aquilo que o lo
gos revela como racional e possível. A ciência havia pre
visto e compreendido, devemos repetir, essa decalagem
entre a realidade e a empiria: mas, previsão e compre
ensão não significam supressão empírica, a única que
conta para o indivíduo na empiria. E a filosofia, na me
dida em que alcança pleno êxito, revela sua fundamental
insuficiência.
Revela, também, desde que consideremos a obra he-
geliana satisfatória, que a adequação do real e do ra
cional é sempre provisória, que há um saber efetivo do
presente e do passado, mas que nenhum logos é capaz
de enclausurar o futuro em determinações conceituais,
por mais genéricas que sejam. Hegel, sem dúvida, havia
insistido em que a filosofia, assim como o indivíduo “ é
filho de seu tempo” , “ resume seu tempo no pensamen
to”2-. Mas, declarava, também, que seu tempo lhe per
mitia apreender o Absoluto e, em particular, descobrin
do a essência do Estado, determinar em que sentido os
Estados empíricos evoluiriam. Ora, a concepção hegelia-
na não é de modo algum confirmada pelo desenvolvimen
to do Estado prussiano: o que Hegel previa como em
piricamente possível não se realiza na existência. As
sim sendo, é preciso reconhecer que o logos é incapaz
de “ prever” e que é preciso agir para realizar o que ele
designa como devendo ser. Importa, pois, inverter a
perspectiva hegeliana: esta, em vista de que conferia
um poder exorbitante ao logos, confundia o Ser e o de-
ver-ser; convém, ao contrário, tomar consciência da in
capacidade essencial da Razão em transformar efetiva
mente o mundo e de agir praticamente para que seja
transposto o Ródano. O hegelianismo, afinal de contas,
revela o vício inerente ao exercício da filosofia: a pre
tensão absurda de fazer alguma coisa, de exercer um
poder empiricamente efetivo. É evidente que se as idéias
22 ldem, p. 3.
157
dos filósofos franceses da Idade das Luzes puderam
transferir-se para a realidade, foi pela ação revolucio
nária e não em virtude de sua autoridade ideal; o re
gime alemão só se transformará se for executada uma
ação crítica destinada a mudá-lo: à revolução filosófica
hegeliana deve acrescentar-se uma revolução histórica23.
Essa crítica do hegelianismo, que é também uma
crítica da filosofia e que resume, afinal, as objeções tra
dicionais do Bom Senso e do pensamento técnico contra
a ambição do filósofo, não será alvo, por sua vez, de ar
gumentos já desenvolvidos pela filosofia e perfeitamen
te elucidados por Hegel? Não estaremos novamente em
face de um debate no qual cada um dos participantes
pode, com todo direito, manter suas posições? A filoso
fia hegeliana tem, com efeito, o direito de censurar a
crítica por privar o Saber de seu sentido, atribuindo-lhe
por missão refletir (ou “ meditar” ), não o Ser no con
junto de suas manifestações, mas o Ser oculto; se as
sim é, que prova de sua verdade pode apresentar seme
lhante saber? Que legitimidade poderá reivindicar? Es
tabelecendo novamente um corte entre o essencial e o
existencial, não condenará novamente a filosofia a ape
lar para o privilégio de uma revelação excepcional? O
retorno a uma ótica análoga, em conjunto, à da Idade
das Luzes, reitera os erros do racionalismo abstrato.
Mais precisamente e na esfera política, a posição de uma
ordem racional, elaborada conceitualmente e dotada
apenas de realidade ideal, não leva a supor a realidade
de um direito natural ou ideal? Ora, Hegel mostrou a
falta de seriedade de tal suposição que trata o problema
do Estado como se o direito positivo e o direito natural
fossem opostos por natureza, como se não houvesse “ ain
da existido Estado algum, nenhuma constituição polí
158
tica sobre a terra, (como se) não existissem atualmen
te” 24.
Esse retorno aos aspectos mais superficiais do ra-
cionalismo abstrato é acompanhado, na medida em que
semelhante raciocinação sente sua falta, de uma exorta
ção romântica que apela para a boa vontade dos gover
nantes, para a coragem subjetiva do filósofo, para sua
firmeza política. E esse movimento jovem-hegeliano que
exalta a praxis não utrapassa finalmente, porque sua
contestação do hegelianismo é filosoficamente insufi
ciente, as perspectivas políticas empíricas que eram as
de Hegel. A crítica, com efeito, em sua ação política, não
vai além da polêmica; esforça-se em influenciar a opi
nião pública cultivada, convencer os governantes; mas
não organiza, a bem dizer, uma ação histórica efetiva.
Hegel dirigia-se, na medida em que pretendia desem
penhar um papel político, aos cidadãos, às autoridades
políticas e administrativas para ensinar como o Estado
deve ser conhecido, abrindo-lhes, de certo modo, um cré
dito de confiança; a crítica argumenta contra as deci
sões governamentais; mas apela, também, para a Ra
zão dos dirigentes e admite como evidente o poder per
suasivo dos discursos. A contradição entre as duas ati
tudes é apenas aparente: somente a época mudou e não
a concepção da ação política do filósofo. A crítica con
tenta-se assim em opor, numa polêmica, as idéias “ justas”
às idéias “ errôneas” . O racional concebido ao irracional
existente. Contra este, quer lutar com a arma dos con
ceitos; isso porque, no fundo, julga que o predomínio
das falsas doutrinas — as do absolutismo e do direito
divino fundadas na ortodoxia cristã — é responsável pe
la “ desordem” do Estado e da Sociedade. A Razão tri
unfará no dia em que os governantes e a opinião públi
ca forem convencidos da falsidade das idéias que estão
na origem do mau regime atual.
A atitude do hegelianismo de esquerda, apesar de
24 Idem, p. 24.
159
sua ambição de ser simples e simplesmente “ ativa” , é
pois de grande ambigüidade. De um lado, a crítica sali
enta com razão a ineficácia empírica do logos ; insiste
legitimamente na necessidade de satisfazer o indivíduo,
de proporcionar-lhe uma liberdade que não seja apenas
uma liberdade do logos no logos; manifesta-se como ve
rificação do malogro do hegelianismo; e, na medida em
que considera o sistema hegeliano completo e bem su
cedido, discute, com justa razão, ao que parece, o “ valor
empírico” da filosofia e sua possibilidade de realizar, ca
so permaneça teorética, a vontade de promover univer
salmente a satisfação. Todavia, essa decisão de realizar
a filosofia, isto é, de agir para que a preocupação filosó
fica seja empiricamente efetivada, por mais justa que
possa ser, opera-se em tal perspectiva que conduz tanto
à ingenuidade teórica quanto à ineficácia prática. Teo
ricamente, o hegelianismo de esquerda mostra-se inca
paz de sair dos dilemas e das dificuldades que condena
vam a metafísica às discussões intermináveis; na medi
da em que a ciência não é ciência do real enquanto se
manifesta, mas saber da essência ou do ideal, torna-se
incapaz de justificar sua ótica; fica reduzida a apre
sentar o alvo de sua ação como objeto da vontade de ho
mens resolutos e que sabem. Praticamente, o hegelia
nismo de esquerda erra ao considerar suficiente uma
polêmica que, em atmosfera de completa desconfiança,
confia nos poderes e acredita na conversão intelectual
graças à qual os indivíduos e, em particular, os gover
nantes começariam a raciocinar corretamente.
Rigidamente inscrita nos quadros do hegelianismo
porque considera pacíficos os resultados da política he-
geliana, pouco preocupada com a significação filosófica
revolucionária da obra, a crítica não vê que sua idéia
de realizar a filosofia é uma “ idéia do entendimento” ,
abstrata, parcial e vazia. Se o Saber absoluto exige uma
realização, é porque não é absoluto; se não descreve a
situação dos homens que desesperam do regime de Fre
derico Guilherme IV e não encontram na Europa espe
rança alguma de transformação, não é porque tenha si
160
do traído pela falta de sorte ou a má vontade dos indiví
duos: é porque não refletia exatamente a realidade. O
malogro, que, empiricamente, é claro, deve ser também
uma fraqueza da ciência. Ora, a ciência filosófica, com
Hegel, chegou a tal grau de acabamento que é sua pró
pria idéia que se deve contestar. De fato, segundo o pró
prio Hegel, uma atitude ou categoria só exige e logra
sua realização quando é, ao mesmo tempo, negada e su
perada. A realização corajosa da racionalidade, deseja
da pelo movimento hegeliano, só pode assumir signifi
cação se o pensamento compreender que é compelido,
ao mesmo tempo, a suprimir e a “sublimar” até a no
ção de racionalidade tal como é definida pela filosofia,
submetendo a rigorosa investigação o exercício da pró
pria filosofia.
161
unitária: é capital, para ela, manter a unidade dialéti
ca dos três momentos que a constituem e, em particular,
não favorecer a realização com referência à negação ou
inversamente. Todo desenvolvimento unilateral de um
momento ameaça falsear o conjunto do movimento para
levar, não além, mas aquém da filosofia. O' exemplo que
acabamos de evocar resumidamente, do hegelianismo
de esquerda, prova bem que dificuldades implica a deci
são de somente realizar a filosofia. Sem dúvida, trata-se
de fazer existir empiricamente essa racionalidade que
o filósofo procura e atinge no nível do logos; trata-se de
trazer a satisfação ao homem em seu ser empírico por
uma organização do mundo humano em que cada um,
desejando seu interesse particular, chegue à plenitude
duradoura e seja, ao mesmo tempo, livremente reconhe
cido por todos, como homem que procura e atinge le
gitimamente a plenitude. Tal posição, no entanto,
acumula as obscuridades e é, a justo título, contestada
pela reflexão filosófica: assim como já foi observado, o
Saber torna-se incapaz de provar sua validade uma vez
que tem por objeto não o ser-manifesto, mas o ser-oculto
que, além disso, nessa perspectiva, assume a figura do
ideal; e, a própria realização desse ideal cai na esfera
da contingência, pois é entregue à convicção e à cora-
162
gem individuais. Não há mais diferença alguma entre
essa atitude e a atitude platônica.
Esse esquema que concede todo o privilégio à reali
zação encontra-se nessas concepções que denunciamos no
capítulo primeiro como interpretações errôneas do pen
samento marxista. O objetivismo cientista, com efeito,
adota exatamente a mesma ótica: admite, de uma
parte, que a verdade é dada no nível de um conhecimen
to científico admitido como isento, por natureza, de con
testação; esforça-se, por outro lado, em descobrir a co
ragem individual e coletiva que será capaz de a-plicar a
ciência, de denunciar a covardia ou a ignorância inte
ressada; de um lado, será dogmático e terá dificuldade
em responder às objeções tradicionais da filosofia; de
outro, será compelido à moralização e será posto em
questão por doutrinas que têm o mesmo direito de rei
vindicar o “ Valor” autêntico. Nessa ótica, a aridez dog
mática tem, por assim dizer, como complemento obriga
tório, o lirismo da exortação moralizante. Assim, o que
a insuficiência do hegelianismo de esquerda permite sa
lientar, é a vaidade de todo esforço de qualquer saber,
seja qual for, — quer se apóie em uma revelação de or
dem metafísica, em uma estrutura formal perfeitamen
te ajustada, nas lições das disciplinas experimentais ou
mesmo na posse de um instrumento de inteligibilidade
privilegiado, a dialética, por exemplo20, — em pretender
ir além do que é dado e indicar o que deve ser. A filo
sofia, como tal, não pode “ atravessar o Ródano” : é ab-
163
surdo querer “ mover a roda da história” em nome de
um fim que seria descoberto pela Ciência ou pelas ciên
cias: “ a única lição da história é que a história não tem
lições”27. Também não é necessário salientar novamen
te a carência das concepções, segundo as quais o mar
xismo consistiria em efetuar a promessa que está con
tida na existência do proletariado, classe por essência
privilegiada, possuidora da virtude de saber e de agir
como convém; embora essa interpretação se tenha re
velado historicamente em oposição à do objetivismo (fi
losófico ou cientista), essa interpretação se reduz a um
esquema análogo. Há, de um lado, um conhecimento
exato por natureza, que é dado, desta vez, não por um
modo de conhecer, mas em um modo de ser que espera,
além disso, as boas vontades capazes de atualizá-la. A
diferença existente entre uma e outra interpretações li
mita-se à natureza desse saber: o objetivismo admite o
valor incondicionado do conceito ou das ciências — con
forme se inspire no hegelianismo de esquerda ou no po
sitivismo — , o “ subjetivismo de classe” recebendo, por
seu turno, o absoluto do sentimento da existência. Em
ambos os casos, trata-se de aplicar uma revelação, de
propor um ideal, confiando ao homem ciente, informa
do ou de boa vontade, o cuidado de completar a tarefa
inconclusa do demiurgo.
É impossível realizar efetivamente a filosofia sem
suprimi-la, isto é, sem fazer incidir, em primeiro lugar,
uma dúvida radical sobre o próprio alcance do saber tal
como é definido pelo filósofo e tal como se degrada na
perspectiva positivista. Todavia, a idéia de supressão ou
de negação da filosofia não deixa de envolver, por sua
vez, ambigüidades. Facilmente se passa da recusa de sua
solução filosófica à invalidação dos problemas propos
tos pela filosofia. Se for verificado que a satisfação pro
curada pelo filósofo só é alcançada em idéias, é porque,
talvez, o projeto de propiciar a satisfação é absurdo.
164
Assim sendo, a supressão da filosofia significaria que,
no “ êxito” da filosofia — a obra hegelina — e em seu
malogro histórico — salientado pelo movimento crítico
— revela-se racionalmente, para o homem, a inviabilida
de do direito à satisfação; a história da filosofia teria
mostrado que é frívolo e ingênuo reivindicar o conten
tamento empírico, mesmo quando aquilo que demonstra
sua capacidade de satisfazer não contenta efetivamen
te e deixa o homem na mesma situação de infelicidade
e de alienação. Além da dúvida sobre a vontade filosó
fica, seria posta em questão a preocupação com a satis
fação, desejo ingênuo da humanidade presa da aliena
ção que não compreende que esse é o seu destino e que
deve viver na infelicidade que lhe foi reservada. A am
bição de suprimir a alteridade, de assegurar a plenitu
de do pensar só se efetua no discurso, nas frases e pelas
frases: aquém (e além), há o indivíduo esmagado pela
finitude: a história seria, nessa perspectiva, a história de
uma grandiosa aberração. Não é esta a oportunidade de
salientar a incerteza de semelhante atitude que, aliás,
já encontramos em suas linhas gerais no capítulo ante
rior. Trata-se, no caso, seguramente, de uma negação
não-dialética do exercício da filosofia que, verificando o
malogro desse exercício, afirma o absurdo da problemá
tica que está na sua origem. A crítica é radical, mas
abstrata, pois não explica a existência da filosofia, a não
ser apontando-a como resultado de um erro.
Essa decisão de suprimir a filosofia pode também
consistir na retomada e no aprofundamento das atitu
des tradicionais da antifilosofia. Não se negará, então,
que a satisfação possa ser alcançada pelo indivíduo:
mas, no “ malogro” do hegelianismo ver-se-á a prova de
que a satisfação não poderia ter os caracteres que lhe
eram atribuídos pela filosofia. Para esta, só é efetiva a
satisfação universal, calcada no reconhecimento de ca
da um por todos; ora, a ordem humana que permitiria
semelhante reconhecimento é apenas ideal; constitui uma
espécie de voto piedoso. Assim sendo, é preciso resolver-
se a compreender a satisfação como o produto da sor-
165
te, do trabalho ou da vontade individual: alguns indiví
duos a alcançam, outros não o conseguem, tal é a “ li
ção da história” . A reflexão, no que lhe diz respeito, tem
como única tarefa determinar em que condições e por
que processos os interesses de tal indivíduo poderão “ ter
êxito” e dar ao “ interessado” o contestamento que, sin
gularmente, ele procura. A discussão sobre os fins da hu
manidade é absurda, porque vã e estéril; é mantida por
aqueles cujos medíocres interesses e débeis paixões in
timidam; o único problema que se apresenta — e não
está provado que se apresente necessariamente pois, nes
se domínio, é admissível que a espontaneidade apaixona
da seja melhor juiz — é o da escolha dos meios de obter
os valores presentes nos próprios indivíduos e que variam
de acordo com cada um. Suprimir a filosofia é perceber
não a impossibilidade da satisfação, mas a inanidade
da ambição de definir e proporcionar a satisfação uni
versal. Essa “ refutação” da filosofia situa-se, também,
na perspectiva de uma negação abstrata que, como tal,
é suscetível, em tese, de ser retomada a propósito de ca
da sistema filosófico, mas que, por outro lado, é incapaz
de provar que constitui a superação real da filosofia.
Tal superação — para ser uma verdadeira Aufhe-
bung — deve atender a uma série de exigências aparen
temente opostas. Se a operação que consiste em superar
a filosofia tem sentido e pode promover um modo de
pensar e de agir absolutamente original, deve, antes de
mais nada, ser capaz de trazer efetivamente — deven
do ser determinada a natureza dessa efetividade — uma
satisfação empírica (poderemos dizer doravante: real,
pois fica excluído o risco de confusão com a “realidade” ,
tal como Hegel a definia) e universal; em outros termos,
deve assinalar e promover — o sentido da conjunção de
vendo também ser determinado — uma ordem humana
na qual o indivíduo, em seu ser-empírico, possa ser sa
tisfeito de modo duradouro, na qual se instaure um li
vre reconhecimento de cada um por todos, no nível da
própria empiria. Trata-se, realmente, como o desejava
o movimento crítico, de fazer existir hic et nunc a ra
166
cionalidade e de manter, na perspectiva tradicional da
filosofia, a idéia de vima satisfação universal. Todavia,
contrariamente à ótica jovem-hegeliana e com a preo
cupação, recebida de Hegel, de banir toda metafísica e
todo moralismo, importa apresentar a teoria científica,
não como apreennsão de um ideal, mas como inspeção
fiel do real, e, a prática que lhe corresponde, não como
decisão subjetiva da vontade, mas como força objetiva
agindo concretamente. Convém pois recusar duplamen
te o idealismo: contestando que uma satisfação reduzi
da ao contentamento do Pensamento, que apreende no
Saber absoluto seu infinito poder, seja suficiente, e re
jeitando a concepção segundo a qual a missão da ciên
cia seria determinar um dever-ser, entregue, aliás, pela
sua realização, à contingência: coragem dos indivíduos
ou acaso do vir-a^ser. A superação efetiva da filosofia
reduz-se assim a elaborar, com o hegelianismo de esquer
da, uma filosofia da prática e, contra ele, a compreen
der essa “ teoria da ação” como visão racional de uma
ação já existente.
É necessário insistir, desde já, no duplo aspecto des
sa luta contra o idealismo: este, tomado em sua gene
ralidade, deve ser considerado como êxito da filosofia.
Mais precisamente, se mantivermos a problemática que
está na origem da decisão de filosofar e o modo pelo
qual o filósofo quer resolver essa problemática, o idea
lismo, — quer dizer, a doutrina segundo a qual o Ser
(essencial ou considerado na totalidade de suas deter
minações) se reduz (imediata ou finalmente) ao Pen
samento (ou ao pensar) — constitui a única maneira
conveniente de responder. Todavia, e os parênteses que
fomos obrigados a abrir são disso um sinal, é claro, à luz
das análises precedentes, que essa redução se efetua em
duas direções diferentes: é possível, de um lado, mostrar
que o dado empírico é apenas um falso-ser, que o Ser ver
dadeiro está alhures e já possui todas as dimensões do
Pensamento; é o idealismo de estilo platônico que, no en
tanto, é compelido a propor a si mesmo o problema da
satisfação aqui neste mundo, porque essa questão se
167
acha implícita na própria vontade filosófica e que se
contenta em opor à confusão da existência quotidiana
a pura imagem de uma Cidade onde triunfa a ordem e
onde reina a satisfação. Combater semelhante perspec
tiva, é mostrar a insuficiência dessas descrições do Esta
do ideal que simulam esquecer que este foi elaborado e
construído a partir do dado empírico e contam para mo
dificar a empiria com as convicções que podem nascer
da apresentação do que deveria ser; é, com Hegel, er
guer-se contra a pretensão da filosofia a ensinar. Mas,
por outro lado, o idealismo, aprofundando sua ótica e
empenhando-se em superar essa dificuldade, pode recu
sar o divórcio do Ser (empírico) e do ideal, e conceber-
o logos como expressão daquilo que é ou como Ser sa
bendo-se a si mesmo. O que importará, então, denunciar,
é o caráter ilusório da satisfação proporcionada pelo
exercício da filosofia, a insuficiência dessa atitude que,
para chegar a pensar a vida, chega a reduzir a vida ao
pensamento da vida, e, ao mesmo tempo, à vida do pen
samento. Condenar a utopia sem absolver o presente,
exigir a realização de um mundo racional sem apoiar-
se em um ser ideal, tal é a dupla, tarefa que deve ser si
multaneamente assumida por uma verdadeira supera
ção da filosofia.
Isso significa que esse modo original do pensar deve
ser capaz, teórica e praticamente, na esfera da demons
tração e na da construção real, de assinalar nos fatos
empíricos, de acordo com as circunstâncias próprias, isto
é, nos acontecimentos, como a satisfação empírica é em
piricamente possível e realizável, de mostrar que o re
conhecimento de cada um por todos não é nem um voto
legítimo e inacessível (uma “ tarefa infinita” ), nem uma
realidade que para existir precisa de uma chance ou
da convicção de alguns, mas um problema efetivo que o
homem se propõe e propõe, além disso, de modo claro
no momento em que as forças reais são dadas para que
sua solução advenha. Em outros termos, trata-se de con
jurar o idealismo utópico apoiando-se — no estilo he-
geliano — na descrição daquilo que é; e de conjurar o
168
racionalismo por demais satisfeito, compreendendo a sa
tisfação como satisfação empírica. É claro, além disso,
que tal maneira de conceber a tarefa do pensar exige
que se possa mostrar também não só porque a antifilo-
sofia tradicional não pode ser aceita — a esse respeito,
a filosofia acumulou argumentos importantes — , mas
também porque pôde nascer a exigência da filosofia. De
verá mostrar por que razão (talvez se trate de mostrar
como?) a problemática filosófica apareceu, por que ra
zão se revelou decisiva e por que razão a filosofia foi in
capaz de resolvê-la. Somente realizando essa tarefa é
que provará — ao ver do próprio filósofo — que não é
negação abstrata, mas “ sublimação” . E essa obrigação,
cuja importância histórica é, ao que parece, hoje em dia,
considerável, não é a mais fácil de realizar.
Todavia, apresentando assim a operação de supera
ção, como realização, supressão e “sublimação” da filo
sofia, quer dizer, do idealismo, corre-se constantemente
o risco de retornar às perspectivas de conjunto daquilo
que se pretende superar. Trata-se, para que a operação
tenha alcance, de encontrar o conteúdo graças ao qual
essa exigência, expressa até agora de maneira formal,
possa tornar-se vontade efetiva. De fato, a descoberta
desse conteúdo constitui a “refutação” real do exercício
da filosofia. A libertação trazida pela filosofia é inicial
mente a do logos; é, ao mesmo tempo, libertação pelo
logos; tentamos mostrar que era libertação no logos.
Ora, o filósofo julga que, quando sua empresa é bem su
cedida, isto é, quando consegue elaborar o discurso que
faz desaparecer, no próprio discurso, o outro, diferente
do discurso e do Pensamento, o homem alcança a sa
tisfação. Que a satisfação consista na supressão da al-
teridade, que o homem pleno seja aquele que venceu a
alienação e que experimenta sua liberdade no fato de
existir como ser não-limitado, parece que a filosofia
acumulou a esse respeito argumentos decisivos; que o
fim do homem seja a satisfação e, precisamente, essa
satisfação, isso também parece incontestável. Em outros
termos, o problema proposto pela filosofia e a solução
169
que procura são, na realidade, o problema proposto e a
solução procurada pelo homem. Todavia, o filósofo dá
uma resposta que não convém ao homem. É preciso,
pois, que o filósofo, que reconheceu a satisfação como
problemática essencial da humanidade, engane-se em re
lação ao próprio ser do homem. Nunca deixou, por cau
sas e razões que será preciso esclarecer, de considerar
o homem como 'pensamento, como logos. Nesse sentido,
e na medida em que admite essa postulação, seu êxito
está no sistema hegeliano e nas doutrinas que retomam
o hegelianismo, embora, em certos pontos, e por moti
vos técnicos, o modifiquem. Não se trata de acusar um
filósofo, nem mesmo a decisão filosófica originária: é
preciso por em questão essa redução arbitrária do ho
mem ao pensamento, à forma elaborada do pensamento,
ao logos. Essa contestação é por si mesma uma supera
ção: se a filosofia teve êxito sem por isso constituir o
êxito efetivo do homem, é porque é êxito do homem fi
losófico, e não do indivíduo humano tal como existe em
piricamente. Assim como a ciência econômica cria o
furnio-oeconomicos que é uma abstração do homem
real, assim também a filosofia engendra um homo-
philosophicus, que representa apenas um aspecto da
realidade humana, o aspecto mais elevado, o mais “ hu
mano” talvez, mas que permanece parcial. Que o ho
mem seja pensamento, que procure ser, enquanto pen
samento, satisfeito, isso é muito claro. Mas, será ape
nas isso? Não mostra, sua existência histórica, que o
contentamento que é capaz de alcançar, enquanto pre
tende ser apenas pensamento, não poderia ser dura
douro e universalizável? Compreendendo o homem co
mo o ser capaz de falar racionalmente e que se esfor
ça em fazê-lo, o filósofo diz, sem dúvida, o que distin
gue o ser-humano do ser-animal: mas essa definição
diferencial não revela tudo o que é o homem: pela
preocupação em bem delimitar a diferença específica —
a forma — , silencia sobre o gênero — a matéria.
A constituição do homo-philosophicus, que surgiu
como tentamos mostrar no capítulo precedente, em
170
determinada época, correspondia a certas exigências, e
pesou consideravelmente no desenvolvimento do pensa
mento filosófico, dando-lhe por assim dizer seu estilo,
quaisquer que tenham sido as solicitações para sair desse
quadro por demais estreito, oriundas do vir-a-ser-real ou
de outras “ disciplinas” . Os sociólogos falariam em um
fenômeno de sobrevivência; será preciso indagar sobre
sua possibilidade histórica. Por enquanto, deve-se ten
tar, aquém das causas, descobrir as razões dessa “ natu
reza” da realidade humana tal como a filosofia a apreen
de. Parece que a situação grega permite compreender
o processo dessa constituição. A diversidade das doxas,
como vimos, é o sinal dos antagonismos humanos indi
viduais e coletivos, a oposição dos conteúdos dessas doxas
é a expressão da contradição dos interesses. O discurso
de opinião — por sua confusão e disparidade — revela,
sobre a Ágora e o Senado (Boule), a existência de um
conflito permanente que se resolve, como se verifica pela
história da Cidade, mediante a violência, uma violência
que destrói o vínculo social e impede de querer uma sa
tisfação universal. O filósofo esforça-se em salvar a Ci
dade, apresentando o quadro estável de uma vida huma
na feliz: elabora o discurso que seja razão e superação
das doxoi; considera-se satisfeito desde o momento em
que realiza semelhante discurso, que vença os argumen
tos da opinião e, vencido, seja ainda triunfante como
discurso. A empresa, pois o problema que visa resolver
se apresenta no nível da linguagem, situa-se toda na
linguagem: o que é oculto, ou revelado pela linguagem,
é logo esquecido. Pois, na realidade de fato, trata-se de
interesses reais, o fundo da doxa é a paixão: a de Alei*
bíades que queria dominar, a de Crítias procurando con
fusamente a grandeza dos tempos arcaicos e a de Anitos
que, discípulo ingênuo de Aristófanes, sonha com os “ bons
tempos” e com as virtudes cívicas e religiosas de seus
avós. Nenhuma solução situada na esfera dos interes
ses é, no entanto, capaz de triunfar; então, o filósofo,
que pôde pensar o universal, que soube superar a pai
xão e avaliar os interesses, define a única resposta con-
171
cebível nessa perspectiva histórica limitada: a que conta
com o poder do discurso lógico coerente para reconciliar
os indivíduos e os grupos mutuamente. Muito cedo, sem
dúvida, essa coerência “ lógica” revela insuficiência: o fi
lósofo esforça-se em dai*-lhe todo o peso do Ser, tenta
fundá-lo. Mas, no momento mesmo em que sua deter
minação parece mais próxima dos “ fatos” , conserva a
pressuposição original, a de uma solução que, revelada
na esfera do logos, apresenta, ao mesmo tempo, implí
cita e efetivamente, o homem como ser lógico, como
realidade cuja essência é o pensar (ou o falar — o que
dá na m esm a). Se há uma revolução hegeliana — e
esperamos ter mostrado nas páginas anteriores a impor
tância que lhe atribuímos — é menos porque o sistema
pretenda atingir a sofia do que, visto pretendê-lo, revela
a essência do exercício da filosofia.
A verdadeira superação — exigida pelo propósito de
realizar a aspiração da filosofia e que é também a preo
cupação profunda do homem — consiste inicialmente em
retornar a essa origem e em compreendê-la à luz preci
samente da interpretação que dela Hegel nos apresenta.
Trata-se, com efeito, de reencontrar a problemática pro
funda a partir da qual se ergue a vontade filosófica .ie
apreender o conflito dos interesses como o horizonte no
seio do qual se desenha necessariamente o problema da
satisfação: trata-se de retornar ao homem-empírico2S.
O logos filosófico só abstratamente superava a doxa:
substituiu o homem-apaixonado pelo homem-racionai; e
isso mesmo em Hegel e embora o autor da Fenomeno-
172
logia do Espírito tenha feito da paixão o material da
Razão. Importa superar efetivamente a doxa situan
do-se em seu terreno, compreendendo o indivíduo como
paixão, reconhecendo-o, fundamentalmente, como ele
mento da natureza, substituindo à visão do homem ló
gico, a do homem “ antropológico” , o caráter pleonástico
da expressão indicando um retorno ao terreno da expe
riência não-falsificada. A operação Aufhebung só pode
ganhar sentido nessa perspectiva: esse sentido, aliás, é
a filosofia, em seu malogro, que o revela. Essa desco
berta não teria sido possível — fora das causas histó
ricas que a explicam — , se, na “ ordem das razões” , as
múltiplas implicações da filosofia não tivessem sido de
senvolvidas, se não tivesse sido levada ao extremo limi
te a procura da satisfação no e pelo logos. Porque, por
mais fundamental que seja a realidade empírica, resta
que o homem é pensamento, fala com outros homens e
que é isso que o distingue.
O hegelianismo de esquerda, aliás, havia percebido
esse aspecto do problema quando se empenhava em cri
ticar a religião e em marcar sua oposição à filosofia.
Seu propósito, fora dos objetivos políticos precisos que
buscava, era denunciar a ilusão de uma satisfação hu
mana universal que negligenciasse o ser-empírico do ho
mem e combater a substituição ilegítima da existência
real pela comunidade espiritual. Aprofundando a aná
lise, Feuerbach (que rompia com os hábitos de simples
polêmica do movimento) havia mostrado que o homem
da religião, o homem reduzido à espiritualidade, ao pen
samento puro, é, no conteúdo mesmo que lhe conferem,
a transposição idealizada do homem existente e que os
temas religiosos são, em seu pormenor, caricaturas do
dado empírico que se pode então “ esquecer” de consi
derar. Tratava-se, em suma, de mostrar que o “ homem
verdadeiro” da religião é não só um ser imaginário, mas
também o resultado de uma projeção reveladora daquilo
do que é projeção. Mas, ao que parece, em Bauer e
Riige, como em Feuerbach, a filosofia era oposta à reli
gião como órgão da verdade ao instrumento do erro.
173
De fato, parece que a religião limita-se a exprimir inge
nuamente aquilo que a filosofia pressupõe em seu estilo
tradicional29: a essencialidade do homem como pensa
mento, apenas. Ao denunciar-se o malogro da religião,
deve ser denunciada a insuficiência da filosofia que se
contenta em substituir a satisfação “ real” , no além, por
uma satisfação aqui, mas em pensamento.
Foi, portanto, ao preço de uma revolução — mais
radical do que a operada por Hegel, pois recusa o pres
suposto constante da filosofia — a retomada do proble
ma que se encontrava na origem da vontade filosófica
e que ela não soube e não pôde resolver. Expresso sim
plesmente, o conteúdo dessa revolução pode parecer
exíguo. Na realidade, de que se trata? De retornar ao
homem empírico, às questões apresentadas pela passi
vidade humana, pelo conflito dos interesses, pela vio
lência. Não será uma regressão às atitudes defendidas
pelos chamados técnicos da existência quotidiana? Sim,
se esse modo original do pensar — de que Marx e Engels
foram os iniciadores — se achasse situado simplesmente
na perspectiva da antropologia: o que quer ser, é uma
Aufhebung da filosofia que leva em conta os resultados
adquiridos pelos filósofos e, em particular, os trazidos
pela doutrina mais bem sucedida: as descobertas hege-
lianas. E, mais precisamente, vima dimensão que deve
rá ser integrada nessa nova ciência: a do homem consi
derado em suá universalidade como ser histórico e so
cial, da existência humana compreendida como produto
e como fonte do devenir, da satisfação para o homem en
tendida como satisfação procurada, conquistada ou man
tida no seio de uma comunidade humana. Será preciso,
depois, esforçar-se em justificar semelhante dimensão:
nós a evocamos simplesmente para mostrar o que deve
ser a “ sublimação” efetiva da filosofia: consiste em uma
174
reposição geral do “ sistema” da filosofia “ sobre seus
pés” — de acordo com uma fórmula célebre que foi in
terpretada tantas vezes de modo infeliz como retorno a
qualquer “ ingenuidade materialista” .
Vemos aqui o que significa inicialmente o materia
lismo: constitui-se como tal, em 'primeiro lugar, como
recusa de toda solução ideal (hegeliana) ao problema da
satisfação. Apóia-se, a princípio, no fato de que os dis
cursos filosóficos, por mais importantes e admiráveis
que sejam, não conseguiram, embora tenham consegui
do converter indivíduos e sabido exprimir sua época,
proporcionar o que, por vocação, por assim dizer, pre
tendiam, a satisfação universal real: esses discursos de
finiram a satisfação e seus requisitos, mas sempre se
encontraram, finalmente, em uma situação de inferiori
dade em relação aos seus adversários que mostravam que
a satisfação ou é uma palavra sem conteúdo efetivo ou
bem o produto do acaso ou da habilidade individual. A
satisfação para permanecer verdadeiramente satisfação,
deve ser universal e empírica ou, se preferirem, mate
rial: não é apenas o homem reduzido ao pensamento —
à sua essência — , é também o homem considerado em
seu ser fundamental, como passividade, como produto
natural e social, como necessidade, homem na sua ma
terialidade, que deve ser satisfeito. O problema apre
sentado ao materialismo é de grande dificuldade: deve,
por um lado, manter a idéia capital do filósofo, a satis
fação possível, a qual só é possível na medida em que é
universal (ou universalizável), em que implica o reco
nhecimento de cada um por todos; deve, por outro lado,
recusar como fuga da empiria toda solução ilusória fun
dada na idéia de que a satisfação em pensamento é di
ferente de uma satisfação pensada. Trata-se, para ele,
em suma, de reconciliar, superando-as, as atitudes opos
tas do Bom Senso e da filosofia.
Cálicles tem razão: Sócrates foi vencido e morto,
175
anunciando por sua morte o fim da formação política
na qual confiava. Cálicles está errado: o tirano que
apresenta como exemplo do êxito é infeliz. O materia
lismo — aquele de que Marx e Engels abriram os cami
nhos — deve partir dessa contradição e delinear a face
autêntica da felicidade concreta humana.
176
IV
O Caminho da Superação:
A Apreensão do Homem
em sua Realidade Empírica
177
justificado que nenhuma contestação possa comportar,
e no qual cada um possa reconhecer o discurso verda
deiro, aquele que, trazendo a propósito do real e do ho
mem vima visão sensata e coerente, indique a maneira
de ser, de conduzir-se, de pensar (relações de disjunção,
de implicação ou de conjunção sendo estabelecidas entre
esses diversos termos de acordo com as doutrinas) que
permita ao homem ficar satisfeito ou contente. Tenta
mos mostrar, em seguida, que essa questão da prova só
pode ser resolvida no momento em que é superada e
que convém, sem preocupação pela “ adequação do Pen
samento e do Ser” , ou pelo método para evitar o erro e
descobrir a verdade, construir o discurso que, sendo em
seu conteúdo, e em sua ordem imanente, o sistema de
todos os discursos, seja, por definição, irrefutável. Ve
rificamos que o hegelianismo, mesmo que, no pormenor,
pudesse conter incertezas, havia definido as condições
filosóficas de semelhante discurso, o qual, desde então,
devia poder proporcionar essa satisfação universal cuja
procura está na origem da decisão de filosofar. Ora, o
êxito da filosofia não parecia ser o êxito do homem. Foi
preciso, porque nos havíamos convencido, pela filosofia,
contra a antifilosofia tradicional, da importância dessa
noção de satisfação universal, por em questão o modo
pelo qual a compreendia a vontade filosófica: percebe
mos que o filósofo, embora tenha tido inicialmente a
preocupação de fazer desaparecer o infortúnio da huma
nidade empírica, jamais deixara de conceber o homem
como pensamento e que, preso pela lógica de sua von
tade, (lógica cujas causas deveremos tentar definir) não
havia desejado finalmente senão promover a satisfação
do Pensamento. Seu êxito era o êxito do homem en
quanto pensamento. Pareceu, pois, indispensável, para
melhor compreender a posição do marxismo, entendê-lo
como esforço para superar essa concepção limitada do
homem, para chegar ao homem empírico e definir as
condições teóricas e práticas de uma satisfação univer
sal e empírica (ou r e a l).
178
É evidente que, nesse nível da análise, muitos pon
tos permanecem obscuros. Devemos perguntar o que
acontece com essa noção da prova da qual reconhece
mos toda a importância. Mesmo admitindo que a ên
fase deva ser posta no que se chamou de homem-empí-
rico, resta que o homem fala e que o que diz a respeito
de si próprio deve ser justificado. Em outros termos,
nessa nova perspectiva, o problema da prova subsiste.
A própria idéia do homem empírico não é clara: nas pá
ginas precedentes, nós a definimos negativamente, como
supressão dialética do homo-philosophicus; mas, perma
nece constante o risco de que se trate de uma supressão
abstrata: importa precisar o que contém semelhante no
ção. Será necessário, também, a esse propósito, voltar ao
conceito da satisfação até agora utilizado sem que sua
significação tenha sido bem determinada.
Esses diversos problemas são de extrema dificulda
de: para poder enfocá-los em condições que permitam
apontar sua solução, pretendemos — pedindo que nos
perdoem essa facilidade — examinar de modo mais pre
ciso o conteúdo da Aufhebung da filosofia numa esfera
determinada e particularmente favorável, a esfera po
lítica. Esta, desempenhou papel histórico decisivo: e, a
seu propósito, Marx compreendeu a amplitude e a novi
dade da tarefa que doravante se apresentava ao pensa
mento . Sem pretender esgotar essa questão histórica das
relações entre a política hegeliana e a política marxista
— questão a propósito da qual numerosos e belos livros
foram escritos1 — , nós a tomaremos como ponto de
apoio para indicar o alcance e o sentido da passagem,
179
de concepção filosófica do homem, àquela da qual Marx
e Engels elaboraram os princípios.
180
de justiça à idéia de justeza do pensamento e da ação,
Platão colocava no centro da problemática filosófica a
questão “ particular” da ordem política. Desde então, os
filósofos não mais puderam negligenciar a reflexão sobre
a sociedade e o Estado; e foi preciso, devemos repetir,
que ocorressem as circunstâncias excepcionais do século
X V II francês para que um pensador importante tives
se com razão a oportunidade de não enveredar nessa re
flexão .
Na realidade, parece que o sistema hegeliano ilu
mina de modo definitivo as relações da Ciência e da re
flexão política. Salientando o vínculo necessário, exis
tente entre a satisfação e o reconhecimento de cada um
por todos, mostra que a racionalidade só encontra sua
realização na comunidade humana refletida. No capí
tulo precedente, consideramos, para simplificar, esse vín
culo como ponto pacífico, julgando equivalentes a libe
ração do homem no e pelo logos e a realização do Estado
racional. Na realidade, as coisas são mais complicadas:
o que o Saber demonstra — e é necessário para que essa
demonstração tenha um sentido que a realidade a ela
corresponda — , é que o homem só pode ser livre e satis
feito se todos o forem ao mesmo tempo e se cada um
reconhecer a liberdade e a satisfação do outro como li
berdade — isso é tranqüilo — e como satisfação — isso
não é tranqüilo — humanas. Em outros termos, a filo
sofia só tem êxito quando a ordem racional da sociedade
é real. E trata-se ainda de saber em que consiste essa
ordem, sendo conveniente definir a idéia do Estado. O
Saber como tal é completo, mas exige, precisamente por
que é completo, a determinação do que o homem quer
objetivamente. Em outras palavras, ainda, a ciência
mostra, sem possibilidade de contestação, que o “ objeto”
da vontade humana é o Estado racional e desvenda o
que visa o indivíduo ao querer semelhante objeto. A ta
refa da reflexão política é elucidar a natureza desse
objeto, determinar a essência desse Estado objetivamente
181
desejado pelo homem (o que não significa: subjetiva
mente procurado pelo indivíduo)3.
Não se trataria de acompanhar, no pormenor, a
descrição hegeliana do Estado racional-real, quer dizer,
da Idéia do Estado. Queríamos apenas discernir aqui o
tema geral da demonstração, apoiando-nos em estudos
relativos ao assunto. Se nos limitarmos ao problema
propriamente político — pondo entre parênteses, de mo
do um tanto arbitrário a análise moral que o precede— ,
parece que o ponto de partida do pensamento político de
Hegel é o fato empírico do conflito (que já se encon
trava na origem da reflexão platônica). A Sociedade
Civil, definida em primeiro lugar como “ sistema das ne
cessidades” 4 na qual os indivíduos são pessoas privadas
que têm por fim seu interesse próprio, será, ao mesmo
tempo, o domínio da oposição, das contradições entre os
interesses dos indivíduos. Sem dúvida, na medida em
que cada um determina sua vontade e seu saber, em
função do sistema das necessidades de todos os indiví
duos, visa a universalidade e procura uma ordem que
supera a particularidade de seu desejo e de seu poder.
Foi exatamente isso o que demonstraram os economis
tas aos quais Hegel se refere de modo explícito: Smith,
Say e Ricardo5. “O objetivo da necessidade é a satisfa
ção da particularidade subjetiva, mas o universal nela
se afirma na relação com a necessidade e com a vontade
dos outros” 0. E não só, essa universalidade de fato ma-
5 Idem.
6 Idem.
182
nifesta-se no nível da reflexão, na jurisdição que esta
belece entre os indivíduos definindo a propriedade e a
“ relação recíproca das necessidades e do trabalho” 7 e
mostra a necessidade na lei conhecida e reconhecida por
todos. Assim também, a administração — a que Hegel
conhece e que existe como estrutura dos Estados adian
tados da Europa — tem por missão ordenar, de acordo
com as circunstâncias, esse sistema de necessidades e as
corporações têm por encargo zelar pela honestidade
dessa organização.
Todavia, a Sociedade civil, se é livre engendra ne
cessariamente “ caso se encontre conflito num estado de
atividade sem entraves” 8, o que ocorre quando a consi
deramos como o todo da organização social, quando per
manecemos nesse estágio analisado pela ciência econô
mica liberal como sendo o fato irredutível do Estado.
Acentuando a divisão do trabalho, impede os indivíduos
de fruir da plenitude das habilidades humanas; desen
volve “ a miséria e a dependência da classe presa ao tra
balho (particular)” ; de outro lado, permite que “ o
acúmulo das riquezas aumente” 9. Cria-se, assim, uma
plebe que “ perde o sentimento do direito, da legitimi
dade e da honra de existir por sua própria atividade e
seu próprio trabalho” 10; e, ao mesmo tempo, manifes
ta-se “ maior facilidade de concentrar em poucas mãos
riquezas desproporcionadas” . É inútil supor que se pos
sa exigir dessas “ riquezas” que mantenham “ a classe na
miséria” : isso seria “ contrário ao princípio da Sociedade
civil e ao sentimento individual da independência e da
honra” 11. Assim sendo, a Sociedade se acha impelida
“ para fora de si mesma” . E isso, em duplo sentido: de
um lado, enquanto permanece Sociedade civil, é levada
183
a procurar no exterior “ consumidores e meios de sub
sistir em outros povos” 12; procura “ um novo mercado
para seu trabalho” 13 na colonização; mas, por outro
lado, tende a ultrapassar-se a si mesma num tipo de
organização mais profundamente refletido, capaz de re
mediar esses conflitos e impedir que o. bem social se rea
lize em detrimento dos indivíduos14.
E difícil não admirar a profundidade e a justeza
de tal reflexão que, embora datando de 1821, apresenta
em surpreendente resumo a essência do regime capita
lista. O problema da sociedade burguesa é claramente
formulado e em termos de conflito: todavia, o Estado
tem por fim fazer desaparecer esse conflito, instituir
mediações tais que os erros da Sociedade Civil, defeitos
que é incapaz por si mesma de suprimir, deixem de cons
tituir um perigo para os cidadãos. Trata-se, em suma e
esquematizando, de demonstrar que o Estado é a essên
cia da sociedade humana e não como pensava a econo
mia liberal, a Sociedade Civil, que não passa de mani
festação, de maneira de aparecer do Estado15. E é essa
obrigação de remediar os vícios da ordem econômica que
explica, ao que parece, a complicação da ordem política
de que Hegel se faz o defensor. Trata-se de determinar
o Estado como “ necessidade externa e . . . poder mais
alto, à natureza do qual serão subordinadas as leis da
família (do direito privado) e os interesses da Sociedade
Civil” ; mas, também é conveniente que seja respeitada
a liberdade concreta e que “ a individualidade pessoal e
seus interesses particulares recebam pleno desenvolvi
mento e o reconhecimento de seus direitos” 10. Tal é o
princípio dos Estados modernos, que têm “ esse poder e
12 Jdem, § 246.
13 Idem, § 248, p. 185.
14 Idem , § 249, p. 186.
15 “ O fim da corporação, que c limitado c finito, tem sua verdade
no fim universal em-si e por-si e em sua realidade a b s o lu ta ... a esfe
ra da Sociedade civil conduz portanto ao Estado” . Idem, § 256, p. 189.
16 Idem, § 260, p. 195.
184
essa profundidade extremos de deixar o princípio da
subjetividade realizar-se até o extremo da particularida
de pessoal autônoma e, ao mesmo tempo, de reduzi-lo à
unidade substancial e assim manter essa unidade nesse
mesmo princípio” 17. Percebe-se como a terceira seção
da terceira parte dos Princípios de Filosofia do Direito
esforça-se em fixar tecnicamente uma ordenação consti
tucional que atenda a esses princípios: prevê, entre o
poder do príncipe, no qual se encarna o poder do Estado,
e as vontades particulares, uma hierarquia orgânica de
“ estados” em que são representados os interesses parciais
das coletividades: essas “ assembléias de ordem” , man
tendo-se entre “ o governo em geral, e o povo disperso
em esferas e em indivíduos diferentes” 18, “ têm por mis
são promover a existência do interesse geral não apenas
em si mas também por si, quer dizer, dar existência ao
elemento de liberdade subjetiva formal, a consciência
pública como universalidade empírica das opiniões e dos
pensamentos da massa” 19. Por sua mediação, “ o poder
do príncipe não aparece como vim extremo isolado nem,
conseqüentemente, como simples dominação nem como
bei prazer” ; do mesmo modo, os “ interesses particulares
das comunas, das corporações e dos indivíduos também
não se isolam” 20. Formam, por assim dizer, o movimento
ascendente que aproxima a Sociedade Civil do poder so
berano, assim como a administração constitui o movi
mento descendente graças ao qual a autoridade se ma
nifesta na esfera das necessidades e dos interesses par
ticulares .
De tal sorte, e atribuindo importância considerável
à “ classe universal” 21, a dos funcionários, Hegel pensa
poder afastar o perigo de conflito, implícito na própria
17 ldem.
18 Jdem, § 302, p. 234.
19 ldem, § 301, p. 233.
20 ldem, § 302, pp. 234-235.
21 ldem, § 303, p. 235.
185
Sociedade Civil. Deveremos insistir no sentido dessa so
lução que visa manter a ordem interna da comunidade
humana refletida. Mas, mesmo admitindo que essa or
ganização seja realmente a que convém, isso não signi
fica que se estabeleça um reconhecimento universal e,
conseqüentemente, uma completa satisfação da huma
nidade. Outro tipo de conflito subsiste: o que opõe os
Estados uns aos outros, conflito esse que, de certo modo,
já se acha indicado no nível da Sociedade Civil, quando
Hegel observa a exigência que se apresenta ao sistema
interno das necessidades, de conquistar mercados es
trangeiros pela guerra ou pela colonização. Na oposi
ção dos Estados uns aos outros, embora cada um deles
reconheça o outro como soberano, nenhum poder su
perior é concebível que possa resolver as questões e de
cidir da legitimidade desta ou daquela vontade, pois é
da essência do Estado, de cada Estado, ser soberana
mente autônomo. Ora, “ em suas relações uns com os
outros, os Estados se comportam como particulares. Em
conseqüência, é o jogo mais móvel da particularidade
interna, dos interesses, dos fins, dos talentos, das vir
tudes, da violência, da injustiça e do vício, da contin
gência exterior elevada à mais alta potência que possa
assumir esse fenômeno. É um jogo em que o próprio or
ganismo moral, a independência do Estado, estão expos
tos ao acaso” 22. Em tal jogo, que se assemelha a essa
partida cruel em que se defrontam os interesses indivi
duais no seio da Sociedade Civil, a única solução é a
guerra: “ o fim da conduta em relação aos outros Estados
e o princípio da justiça das guerras e dos tratados não
é um pensamento universal (filantrópico), mas a rea
lidade do bem-estar diminuído ou ameaçado em sua par
ticularidade definida” 23.
O conflito interior dos Estados, que só pode ser re
gulado por uma constituição adequada, repercute, pois,
186
por assim dizer, na escala da humanidade inteira, atra
vés do conflito entre os Estados. A oposição subsiste e
isso mostra que, segundo Hegel, a humanidade ainda
não está, de modo algum, reconciliada consigo mesma -*.
A Ciência mostrou que essa reconciliação, por meio da
qual foi possível estabelecer a essência do Estado real e
a relação que entretém essencialmente com o ser político
do homem, é doravante conhecida; e, se é absurdo fazer
conjecturas sobre a natureza dos sentimentos do indi
víduo pertencente ao Estado racional-real, este, no en
tanto, é claramente concebido. A história promoverá sua
realização empírica, mas nada acrescentará ao seu con
ceito. Essa frase que acabamos de escrever, no futuro,
deixa entender — e é esse, ao que parece — o pensa
mento de Hegel — que o devenir deve dar à luz essa épo
ca em que a satisfação não seja apenas universalmente
concebida, mas se apresente também como efetiva. Os
Princípios da Filosofia do Direito concluem com um re
torno à Filosofia da história e não é por acaso que o
parágrafo 314, que resume os princípios da Filosofia da
história, vem logo em seguida a um parágrafo que sa
lienta a “ contingência” — dir-se-ia atualmente: o absur
do — dos conflitos históricos entre os Estados. Verifi
ca-se, de fato, que Hegel supõe, e não se trata de mera
hipótese, mas da maneira filosófica de conceber o real,
que a concepção, apenas, da natureza profunda do con
flito existente entre os homens e pelos homens é o sinal
e a prova de que esse conflito já está superado, a ca
minho de solução histórica; parece, na perspectiva do
que se poderia chamar de modéstia hegeliana, ser ne
cessário que o devenir já tenha esboçado suficientemente
o processo que deve levar à satisfação, o reconhecimento
de cada um por todos, para que um pensador tenha a
possibilidade de desenvolver de modo racional estas no
187
ções: “ o pensamento do mundo. . . só aparece quando a
realidade realizou e concluiu seu processo de forma
ção” 25.
Parece, como estamos vendo, que as discussões sobre
o caráter “ reacionário” ou “ progressista” da política he-
geliana, sobre o “ empirismo” (de direita) ou sobre o
“ utopismo” (de direita ou de esquerda) de Hegel, são,
enquanto discussões de história da filosofia, estranhas.
É claro que o autor da Filosofia do Direito não visa jus
tificar, pura e simplesmente, o regimen de Frederico-
Guilherme tal como se apresenta em 1821 (e muito me
nos o de Frederico-Guilherme IV a partir de 1840, ao
qual se faz referência a maior parte das vezes): por que,
se o quisesse, apresentaria, com abundância de porme
nores técnicos, uma “ constituição” sensivelmente dife
rente da que vigorava na Prússia, nessa época? A apo
logia que faz, precisamente para esse tempo, da monar
quia constitucional é uma tomada de posição liberal. A
própria defesa da idéia de Constituição, à qual se dedica,
é o sinal de que desaprova a noção de um direito divino
do soberano. Hegel esforça-se em conceber o sistema
político que julga convir à sua época: tenta pensar a
realidade política de seu tempo e levá-la à racionalidade
de que é capaz. Isso equivale a dizer que sua posição
não é revolucionária, no sentido tradicional do termo;
vê que os Estados empíricos de sua época, a França na-
poleônica inicialmente, e a Prússia em seguida, consti
tuem a realidade a partir da qual se assinala a idéia do
Estado. A Prússia não é o Estado racional: nela se obser
va, no entanto, o que é o Estado moderno, ao que tende
e o que não pode deixar, com exclusão da Prússia pre
cisamente, de realizar o vir-a-ser: o Estado universal no
qual a oposição desaparece e onde a satisfação no reco
nhecimento de cada um por todos é possível.
Ê nesse nível que a “ refutação” do hegelianismo tem
sentido. A crítica que se tem o direito de fazer ao siste-
188
ma, não é por encarar o problema político em determi
nada ótica que teria sido escolhida pelo autor sob a in
fluência de alguma paixão, mas de apresentar o proble
ma em termos tais que só pode receber uma solução
ideal, uma solução do pensamento e para o pensamento.
Na verdade, a saída proposta por Hegel, uma ordem de
Estado na qual o conflito essencial à Sociedade Civil
não envolve mais oposições no interior da comunidade
refletida e uma ordem da história pela qual se constitui
o Estado universal, é realmente a desejada pelo indiví
duo desde o momento em que sabe o que quer realmen
te . Mas, isso equivale a supor que o fato de saber o que
se quer é “ livre” , que esse fato é o resultado de uma
orientação adequada do pensamento ou de uma boa edu
cação (pela filosofia ou pelo rei que se tornou filósofo);
é supor que o homem, que o indivíduo, é pensamento
livre em potência e que deve simplesmente transformar-
se no que já é sem o saber. Em suma, Hegel afasta efi
cazmente o utopismo platônico, substituindo à análise
do conteúdo ideal do querer a do seu conteúdo real: re
velou o que o indivíduo efetivamente procura desde o
momento em que visa uma satisfação humana. Admi
tiu, porém, como ponto pacífico, o fato de que a satis
fação deve surgir dessa revelação: supôs que o homem
encontrava-se sempre em condições de querer uma cons
tituição racional — e desde o instante em que lhe mos
trarem o que é essa constituição — e o Estado univer
sal — na medida em que é apresentado como “ sentido da
história” . Levando em conta a paixão no modo de for
mular o problema, de certo modo a esqueceu na solução.
E por isso, com certa razão, seus discípulos “ de esquer
da” pretenderam utilizar a paixão, a “ convicção políti
ca” , a “ coragem” para realizar a Razão.
Para tornar mais clara essa “ insuficiência” do hege-
lianismo, devemos perguntar o que mostra a experiência
histórica, “ tribunal do mundo” . Devemos insistir no fa
to — recentemente salientado, com razão — que o
189
vir-a-ser do Estado moderno de modo algum invalida as
perspectivas estritamente políticas de Hegel: é evidente
que o poder sobsrano racional, quer dizer previdente,
interfere constantemente no governo das nações evoluí
das a fim de dirimir os conflitos da Sociedade Civil; é
claro também que, na idéia refletida do Estado, está im
plícita a idéia de equilíbrio dos interesses das diversas
coletividades, que organismos múltiplos delas represen
tativos são convocados em testemunho pelo governo, que
a administração desempenha papel considerável na or
ganização da comunidade; que a noção de um Estado
universal ou, ao menos, de uma jurisdição mundial capaz
de resolver as pendências entre os Estados considerados
em sua particularidade, está presente no espírito de to
dos os políticos contemporâneos. Nesse sentido, a des
crição hegeliana é “ bem sucedida” : apreendeu correta
mente a essência do Estado moderno. Mas, — e esse é
o fato decisivo — , nem por isso a satisfação universal é
empiricamente real; no interior dos Estados, a alienação
não desapareceu e a “ previdência” do soberano não su
primiu o conflito de classes (da “ plebe” e da “ riqueza” ) ;
a colonização, permitindo, em certos casos, “ o retorno ao
princípio familiar” -7 para o povo colonizador, provocou
graves atentados a esse mesmo princípio nos povos colo
nizados; a conquista dos mercados estrangeiros, dese
jada pela Sociedade Civil, continua a fazer-se pelas guer
ras qúe ameaçam a vida e a dignidade das nações sem
que nenhum tribunal possa mostrar-se realmente eficaz.
Em outros termos, embora o programa político de Hegel
esteja, em parte, realizado, o programa filosófico do qual
a política é a objetivação, permanece sem efetivação. O
Estado racional não passa da supressão ideal dos con
flitos que perturbam as comunidades e alienam o indi
víduo; ele existe, levando em conta o descompasso entre
a realidade e a empiria e contrariamente ao que pensava
190
o movimento crítico, mas só parcialmente cumpre sua
missão libertadora.
Assim, o Estado real definido por Hegel e realizado
em ampla medida no mundo contemporâneo é conside
rado pelo filósofo como o Aufhebung do conflito dos in
teresses: a superação das contradições econômicas se faz
pelo seu reflexo na esfera política. Essas contradições
não desaparecem; perdem sua poderosa periculosidade e
são reduzidas a simples diferenças; são consideradas por
Hegel como pertencentes necessariamente à Sociedade
Civil; assim sendo, a solução só pode consistir em uma
elevação da essência da comunidade a um nível supe
rior no qual se introduzem as mediações indispensáveis.
Tal perspectiva implica duas dimensões: supõe, inicial
mente, assim como acabamos de observar sumariamente,
que o indivíduo enquanto indivíduo é constantemente
capaz de conhecer e de querer o Estado como soberania
mediadora; não secusa sua previdência e que, em parti
cular, não se insinuam na “ ciasse universal” dos fun
cionários os representantes dos interesses privados, em
penhados em favorecer esta ou aquela coletividade; se
ria, pois, necessário que os indivíduos compreendessem
que suas decisões particulares só têm ensejo de realiza
ção durável pelo medium do Estado, considerado como
essência objetiva da comunidade. Essa perspectiva su
põe também que a reflexão da Sociedade Civil no Estado
é eficaz, que a Sociedade Civil se mostra simples mani
festação do Estado e que as desordens que poderiam ser
observadas na Sociedade Civil apresentam-se como con
tingências normais que não atingem o tranqüilo orde
namento do Estado. Esclareçamos novamente: não se
trata de condições necessárias à existência do Estado
racional, mas de condições para que o Estado racional
promova a satisfação.
Ora, a realização do Estado racional não implica a
sátisfação real. É preciso, pois, que a análise hegeliana
peque de algum modo. Não, como já vimos, por ser utó
pica; nem porque uma falta de oportunidade histórica
a impeça de provar sua capacidade; nem, enfim, por
191
que o Estado descrito, só na aparência, seja racional.
A falha deve situar-se em outra parte. De acordo com o
que acabamos de observar, parece que a questão impor
tante é a seguinte: como pode o indivíduo não querer o
que quer o soberano? Como subsiste o conflito não só
na Sociedade Civil, mas repercuta também na própria
esfera do Estado? Por que a paixão e o interesse con
tinuam a suscitar contradições que acarretam a insa
tisfação e a alienação dos homens no próprio seio da
ordem política moderna? A esses problemas, parece que
Marx, embora em texto apressado e incompleto, dá uma
resposta decisiva. A Crítica da Filosofia do Estado de
H egel 28 — redigida em 1841-42 — comenta, parágrafo
por parágrafo, os textos dedicados por Hegel à estrutura
da Constituição racional. O espírito que animava o he-
gelianismo de esquerda nela se encontra, com seu ardor
polêmico e suas insuficiências. Marx, nessa obra, ainda
não se revela de posse dos elementos fundamentais que
lhe permitirão elaborar sua perspectiva de conjunto.
Dedica, além disso, a pontos que hoje parecem muito
especiais, certos desenvolvimentos: assim, esforça-se em
mostrar o caráter arbitrário e, por assim dizer, passio
nal do alcance que Hegel atribui à monarquia consti
tucional hereditária na qual a soberania do Estado se
encarna em um indivíduo determinado pelas circuns
tâncias e lugar de seu nascimento -9. Permitam-nos que
ponhamos entre parênteses muitos aspectos dessa crí
tica, embora tenham importância na história da forma
ção do pensamento marxista, para reter apenas, desses
textos, os elementos que já assinalam, nessa esfera par
ticular e capital da política, a superação da maneira do
estilo filosófico.
Essa falha da análise hegeliana que se pretende pro
curar, Marx a descobre na falsa relação estabelecida
pelos Princípios da filosofia do direito entre o Estado e a
192
Sociedade Civil. A Critica — sem dúvida porque nessa
época Marx pensava poder refutar Hegel aplicando-se
apenas ao domínio político — incide apenas na Consti
tuição e no Estado interno; visa revelar as obscuridades,
as contradições, o “ misticismo” do sistema político des
crito por Hegel em uma série de anotaçõss também,
muitas vezes, obscuras e disparatadas. O sentido da re
futação marxista parece, no entanto, muito claro: He
gel, arrastado pelo seu “ panlogismo” n0, transformou o
sujeito real — ao mesmo tempo: o homem empírico, o
indivíduo, a Sociedade Civil e a família — em simples
manifestação do Estado, que erigiu em sujeito real, quer
dizer, em realidade substancial e em fim último da von
tade humana; de tal sorte, falseou a relação efetiva exis
tente entre os indivíduos, as “ coletividades” , de um la
do, e a realidade constitucional, de outro. Não têm assim,
na perspectiva hegeliana, a Sociedade Civil e a Família,
nenhuma existência por e para elas mesmas: são ape
nas o aspecto finito dessa realidade infinita: o Estado,
distribuindo seu “ material” , seu conteúdo de acordo com
a necessidade que lhe é própria: “ o fim de sua existên
cia não é a própria existência” 31 mas alguma razão que
lhes é exterior; “ o fato empírico, em sua existência em-
193
pírica, tem uma significação diferente dele próprio” 32.
“ Hegel sempre faz, da idéia, o sujeito, e, do sujeito
r e a l... o predicado” 33: o ser-empírico — enquanto tal —
é por ele considerado desprovido de razão, de sentido,
enquanto não encontra no Estado essa necessidade que
lhe fa lta . Isso equivale a dizer que não existe ou só exis
te como manifestação daquilo que não é e le 34.
Ora, na determinação do papel político dos Estados,
Hegel não pôde deixar de assinalar a oposição existente
entre o Estado e a Sociedade Civil. A Sociedade Civil,
por sua própria contingência, está referida ao Estado;
mas, como tal, deve estar presente (ou representada) no
Estado (caso contrário, não seria manifestação do Esta
do) . Não é possível, porém, que, entre os representantes
da Sociedade Civil — os delegados das corporações —
e os do Estado — os funcionários — não se manifeste
uma oposição: “ assim como os burocratas são os dele
gados do Estado junto à Sociedade Civil, os estados são
os delegados da Sociedade Civil junto ao Estado. São,
pois, sempre transações entre duas vontades opostas” 33.
Ora, é aí que aparece a insuficiência da conciliação que
Hegel se propunha efetuar: pelo fato de que a Sociedade
Civil só encontra sua verdade fora de si mesma, não tem
— como Sociedade Civil — estatuto político30; seus re
presentantes só na aparência têm função política; de
32 Idem, p. 26.
33 “ O importante é que H egel faz sempre da idéia o sujeito, e do sujei
to real, propriam ente dito, tal com o a disposição “ política” , o predi
cado” , Idem, p. 29.
34 . .essa relação real, do Eslado com a Sociedade civil, com o
indivíduo, é anunciada pela especulação com o uma manifestação, um
fenômeno . . . A realidade não c expressa enquanto si mesma, mas en
quanto uma realidade outra” , p. 22.
35 Idem, p. 139.
36 “ O elemento constituinte é a significação política do Estado privado,
do Estado não político, uma contradiclio in a d je cto ... O Estado pri
vado fa z parte do ser da política desse Estado. C onfere a ele, conse
qüentemente, uma significação política, quer dizer, uma significação di
ferente de sua significação real” , p. 148.
194
fato, toda a administração da comunidade está reser
vada aos funcionários, únicos que possuem, por defini
ção, o poder universal37. Assim sendo, a supressão dos
conflitos da Sociedade Civil que se faz no e pelo Estado
sempre se opera, finalmente, em detrimento da Sociedade
Civil. O Estado não consegue suprimir as contradições
do interesse privado senão fazendo desaparecer o homem
privado, o homem-empírico38. As alienações oriundas das
múltiplas oposições dos desejos e das vontades indivi
duais somente são superadas pela instauração de uma
alienação mais profunda, mais grave e mais geral: a do
homem que, por ser cidadão, encontra-se paradoxalmen
te despojado de seu ser privado e submetido à onipo
tência da “ classe universal” dos funcionários. Porque o
ser concreto do homem está separado de si “ como um
ser puramente exterior, material” , o “ conteúdo do ho
mem não é mais sua verdadeira realidade” 38. Essa re
flexão da Sociedade Civil no Estado só podia ter sentido
quando “ a Sociedade Civil era ainda política e o Estado
político a Sociedade Civil” : na Idade-Média40. A idade
moderna, pelo fato de ter separado os dois termos, tor
nou impossível a união do ser privado e do “ ser-político” ,
a não ser pe’ o subterfúgio da cidadania, pura determi-
39 Idem, p. 170.
40 Idem, p. 151.
195
nação formal e prolongamento passivo de um querer uni
versal exterior ao indivíduo empírico.
Na Crítica da Filosofia do Estado de Hegél, Marx
não aprofunda essa dialética. Em obras ulteriores e já
na “ Introdução” dessa Crítica, publicada em 184441, leva
sua análise mais adiante e se desprende da ótica feuer-
bachiana, que adotara em 1841-1842. No texto cujos
temas acabamos de evocar sumariamente, Marx deixava
quase completamente na sombra o problema apresenta
do pela estrutura real do Estado e o conteúdo efetivo da
vontade soberana; embora a propósito do morgadio4-,
tenha feito observações sobre o alcance político da pro
priedade privada, admite, em suma, a noção hegeliana
do Estado considerado em seu puro ser político. O que
critica é a apropriação do Estado pela “ classe univer
sal” , recrutada, de fato, por simples cooptação. É o des-
pojamento do indivíduo de si-mesmo; mas, não indaga
ainda sobre a significação econômica da onipotência ad
ministrativa ™. A pesquisa histórica à qual pôde entre
gar-se, a partir do momento em que operou essa revolu
ção da qual traçamos o esquema no final do capítulo
anterior, permitirá que aprofunde e torne mais concreta
ainda sua crítica. O Estado domina à Sociedade Civil e
priva o indivíduo de sua realidade empírica, nele reco
nhecendo apenas seu ser-formal: a cidadania. Mas, in
versamente, a Sociedade Civil — esfera econômica —
determina a esfera política41. O soberano, o governo, a
196
administração pretendem, com efeito, querer o univer
sal: mas, se considerarmos seu poder efetivo, percebs-
remos que suas decisões favorecem não ao “ interesse
geral” , mas visam assegurar, ampliar e reforçar o poder
da classe que, no conflito econômico, mostrou-se a mais
fo rte45. O vir-a-ser dos Estados modernos mostra clara
mente, ao que parece, que, sob a aparência da universa
lidade da Constituição, da lei, das decisões governamen
tais, esconde-se o mais sórdido particularismo40. Se, em
vez de fazer do Estado, como Hegel, um objeto místico
nós o considerarmos em seu ser histórico verdadeiro, ve
remos que se tornou o apanágio da “ riqueza” e que
constitui um aparelho destinado a manter a predomi
nância econômica daqueles que possuem e a prevenir
toda tentativa de rebelião da “ plebe” . A “ classe univer
sal” — funcionalismo, polícia e exército permanente —
é um instrumento de coação graças ao qual vontades
particulares aumentam seu poder e se esforçam em dis
simular seu particularismo invocando a universalidade
vazia da Constituição (é importante observar, a pro
pósito, que as circunstâncias históricas podem fazer que,
em certas épocas, haja coincidência entre o “ interesse
geral” e a vontade da classe no poder e que, em outras
épocas, os proprietários sejam incapazes, compelidos a
respeitar a lei que estabeleceram e só se mantendo na
medida em que violam essa própria l e i ) . Assim, no ou
pelo Estado (burguês, aquele que melhor realiza a idéia
do Estado correspondente a uma Sociedade Civil domi
nada pela realidade do conflito), a opressão econômica
afivela a máscara da legalidade e a Constituição tem
como conteúdo efetivo o domínio mantido e ampliado da
“ riqueza” sobre a “ plebe” . O Estado “ hegeliano” não
suprime as contradições econômicas profundas senão em
idéia; empiricamente, as reduplica, elevando ao plano do
45 ldem, p. 101.
197
direito a violência exercida de fato pelos proprietárias
sobre os não proprietários.
Caberia insistir na profundidade e nas riquezas his
tóricas da crítica desenvolvida pelos fundadores do mar
xismo contra a doutrina hegeliana do Estado. Importa
limitar-se aqui aos dois aspectos que tornarão mais cla
ro o significado dessa superação da filosofia (idealista)
pelo materialismo. Voltamos a encontrar aqui, de um
modo talvez mais preciso, no entanto, um tema evo
cado, em sua generalidade, ao longo do capítulo ante
rior. Considerando a Sociedade Civil como um momento
do movimento que leva ao Estado, o ser privado simples
manifestação do ser político, ele próprio reduzido à forma
da cidadania, contentando-se em dirimir os conflitos da
comunidade e os que surgem entre as comunidades pela
simples elevação ao conceito: vontade universal do “ po
vo” e sentido da história, Hegel particulariza em deter
minada esfera o princípio que se acha na raiz de todo
seu sistema: o homem reduzido em sua essência objetiva
ao pensamento. Para apreender devidamente o que
Marx condena na política hegeliana, o que o materialis
mo critica na ótica filosófica tradicional, é preciso, antes
de mais nada, compreender tudo o que lhe concede.
Hegel, em primeiro lugar, de acordo com Marx, descreve
corretamente o Estado de seu tempo (que ainda é, em
parte, o Estado do nosso tem po); apreende, em seguida,
de maneira suficiente, embora muito geral, a natureza
profunda da Sociedade Civil; finalmente, define de ma
neira adequada o que se espera do Estado quando se
quer o Estado47. A pesquisa hegeliana, no entanto, é
falseada na medida em que o que deve ser posto em pri
meiro lugar é posto apenas em segundo, tornando-se,
assim, de certo modo contingente. A lógica se antepõe
198
ao estudo político efetivo. O fato da insatisfação, por
nós experimentado ainda hoje, embora o Estado hege-
liano se tenha realizado, com os descompassos normais
da empiria, e do qual Marx e Engels descobriram a raiz
científica, prova a natureza do “ erro” de Hegel; a idéia
de que o homem, em vista de se reconhecer no Estado
e ser reconhecido como cidadão, encontra a satisfação
ou está em “ situação” de encontrá-la (o que permitiria
condenar o insatisfeito como criminoso ou como lou co).
O homem moderno é cidadão e é infeliz: o pensamento
liberal — o dos economistas — acalentava a ilusão de
que arranjos técnicos poderiam trazer um paliativo (no
duplo sentido de velar e de remediar) a essa infelici
dade; Hegel, mais realista, compreende a Sociedade Ci
vil, ou burguesa, como domínio do conflito; introduz,
porém, uma nova ilusão, a de uma satisfação que seria
outra, que seria propriamente política e dissiparia, no
ordenamento do conceito, as contradições dos interesses,
da paixão.
Ora, esse ordenamento apenas reflete a desordem
da paixão; o Estado moderno, longe de ser a supressão
(efetiva) do conflito, é somente sua sublimação ideal; a
contradição só idealmente é abolida e a reconciliação é
do domínio exclusivo do pensamento (o que representa
— é importante salientar — considerável progresso em
relação às doutrinas que, ou negam a importância da
contradição, ou a consideram estatuto próprio da “ exis
tência terrestre” ) . A ordem descrita endossa uma irra
cionalidade fundamental: o homem alienado, e, ao mes
mo tempo, a legalização dessa alienação48. O homem
não é reconhecido em seu ser empírico no Estado que
corresponde à Sociedade Civil burguesa: para que um
reconhecimento se torne empiricamente possível, é pre
ciso superar a Sociedade Civil burguesa operando uma
199
Aufhebung que não seja ideal — no Estado racional-real
— mas empírica — na própria Sociedade Civil. Seme
lhante Aufhebung, no entanto, supõe a apreensão da
estrutura profunda desse homem que a simples cidada
nia não satisfaz, aquele homem que vimos chamando,
sem maior rigor, de homem empírico.
200
Desde então, um fio condutor é oferecido e a análise de
Marx sobre as insuficiências da política hegeliana é ca
paz, apesar de seu caráter muitas vezes pré-marxista, de
prevenir contra as tentações do dogmatismo.
Há outro perigo. Na tentativa de fixar os traços
principais do homem real, ameaça surgir constantemen
te, em forma levemente modificada, outro dogmatismo:
o que se apóia em uma noção da natureza humana que
Kant e Hegel tão energicamente denunciaram. Uma das
lições mais importantes da Fenomenologia do Espírito
é, sem dúvida, a de que o Absoluto não pode ser consi
derado, na plenitude, como substância: a fórmula deve
ser entendida não só como refutação de duas doutrinas
opostas: a filosofia teológica e o materialismo natura
lista do século X V III, mas também como crítica de todo
substancialismo que, interpretando o homem, seja como
matéria, seja como espiritualidade, o imobiliza numa de
terminação ontológica eterna e menospreza sua consti
tuição fundamentalmente histórica. Não se trataria —
depois de Kant, depois de Hegel, e depois também que
a ciência histórica e as chamadas ciências humanas pu
seram em evidência o devenir como traço fundamental
da realidade — pretender circunscrever de maneira
exaustiva (conceitualmente) e definitiva (historicamen
te) os predicados que pertenceriam onitemporalmente ao
homem. Seria opor ao que Marx chama o “ misticismo
lógico” de Hegel outro misticismo de feição positivista.
Ainda a esse respeito é importante, a fim de que as idéias
estabelecidas pelo filósofo sejam efetivamente superadas,
que sejam também mantidas. E o que devemos ter cons
tantemente presente no espírito — empregamos essa ex
pressão vaga para bem salientar que não se trata de mo
do algum de uma prescrição metodológica abstrata, quer
dizer, exterior à coisa estudada — é que nenhuma “ re
velação” , mesmo “ científica” , permite negligenciar o
traço fundamental da realidade humana: a historici
dade.
Traduz-se, essa exigência, em particular, no fato de
que nenhuma determinação descoberta como constitutiva
201
do ser-empirico do homem pode ser considerada em sua
essência e em suas manifestações como a-histórica. É
certo que a análise operada pelos pensadores marxistas
de que nos propomos aqui apresentar alguns aspectos,
reterá certas dimensões como características do homem
em seu “ ser-genérico” . Importa, no entanto, lembrar
que o pensamento marxista quando assim procede tra
balha por “ abstração modal” — para falar como Descar
tes — e não pretende de modo algum descobrir os pre
dicados que, de toda eternidade e de toda necessidade,
estão inscritos no sujeito. Mais precisamente, aprendeu
a distinguir entre o que é fundamental (duradouro e
que se manifesta com nitidez em circunstâncias deter
minadas) e o que é histórico (e que aparece de acordo
com a necessidade própria da história humana). É fun
damental, por exemplo, que o homem é (e não seja, pois
não se trata de uma condição, mas de um fato) neces
sidade; mas, essencialmente, a necessidade assume esta
ou aquela determinação segundo a ordem histórica e é
abstrato falar de necessidade em geral se não se sabe
ao mesmo tempo o que é imperiosamente necessário
disto ou daquilo. A dialética hegeliana da essência (o
fundamental, a esse i-espeito) e da manifestação (o his
tórico, nesse caso) deve ser levada às últimas conse
qüências para que sejam afastados os erros do substan-
cialismo naturalista.
Isto quer dizer que toda análise geral — do tipo pre
cisamente daquela à qual a exigência do presente tra
balho deve conduzir — é perigosa, porque abstrata. Não
poderia haver, para o marxismo (a não ser quando se
esforça em prevenir-se em relação à tradição ou quando
se limita a uma tarefa pedagógica) exposição de con
junto do “sistema” . Não há análise marxista da “ me
mória” ou da “ vontade” ; não há concepção marxista do
Verdadeiro, do Belo, do Bem4í'. Como e por que o ho
202
mem — realidade histórica — pôde chegar a considerar
historicamente o passado como seu passado, a compre
ender-se como sujeito de seus atos e como responsável,
tais são as questões do psicólogo marxista (mas, como é
ainda possível empregar o termo ‘psicologia’? Como e
por que pôde indagar o que significava a adequatio rei
et intellectus ou o que impelia os homens a quererem
fazer obras capazes de “ agradar” a outros homens, tais
são os problemas que se propõe a filosofia marxista (mas,
não haverá certa facilidade em utilizar esse termo ‘filo
sofia’ do qual a história do pensamento acabou por fa
zer um uso tão rigoroso?). Com mais razão, o pensador
marxista deverá recusar-se a responder à pergunta: que
é o homem? Deveria poder perguntar, porque só o con
teúdo lhe interessa: sobre que homem interrogam: o de
Cromagnon ou o que participa do Estado moderno?
Aprendeu, no entanto, que, refugiando-se em tal pru
dência, expunha-se a todos os que desprezam o concei
to e querem abolir o conhecimento e dissolvê-lo numa
multiplicidade de conhecimentos diversos. Desde então,
aceita o risco de falar do homem em geral, embora sai
ba que a totalidade humana é histórico-dialética, que
tal determinação em uma época limitada, apesar de ma
nifestar-se como dimensão essencial, é o resultado efe
tivo de um devenir anterior e não deve sua essenciali-
dade à ligação com outros traços humanos que o tempo
tornou menos importantes.
Tudo isso equivale a dizer que, na discussão com o
filósofo, o materialista encontra-se em posição difícil,
pelo menos formalmente. Sua resolução constante em
definir a realidade empírica do homem, de constituir
uma nova “ antropologia” rompendo não só com o espi
ritualismo (o homem como alma, quer esse termo signi
fique pneuma, psykhe ou nous), mas também com o
idealismo (o homem como logos), o levam freqüente
mente a adotar, em seu vocabulário e sua sintaxe — que
não poderia, no estado atual, tomar à tradição — o es
tilo do naturalismo. Contra o perigo de que essa forma
venha a determinar o conteúdo do pensamento materia-
203
lista, nenhuma prescrição metodológica, insistimos, po
deria ser eficaz. Somente a atenção, sustentada pelá
idéia de que se trata de elaborar uma perspectiva radi
calmente nova, refletindo a “seriedade da vida” em seu
conteúdo empírico e superando — na significação dialé
tica do termo — as descobertas da filosofia, pode permi
tir afastar esse risco. É preciso, pois, chegar a esse con
teúdo, por mais esquemática que possa ser a análise à
qual aqui nos dediquemos. . . Observemos, aliás, que nas
páginas seguintes tratar-se-á menos de “ definir” o ho
mem empírico que de oferecer os elementos capazes de
contribuir para a solução do problema limitado que nos
propusemos.
O primeiro e único pressuposto de que deve partir
a concepção materialista do homem é um fato: a exis
tência de indivíduos humanos™. Na verdade, trata-se
inicialmente de definir o que significa essencialmente
esse fato da vida humana em sua dimensão empírica tal
como nos é dada: trata-se de descrevê-la tal como se
mostra, deixando ao prosseguimento da análise a in
cumbência de mostrar porque semelhante descrição é
exata e suficiente e como é capaz de legitimar-se a si
mesma. A propósito, pedimos ainda permissão para pro
ceder a uma rápida ordenação dos temas sobre os quais
repousa a revolução teórica operada pelo marxismo, de
sejando que o leitor concorde em considerar as separa
ções que seremos levados a fazer como simples “ abstra
ções modais” e não como cortes concretos e que espere
as páginas seguintes para apreender a justificação efeti-
204
va que delas pode dar o marxismo. Apresentar a vida
humana empírica, é antes de mais nada reconhecê-la
como vida que se mantém no elemento da natureza que
lhe é indicado pela sua própria origem: é considerá-la
inicialmente como materialidade51. É certo que toda fi
losofia concederá o fato dessa existência sensível do ho
mem : mas, voltará logo à carga, empenhando-se em des
cobrir a essência desse estatuto sensível: perceberá, por
exemplo, que é preciso concebê-lo como aparência ou
como inessencialidade ou como resultado de uma cons
tituição que tem origem na atividade perceptiva ou
constituinte do próprio sujeito. Berkeley, por exemplo,
não nega que haja um ser-sensível do homem: mas, lo
go o reduz ao fato de que o corpo humano, do mesmo
modo que o dado corpóreo em geral, é percebido e que,
como tal, supõe um espírito percipiente que o faz “ exis
tir” tal qual é. O que o materialismo marxista afirma, é
que o desenvolvimento de semelhantes análises já su
põe a existência empírica da humanidade — em sua
própria contingência — , que as elaborações teóricas de
vem admitir o fato da vida humana como um dado irre
dutível.
E é isso que exige, inicialmente, a superação da fi
losofia: a simples verificação de que toda operação do
pensamento, por mais admirável que seja, implica, co
mo condição real, a existência natural da humanidade
à qual se oferecerá então, e somente então, a possibili
dade de refletir sobre sua própria condição. Se há uma
questão que pode apresentar-se a propósito do homem
e de seu destino, é sem dúvida porque o homem é pensa
mento. Mas, o próprio pensamento, como fato que in
205
terroga, pressupõe, por sua vez, a vida humana enquan
to vida e enquanto humana. Não se trata, pois, para o
materialista, de modo algum, de negar que o pensamen
to, — como abertura e reflexão sobre o que é — consti
tua aquilo em que e por que os traços mais distintivos
da humanidade se manifestem: a “Alma” , a linguagem,
a “ Razão” , quer dizer, a interrogação sobre si mesmo, a
exposição de si mesmo face a outrem e a aspiração à
universalidade do discurso e da conduta. Mas, esse ser-
diferencial pressupõe como sua condição real um ser fun
damental a partir do qual a diferença, precisamente,
possa aparecer e manifestar-se. O fato de chegar, final
mente, ao que condiciona todo pensamento, ao que per
mite que o pensamento seja, de encontrar a “ seriedade
da vida” , não enquanto tragédia refletida, mas enquan
to tragédia real em que se joga a possibilidade mesma
de que se fale de tragédia e que se queira ir além, rumo
à felicidade, tal é a significação da revolução teórica ope
rada pelo marxismo.
Ora, a vida humana tomada em sua realidade em
pírica, aparece inicialmente — insistimos em que será
preciso, em seguida, legitimar essa concepção — como
vida natural desenvolvendo-se nesse domínio imposto e
único que é a natureza. A referência a conceitos tão
elaborados como o de “ natureza” poderá surpreender em
um trabalho no qual se pretende dispensar todo pres
suposto. De fato, por esse termo entendemos apenas o
lugar de habitação do homem ou horizonte empírico no
qual é dado existir. Dizer que o homem vive aí, é dizer
que daí retira sua vida. Toda carência objetiva elemen
tar, a deterioração fisiológica, a diminuição vital que re
sulta da privação de alimento, por exemplo, toda satis
fação objetiva elementar — a recrudescência de vitali
dade, o desenvolvimento e o crescimento — são falta de
algum “ fragmento” da natureza que lhe conviria, posse
e utilização desse “ fragmento” . Em outros termos, a re
lação imediata do homem com seu domínio — que não
é nem jardim de Éden, nem habitação de Tântalo — é
a determinada pela constituição corpórea da humani
206
dade. Por isso, devemos entender, não que todas as di
mensões passadas e presentes do homem estejam conti
das na estrutura do corpo e do sistema nervoso, mas que
a manutenção e o desenvolvimento da vida empírica
constituem a relação originária do homem e da fisis.
A presença verdadeira da humanidade em seu meio con
siste não na representação — que constitui um estágio
elaborado e ulterior — , nem mesmo na apresentação —
que é imediatamente, mas não fundamental — , mas na
presença efetiva, quer dizer, na falta ou na posse real
traduzindo-se por uma diminuição ou um desenvolvi
mento da vida natural52.
O homem é passividade; encontra-se no estatuto da
dependência. O que conquista e cria, o obtém a partir
de uma sujeição natural que está ligada à sua situação
de fato como ser-empírico, submetido a determinações
que não dependem nem de sua opinião nem de sua de
cisão. Que um homem queira morrer de fome para ma
nifestar sua “ independência” em relação às exigências
corpóreas, o simples fato de que saiba que morrerá e
que decida adotar essa conduta precisamente por essa
razão, prova sobejamente o caráter fundamental dessa
sujeição. Seja qual for a vontade do indivíduo, seja qual
for a referência extranatural que o grupo possa esco
lher, resta que o homem está mergulhado no ser-natu-
ral como em seu meio obrigatório. Querer abolir a coer
ção da necessidade é exaltar o ser que vive a si concre-
tamente como necessidade e que, por motivos culturais,
sofre com isso e aspira a outro lugar que lhe é
recusado. Essa sujeição manifesta-se inicialmente no
fato, muitas vezes considerado simples, de que o homem
depende das mesmas leis que regem qualquer outro cor
207
po e qus também pertence ao registro implacável do
objectum. Importa dar-se conta disso e dizê-lo antes.
Nenhuma prática, por mais inventiva que seja, permi
te sair diretamente dessa determinação, a não ser em
pensamento, supondo algum médium espiritual em que
o pensamento é livre de querer abstratamente a insatis
fação, a incoerência vital e a morte. Mais geralmente, é
dada a dependência do homem enquanto corpo sofredor,
enquanto pertence, ele também, à physis e se acha, des
de então, ligado a processos irreversíveis e impostos, de
manutenção e de devenir. É inútil interpretar o ‘dever-
ser’ de modo lírico, pois é imediatamente ‘dever-ser’ vivo
que se manifesta.
É importante esclarecer que essa definição do esta
tuto fundamentalmente natural do homem não impli
ca, de modo algum uma redução da existência humana
a qualquer ordem fisiológica substancial da qual o com
portamento seria a manifestação. Quando se indica a
necessidade como relação primordial do homem com sua
situação, designa-se uma relação originária a partir da
qual o devenir humano se elabora e não algum termo
no qual tudo estaria contido como os predicados em sua
substância. A interpretação ontológica da concepção
marxista comprometeu freqüentemente a revolução teó
rica operada por Marx como puro e simples retorno a
uma doutrina psicofisiológica, segundo a qual a história
é a simples concretização de uma natureza dada previa
mente . Por fundamental que seja, a necessidade só pode
ser compreendida, para o materialismo marxista, como
necessidade em determinado estágio da evolução: se de
vemos concebê-la, inicialmente, como necessidade pro
priamente corpórea que tivesse, em última instância, e
por fim, a satisfação elementar do homem em seu ‘ser-
natural’, é importante também verificar que o conteúdo
da necessidade está ligado, historicamente, à evolução
das capacidades e dos desejos efetivos da humanidade53.
208
Em outros termos, é preciso partir desse estatuto origi
nário se quisermos dar conta das estruturas profundas
da existência humana; não é suficiente fazê-lo54, pois o
devenir próprio da civilização cria, em circunstâncias
determinadas, que podjem ser empiricamente estuda
das, novas necessidades que excedem amplamente as ne
cessidades elementares, mas nunca poderiam suprimi-
las.
Assim também, devemos notar, contra as tentações
e as falsas clarezas do materialismo abstrato, que pre
tende encontrar na estrutura corpórea a causa de to
dos os aspectos da atividade do homem, que na noção
da necessidade humana, por mais elementar que seja,
está imediatamente implícito o próprio fato da cons
ciência. Como foi salientado pela maior parte dos psicó
logos contemporâneos, é abstrato separar inicialmente
comportamento e consciência e procurar saber, em se
guida, como se reúnem os dois termos. Quando se trata
do homem, precisamente, a verificação empírica nos
mostra que o lugar de habitação é não só o domínio de
onde vêm os estímulos e onde se efetuam as reações,
mas também horizonte presente. A propósito das obje-
ções formuladas contra o ateísmo, incapaz, segundo seus
adversários, de explicar o aparecimento do mundo, Marx
observava com ironia: “se perguntam a respeito da na
tureza e do homem, fazem abstração do homem e da
209
natureza. Depois de admiti-los como não existentes
querem, no entanto, que eu os demonstre como existen
tes”K. Parafraseando Marx, poderíamos dizer que é de
balde — admitindo o homem na totalidade de suas de
terminações corpóreas, mas desprovido de consciência
— pedir em seguida que o demonstrem consciente. O
comportamento humano vital é imediatamente e como
tal comportamento, tendo presente a si mesmo o lugar
em que se desenvolve. Tal “ presença” é, sem dúvida,
muito diferente do que se costuma chamar Espírito e
cultura, que resultam de uma elaboração histórica cujas
etapas constitutivas devem ser reveladas por uma ciên
cia do devenir humano. O homem se torna memória, por
exemplo, em função de circunstâncias “ existenciais”
que podem ser objetivamente estudadas; não se torna
consciência; é dado como ser natural consciente ao mes
mo título que é dado como se mantendo de pé e capaz
de supinação e de propinação. Como acontece isso? Cabe
às ciências objetivas — fisiologia, etno’ ogia, biologia, ge
nética — determiná-lo. A concepção materialista como
superação da filosofia deve, no entanto, partir desse fa
lo como dado, se não quiser defrontar-se novamente
com os problemas teoricamente insolúveis do dualismo
da alma e do corpo. Descartes, aliás, não nos dá uma
indicação preciosa quando mostra a união de fato da
consciência e do corpo como um mistério a propósito do
qual insinuou esperar que a “ medicina” o resolvesse?
Ser natural, tendo presente a si mesmo o domínio
que habita, consciente aqui e agora do lugar ein que exis
te, e submetido à exigência empírica da satisfação vital,
o homem, agindo, revela-se ‘ser-trabalhador’. Mais pre
cisamente, o fato da necessidade está ligado a um tipo
de atividade que visa assegurar a manutenção e o desen
volvimento da vida que distingue radicalmente o homem
do animal: “ É possível distinguir os homens dos animais
pela consciência, pela religião, pelo que quiserem. Come-
210
çam os homens a se distinguirem dos animais a partir
do momento em que começam a produzir seus meios de
subsistência, operação que é condicionada por sua or
ganização corpórea. Produzindo seus meios de subsis
tência, os homens produzem indiretamente sua própria
vida material” 60. O comportamento animal, considerado
em sua generalidade, caracteriza-se pela repetição, pela
estagnação no nível natural ou ainda pelo fato de que
o ser-genérico permanece o que é, e que as modificações
supervenientes se produzem no seio do gênero natural.
A conduta humana, ao contrário, é capaz de construir:
ao domínio que lhe é imposto, substitui, por sua paciên
cia e seu engenho, um domínio que ele constrói progres
sivamente e que se torna assim seu domínio. Essa no*
ção do trabalho suscitou, ao longo dos últimos anos, nu
merosos desenvolvimentos lírico-existenciais de caráter
pseudodialético; permitirão, a fim de evitar semelhantes
excessos, que nos limitemos a algumas anotações espar
sas, pois os únicos informes sérios de que nos utilizaría
mos seriam os resultantes de um estudo histórico ob
jetivo das modalidades do trabalho e das concepções que
suscitam em tal época e em tal civilização. Digamos,
simplesmente, na senda dos fundadores do marxismo,
que, enquanto ‘ser-trabalhador’, o indivíduo humano
manifesta-se como poder efetivo de libertação de si mes
mo e da humanidade; revela-se agente da transforma
ção de seu lugar de existência e criador das novas con
dições de vida. No e pelo trabalho, a “ coisa natural”
transforma-se em “objeto humano;” as leis que a go
vernam se encontram dominadas, pelo simples fato de
sua utilização. A alteridade real, a do dado que se dá em
sua ameaçadora estranheza, mostrando-se às vezes co
mo fonte inacessível da satisfação, é parcialmente redu
zida e se torna alteridade que convém ao homem: a
oposição do homem e da natureza transforma-se em re
lação de complementaridade. Domínio da habitação e
211
do desejo, o meio aparece como meio do trabalho, como
lugar da obra, do construir e da satisfação renovada. A
“coisa”, recolhida pela atividade humana e por ela mo
delada, transforma-sp em “valor de uso”. A “natureza”
se transforma no setor submetido ao trabalho, em natu
reza para o homem.
Se não receássemos abusar das exposições dialéti
cas, diríamos que o mundo forjado pelo trabalho é a
Aufhebung do dado natural: é sua realização na medi
da em que a satisfação da necessidade nele se torna efe
tiva e onde o desejável deixa de ser objeto de procura
indefinida e fonte do sofrimento para tornar-se convite
à obra; é também sua negação, pois o universo artificial
se opõe à realidade natural — que nos é tão difícil de
conceber, a menos que, como dizia Marx, imaginemos
algum arquipéJago polinésico recentemente surgido57 —
como o dominado ao não dominado, o humano ao inu
mano; constitui, finalmente, sua sublimação porque o
resultado do trabalho, a obra, participa dos dois regis
tros e se apresenta, ao mesmo tempo, como produto da
vontade do homem, de seu desejo e de sua coragem e
como fato submetido ao devenir próprio e inumano do
dado. É, em suma, o lugar em que se defrontam e se or
ganizam efetivamente, e não apenas no pensamento, a
negatividade humana e a pura positividade natural. A
propósito, seria talvez necessário salientar o papel de
cisivo desempenhado pela realidade do utensílio em que
se reúnem as diversas mediações contidas na atividade
do trabalho. Mas, essa realidade é tão rica e tão comple
xa que nos perdoarão por não analisá-la em seus múl
tiplos aspectos e remeter, não somente às preciosas ano
tações fornecidas, a respeito, por Marx e Engels, mas
ainda às pesquisas da etnografia, da sociologia e da psi
cologia contemporâneas.
O trabalho, atividade de transformação da nature
za, é também processo de formação do homem. No ní
212
vel da “pura necessidade” :— aquele que se pode apre
ender no comportamento animal — o ser se acha sub
metido à repetição: está condenado a procurar a “coi
sa”, sempre a mesma, que aplaca seu desejo e, se tem
história, ela consiste numa evolução que lhe é imposta
e o determina do exterior. Pelo trabalho, o círculo natu
ral da necessidade é rompido. Hegel mostrou, admira
velmente, de que modo a consciência se cultiva e se cons
trói, por sua reflexão, em uma exterioridade que inicial
mente não sabe ter criado, mas que descobre em segui
da como obra sua. Desenvolvia-se, essa dialética, no pla
no da consciência-de-si e o caráter algo misterioso de
certas passagens da Fenomenologia do Espírito, posto
em evidência, em particular, nos Manuscritos de 1844,
revelava o a priori conceituai que freqüentemente a do
mina. A formação do homem real — materialidade, ne
cessidade e consciência — opera-se, de fato, no próprio
nível da atividade sensível. No objeto fabricado, o ho
mem encontra a marca de seu poder: descobre-se como
produtor de novas realidades. No ato do trabalho, enri
quece sua “natureza” dada; cada gesto é como uma pro
va que o afirma, reforça sua eficácia, leva-o a maior per
feição e também a superar-se em algum gesto mais bem
sucedido; sua sensibilidade se afina e aprende a desco
brir na realidade uma infinita diversidade de objetos e
de significações. De fato, a humanização da natureza —
sempre nessa perspectiva parcial e abstrata freqüente
mente adotada neste trabalho e que será preciso corri
gir — é acompanhada de uma real humanização do ho
mem que lhe permite subtrair-se cada vez mais ao seu
estatuto animal.
‘Ser-trabalhador’, o homem, considerado em sua
existência genérica, é também e fundamentalmente ‘ser-
social’. Dizer que o homem é fundamentalmente ser-so-
cial, é recusar-se a considerar qualquer dimensão de sua
“natureza” ou de sua cultura como produto de sua “in
dividualidade pura”; é compreender inicialmente sua
existência como ligada à de uma coletividade; tampou
co quanto a necessidade (e a consciência da necessida
213
de), tampouco quanto o trabalho (e a consciência do
ser-trabalhador), a socialidade não pode ser um predi
cado acrescentado do exterior à realidade humana. A
vida social, como a vida “sofredora” ou a vida trabalha
dora, é o pressuposto obrigatório de toda existência hu
mana. Não só é irrisória a pretensão de deduzir a socia
lidade, mas também é absurdo o esforço em determinar
o que essa socialidade traz ao homem. Essas idéias, aliás,
achavam-se implícitas no próprio exercício da filosofia
e, a seu respeito, o pensamento tradicional acumulou,
devemos repeti-lo, conhecimentos muito importantes.
A contribuição do marxismo é de outra ordem: con
siste no vínculo estabelecido entre essa dimensão e as
demais dimensões fundamentais do homem. A esse res
peito, a revolução que realizou é capital: o fato social
não é mais considerado simplesmente como relação de
homens que falam — como em Platão — ou de homens
que querem (ou podem saber o que querem) — como
em Hegel —. A relação humana é apreendida em seu
conteúdo profundo como relação material de indivíduos
submetidos à necessidade, produtores de seus meios de
existência e que, como tais, colaboram em sua luta
contra a natureza ou se opõem na posse dos bens de con
sumo e dos utensílios. Que essa relação também se ex
prima na linguagem, que é, para o homem, um fato
tão “natural” quanto a consciência-^, que possa não ser
compreendido tal qual é, não impede que seja funda
mentalmente relação material. E, é nesse nível, talvez,
que se revela mais nitidamente a oposição do materia
lismo e do modo de pensar filosófico: este jamais ne
gou que a realidade humana seja social, a não ser talvez
no período chamado metafísico de sua história no qual
esse fato, sem ser negado, era posto em segundo plano;
214
concebia, porém, o vínculo social (ou político) como re
lação ds consciência a consciência, de vontade a vonta
de; esquecia que o homem é, antes de mais nada, pai
xão e desejo., e situava-se em uma esfera ideal ds univer
salidade na qual a comunicação se faz tranqüilamente.
E porque negligenciava o fato de que o domínio primor
dial das trocas entre os indivíduos e o das trocàs de bens
materiais, que a relação humana supõe uma relação
com a natureza, que não poderia ser “pura relação hu
mana” e, conseqüentemente, que remete ao que permi
te uma atividade natural eficaz: a conservação dos ins
trumentos de produção. Desde então, a vida social apa
rece numa perspectiva inteiramente nova: deixa de mos
trar-se como coletividade, cujo equilíbrio é difícil de es
tabelecer, porque é feita de indivíduos que sabem e
de indivíduos que não sabem, de “insensatos” e de
“razoáveis”. É reduzida ao seu conteúdo empírico: a
oposição entre aqueles que se acham em situa
ção que lhes permite satisfazer seu “desejo vital” e
os que precisam, para conseguir tal satisfação, submeter-
se aos outros. Isso não significa que a oposição entre
“razão” e “sem-razão” não seja essencial: apesar disso,
não é fundamental e encontra fundamento na materia
lidade humana.
Essas dimensões fundamentais da existência hu
mana considerada empiricamente — a necessidade, o
trabalho e a sociabilidade — permitem definir com mais
rigor o que se deve entender por praxis. Esse termo pre
tende designar a vida do homem na totalidade de suas
determinações reais: veremos, na seção seguinte, que o
laço efetivo graças ao qual essa exigência de totalidade
pode ser respeitada é o próprio fato da historicidade. A
consideração, constante e constantemente lembrada, do
vir-a-ser evita o risco de atribuir arbitrariamente a uma
dessas dimensões um privilégio exorbitante, e garante,
de certo modo, contra o dogmatismo que decorreria ne
cessariamente desse arbítrio. A história do pensamento
contemporâneo permite, aliás, perceber os desvios re
sultantes dessas interpretações unilaterais da praxis.
215
Já mostramos a que abusos conduzia inevitavelmen
te o fato de considerar como unicamente determinan
te a estrutura corpórea e pretender deduzir, em cada
etapa da história humana, quer dizer, para qualquer
momento do vir-a-ser, logo onitemporalmente, o conjun
to das manifestações reais da atividade do homem.
Uma coisa é dizer que, em última análise, “quando a
maré está baixa”, a necessidade empírica constitui a re
ferência real e última, a partir da qual se opera, em sua
generalidade, a escolha humana, e outra coisa afirmar
um determinismo fisiológico que reduziria o conteúdo
da consciência aos fenômenos nervosos engendrados por
uma “prática”, ela própria considerada abstratamente
como atividade em geral™. Assim também, quando o
marxismo salienta o caráter decisivo do trabalho, con
siderado objetivamente como manuseio de determinado
tipo de utensílio, não julga, de modo algum, que a his
tória humana possa compreender-se mecanicamente,
como manifestação de uma essência tecnológica que de
senrolasse, de acordo com uma ordem clara e inuma
na, seu devenir autônomo. Quer dizer que o prob:ema da
humanidade, em cada etapa de sua evolução, enquanto
problema da manutenção e do desenvolvimento da vicia,
supõe realmente certo nível das forças produtivas, cer
to tipo de relação do dado e é resolvido em função des
sa situação imposta. O pensamento grego clássico, por
exemplo, não é o simples produto de uma civilização de
finida por determinados caracteres tecnológicos: desen
volve-se, originalmente, no seio de um horizonte no qual
a relação do homem com a natureza é função de um es
tado, que pode ser objetivamente estudado, dos meios
de apropriação. A defesa que certos sofistas fazem da
teenè, o descrédito em que Platão tenta lançá-la, não se
acham ligados apenas à idéia de Georgias e Platão a seu
respeito: compreendem-se a partir do nível dessa pró
216
pria técnica e da função que, como tal, desempenhava
na Cidade. A referência à estrutura social não signifi
ca, enfim, que se possa considerar, à maneira da socio
logia de inspiração durkheimiana, a organização da so
ciedade como a chave da história humana. Se é verda
de que a relação fundamental entre os homens é deter
minada pela sua situação na produção dos meios de
existência, essa mesma situação deve ser considerada em
sua base histórica e geográfica: o fato, por exemplo, de
que os “pequenos brancos” dos países coloniais sejam
explorados do mesmo modo que o povo colonial, não con
funde objetivamente sua situação com a dos autócto
nes encontram-se, por motivos históricos, separados da
queles que exercem na produção a mesma função que
eles; não se trata apenas de suas opiniões, de seus pen
samentos, mas também de sua situação real: participam
em grau irrisório, talvez, porque vêm de outro país e
pertencem, de fato ou legalmente, à nação dos conquis
tadores, da exploração do colonizado pelo colonizador.
Desejamos, com essas anotações fragmentárias e
esses breves retoques, mostrar que não pretendemos, de
modo algum, ao salientar esses traços fundamentais da
existência humana empírica, reduzir o homem a uma
natureza antecipadamente dada. A humanidade, consi
derada em sua prática sensível, não pode ser oposta,
termo a termo, ao homem tal como o define o filósofo.
A revolução teórica marxista nos convoca a retornar,
finalmente, à vida banal e grandiosa, a essa luta inces
sante e engenhosa que a humanidade trava para alcan
çar a satisfação, para deixar de ter medo e de ter fome,
para distinguir-se do animal, não só em sua atividade,
mas em sua satisfação. Essa revolução implica que se
deixe de ver o homem tal como o pensam aqueles aos
quais é dada a possibilidade de pensar, quer dizer que
se o considere tal como é; um ser natural que sofre, ao
qual é dado modificar suas condições de existência, um
ser dependente ao qual se revela, no próprio seio de sua
dependência, a possibilidade efetiva de construir uma
Cidade, sua obra empírica real, na qual o desejo será a
217
promessa da satisfação e a presença do outro homem a
eventualidade de uma amizade.
218
nição do trabalho, da sociedade e mesmo da necessida
de. Qualquer esforço para determinar mais precisa
mente esses fatos é impossível: o único aprofundamen
to sério consistiria em analisar o vir-a-ser do trabalho
(e da consciência que tal sociedade ou tal grupo hu
mano tem de seu trabalho e também do trabalho), da
necessidade (e da consciência sofredora), do vínculo
social (e da maneira como os indivíduos o vivem nessa
época e nesse país) . Eis por que as gêneses que se pro
cura determinar, de tal conceito, de tal sentimento ou
de tal instituição, a partir do fato geral da prática, pa
recem tão abstratas e tão irrisórias. O pensamento efe
tivo é histórico: não se realiza em alguma zona neutra,
não situada e não datada. A construção da axiomática
geométrica euclidiana, a decisão de elaborar um relato
histórico, a própria vontade de filosofar, não resultam
da prática em geral, nem apenas da necessidade ou de
qualquer exigência do Espírito, mas constituem fatos
de cultura que surgem em determinada época e civili
zação e só podem ser compreendidos em suas relações
com elas.
Essa referência, na medida em que é pesquisa his
tórica precisa, é mesmo o único meio de penetrar no
conteúdo real da vida humana empírica. As anotações
gerais, como as que acabamos de fazer a respeito das
dimensões e dos aspectos da realidade humana, úteis
no caso presente, uma vez que se trata de indicar em
que perspectiva de conjunto o marxismo se opõe à filo
sofia, não constituem, de fato, senão o índice de estudos
que só poderão tornar-se rigorosos, não pela excelência
do método, mas pela fidelidade aos acontecimentos es
tudados. Nesse sentido, é dificilmente concebível que
possa ser construído, a não ser na ótica simplificada de
uma pedagogia, um manual de filosofia geral marxista:
semelhante manual seria levado, não só a isolar aspec
tos que só têm sentido por sua ligação dialética com o
conjunto, mas também a substituir, ao devenir efetivo
do conteúdo, gêneses abstratas às quais a tradição filo
sófica facilmente poderá contrapor os argumentos clás
219
sicos dirigidos contra as diversas formas de empirismo
e de naturalismo.
A historicidade de fato manifesta-se, pois, como o
lugar em que se articulam as determinações essenciais
da realidade humana. Importa, no entanto, precisar
sua noção. Já indicamos que, por historicidade, não
pretendíamos entender outra coisa além do devenir tal
como a ciência histórica moderna o estuda. Todavia,
ao longo do século XX, introduziram-se tantos proble
mas e obscuridades na idéia do tempo histórico, que é
necessário talvez voltar a algumas observações simples,
apoiando-se precisamente na técnica histórica. Essa
técnica, ponto decisivo no qual devemos insistir desde
logo, só alcançou seu estatuto científico ao longo do
século X IX 61. Por mais notáveis e belas que sejam as
obras dos historiadores gregos e latinos, por mais enge
nhosos que tenham sido os processos elaborados pela
erudição italiana do Renascimento, seja qual for a be
leza e a elevação que contenham os trabalhos da histo
riografia oficial, só a partir de Leopold von Ranke e
Niebuhr é que ss pode falar de ciência histórica. É o
motivo pelo qual as críticas dirigidas ao que se costu
ma chamar as “filosofias da história” — de Bossuet,
de Vico, de Herder e mesmo de Hegel — segundo as
quais esses autores teriam traído a verdade histórica,
são anacrônicas: supõem que a noção de verdade his
tórica tinha para eles a significação que possui atual
mente, o que não nos parece legítimo. Na verdade —
e sem voltar aos difíceis problemas suscitados pelos re
latos dos escritores da Antigüidade e pelos clássicos da
Idade Média e do Renascimento —, a leitura de Bos
suet (e a referência à fonte agostiniana), de Vico, de
Herder, e, em sentido diferente, a leitura de Voltaire,
220
de Condorcet, e, ainda em outro sentido, de Hegel, mos
tra que é leviano censurar esses pensadores por falsifi
carem, com pleno conhecimento de causa, o próprio
vir-a-ser. Seria preciso, para que essa imputação tives
se sentido, que a noção de uma ciência histórica tives
se, para eles, um alcance preciso. Ora, é bastante claro
que essa eventualidade, a menos que se lhes atribua
uma frivolidade dè que suas obras não dão testemunho,
deve ser rejeitada. Para esses escritores, o passado hu
mano não é concebido como objeto de um saber exato
e controlado, e permanece o pretexto para desenvolvi
mentos em relação aos quais basta que se justifiquem
filosoficamente (ou “teologicamente”) .
Para o pensamento cristão em geral — pensamen
to que encontramos na origem de toda filosofia da his
tória — o vir-a-ser humano, embora concebido como
devenir, como lugar efetivo de originalidades e domí
nio da formação, não constitui no entanto objeto de
uma ciência. O que revela, de acordo com uma ordem
que lhe é própria, é, finalmente, a organização de uma
Providência: a esse respeito, o pensamento agostinia-
no, com sua profundidade e suas ressonâncias, apresen
ta-se como um modelo. Para esse pensamento e para a
teologia cristã em seu conjunto, o esquema do destino
histórico do homem é proporcionado, de um lado, pelo
Antigo Testamento que narra o nascimento do Tempo,
a origem da infelicidade humana e as etapas sucessi
vas percorridas pelo Povo que recebeu o privilégio e a
desgraça de reunir em sua história a sorte do homem
e, de outro lado, pelo Novo Testamento que oferece, no
surpreendente destino do Cristo e na fundação da Igre
ja, o meio para cada um de dominar o devenir, de orde
ná-lo na medida de sua vida de modo favorável e de
ajudar, na escala da humanidade toda, a realização do
propósito previsto e pretendido por Deus. Finalmente,
a inteligibilidade da história profana não está em si
mesma, mas fora dela, na Revelação. O tempo histórico,
assim concebido, possui, em relação às perspectivas
dos historiadores da Antigüidade, o privilégio de conter
221
originalidade e ser o lugar no qual o indivíduo, senhor
de seus atos, constrói seu destino e participa de uma
tarefa; continua, no entanto, sendo a manifestação do
Querer que o criou e que o suprimirá quando for che
gada a hora. Não se mostra como dimensão natural do
homem; é aquilo em que Deus quis que a alma se ex
perimente e se tempere, Deus que, também, decidiu
que o devenir seja ao mesmo tempo o domínio do Pe
cado e do abandono e o da Redenção e da recuperação.
Em semelhante perspectiva, não se trata de ocupar-
se com o pormenor da história profana: contam ape
nas os acontecimentos que manifestam a Providência
divina; trata-se de confirmar um sentido do tempo a
respeito do qual nenhuma dúvida é possível, sentido
que o mistério dos caminhos de Deus pode provisoria
mente obscurecer aos olhos de um espírito ignorante. O
devenir real — na significação moderna da palavra
real — é finalmente um pretexto (sem que se deva
atribuir a esse termo um sentido pejorativo) à demons
tração que se sabe dever apresentar. A evolução dos co
nhecimentos, a novidade dos objetivos políticos pòdem
levar os pensadores de inspiração cristã a grandes com
plicações: Bossuet não pôde tratar com tanta facilidade
quanto Santo Agostinho a história romana. Vico desco
briu na “filologia” provas suplementares que o obriga
vam a complicar o conjunto do sistema, e a diversidade
dos elementos conservados colocava a paixão herderiana'
diante de tuna tarefa da qual só se desincumbe graças a
sucessivos golpes de força, confusos e emocionantes.
Mas, em todos os casos, a prova da verdade histórica é
secundária: basta, para falar como Tucídides, “que seja
provável que tenha sido assim” .
A esse respeito, o pensamento hegeliano — na me
dida em que tem como ponto de partida, não só a dou
trina cristã, mas também a reflexão sobre a Cidade gre
ga e os acontecimentos decisivos que foram a Revolução
Francesa e o aparecimento do Estado moderno02 — re-
222
presenta um progresso considerável no sentido de uma
concepção mais científica da história humana. Não que
Hegel tenha atribuído importância maior aos documen
tos históricos: mas, na medida em que os conhecia, es-
forçava^se em compreendê-los sem referir-se a qualquer
revelação não histórica que assegurasse sua inteligibili
dade; e, por insuficiente que possa ser o conhecimento
histórico do autor das Lições sobre a filosofia da história,
resta que o princípio graças ao qual o devenir adquire
sua racionalidade é imanente a esse próprio devenir. Se
existe uma teleologia no sistema hegeliano, encontra
fundamento no que Hegel julga ser o movimento próprio
da cultura humana. O Espírito não é historicamente
anterior à sua formação: nela manifesta a necessidade
de seu aparecimento, jamais, porém, a precede nem a
excede. A revelação que se efetua na história constitui
uma revelação da história antes de ser uma revelação
pela história. A temporalidade não é mais concebida co
mo o domínio no qual se desenha uma essência já feita;
a originalidade que faz aparecer não se deixa reduzir a
qualquer modelo, seja qual for: é originalidade real,
inesperada, fruto da vontade humana à procura de uma
satisfação que se esforça em conquistar contra a alteri-
dade. O homem se realiza na história, não na medida
em que simplesmente nela se mostraria, mas porque
nela se constrói e se completa. O fim da história não é
considerado como fim do Tempo, momento em que a
essência humana a-histórica e liberada se manifestaria,
mas como momento em que, no e pelo Tempo, o homem
consegue ser o que jamais deixou de querer ser: um
ser temporal e satisfeito.
Resta que a Filosofia da história, em seu conteúdo
histórico preciso, embora contenha resumos admiráveis,
visões surpreendentes, não pode de modo algum ser qua
lificada de científica, no sentido moderno do termo, pois
223
a exata determinação dos acontecimentos e de seu enca
deamento, o estudo histórico justificado, não interessam
a Hegel. E não porque, como se disse muitas vezes, des
preze semelhante técnica, mas porque essa técnica, em
sua época, ainda não se achava constituída. Constitui-
se, nessa primeira metade do século XIX, por motivos e
razões múltiplas, entre as quais devemos também incluir
os caminhos abertos pelo hegelianismo. Essa negligên
cia em relação aos fatos está ligada, mais profundamen
te, à estrutura de conjunto do sistema: na medida em
qus o homem é considerado em seu ser essencial como
logos, o que se considera importante no vir-a-ser é a
sucessão dialética dos princípios ideais em que a huma
nidade procura reconhecer-se. Assim, quando a Fenome-
nologia do espírito se refere aos acontecimentos da his
tória real ou a atitudes existenciais, é menos para co
nhecê-los em si mesmos do que para neles descobrir a
manifestação da passagem necessária da Consciência ao
Espírito. Assim também, as Lições sobre a filosofia da
história utilizam o dado histórico para por em evidência
o movimento interno que, através do gênio e as ações dos
diversos povos, levou a conhecer e querer o Estado ra
cional cuja realização se esboça no presente do Império
germânico: “que a história universal seja o curso desse
desenvolvimento e o devenir real do Espírito no espetá
culo mutável de suas histórias — essa é a verdadeira
Teodicéia, a justificação de Deus na história. Somente
essa luz pode reconciliar o Espírito com a história uni
versal e a realidade, mostrando que o que aconteceu e
acontece quotidianamente não só não está fora de Deus
mas é ainda essencialmente sua própria obra” 0:1. Essa
fórmula final das Lições define bem o que opõe e o que
une a filosofia cristã da história e a de Hegel. Para a
primeira, o devenir efetivo é a ocasião de fazer apare
cer o princípio a-histórico da história; para a segunda,
é a manifestação de uma ordem histórica, sem dúvida,
63 P. 409.
224
mas que permanece ordem “ideal” . O Espirito se fsz
história; esta, porém, ainda não adquiriu esse estatuto
de realidade “exterior” a reclamar um estudo objetivo.
A passagem ao homem empírico, tornada necessária pelo
“malogro” da filosofia, se faz acompanhar nesse domínio
pela promoção de uma história puramente profana. Se
ria esquemático pensar que Marx e Engels foram os úni
cos autores dessa revolução; já salientamos suficiente
mente a importância do hegelianismo a esse respeito e
julgamos desnecessário insistir novamente em seu cará
ter decisivo. Deveríamos, também, insistir no papel da
tradição da erudição histórica que, depois da escola de
Blondus, desenvolveu-se lentamente e de modo oculto e
só eclodiu no século X IX . Marx, aliás, mostrou muito
bem tudo o que devia à técnica histórica propriamente
dita04. Esta — cujos métodos atualmente progridem
sem cessar e cujos resultados se tornam cada vez mais
importantes — recusa-se a formular questões filosóficas
prévias: como toda ciência, considera o saber que pre
tende elaborar como conhecimento de um objeto em si,
com um modo de existência próprio, implicando um mo
do original de apresentação. Nessa ótica, a história
rerum gestarum nada poderia revelar senão os res gestae
e os princípios — se é que existem — que governam sua
sucessão; além do acontecimento limitado, podem ape
nas projetar-ss outros acontecimentos mais amplos ou
mais importantes. Em outros termos, a ciência históri
ca, por decisão, por assim dizer, considera a atividade
humana como essencialmente profana e histórica; tem,
pois, imediatamente como objeto o homem empírico.
Talvez se explique, assim, porque, na superação da filo
sofia, desempenhou o desenvolvimento da história papel
tão considerável.
Sem dúvida, a constituição de tal disciplina suscita
questões metodológicas de extrema dificuldade; sem dú
225
vida, obriga a enfrentar problemas que a filosofia costu
ma formular. O que exige, no entanto, a ciência histó
rica, é que essas interrogações, por mais justificadas que
sejam, não levem a trair seu estatuto próprio e sua prá
tica efetiva. Nesse sentido, é lícito, atualmente, que re
pila como destituídas de seriedade histórica as filosofias
da história, que a maioria das vezes são filosofias sobre a
história, que emita dúvidas sobre o valor das explica
ções gerais que substituem o estudo do conteúdo por
esquemas de inteligibilidade pressupostos. Não se per
mite explicar um acontecimento a não ser por outro
acontecimento também situado historicamente e susce
tível, por isso mesmo, de explicação histórica. Que tal
programa apresente dificuldades técnicas consideráveis,
não há dúvida; que a prática histórica veja sua tarefa
complicada ainda pelo fato de que o conhecimento que
visa é indireto, que a própria situação histórica do pes
quisador interfira e contribua para falsear as perspecti
vas, isso é evidente. Mas, seria uma leviandade exigir
do historiador, como fazem freqüentemente os filósofos,
que alcance desde logo a determinação integral, enquan
to é perfeitamente admissível, aliás, que as ciências da
natureza apresentem de seu objeto um conhecimento
exato e aproximativo. O que é importante e o que reivin
dica a história moderna em suas próprias produções,
além das preocupações metodológicas legítimas e dos es
crúpulos excessivos suscitados por reflexões filosóficas
por demais preocupadas com a eternidade, é que seu
objeto, o passado humano em sua efetividade, seja con
cebido como um dado existente independentemente da
quele que o estuda, uma reatidade-passada e não pre
texto para moralizar, ocasião de “provar” princípios
preestabelecidos ou construção de um sujeito historizan-
te. Uma coisa é considerar o devenir como o domínio no
qual se forma a humanidade e que me esclarece sobre
meu próprio destino, outra é acreditar que fabrico o
passado humano em função de meus desejos e de minha
situação atual.
226
Esse reconhecimento da realidade do passado como
passado real e inteligível (suficiente e aproximativamen-
te) constitui elemento importante na elaboração do con
ceito do ‘homem-empírico’. Um dos aspectos da “repo
sição nos pés” da dialética hegeliana“5 — que provocou
tantas interpretações formalistas — consiste, ao que pa
rece, em substituir à noção metafísica de uma essência
humana onitemporal, ou à idéia hegeliana de uma evo
lução ideal da consciência fazendo-se Espírito, a pers
pectiva de um devenir ao longo do qual o homem, em
sua atividade sensível, forja sua própria realidade. Assim
como a historicidade confere conteúdo ao conceito da
materialidade, assim também a consideração da mate
rialidade, da dialética do trabalho e da necessidade, per
mite apreender a evolução da humanidade em seu mo
vimento efetivo. O materialismo histórico em seu prin
cípio não diz outra coisa: compreende-se, antes de mais
nada, como oposição e superação do idealismo histórico
de tipo hegeliano que interpreta a história como deve
nir do logos: o agente histórico não é o homem que pensa
e fala, mas aquele que produz e reproduz as condições
de sua existência sensível, que maneja o arado, o chicote
ou a espada, que troca os produtos de sua atividade ou
que vende a força de seu trabalho e, isso, apesar da
opinião que pode ter sobre a sua própria situação, sua
ação ou seu ser. O móvel fundamental da mudança nas
modalidades da existência humana é, pois, o homem em
seu ser diferencial: como pensamento, mas o homem em
seu ser fundamental; como necessidade e como trabalho,
como necessidade social e como trabalho social. A rela
ção decisiva é a da atividade humana sensível com a
“natureza”: entre os dois termos, o devenir vai forjar
uma série de mediações reais ou ideais, mas o fundo da
relação permanece o problema da satisfação empírica e
de sua reflexão pela consciência. Finalmente, quer di
zer, em última análise, a prática humana, tal como a
227
tentamos definir em suas modalidades históricas, é o
acontecimento pelo qual o processo de formação do ho
mem empírico — quer dizer, o próprio homem — tor
na-se inteligível em suas determinações reais00.
A prática humana, porém, é prática social: desde
que atinge certo estágio de desenvolvimento técnico, re
quer a divisão das atividades humanas. Ora, essa divisão
do trabalho, permite a certos homens, os mais fortes, os
mais hábeis, os mais bem situados pelo acaso, utilizar o
trabalho dos outros para obter a satisfação; frustram
aqueles que trabalham — pela violência ou por um di
reito que seu poder lhes permite impor como ordem
“natural” — de uma parte dos produtos de sua ativi
dade; porque conseguiram apoderar-se dos instrumentos
de produção: terras, gado e, de modo geral, utensílios,
compelem os outros a trocar toda sua força de trabalho
por uma satisfação reduzida à estrita manutenção da
vida. Criam-se, assim, duas classes de homens: a dos
proprietários — na medida do progresso técnico as mo
dalidades da posse se complicam e se diversificam — qus
se esforçam, desde que o Estado se constitui como reali
dade refletida, em ocupar os postos de governo, as fun
ções religiosas e que utilizam as forças coercitivas: o
exército e a polícia, para assentar seu domínio, e o dos
trabalhadores que dispõe de um único recurso para as
segurar sua simples sobrevivência, a locação de sua força
de trabalho. De um lado, uma classe que, no ritmo do
acréscimo do poder humano sobre a natureza, multiplica
os objetos de sua satisfação, de outro, uma classe redu
zida a estagnar na triste dialética quotidiana da neces
sidade e do trabalho; de um lado, os “Filhos do Céu”,
que neles podem realizar a humanidade, que podem
pensar; de outro, os “Filhos da Terra”, reduzidos à ani
malidade e privados de um futuro propriamente huma
no. A sociedade escravista grega e Esparta, em parti-
228
cular, cuja história é uma espécie de resumo dessa cisão
de mundo humano em dois grupos absolutamente dis
tintos, constitui o exemplo mais claro dessa situação.
Sem dúvida, entre as diversas camadas de proprietários,
podem surgir conflitos, e ambições pessoais podem per
turbar provisoriamente essa ordem: mas, em caso de
perigo, a solidariedade dos exploradores rapidamente se
recompõe e não tem dificuldade em triunfar.
A sociedade grega, no entanto, — e as sociedades
orientais que a precederam — representam uma espécie
de limite. As circunstâncias históricas e o baixo nível
das forças produtivas impediram que, nessas sociedades,
a classe explorada se erguesse contra os proprietários a
não ser em revoltas de pequeno alcance. De fato, o es
tudo histórico, confirmando a análise do homem como
materialidade ativa, mostra que o desenvolvimento das
técnicas, a acentuação da divisão do trabalho, a inten
sificação das relações entre os homens, ligado ao pro
gresso das trocas comerciais e à multiplicação das guer
ras de conquista, o aumento dos bens embora continue
a beneficiar principalmente os proprietários, repercutem,
de fato, na totalidade da sociedade e das relações so
ciais. Por uma série de causas, cuja natureza deve ser
estudada em cada caso histórico em especial, os explo
rados tomam uma consciência confusa de sua situação
comum; grupam-se espontaneamente em torno de temas
ideológicos que exprimem freqüentemente, de maneira
bem obscura, suas reivindicações reais na luta contra a
opressão, para disputar com os proprietários o poder po
lítico e retomar a posse dos produtos de seu trabalho.
As “jacqueries”, as revoltas camponesas e burguesas, os
“regicídios”, as revoluções, manifestam o fato de que
toda a história é “história da luta de classes” . Mais pro
fundamente, e excluindo esses episódios de violência,
cuja interpretação adequada, repetimos, supõe uma aná
lise rigorosa das circunstâncias em que se produziram, o
movimento do devenir humano em seu conjunto, expli
ca-se pela oposição entre a classe daqueles que detêm a
229
propriedade dos meios de produção e a classe daqueles
que possuem apenas sua força de trabalho.
Para o homem, o meio de libertar-se da alienação
natural é a atividade trabalhadora; ora, a constituição
histórica da sociedade em classes engendra outro tipo de
alienação, histórica, artificial, por assim dizer, que con
dena a maior parte da humanidade à estagnação ani
mal e a impede de aproveitar plenamente a multiplica
ção dos objetos da satisfação resultante do progresso das
técnicas de trabalho, que retarda também esse progresso
e, assim, freia o desenvolvimento e o enriquecimento da
natureza humana: o meio de libertação que então se
apresenta é a luta política contra a classe dominante.
Entendamos bem: assim como o trabalho, a luta de clas
ses é um fato fundamental revelado pelo estudo da his
tória. Não é um instrumento forjado pelo filósofo ou pe
la política com o propósito de suprimir a alienação:
existe como móvel efetivo da história desde d momen
to em que a elevação do nível das forças produtivas per
mite ao homem tomar consciência mais exata da estru
tura da vida social. Esse último ponto mereceria ser es
clarecido e aprofundado: embora não se trate aqui, de
analisar a natureza das “ideologias” e o papel desempe
nhado pelo “pensamento” no desenvolvimento da his
tória humana, é importante, no entanto, notar — para
definir a relação do materialismo com o idealismo histó
rico — que o fato da tomada de consciência é considera
do decisivo pela concepção marxista. Todavia, o momen
to da tomada de consciência e o conteúdo próprio da
consciência são também determinados historicamente pe
las condições de existência: era, sem dúvida, pela “fal
ta de compreensão” das estruturas sociais reais que os
escravos não se revoltavam na Grécia; era também por
deficiência científica que Aristófanes propunha como
remédio para os males da Cidade “o retorno aos bons
tempos”, que Tucídides esperava o advento de um che
fe da envergadura de Péricles, que Platão edificava
uma Calípolis ideal: mas, essa passividade da classe ser
vil, esse “idealismo” do pensamento helénico compre-
230
endem-se pelo nível das forças produtivas da época, pela
base política e econômica da Cidade grega. A decisão
tomada por Tucídides de fazer história, a de Platão de
filosofar — como a de Lutero de travar a luta contra
certas estruturas feudais — só se tornam inteligíveis em
relação com a problemática efetiva que se apresentava
a esses pensadores no quadro de sua sociedade, proble
mática essa determinada pela situação concreta dessa
sociedade.
Entre as condições de existência, cujo conteúdo é
muito complexo, e a decisão ideológica e política, as me
diações são numerosas. Variam no conteúdo e na orga
nização de acordo com as épocas e nenhum esquema das
mediações necessárias pode ser estabelecido de uma vez
por todas67. O que o materialismo histórico afirma, quan
do apresenta a consciência como determinada pelas con
dições de existência, é o fato de que o conteúdo da cons
ciência encontra sua origem e explicação no conteúdo
da situação histórica. Mas, o segundo pode ser determi
nado pelo primeiro de diferentes maneiras: assinalemos,
por exemplo, que uma doutrina como a platônica cons
titui a expressão exata de uma situação, a da Grécia
após a Guerra do Peloponeso e a condenação de Sócra
tes, situação na qual nenhuma solução efetiva para o
problema humano da satisfação e da violência pode ser
concebida e aplicada: a fuga no imaginário é imposta
por um estado econômico e político tal que força algu
ma é capaz de promover a organização conveniente; nes
se sentido, a perspectiva platônica, que tão leviana e
anacronicamente se qualificou de reacionária, é univer-
salista. Opõe-se, nesse sentido, à de Aristófanes que ado
ta o ponto de vista particular dos proprietários rurais
arruinados pela Guerra do Peloponeso e que só vê como
remédio para as desordens da Cidade a exaltação, ain
da mais abstrata, da vida simples e alegre dos ancestrais.
231
Platão só atinge a universalidade refugiando-se na uto
pia; Aristófanes adota uma posição de classe (também
irrealizável aliás) na medida em que sustenta os inte
resses daqueles que são arruinados pela guerra da de
mocracia ateniense contra a oligarquia espartana, fun
dada economicamente no desenvolvimento do artesana
to, da “indústria”, do comércio, da colonização. Teria
sido necessário, para que uma solução satisfatória fos
se dada ao problema da Cidade e, mais geralmente, ao
da violência, que um pensador pudesse conceber a sig
nificação da escravatura; ora, tal concepção, precisa
mente, não poderia nascer numa época em que a clas
se servil não estava constituída como classe, em que o
baixo nível das forças produtivas não permitia compre
ender a função da atividade trabalhadora.
Esses dois simples exemplos talvez bastem para
mostrar a que grau de complexidade é preciso levar a
teoria da determinação a fim de atribuir-lhe alcance ex
plicativo. Poderíamos mostrar como, nos tempos moder
nos, uma situação histórica e econômica permita apre
ender a verdade das relações humanas e o papel deter
minante da luta de classes, mas também como a pres
são da classe dominante, o mundo das “idéias” e dos “va
lores” de que se envolve, contribuem — sem que se trate
sempre da parcialidade dos pensadores — para promo
ver ideologias que deformam a realidade, a interpretam
parcialmente ou obscuramente e assim a falseiam. Deve
ríamos, também, salientar o fato de que os acontecimen
tos reais — políticos, econômicos, descobertas científicas
— interferem para introduzir nessas ideologias parciais
elementos positivos e provocam sua evolução no senti
do de interpretações mais exatas da situação. Resta que,
por mais numerosas que sejam as mediações que devam
interferir, por maior que seja a ductilidade que conve
nha adotar, e a importância que se deva atribuir à to
mada de consciência, à decisão histórica e ideológica,
que o termo último da explicação, visto que constitui o
fundamento da vida humana empírica, é a produção e
a reprodução dos meios de existência e, por isso mesmo,
a luta de classes (ou de camadas sociais, caso em que a
232
classe trabalhadora não participa diretamente do deve-
nir histórico) que a propósito se estabelece.
Assim, o homem, em sua realidade fundamental, re
vela-se como materialidade ativa em luta contra a na
tureza, como ‘ser-histórico’, quer dizer, a um tempo co
mo agente da história e como nela se forjando, que pro
cura a satisfação — termo geral que não indica apenas,
mas em todo caso, antes, a satisfação empírica (cujo
próprio conteúdo evolui historicamente em função do en
riquecimento da “natureza” humana devido ao progres
so da técnica) —, que se acha logo empenhado numa
luta social e que exprime em seus atos históricos, em
suas produções ideológicas, seja direta, seja indireta
mente, os problemas reais implícitos na luta contra a
natureza e na sociedade. É à luz dessa concepção que de
vem ser repensadas as perguntas capitais da filosofia;
retomada em sua formulação e em seu conteúdo e não
afastadas — como julga o positivismo —, não apenas
resolvidas — o que seria abstrato e representaria grave
empobrecimento da revolução operada pelo marxismo
—, nem simplesmente realizadas — como pretendia o
hegelianismo de esquerda.
233
ou alguma zona neutra e prévia, a partir dos quais todo
problema, tornando-se claro, se acharia proposto e re
solvido, nem recorrer a qualquer espécie de intuição.
Já salientamos o fato de que a referência a uma in
tuição moral, interpretada como apreensão do “valor”,
deve ser considerada estranha ao pensamento materia
lista: tal referência faria toda a doutrina resvalar para
a contingência e a exporia a responder somente por
afirmações arbitrárias às afirmações gratuitas daque
les que escolheram recorrer a outra “transcendência”
ou a outro “valor”. A vontade lúcida e resoluta de su
primir a sociedade de classes, sociedade que está na ori
gem da alienação, não poderia justificar-se apenas pelo
fato do sofrimento histórico, da insatisfação empírica,
do não reconhecimento e pelo caráter moralmente es
candaloso desse fato; e também não basta dizer que tem
sua raiz na luta efetivamente travada pelas forças so
ciais empenhadas em suprimir a exploração do homem
pelo homem; na verdade, já é essa luta enquanto sua
expressão lúcida. A propósito, é importante distinguir
várias perspectivas: é sempre lícito perguntar a um pen
sador marxista por que preferiu adotar uma posição ma
terialista e revolucionária; as respostas serão múltiplas
e é concebível que, entre essas respostas, algumas façam
referência à noção de um “valor” humano (a justiça, a
solidariedade, o humanismo); nesse ponto.' porém, a
reflexão só pode apresentar formulações inconsistentes e
vagas. Na ótica da reflexão séria, com efeito, o pensa
mento materialista revolucionário não pode conceber-se
como o resultado de uma opção exterior ao devenir que,
livremente, optaria entre as forças históricas, pela que
convém à sua preferência moral. O marxismo é, como
tal, um elemento objetivo, historicamente situado, da lu
ta real travada pela humanidade contra o fato históri
co da alienação e da insatisfação. Assim como, para o
hegelianismo, o fundamento do sistema se encontra no
devenir do Espírito cujo êxito é o Sabsr absoluto, assim
também, para o materialismo marxista, a legitimação é
constituída pelo combate do homem-empírico que, a par
234
tir de certa época, é capaz de elevar ao conceito o que
procurava confusamente e de determinar claramente a
teoria e a prática capazes de realizar sua vontade.
É evidente que o recurso a um dado “gnosiológico”,
ao qual se atribuiria o valor de uma prova, é também
excluído pela estrutura da teoria marxista. Ocorre fre
qüentemente a pensadores marxistas, absorvidos pela
tarefa pedagógica ou compelidos pela exigência polêmi
ca, simplificar sua perspectiva e apresentá-la como ten
do fundamento no fato perceptivo, que teria assim o
privilégio de mostrar tanto a materialidade do mundo
quanto o estatuto sensível do homem. Já insistimos nes
se ponto: por mais justa que seja, essa interpretação da
percepção não pode de modo algum constituir um argu
mento suficiente para fundamentar o marxismo; ela o
reduz ao nível mesmo das doutrinas metafísicas que se
esforça em combater e superar na medida em que chega
a opor abstratamente a um tipo de intuição — a que o
sujeito tem de si mesmo e de sua própria atividade —
outro tipo de intuição, a intuição sensível. Deve-se con
fessar que, mesmo situando-se nesse terreno, o materia
lismo se coloca em posição difícil e deve logo entregar
as armas às filosofias da subjetividade. Já se demons
trou, com excessiva clareza, de Descartes a Husserl, que
a atividade perceptiva permanece incompreensível se
não for fundamentada num “eu penso” que lhe confira
alcance e significação para que se tenha o direito de
apoiar-se, simplesmente e como se não houvesse proble
ma, sobre a “evidência sensível” em estado bruto. Tam
bém mostramos, no começo deste trabalho, as reservas
que convém fazer a propósito da referência às ciências
positivas; essa referência, plenamente compreensível na
ótica da revolução operada por Marx, não poderia repre
sentar justificação filosoficamente aceitável. A intuição
epistemológica é tão pouco probante quanto a intuição
sensível e a intuição moral: ao mesmo título que estas
últimas, no propósito de uma justificação definitiva, in
clina o conjunto da doutrina no sentido do injustificado
e reduz sub-repticiamente o saber à opinião.
235
Numa perspectiva desenvolvida por Hegel e da qual
ele próprio havia demonstrado a justeza, a única legiti
mação exigível consiste na legitimidade do conteúdo. O
problema do fundamento, como procura de um fato que
fosse anterior e exterior à exposição e à realização da
ciência, deve ser rejeitado como desprovido de sentido.
Quer isso dizer que a verificação da concepção marxista
seja idêntica à que se emprega, de acordo com o posi
tivismo, nas ciências particulares? Essas ciências apre
sentam, como prova da validade de seus enunciados, as
possibilidades de previsão e de ação correta que propor
cionam: não há, para eles, problema do fundamento
porque consideram essa questão fora do âmbito de sua
competência. Seria tentador interpretar o marxismo na
mesma ótica: o que o justificaria, no nível da teoria, se
ria o fato de que assegura a inteligibilidade do devenir
humano e, no nível decisivo da prática, o seu êxito efe
tivo. Assim, é comum apresentar-se como 'prova da jus
teza das idéias de Marx o desenvolvimento histórico após
a publicação do Manifesto comunista, salientando acon
tecimentos como as lutas operárias, a Revolução de Ou
tubro, a construção do socialismo na União Soviética e
os progressos do regime da propriedade coletiva dos meios
de produção no mundo. A concepção marxista constitui
ria uma hipótese de trabalho que os fatos confirmam e
da qual se poderia dizer agora, mais ainda do que no
tempo de Marx, que é verdadeira, dessa verdade que o
positivismo atribui às ciências experimentais.
Há certa ambigüidade nessa maneira de apresen
tar o “fundamento” do materialismo. Afirmar que a le
gitimação é dada no próprio conteúdo, é dizer que a
justificação última se encontra nos fatos que o conteú
do reflete; e é verdade que os acontecimentos evocados
confirmam a justeza da análise marxista. O problema,
no entanto, permanece: como se explica que o marxis
mo tenha conseguido tornar sua época inteligível, que
tenha descoberto conceitos capazes de assegurar a cla
reza da história, que tenha proporcionado às forças so
ciais revolucionárias perspectivas e palavras de ordem
236
que tenham permitido alcançar vitórias? A solução de
tal problema é importante: constitui a resposta às
imputações que se fazem freqüentemente ao marxismo
de ser apenas a expressão de certa vontade de poder, a
de determinado grupo histórico, que, tendo encontrado
hábil e maquiavelicamente fórmulas “explosivas”, obte
ve êxito dos quais se prevalece para apresentar-se como
verdade absoluta. Em outros termos, é capital desfazer
o equívoco implícito na noção de confirmação ou de jus
tificação da teoria pela prática: é claro que tal noção
pode ser facilmente interpretada numa ótica pragmáti
ca ou cínica e tornar-se, então, a oportunidade de um
edulcoramento do marxismo e de uma possibilidade cons
tante para seus adversários de refutá-lo vitoriosamente.
Tudo se esclarece a partir do momento em que se com
preende o marxismo, a um só tempo, como conhecimen
to da sociedade moderna altamente industrializada e
como produto objetivo do desenvolvimento dessa socie
dade. De fato, é na existência desse regime capitalista
que ela combate com tanto vigor que a concepção ma
terialista encontra sua justificação histórica. A socieda
de industrial moderna possui estruturas tais que mani
festa, no nível da existência quotidiana, o homem em
sua realidade efetiva. O enorme desenvolvimento das
forças produtivas, a partir do século XIX, especialmente,
o crescimento concomitante do domínio do homem so
bre a natureza, a socialização do trabalho, a constitui
ção de um mercado mundial, a transformação contínua
que o capitalismo, para sobreviver, deve introduzir nas
relações de produção, todos esses fatores fazem apare
cer objetivamente, no seio da atividade sensível, os ele
mentos que desempenham e, de certo modo, revelam a
humanidade a si mesma. A sociedade industrial, desde
o momento em que atinge suficiente estágio de desen
volvimento suficiente, suscita condições novas que evi
denciam, por si mesmas, o estatuto humano concreto:
suscita, pelo mundo que cria, a possibilidade de conhe
cer a verdade e de determinar conceitos gerais válidos
para o conjunto da história.
237
É possível que alguém se surpreenda com semelhan
te privilégio. As formações econômicas e sociais anterio
res não eram assim geradoras de lucidez: a sociedade
antiga e a sociedade medieval, que repousam sobre tipos
determinados de relações do homem com a natureza e
com a sociedade, são acompanhadas, ao contrário, de
ideologias que mascaram os traços fundamentais da rea
lidade humana, seja porque representem um ponto de
vista particular, seja porque constituem uma fuga para
o universo abstrato. Se a grande indústria possui a pos
sibilidade de sua compreensão objetiva (e, veremos, de
sua plena realização) é, na realidade, porque é um re-
svltado. Seu desenvolvimento, em determinadà época,
está ligado a causas históricas rigorosas, que a análise
descobre a propósito da cada nação moderna: mas, se
considerarmos o conjunto do movimento, é fácil perce
ber que a sociedade industrial representa o desfecho e o
êxito de séculos de esforços confusos e de lutas encar
niçadas visando assegurar o domínio da natureza pelo
homem, de desprender o indivíduo da submissão às ne
cessidades empíricas pela sua satisfação, fazer do mun
do, não o lugar ameaçador no seio do qual o homem está
simplesmente presente, mas o domínio da habitação
onde ele se torna construtor e conquistador. Esse com
bate pela satisfação empírica manifesta-se, em todas as
épocas e em todos os níveis, pela procura corajosa dos
descobridores, dos técnicos, dos construtores que ten
tam tornar mais poderosa a atividade humana e mais
amplo o setor que ela domina. A fraqueza relativa dos
resultados obtidos e sua dispersão não permitem que se
perceba toda sua importância. Todavia, esse movimen
to amplo e confuso que acumulou os progressos técni
cos, que suscitou o aparecimento de uma classe intei
ramente voltada para a fabricação e utilização dos bens
sensíveis, encontra bruscamente sua realização: essas
aquisições penetram o conjunto da sociedade, materiali
zam-se, de certo modo, na sociedade industrial. É sem
pre lícito deplorar que semelhante mudança tenha ocor
rido e lamentar que o homem não se tenha contentado
238
com a vida simples e natural, com a “presença”: deve
mos crer que essa presença não o satisfazia pois quis
outra coisa e escolheu, para atingir a satisfação, não o
elemento da natureza, mas a vida histórica.
Assim, o mundo moderno, enquanto é o mundo no
qual o poder do homem sobre a natureza assume am
plitude suficiente, reúne as condições do êxito desse es
forço tendente à satisfação universal que a filosofia, com
as possibilidades de que dispunha, tentava definir e pro
porcionar. O homem liberto da servidão da necessidade
e que, no entanto, nada suprime de sua riqueza natu
ral e que é capaz de abolir efetivamente a alteridade
transformando a coisa em objeto humanizado, não é o
homem religioso que só alcança a plenitude no momen
to em que deixa precisamente de ser homem; não é tam
pouco o filósofo que pensa a satisfação mas não conse
gue vivê-la e deve constantemente escolher entre o com
promisso e a morte. O domínio das forças naturais e o
aumento considerável dos meios técnicos postos à sua
disposição, devem tornar possível a realização desse
homem. E na medida em que lhe é possível, satisfazen
do-o, distanciar-se de seu ser sensível, descobre seu ca
ráter fundamental; na medida igualmente em que se
torna agente de sua história, percebe seu estatuto his
tórico. A sociedade industrial possui portanto um pri
vilégio: o de trazer os meios de tornar efetivo o que o
homem jamais deixou de querer no sofrimento histó
rico: a constituição de um mundo humano08.
239
E esse privilégio repercute na concepção que o re
flete corretamente. A obra essencial de Marx é O Capital;
uma obra importante de Lênin é O Imperialismo, está
gio supremo do Capitalismo. O conteúdo desses dois li
vros é a analise de uma situação de fato, característica
da sociedade industrial em dois estágios determinados
de sua evolução. Ambas se esforçam em descrever exa
tamente o estatuto da humanidade revelando suas es
truturas profundas: cumprem, de certo modo, o progra
ma que se propunha Hegel ao afirmar que a única ta
refa deixada ao pensamento era descrever o que é —
tarefa que não pôde levar a bom termo porque se dete
ve no biombo da vida política e não determinou suas
raízes empíricas. Essa descrição exata, no entanto, per
mite forjar conceitos que — como fio diretor do estudo
e somente assim — constituem princípios de alcance
■universal e podem ser aplicados a outras sociedades além
da sociedade industrial em sua fase capitalista. A análi
se do regime capitalista enquanto representa — em cer
ta medida — o êxito da sociedade industrial e enquanto
também faz surgir em toda clareza as crises profundas
que podem atingi-lo, proporciona os elementos capazes
de assegurar a inteligibilidade do pâssado humano. A
utilização desses elementos exige as maiores precauções:
é evidente que jamais podem autorizar a desconhecer os
próprios fatos ou a desqualificá-los como desprovidos de
importância. São numerosíssimos os exemplos de pensa
dores que, inspirando-se nos textos dos fundadores do
marxismo, imaginaram ser suficiente, para dissipar os
enigmas da história, aplicar, por exemplo, o conceito da
luta de classes, substituindo assim à vida concreta da
humanidade esquemas rígidos e sem verdade. Essas con
trafações, no entanto, não permitem rejeitar princípios
gerais de inteligibilidade propostos pelo marxismo —
não como axioma, não como hipótese de trabalho — mas
antes como princípios reguladores da pesquisa, funda
dos no fato de que o mundo moderno, fazendo existir
realmente e trazendo à luz o que até então era e perma
necia simplesmente oculto, suscita também uma con
240
cepção de conjunto que vale para ele e para o devenir
histórico em sua generalidade.
Elevando ao conceito as determinações da sociedade
industrial, “sociedade universal”, o materialismo histó
rico apresenta a possibilidade de uma concepção univer-
salista do passado. A autoridade que assim adquire não
se limita, porém, às considerações técnicas: não funda
somente uma economia política e uma doutrina da his
toricidade humana objetivas; afirma também nelas des
cobrir uma política. Uma contradição que já havíamos
encontrado a propósito do hegelianismo de esquerda pa
rece ressurgir aqui: como é possível conciliar a preocu
pação de dizer unicamente o que é e a vontade de pro
mover um dever-ser? Como é possível pretender manter-
se na objetividade definindo um fim e um ideal? O po
sitivismo imaginou livrar-se dessa dificuldade afirman
do que o conhecimento do presente permite descobrir
aquilo a que tende, revelando o ideal que está contido no
real. Assim apresentado, o argumento é bem pouco con
vincente : com efeito, como provar que não se supõe um
fim arbitrariamente escolhido uma vez que, por defini
ção, nada se pode mostrar que a ela corresponda? Na
verdade, a determinação teórica de um fim é sempre pe
rigosa: é impossível “atravessar o Ródano” no e pelo
conhecimento. O que o estudo de uma sociedade pode
proporcionar nunca vai além do que ela é agora e do que
atualmente quer.
Ora, a análise objetiva da sociedade industrial, em
seu estágio capitalista, proporciona elementos decisivos
para resolver a contradição que parece encerrar o pen
samento marxista. O regime capitalista, em virtude de
sua estrutura econômica, vive em estado de crise cons
tante; a obrigação em que se encontram os proprietá
rios dos meios de produção de triunfar no seio da con
corrência nacional e internacional leva-os a tentar dimi
nuir continuamente os preços de custo, a aumentar as
margens de lucro a fim de obterem condições de fazer
os reinvestimentos necessários à sua luta, ao aumento
da produtividade que exige dos operários trabalhos mais
241
intensivos, a revolucionar constantemente as forças pro
dutivas, a conquistar novos mercados pela guerra e pela
colonização. Em suma, o capitalismo é levado, para so
breviver, a transformar continuamente as relações de
produção. E só resolve as crises que seu mecanismo sus
cita recorrendo à violência; sem dúvida, esses dados da
ciência econômica sobre os quais nos permitimos não
insistir, já descobertos pelos mais audaciosos liberais,
apresentam-se atualmente com aspecto diverso. Uma
organização científica do regime permitiu resolver al
gumas dessas contradições internas e atenuar os efeitos
de algumas outras: a noção de crise econômica, em par
ticular, deve ser estudada de um novo ponto de vista em
função do planejamento na cúpula, instituído pelos pro
prietários dos principais meios de produção; a conquis
ta dos recursos e dos mercados dos países subdesenvolvi
dos não é mais acompanhada necessariamente pela vio
lência militar. Deveríamos insistir também nas trans
formações trazidas não apenas pela intervenção do ca
pitalismo bancário, o papel cada vez mais importante
desempenhado não só pela intervenção do Estado nos
países capitalistas, mas ainda pela utilização de novas
fontes de energia, o aperfeiçoamento de processos de
produção; deveríamos insistir, outrossim, no fato de que
o desenvolvimento das lutas operárias provocou impor
tantes modificações nas leis que, no tempo de Marx, go
vernavam o mercado de trabalho. Mais profundamente,
é claro, ao que parece, que os progressos consideráveis
realizados pelas forças, produtivas, a partir do começo
deste século, tiveram efeitos assinaláveis no âmbito do
próprio capitalismo, na organização de conjunto do re
gime.
Resta que, sejam quais forem as acomodações que
tenham sido feitas e que são concebíveis, sejam quais
forem as modificações introduzidas na gestão capitalis
ta, uma violência permanece, uma violência essencial. O
capitalismo, precisamente porque se faz acompanhar de
enorme crescimento das forças produtivas, porque so
cializa o trabalho, porque mundializa as trocas, aumen-
242
ta ainda mais a opressão que a propriedade dos meios
de produção faz pesar sobre os trabalhadores. As relações
de produção revelam-se em sua verdade e a exploração
é decuplicada, estendendo-se doravante ao conjunto da
sociedade humana. Pela sua situação na produção os
próprios produtores são parcialmente excluídos da frui
ção dos bens de produção. As vitórias que sua coragem
lhes permite conquistar são capazes de limitar a explo
ração; esta, porém, só poderá desaparecer com a su
pressão completa e efetiva da sociedade de classes. A ma
nutenção do capitalismo não se traduz necessariamen
te por uma intensificação absoluta e linear da condição
operária (perspectiva que corresponde ao esquema in
gênuo e mecanicista segundo o qual a condição humana
melhora constantemente, linearmente e sem problemas
em regime socialista); mas implica que os que fabricam
objetos, os que trabalham e estão na origem do desen
volvimento técnico, são necessariamente frustrados da
satisfação que lhes poderia ser proporcionada. A socie
dade industrial, que permanece sociedade de classes —
enquanto sociedade industrial — reúne as condições
reais da satisfação empírica universal e, no entanto,
impede sua realização enquanto sociedade de classes.
Nesse estágio, a humanização da natureza não conduz
a essa humanização dos homens empíricos que seria no
entanto possível: e a causa profunda é a permanência
da propriedade dos meios de produção que desempe
nhou importante papel histórico na construção da so
ciedade industrial, mas que, atualmente, freia seu de
senvolvimento e impede a humanidade de beneficiar-se
efetivamente de seu trabalho09.
O capitalismo é o tipo da sociedade de classes, em
que mais claramente se manifesta a violência constan-
243
te exercida por aqueles cuja situação econômica põe na
posse dos instrumentos de produção contra os que não
possuem senão sua força de trabalho. Esse fato se apre
senta ao economista que está, de certo modo, alertado
pelo historiador (se é que essa separação conserva al
gum sentido para o pensamento marxista). A análise
dos acontecimentos qus balizam a construção do capi
talismo industrial, o surto do imperialismo, mostram
que a opressão imposta aos trabalhadores suscita uma
força social antagônica, a dos oprimidos, cada vez mais
conscientes das raízes econômicas da exploração. A épo
ca da constituição do que Marx chama “a grande usi
na” é também a época em qus a resistência operária se
desenvolve em larga escala; essa resistência apenas cres
ce e se organiza constantemente. Assim também, e para
tomar apenas esse exemplo, a colonização provoca o des
pertar dos povos explorados e engendra, por processos
complexos e diversos, de acordo com os países, o adven
to de consciências nacionais. A história do desenvolvi
mento capitalista é também a história das lutas operá
rias; pois o movimento de resistência à exploração assu
me rapidamente conteúdo determinado; na medida em
que o regime capitalista penetrou a sociedade toda, em
que o Estado está nas mãos da classe economicamente
dominante, a luta dos trabalhadores visa suprimir a es
trutura economico-social capitalista inteiramente, a que
brar o aparelho de Estado burguês; o objetivo é, pela
supressão do capitalismo, fazer desaparecer a sociedade
de classes, suprimir a propriedade privada dos meios de
produção; de recolocar a posse e a gestão dos meios de
produção nas mãos dos produtores e restituir à socieda
de industrial a possibilidade indefinida de satisfação que
oferece à humanidade.
Tal objetivo não se manifesta em estado de tendên-
.244
cia ou de ideal no conhecimento da sociedade capitalis
ta por parte do economista; não constitui somente uma
extrapolação do historiador que prolonga, por variação
imaginária, um movimento apenas esboçado. Existe co
mo objetivo, atualmente presente, na consciência deci
dida dos trabalhadores em luta. É a existência de sua
vontade que representa, em suma, a prova da validade
prática do marxismo. Trata-se, para este, graças à ciên
cia econômica e aos conhecimentos históricos que o de-
venir real e a evolução simultânea da cultura permiti
ram elaborar, de tornar lúcida essa vontade a fim de au
mentar sua eficácia, facilitar sua vitória nos menores
prazos e com a menor violência possível. A política mar
xista não está fundamentada nem numa axiologia, nem
numa filosofia messiânica da história: apóia-se num
fato observável, a luta da classe operária e, de modo mais
geral, dos explorados contra os regimens econômicos que,
por sua essência, mantém o fato da não-satisfação uni
versal. O fim visado por essa política não é de ordem
ideal; a supressão da sociedade de classes foi efetivamen
te desejada por organizações operárias antes mesmo que
se pudesse supor uma penetração suficientemente im
portante dos princípios econômicos de Marx nas mas
sas; essa reivindicação, no entanto, adquire novo peso,
encontra perspectivas de ação mais justas e mais efica
zes na medida em que a análise econômica e a história
lhe fornecem elementos de informação mais exatos e
mais sólidos. “O marxismo é a fusão do socialismo cien
tífico e do movimento operário”70. A fórmula é de grande
importância. Mostra claramente-que a perspectiva mar
xista não se compreende nem como Teoria que, de fora
e porque se apresentaria como justa, imporia algum fim
ao devenir, nem como simples “reflexo” da consciência
oprimida. A economia política histórica marxista trans
forma-se imediatamente em política, quer dizer, em teo
ria da prática da luta operária; ao mesmo tempo, em
245
prática ligada à análise teórica do combate proletário;
quanto a essa unidade, realiza-se no seio do partido ou
dos partidos revolucionários.
Poderão objetar, sem dúvida, que o fato, para o pen
sador, de aliar-se aos que, procurando o fim da explora
ção, lutam pela satisfação empírica universal, implica
uma opção moral. Já esboçamos a resposta a essa obje
ção: insistamos que não compete à reflexão descobrir
porque tal indivíduo prefere esta atitude àquela: não é
da sua competência e não é seu propósito fazer psicolo
gia ou moralizar. A escolha é problema de cada um e é
tarefa da propaganda, e não da reflexão sobre o que é,
inclinar em favor disto e não daquilo. O único problema
que, nesse domínio, pode reter a atenção, é o seguinte:
por que procura o homem a satisfação empírica univer
sal? A solução encontra-se no próprio enunciado da
questão. A prova de que o homem quer a satisfação empí
rica, é toda sua história real, a história de sua luta con
tra a morte, a fome, a doença. É possível, sem dúvida,
devemos também repetir, considerar essa história uma
perda e deplorar que o homem tenha preferido a satis
fação à “presença”, fosse ela “insatisfeita”; o fato do
devenir real e de seu progresso não é nem suprimido
nem desqualificado porque nós o designamos como “his
tória superficial” ou decadência. Se o homem quer que
essa satisfação seja universal, é porque verificou que a
existência de um indivíduo, ou de um grupo, cuja insa
tisfação é devida à ordem social, é geradora de violên
cias e de desgraça para toda essa sociedade. Tais fatos
só recentemente se tornaram claros — se excetuarmos
as numerosas intuições filosóficas que anunciavam sua
compreensão — : nem por isso deixam de ser fatos a res
peito dos quais é difícil duvidar.
Objetarão, também, que acabamos de desenhar um
círculo vicioso: não utilizamos referências a fatos para
legitimar, a seu modo, o marxismo; a sociedade indus
trial, o capitalismo, a luta operária, qualificados de his
tóricos ao mesmo tempo em que os analisávamos e os
definíamos em função da perspectiva cuja validade de-
246
veríamos provar? Como acontece em microfísica, como
é freqüente no exercício da ciência histórica, não há
uma ação do observador (e de sua situação) sobre o sis
tema observado que, assim sendo, corre o risco de trazer
uma confirmação ilusória? Os economistas que adotaram
o ponto de vista dos proprietários dos meios de produção
não apresentaram também uma análise do regime que o
propunha, como único meio de atingir a satisfação uni
versal empírica? O problema não pode ser evitado; uma
resposta completa implicaria a plena elucidação da di
fícil noção de objetividade, que será considerada no ca
pítulo seguinte. Desde já, no entanto, é possível indicar
os elementos de uma solução. Deve-se reconhecer, em
primeiro lugar, a existência de um círculo vicioso: é
verdade que o marxismo justifica sua concepção de con
junto, tanto teórica quanto prática, pela referência a
acontecimentos analisados graças a essa própria con
cepção. Esse método que utiliza, não lhe parece, no en
tanto, constituir uma dificuldade de direito que o inva
lidasse; envolve apenas, para ele, dificuldades de fato,
cu, mais precisamente, dificuldades referentes ao con
teúdo científico de sua análise. Em outros termos, o pro
blema, a esse respeito, é unicamente o do rigor cientí
fico da descrição que apresenta da situação capitalis
ta, da justeza das perspectivas que define no combate
pela edificação de uma sociedade sem classes. É claro que
se mostrarem que os acontecimentos da história econô
mica do século X IX não correspondem de modo algum
à analise marxista, que o conceito de imperialismo, no
começo do século XX, não corresponde de modo algum
à realidade do imperialismo (ou remete a uma realida
de imaginária), o sistema em sua generalidade estaria
caduco. Voltamos, pois, à formulação inicial desta seção:
é o conteúdo que prova e o aprofundamento do conteú
do implica freqüentemente “círculos”, que a metodolo
gia formalista apontará como dirimentes. O problema
reduz-se, assim, à seguinte banalidade que, nem por is
so, deixa de ser importante: o estudo histórico e econô
mico ao qual se consagraram os fundadores do marxis-
247
mo torna inteligíveis os acontecimentos tais quais uma
história, uma história “dos acontecimentos”, pode esta
belecê-los? Parece difícil, se observarmos os resultados
da ciência histórica atual, responder negativamente a
essa interrogação, sejam quais forem os complementos,
os aprofundamentos, os matizes trazidos pela pesquisa
contemporânea. Se este estudo é correto em sua genera
lidade, então os princípios que acabamos de definir as
sumem seu devido alcance.
A verdade da concepção de conjunto do marxismo
está “fundamentada” na verdade das análises principais
realizadas por Marx e Engels. Isso não significa, de mo
do algum, que todo estudo ulterior deva repetir, “adap
tando-os”, os resultados obtidos pelo O Capital. O úni
co critério continua a ser o respeito pelo acontecimento.
Nesse sentido, o materialismo, em seu conteúdo jamais
é definitivamente “fundamentado”. Que Marx tenha fi
xado corretamente os traços da sociedade capitalista e
caracterizado, ao mesmo tempo, com exatidão, em sua
generalidade, os traços de toda sociedade de classes, isso
não quer dizer que os conceitos que elaborou sejam au
tomaticamente aplicáveis a todo estágio ulterior da luta
de classes e que o devenir dos regimes de exploração se
ja a repetição da situação histórica em que se encontra
va Marx por ocasião de sua morte. A evolução faz nas
cer conjunturas originais; na medida em que o capita
lismo que Marx tinha diante de si salientava os traços
marcantes do regime, é justo referir-se como a um guia
às categorias estabelecidas; esse guia, porém, não pode
ria ser considerado uma luz que, doravante, trouxesse a
inteligibilidade. O marxismo converte-se em dogmatis
mo precisamente a partir do momento em que substi
tui ao estudo objetivo dos acontecimentos a vontade de
neles encontrar a confirmação dos princípios nos quais
“acredita”. Já observamos: nenhuma prescrição meto
dológica pode ser válida a esse respeito. A prova é dada,
e só pode ser dada, por uma pesquisa científica aprofun
dada, à qual as análises principais do marxismo pro
248
porcionam, por motivos compreensíveis, uma perspecti
va correta, mas nunca soluções prontas.
O risco que corre assim toda empresa marxista — e
esse risco se aplica tanto à determinação da linha polí
tica em circunstâncias dadas quanto à pesquisa teórica
— nada tem em comum com qualquer espécie de desa
fio. A idéia de que a escolha do marxismo, como método
científico e como perspectiva moral, constitui, em úl
tima análise, uma opção arbitrária em favor da racio
nalidade e da felicidade, foi desenvolvida recentemente
com muito brilho71. Não parece corresponder nem à óti
ca de conjunto do materialismo nem à técnica política
definidas pelos chefes revolucionários marxistas. É ver
dade que toda ação, toda obra implica uma aposta, su
põe um êxito que não está dado, visa um objetivo qu3
lógica alguma poderá dizer se será ou não alcançado. A
idéia, aliás, de uma previsão a longo prazo é estranha
à análise marxista concreta. Mas, trata-se precisamen
te, para o pensador ou o político, de reduzir tanto quan
to possível essa zona de indeterminação por meio de um
conhecimento exato e completo do que é dado, conheci
mento que se tornou possível pelo elevado estágio de de
senvolvimento alcançado pela prática da sociedade in
249
dustrial. Sem dúvida, a ação singular que for empreen
dida, nesta ou naquela conjuntura histórica, pode ma
lograr, porque a informação a respeito do poder das for
ças sociais foi insuficiente, porque a análise não foi le
vada até onde era necessário. Engels confessa erro se
melhante em seu Prefácio aos artigos de Marx dedica
dos à luta de classes na França entre 1848 e 187072. Sem
dúvida, e ainda aí Marx assinala claramente essa even
tualidade: a realização da sociedade plenamente satis
feita empiricamente poderá ser constantemente adiada
e a oposição subsistir, em diversas formas, na comuni
dade humana? Mas, não se trata de modo algum de
apostar, no sentido em que Pascal convida a apostar na
vida eterna. Trata-se, apenas, de conhecer e de agir em
uma situação de fato a fim de realizar aquilo que o ho
mem jamais deixou de desejar, o que quer com mais
violência ainda desde que o acréscimo das forças produ
tivas consolidou seu poder e desenvolveu a consciência
de seu ser-fundamental.
O “fundamento” do marxismo, de sua concepção
do homem e da ação, é pois a existência de uma forma
ção econômica produzida pelo devenir real: a sociedade
industrial em seu estágio capitalista. Esta revela o ho
mem em sua verdade e desvenda o fim da atividade hu
mana. Sem dúvida, a história permanece o lugar obs
curo onde se defrontam a coragem e a paixão indivi
duais, onde o gênio luta com a fraqueza e o interesse
com a generosidade; mas, além desse caos, desenha-se
a procura audaciosa e constante na qual o homem se
empenha, a de um mundo em que a satisfação empíri
ca se torne possível, em que a humanidade possa, do
minando a natureza e a sua natureza, libertar-se da
alienação e abrir as perspectivas grandiosas de uma his
tória da liberdade. Essa preocupação da plenitude e da
250
liberdade — essa paixão que o homem tem por si mes
mo — já opera no trabalho que muda a coisa em objeto,
no esforço para descobrir as técnicas que façam desa
parecer a ignorância e a impotência humana; manifes-
ta-se, mediatamente, nas tentativas feitas para instau
rar um pacto entre os indivíduos e as comunidades,
pacto que expulse a violência política e militar e im
plante uma ordem em que cada um seja reconhecido por
todos; esse propósito encontra sua mais alta expressão
na especulação filosófica que tenta, pela Teoria, abolir
a alteridade e substituir as incoerências da aparência
pela ordem do pensamento. O marxismo é, antes de mais
nada, o conhecimento lúcido do “sentido” da história
humana; compreendè-se como o elemento objetivo gra
ças ao qual esse sentido se torna claro a si mesmo e des
cobre as condições reais de sua efetuação.
Participa, ao mesmo tempo, da luta contra os en
traves à realização de uma sociedade universal empiri
camente satisfeita; não escolhe estar ao lado das forças
sociais revolucionárias: já está aí, como expressão, atu
almente a mais alta e mais completa, da preocupação
do homem e de sua luta para sair da pré-história, para
conquistar a verdadeira .liberdade e abrir o mundo aos
recursos indefinidos do indivíduo liberado da servidão
natural e da alienação social.
251
V
O Caminho da Superação:
As Tarefas do Pensamento
Teórico Atual
252
verificar a irredutibilidade das posições e o fato de que
cada uma encontra na outra, ao mesmo tempo, seu li
mite, sua refutação e sua verdade. O antimaterialismo
— especialmente na forma de filosofia da subjetividade
— não terá dificuldade em mostrar o caráter arbitrário
e superficial da atitude materialista; esta, por sua vez,
ironizará a falsa profundidade de um pensamento que
finge esquecer suas preocupações e suas origens modes
tamente materiais. A discussão, desenvolvida nesse pla
no, contribuirá para tornar extremamente insípidas am
bas as doutrinas e comprometer o desenvolvimento de
um autêntico materialismo. O ponto de oposição entre
o marxismo e a filosofia não se situa no interior da filo
sofia: a teoria marxista não se opõe à de Hegel ou à de
Husserl como se opõe, por exemplo, a perspectiva car
tesiana à de Gassendi ou a filosofia de Hegel à de Fichte.
O marxismo quer trazer, justificando sua pretensão de
modo absolutamente novo, uma concepção original das
tarefas do pensamento e da ação. Pode, sem dúvida, de
senvolver seus temas na ótica e no vocabulário da filo
sofia: mas., assim procedendo, corre constantemente o
risco de perder-se e de fazer desaparecer toda sua radi
cal originalidade ou parte dela; provocará, então, a jus
to título, uma total incompreensão e se entregará, sem
defesa, aos golpes do adversário.
Quererá isso dizer que a oposição da qual procura
mos determinar o significado seja a oposição da antifi-
losofia tradicional à filosofia e que, finalmente, haja a
mesma relação entre Marx e Hegel que entre o Cálicles
e o Sócrates do Gorgias? Devemos confessar que certas
obras de propaganda do marxismo parecem justificar se
melhante interpretação; devemos reconhecer que tais
obras são contrafações. Quando o marxismo protende
superar a filosofia, acusando-a de que chegou a esque
cer o homem tal qual é, empiricamente, em sua vida
quotidiana, não o faz, de modo algum, com o propósito
de substituir à universalidade vazia do sistema os dados
múltiplos e mutáveis das experiências particulares to
madas em sua imediatez. Sua decisão de aufheben a fi
253
losofia implica também a vontade de assumir os proble
mas humanos que o filósofo propôs mas não conseguiu
resolver. Não se trata, de modo algum, substituindo o
homo philoscrphicus pelo existente empírico, de dissol
ver a problemática humana na multiplicidade de casos
singulares, mas de determinar e de realizar a ordem
universal na qual o indivíduo poderá alcançar a satis
fação empírica e a plenitude. Cálicles está aquém da fi
losofia; o marxismo procura estar além.
Não poderia, aliás, esse esforço, entender-se como
simples tentativa de realização científica e prática da
quilo que a filosofia mais completa houvesse estabeleci
do teoricamente. Tentamos mostrar, tomando como
exemplo o hegelianismo de esquerda, do qual Marx es
teve muito próximo durante sua fase de formação, que
a superação da teoria não poderia ser compreendida ape
nas nesse sentido. A exigência de realização, nos pró
prios fatos empíricos, daquilo que o saber filosófico, na
acepção hegeliana, determinou conceitualmente, e, em
conseqüência, a necessidade de estudar cientificamente
a situação cuja estrutura foi elucidada por esse mesmo
saber, encontram-se na origem do marxismo. Todavia,
desde o momento em que a doutrina se desenvolve siste
maticamente, suscita uma dúvida não somente sobre o
conteúdo da teoria, mas também sobre o fato mesmo de
que. o problema proposto — o de uma sociedade univer
sal empiricamente satisfeita — o seja apenas de modo
teórico. Se a teoria não tem imediatamente conseqüên
cias práticas, é porque é insuficiente teoricamente; e
também porque — enquanto saber filosófico — não é
teoria da prática efetiva. A exigência de realização do
saber transforma-se, por si mesma, em crítica desse sa
ber, em contestação da pretensão de qualquer saber, co
mo tal, de propor e resolver o problema da satisfação. O
marxismo é, sem dúvida, uma ciência, no sentido das
ciências positivas, e uma prática: todavia, afirma que
retoma, transformando-as, as questões e os temas até
agora considerados apanágio da filosofia.
Não querendo ser apenas doutrina filosófica entre
254
as demais, nem aplicação dos resultados do saber filo
sófico, e ainda menos expressão de protesto do bom
senso, do apetite ou do sentimento contra o poder exor
bitante do conceito, o pensamento marxista só se define
dialeticamente, como novo modo do pensar superando o
modo de pensar filosófico. Isso equivale a reconhecer que,
entre a filosofia e a teoria marxista, só existe, como zo
na comum, precisamente a da passagem de uma a outra,
constituída pelos diversos momentos da superação. O
presente estudo — com suas dificuldades, obscuridades
terminológicas e as contradições que seria fácil apon
tar — é uma exploração dessa zona onde ainda é lícito
falar de uma e outra atitude num duplo registro. O pon
to de oposição procurado é, pois, um ponto de ruptura:
uma dedução linear que levasse do pensamento primiti
vo ao pensamento científico de Marx, passando pelo pen
samento filosófico é, ao que parece, estranha à ótica
marxista. Forçando um pouco as coisas, e supondo que
o modo de pensar filosófico nada tomou às ciências po
sitivas, poderíamos dizer que há tanta diferença entre
o pensamento mítico e o pensamento filosófico quanto
entre este e a perspectiva marxista. É, sem dúvida, a
mesma problemática humana que se apresenta a umas
e outras: todavia, cada uma a propõe, a compreende e
a resolve do modo que lhe é próprio e que engloba, trans
formando-o profundamente, o modo precedente. Talvez
fosse conveniente notar, a esse propósito que, assim
como o recurso ao mito é, para o pensamento filosófico,
uma regressão e uma confissão de impotência, assim
também o fato de querer tratar como materialista as
questões tradicionais da filosofia — as relações da alma
e do corpo, a existência do mundo exterior e muitas ou
tras — constitui evidente sinal de fraqueza e abandono
de posições conquistadas.
A esterilidade e a confusão dos resultados a que che
gamos no primeiro capítulo, compreendem-se agora
mais facilmente: a rigor, não poderia haver entre a fi
losofia e o marxismo confronto propriamente filosófico
que fosse fecundo. Para o marxismo essa impossibilida
255
de não representa uma derrota, pois espera ter demons
trado, apoiando-se, em seguida a Kant, nos “dilemas da
metafísica” e referindo-se de modo especial à obra he-
geliana — que a legitimação filosófica, finalmente, sem
pre se realiza, e na melhor hipótese, como legitimação
do discurso pelo discurso e no interior do discurso. Ssm
dúvida, não menospreza, de modo algum, a empresa que,
a seus olhos, constitui uma etapa decisiva na conquis
ta da universidade; verifica, no entanto, que seu êxito
representa também um malogro uma vez que não propor
ciona, e não pode proporcionar, aquilo que os filósofos,
desde Sócrates e Platão, dela esperavam. Assim, o mar
xismo, porque isso se tornou historicamente possível para
ele, descobre sua justificação, não mais no fato de que
a teoria elaborada seja irrefutável,' mas na análise da
história real da humanidade. Descobre, ao mesmo tem
po, a razão que impede o modo de pensar filosófico de
aceder a outra coisa que não seja a universalidade do
pensamento; torna inteligível a emocionante grandeza
da decisão filosófica a qual, contra o silêncio, a tradição
ou o cinismo, soube compreender a universalidade do
problema humano e lutar contra a violência e a bestia
lidade, mas desvenda também sua fraqueza essencial.
As mesmas razões que apresenta para explicar as pos
sibilidades que oferece ao conhecimento e à ação, as le
va em conta para explicar a beleza e o malogro da fi
losofia.
A decisão filosófica — por mais diversas que tenham
sido suas obras — desenvolve-se no seio de uma pro
blemática de conjunto que teve na história relativa per
manência. O horizonte no fundo do qual se ergue a von
tade de filosofar — quer dizer, de elaborar um pensa
mento comunicável, um discurso tal que, nele e por ele,
porque esse discurso diz o que é importante, o homem
de boa fé possa encontrar a satisfação e a liberdade —
é o horizonte da violência; mais precisamente, manifes
ta-se como mundo em que o indivíduo permanece sub
metido à sujeição natural, onde os deuses estão distan
tes e a perda do divino cria um vazio em que se debate
256
a humanidade temerosa e frágil; aquém, a comunidade
estável dos primeiros tempos foi destruída e a lembran
ça da tranqüilidade patriarcal subsiste; além, há a es
perança de uma ordem em que o homem escaparia da
animalidade e de seus males; aqui, há a doença, o so
frimento, a paixão, a morte, e, além disso — e essa é a
invenção capital da filosofia e graças à qual descobrirá
o caminho do universal — há o fato de que a infelicida
de humana se apresenta como tendo também sua cau
sa na própria ação do homem, nas desordens da socie
dade, nas brutalidades da história, nas paixões do indi
víduo. O que foi apresentado nos capítulos precedentes
como contradições da áoxa é, de fato, oposição feroz dos
interesses das camadas ou das classes sociais que dispu
tam o bem-estar sensível e o poder. Já insistimos no ca
ráter exemplar da guerra do Peloponeso que, no seio
da mesma civilização, socializa, por assim dizer, a vio
lência e faz aparecer, em sua fria crueldade, a impor
tância do interesse. A procura filosófica de um lugar on
de triunfasse, aos olhos de todos, a universalidade, é a
procura de um mundo repousado onde a violência his
tórica confessasse sua estupidez, a paixão sua mesqui
nharia e, o interesse, sua parcialidade criminosa. A de
cisão de filosofar nasce no mundo do conflito e se desen
volve enquanto a tradição revela sua impotência e o ci
nismo dos violentos prova, por seus repetidos malogros,
sua absurda pretensão.
O exercício da filosofia supõe, com efeito, não só o
conflito (revelando-se conflito resultante da ação huma
na, conflito histórico), mas também o fato de que esse
conflito tem um caráter dramático aberto e que nenhu
ma força real parece capaz de resolvê-lo. Em outros ter
mos, a contradição entre os interesses dos indivíduos e
das comunidades deve ser tal que se manifeste ao mes
mo tempo como devendo ser superada e como impossí
vel de ser superada pelos “meios habituais”: arte de vi
ver, técnica política, bom senso moral, violência histó
rica. .. A esse respeito, parece que as análises do mate
rialismo histórico consideraram freqüentemente, sim
257
plificando-as em excesso, as relações existentes entre a
luta de classes e ou as camadas sociais e sua expressão
nas doutrinas filosóficas. É fácil dizer, ao que parece, que
essas doutrinas, em determinado momento, representam
ou refletem o ponto de vista da classe dominante ou da
classe em ascensão. É impossível, na perspectiva de um
estudo objetivo dos textos, considerar o sistema platô
nico como “reflexo” dos interesses da aristocracia ate
niense ou a obra hegeliana como a tradução fiel dos
propósitos da administração prussiana. De fato, a par
tir do momento em que uma força social se torna sufi
cientemente poderosa para impor realmente seu poder,
a procura filosófica se torna menos rica e menos pro
funda; usurpa freqüentemente o vocabulário e a apre
sentação filosófica, mas desce ao nível da técnica ou da
edificação, é um instrumento. Mas esse é o caso das filo
sofias medíocres — sendo o critério de julgamento o da
tradição filosófica, ao qual não podemos deixar de recor
rer — : limitam-se a um ponto de vista parcial, expri
mem apenas as aspirações deste ou daquele grupo ou as
“manias” de um indivíduo. As filosofias importantes,
que constituem etapas decisivas na história do pensa
mento, têm outro conteúdo e alcançam outro êxito. Ne
las, exprime-se, universalmente, a problemática huma
na, em seu conjunto, em determinada época; apreen
dem, de maneira abstrata, sem dúvida, a essência dos
problemas que apresentam ao homem sua relação com
o objeto, suas relações com os outros homens, seu dese
jo jamais satisfeito de plenitude e de liberdade. A Calí-
polis platônica é, de fato, a estrutura política que con
viria ao cidadão grego: a ética spinozista determina con
venientemente a conduta que permitiria viver na paixão
sem ser passivo; o Estado hegeliano constituiria a solu
ção do problema político se o problema do Estado se li
mitasse ao da Constituição.
A insuficiência filosófica é diferente e mais profun
da: reside no fato de que a universalidade assim cons
tituída só resolve os problemas em pensamento. A solu
ção universal, proposta pelo filósofo, solução que domi
258
na o conflito, o ilumina, o compreende, só conquista sua
universalidade deixando subsistir o conflito real. Opõe
à particularidade do infortúnio, da alienação, da servi
dão, a representação de um apaziguamento universal
mas ideal. Poderíamos mostrar, a propósito, de que mo
do os grandes momentos da evolução do pensamento fi
losófico, tomados em seu conteúdo, resolvem em tese, e
aipenas em tese, os problemas que o processo histórico
de tal modo complicou que deixaram de ser problemas
deste ou daquele grupo para tornarem-se problemas de
toda a humanidade (ou daqueles que nessa época são
considerados parte da humanidade). A filosofia, portan
to, como decisão e como obra, situa-se muito além do
que se costuma chamar de “ideologia”. Poderíamos di
zer, esquematizando, que ela se coloca entre a obra em
que se exprime a particularidade dos interesses e dos
ideais de determinada comunidade e a concepção de
uma teoria e de uma prática que compreende universal
mente a problemática humana e se constitui, ela pró
pria, em solução efetiva e universal dessa problemática.
A filosofia recusa a parcialidade da doxa; só a supera,
no entanto, no nível do pensamento, na esfera límpida e
ideal do logos. Corresponde, de modo mais geral, a uma
fase da história humana em que o homem já está par
cialmente liberto da servidão natural por certo desen
volvimento de seu poder e pela organização política, em
que pode dispor de “lazeres”, para retomar a admirá
vel análise aristotélica1, e desprender-se de seu ‘ser-sen-
sível’ e de sua inserção nas comunidades ditas naturais,
conceber-se em seu ‘ser-diferencial’, como pensamento,
mas em que a fraqueza de seu domínio sobre a nature
za, a própria organização política e a inexistência de uma
força social efetiva que permitisse tornar prática a teo
ria, lhe impedem de apreender o pensamento a não ser
como meio de elaborar uma especulação cuja realização
259
é, ou entregue ao acaso, à boa vontade dos indivíduos,
ou, mais lucidamente, posta entre parênteses.
A esse respeito, o platonismo e o hegelianismo re
presentam momentos de importância capital para a com
preensão da vontade filosófica. Tentamos mostrar como
o sistema platônico é uma espécie de começo absoluto
na evolução da cultura humana e como a história da
Grécia, no século V e no começo do século IV a.C., reuniu
os acontecimentos em um feixe tão compacto que nela
se acha, por assim dizer, resumido e estilizado o que
será durante muitos séculos a situação da humanidade
em face da questão fundamental da alienação, da insa
tisfação e da violência. A utopia platônica, o fim do IX
livro da República, em que Sócrates convida o sábio, à
falta de coisa melhor, a “ocupar-se com seu próprio Es
tado” 2, constituem prefigurações de toda solução filosó
fica ulterior. Assim também, a constituição do Estado
moderno centralizado, cujo fim é tornar concreta a liber
dade de cada um, harmonizando-a com a liberdade de
todos, oferece a Hegel um horizonte que lhe permite le
var a cabo a vontade filosófica. Não se trata mais, para
ele, de fugir para o “Céu das Idéias” ou de preparar
uma ação: importa apenas saber ler o que está implí
cito na realidade, pondo assim em evidência a raciona
lidade do real. O hegelianismo, nesse sentido, é o fim da
filosofia pois suprime o desnível, que se verifica na m^ior
parte das outras doutrinas, entre o que é e o que é
pensado, entre o objeto e o discurso. E, o que torna pos
sível semelhante êxito, é a equiparação de direito opera
da pela vida moderna, em seus múltiplos aspectos, entre
o mundo criado pelo homem e a aspiração fundamental
da humanidade. Esse fim da filosofia, no entanto, é tam
bém exigência de recomeço: na medida em que a igua
lação permanece igualdade abstrata, ideal, requer o de
senvolvimento de uma nova concepção atuando para que
a igualdade se torne fato empírico universal. O Estado
2 592 a.
260
moderno, tal como Hegel o vê, fruto de uma forma so
cial que aumentou em proporções consideráveis o poder
humano e revelou ao homem o que ele é realmente, é o
quadro universal abstrato no interior do qual irá desen
volver-se a sociedade industrial, em sua fase capitalista,
e aparecer a força social capaz de construir a sociedade
da satisfação empírica universal e, assim, de resolver o
problema que estava na origem da decisão filosófica.
É evidente que essa análise da constituição histórica
da filosofia peca por sua extrema generalidade, além de
comportar múltiplos matizes. Admitimos, em particular,,
que a vontade filosófica estava isenta de qualquer con
tribuição de outras disciplinas; é freqüente, principal
mente a partir do Renascimento, que à procura da uni
versalidade no e pelo pensamento se acrescentem consi
derações de ordem científica e técnica que interferem
com o projeto propriamente filosófico. A obra cartesiana
é um exemplo dessa dualidade: a prova da validade que
apresenta encontra-se nas Meditações metafísicas-, mas
também está na última parte do Discurso do método e
nos três opúsculos a ele acrescentados. Essa interferên
cia — seremos levados a voltar a esse ponto — tem muita
importância: manifesta o vínculo que se estabelece con
fusamente, entre o propósito filosófico do universal e a
procura prática da felicidade empírica. Falta também
um elemento a esse breve estudo do estatuto da filoso
fia: não mencionamos o fato de que a decisão filosófica,
uma vez instituída, tornada hábito da cultura, subsiste
como tal, ao passo que a situação real não determina
necessariamente uma problemática que implique sua ma
nutenção e seu desenvolvimento. Há uma tradição da
reflexão filosófica que se prolonga e sobrevive enquanto
estilo do pensamento. Eis por que, nem sempre, é lícito
querer descobrir, a propósito de qualquer doutrina, o ho
rizonte econômico e social que explique seu nascimento:
esse horizonte pode ser de tal ordem que deixe ao pensa
mento a possibilidade de desenvolver abstrata e “livre
mente” seus conceitos sem referir-se a qualquer proble
mática política, seja qual for. E isso, que parece ser a
261
característica do estilo filosófiso, aplica-se também ao
conteúdo das doutrinas: em uma estrutura política de
equilíbrio (de “ordem”, de estagnação ou de desenvolvi
mento provisoriamente harmonioso), a problemática
ideal abstrata prevalece em relação à problemática do
homem empírico, desenvolve sua dialética interna e or
ganiza, na independência, seus conceitos propriamente
especulativos. Essa independência que é, de fato, abstra-
tração, e ameaça levar a um formalismo nefasto, será
reinvindicada pela filosofia como êxito e como plenitu
de: o marxismo pode mostrar, em cada caso específico,
o perigo que implica semelhante êxito. Mas, o que deve
evitar, ao que parece, é procurar, em uma ótica meca-
nicista, e a todo preço, no desenvolvimento especulativo o
reflexo da situação social e postular uma identidade entre
os dois termos; o conteúdo de toda grande doutrina cons
titui um tipo original de solução que, considerando, em
determinado momento, o conjunto da situação huma
na, procura definir, no estilo da filosofia, a concepção
que possa trazer a liberdade ao homem e, na medida
em que precisamente nos achamos diante de uma grande
doutrina, há uma transposição que não permite consi
derar a obra um decalque da situação. Sem dúvida, pode
sempre ocorrer que encontremos nos temas utilizados
analogias com esta ou aquela situação de classe (a des
coberta do Cogito e o aparecimento do indivíduo isola
do da burguesia, por exemplo), mas quem pretenderá
fundamentar o trabalho histórico em analogias tão frí
volas e nelas encontrar o pretexto para evitar a procura
de uma inteligibilidade mais profunda?
Conviria, pois, matizar a análise precedente; todavia,
por mais esquemática que seja, permite compreender
porque a instauração de um diálogo filosófico, de doutri
na, entre a filosofia e o marxismo é, a rigor, impossível.
A filosofia constitui a expressão mais alta e mais lúcida
do mundo antigo, daquilo que Engels chama a “pré-his
tória”, desse período em que a humanidade foi capaz de
conceber mas não de realizar a liberdade: os processos de
que se utiliza, os critérios aos quais se refere, os
262
conceitos que elabora, os problemas que suscita e as so
luções que propõe estão ligados a uma situação em vias
de ser superada; o desenvolvimento da sociedade indus
trial, o fato de que o homem se tenha tornado parcial e
confusamente consciente dos fins reais de sua procura
e de sua luta, e possua doravante os meios de triunfar,
a tornam, de certo ponto de vista, uma sobrevivência.
Mas, seria uma leviandade limitar-se a esse ponto de
vista. O mundo, atualmente, é, com efeito, o da transi
ção. O antigo mundo subsiste; contra ele, o novo se
afirma, mas também se procura; em sua luta, mete-se
em becos sem saída, em caminhos difíceis; defende-se
mal contra as tentações do dogmatismo e do particula-
rismo; proporciona assim à filosofia a oportunidade de
apresentar-se como o refúgio do pensamento universal e
de readquirir vigor e orgulho. Mais profundamente, esse
momento da passagem histórica é o de um engajamento
doloroso que se faz acompanhar de violências mais gra
ves e de inquietações multiplicadas. Essas constituem
outras tantas razões para a filosofia acreditar em sua
perenidade e menosprezar a mudança profunda que se
realizou a partir da segunda metade do século XIX,
e desconhecer a nova estrutura da sociedade e da prática
humana. Em face desses dramas contemporâneos, a ten
tação de uma fuga no pensamento permanece constan
te: nesse sentido, é falso qualificar, como muitas vezes
o ardor polêmico levou os marxistas a fazerem, as dou
trinas não-materialistas de “reacionárias” . Além de o
epíteto ser obscuro, situa mal o problema ideológico atual
e esquece que a permanência da filosófica está ligada
ao próprio fato da dificuldade da passagem do antigo
ao novo.
A radical disparidade de perspectivas torna estéril
um confronto na ótica tradicional. O fato da transição,
no entanto, permite instituir outro tipo de comparação:
o que se pede ao marxismo é que mostre como retoma,
transforma ou elimina as questões habituais da filoso
fia. À análise objetiva das circunstâncias e das ações po
líticas que devem facilitar a instauração da nova socie
263
dade, acrescenta-se um trabalho de elaboração teórica
que visa tornar claro, em cada momento da situação
ideológica, a posição do materialismo. Não se trata, pois,
de modo algum, de opor, às filosofias atuais, outra filo
sofia, mas de manter, por uma atenção concentrada e em
ligação com o devenir histórico, a superação constante
da filosofia pelo marxismo.
264
atenção do filósofo para o fato de que, recusando a pro
blemática estabelecida por Marx, despreza aquilo que é,
para a maioria dos homens de hoje, o mais importante,
afasta-se da prática humana e do que ela visa efetiva
mente e, afinal, do mundo em que vive. Mas, isso é ape
nas um argumento: desde então, importa a esse novo
teórico, ao menos, não convencer — querendo conven
cer, arriscar-se-ia, na melhor hipótese, a apenas persua
dir —, mas expor e reexpor o processo da superação.
Para a crítica antimaterialista contemporânea, o
essencial das objeções incide, como já vimos, no caráter
ilegítimo das formulações fundamentais e das referên
cias adotadas pelo marxismo. Funda-se o materialismo
ora em considerações do senso comum — “o pudim que
se come” —, ora em argumentos psicológicos — a ori
gem da sensação encontra-se na realidade que impres
siona os órgãos dos sentidos, ora em fatos tomados às
ciências positivas — geologia, paleontologia, fisiologia
genética e muitas outras — . Em todos os casos, a con
fiança atribuída aos resultados experimentais é ilimita
da: o teórico materialista não indaga se não é necessá
rio, para explicar a validade das ciências, recorrer a uma
experiência mais profunda, mais autêntica ou mais deci
siva que, validando as ciências, remetesse, por exemplo,
a um fato que pusesse em questão a “crença” materia
lista. Muitas vezes para enfrentar essas objeções, o ma
terialista recorre à dialética: mas, ainda assim, utili
za-se de uma noção que não elucidou e que emprega a
todo propósito e que bem poderia ser um deus ex machina
destinado a introduzir nas situações inextricáveis a so
lução de uma falsa inteligibilidade.
Parece que as respostas a essas críticas às quais nos
limitamos no começo deste estudo, formuladas, em par
ticular, a propósito dos trabalhos materialistas destes
últimos trinta anos, carecem de clareza e reduzem a re
volução operada por Marx a nível muito baixo. Assim,
no presente estudo, em face da confusão a que se havia
chegado, fomos obrigados a fazer uma digressão para
tentar retomar o problema em uma perspectiva mais
265
ampla. Será possível apreciar os resultados obtidos ao
longo do caminho? Talvez; em todo caso, será possível
determinar, em relação a esse ponto preciso, o que não
pode ser a atitude do marxismo? Verifica-se, em primei
ro lugar, que, esforçando-se em constituir-se como con
cepção geral do mundo, calcado no modelo das doutri
nas filosóficas, o marxismo se reduz a ser apenas, no
domínio teórico, único que aqui nos interessa, uma
ontologia dogmática rudimentar e pobre que se apresen
ta, sem defesa, aos argumentos bem elaborados da tra
dição 3. Freqüentemente, movidos por uma preocupação
pedagógica de simplicação, tomamos ao pé da letra a ex
pressão “materialismo dialético” . E, apesar das declara
ções de princípio, contentamo-nos em aceitar, de um
lado, a definição da matéria proposta pelo materialismo
filosófico — considerado de modo elementar — para
tentar, em seguida, “ dialetizar” a concepção acrescen-
tando-lhe alguns caracteres. O materialismo “mecani-
cista” declara que existem somente seres materiais ou
corpóreos, o “marxista” se contentará em acrescentar
que esses seres corpóreos estão em movimento. O' pri
meiro esforça-se em deduzir, de acordo com o princípio
linear da identidade, os fatos da consciência, o segundo
considera esclarecedor afirmar que a dedução, para ser
probante, deve ser interpretada como dialética; e que
aerora, além desses existentes materiais, em razão do
processo necessário de seu desenvolvimento, depois que
foi forjado, naturalmente, o cérebro humano, há outra
realidade cujo substrato continua a ser a matéria, mas
que a supera: a consciência, precisamente.
Tornar-se-ia, assim, possível desenhar um quadro
concordante do pensamento no interior do qual se distri
buiriam automaticamente os traços característicos das
duas posições em confronto e isso, em virtude de uma
determinação: o idealismo colocaria em primeiro lugar
266
o Espírito, o materialismo, a matéria em devenir. E todo
o resto seria literatura. Situa-se, assim, evidentemente,
o pensamento não-materialista no nível dos mais insí
pidos manuais “cousinianos” e, ao mesmo tempo, colo
ca-se o materialismo nesse mesmo nível. E torna insí
pido, até a falsificação, o sentido da transformação ope
rada por Marx. Não se trata de opor aos enunciados de
uma ontologia espiritualista, expressão de uma crença,
os enunciados contraditórios de uma ontologia materia
lista, expressão de outra crença, e de substituir as formu
lações deste tipo: “ Deus (ou a Alma) existe antes da ma
téria (ou mais do que ela)” , estas frases: “A matéria
existe antes do Espírito (e o produz)” , os termos sendo
empregados nos dois casos, no mesmo sentido. É lamen
tável, a esse respeito, que pensadores como Engels e
Lênin tenham sido levados a empregar terminologia tão
simplista, que, invocada em exposições posteriores, apre
senta do marxismo uma visão singularmente vazia e in
conseqüente 4. É claro, por exemplo, que um texto como
este — extraído das obras de Stalin — : “ .. .o materia
lismo filosófico marxista parte do princípio de que a
matéria, o ser, é uma realidade objetiva que existe fora
e independentemente da consciência; que a matéria é
um dado primeiro, pois é a fonte das sensações, das re
presentações, da consciência, ao passo que a consciência
é um dado segundo, derivado, pois é o reflexo da ma
téria, o reflexo do ser; que o pensamento é um produto
da matéria, quando esta atinge em seu desenvolvimento
alto grau de perfeição; mais precisamente, o pensamento
é o produto do cérebro e o cérebro o órgão do pensa
mento; não é possível, conseqüentemente, separar o pen
samento da matéria sob pena de incidir em erro gros
seiro . . . ” 5, constitui uma contrafação e acumula os ab
surdos, as postulações e as ingenuidades; provoca, com
2Ô7
toda razão, a recusa dos filósofos; deve provocar, por
parte do teórico marxista, uma recusa igualmente enér
gica, embora motivada de outra maneira; pois, para
este, o que importa, não é opor ao materialismo o re
torno a qualquer doutrina da consciência empírica ou
transcendental, mas desenvolver até suas últimas con
seqüências o sentido da luta que a humanidade trava à
procura da liberdade efetiva.
Pois é disso que se trata: a “ apresentação ontoló
gica” do marxismo, que pretends fazer dele uma filoso
fia geral, implica o desconhecimento do caráter histó
rico e prático do materialismo contemporâneo; inter
preta de modo superficial as relações entre o que se
convencionou chamar de “ materialismo histórico” e “ ma
terialismo dialético” . Já mostramos que nada autoriza
va a separar os dois termos e que dificilmente se pode
ria aceitar a validade do primeiro sem situar-se, ao mes
mo tempo, na perspectiva do segundo. Mas, é freqüente
compreender-se mal sua relação. Em muitas exposições,
apresenta-se, inicialmente, o materialismo dialético como
generalização ou extenção do materialismo histórico; em
seguida, considera-se o materialismo dialético como o
fundamento filosófico do materialismo histórico; final
mente, economizando uma etapa, faz-se do materialismo
histórico a aplicação de uma concepção geral da reali
dade a um domínio limitado. Na verdade, se considerar
mos a obra de Marx, dificilmente veremos em que mo
mento nasce a idéia do materialismo dialético (diferente
da idéia do materialismo histórico); e não será fácil
classificar nesta ou naquela rubrica textos como Ludwig
Feuerbach, O estado e a revolução ou o Jovem Hegel. A
idéia de uma diferença real de objetos entre os dois ter
mos parece estranha ao densamento marxista: não im
plicaria, essa idéia, que se pudesse falar, de um lado (e
parcialmente) do devenir humano e, de outro, (e geral
mente), do ser em geral? Nessa separação consiste pre
cisamente a ontologia cujos perigos acabamos de salien
tar: considerar que há uma doutrina do ser, implicando
uma “ gnosiologia” , que seria possível especificar poste
268
riormente; haveria assim um materialismo histórico, um
materialismo psicológico e — a idéia de “ciência prole
tária” e de “realismo socialista” realizou essa possibi
lidade — um materialismo físico e um materialismo ar
tístico .
Inserindo-se, assim, nos quadros construídos pelo
pensamento pré-marxista, e sem refletir no fato de que
esses próprios quadros, especialmente quando se trata de
disciplinas referentes à realidade humana, são a expres
são do conteúdo desse pensamento, o marxismo se perde
na insipidez e na esclerose. O materialismo, esforçan
do-se em tornar intelígivel o devenir humano, a partir
da dialética real da necessidade e do trabalho, já impli
ca a determinação do homem como ser-natural, subme
tido a leis e engajado em um universo independente
dele, que age sobre ele e sobre o qual ele age. E o mate
rialismo dialético é impensável se, na noção de dialética,
não estiver imediatamente implícita a de uma história
natural e humana. De tal sorte que, se a expressão ‘ma
terialismo dialético’ tem sentido, quer dizer: tentativa,
constantemente retomada pelo teórico do materialismo,
de esclarecer e aprofundar, em determinada situação
histórica e ideológica, as perspectivas de conjunto do
marxismo e pela pesquisa objetiva, elucidar os pontos
obscuros ou ainda desconhecidos; em suma, tentativa
de definir, a cada momento, o marxismo, em seu aspecto
teórico, como elemento real da luta do homem pela
construção de uma sociedade empiricamente satisfeita.
A partir daí, a resposta que proporemos aos argu
mentos da crítica antimaterialista não trará novidades;
limitar-se-á a retomar os temas já desenvolvidos nos doi"
capítulos anteriores. Não poderá constituir senão uma
análise da passagem, quer dizer, uma apresentação pou
co diferente desse movimento que leva de Hegel a Marx.
Que significa o fato de definir-se o marxismo-leninista
como materialista? Que conteúdo convém dar a essa qua
lificação? Tratar-se-á, desde logo, de afirmar uma crença
análoga, em sua forma, às crenças espiritualistas? Para
doxalmente, é afastando-se da ontologia materialista que
269
Marx — em um texto difícil e ainda mal elaborado, e
quantas vezes comentado — permite responder a essas
questões: “ O principal defeito do materialismo de todos os
filósofos — inclusive o de Feuerbach — é que o objeto,
a realidade, o mundo sensível são por ele considerados
na forma de objeto, ou de intuição, mas não enquanto
atividade humana concreta, enquanto 'prática, de modo
subjetivo” 6. Não se trata de considerar essa fórmula o
resumo ou a prefiguração de tudo o que será desenvol
vido pelo pensamento de Marx e de seus continuadores.
Permite, no entanto, rejeitar qualquer tentação de inter
pretar o materialismo marxista em termos de ontologia
ou de teoria do conhecimento. A realidade — e, em lugar
dessa palavra, poderíamos dizer: tò fainómenon, o que
se mostra; ob-jectum, o que está posto na frente; ou
ainda: o dado — deve ser entendido inicialmente, não
como objeto de intuição, mas como o lugar em que se
efetua a prática humana, onde se desenvolve a dialética
da necessidade e do trabalho. Em outros termos, a
caracterização inicial “ do objeto, da realidade” deve ser
operada a partir do fato fundamental e objetivo da prá
tica em seus diversos aspectos e em seus diferentes ní
veis de complexidade: a intuição sensível dos filósofos
e dos psicólogos não pode ser concebida senão como mo
mento dessa prática; e o objeto, enquanto objeto puro
da sensibilidade, também é apenas aspecto parcial que,
isolado de seu contexto, é um ser abstrato cujo estatu
to real ou essência é falacioso procurar deduzir7.
O “ defeito” do materialismo tradicional é também
o defeito do idealismo subjetivo. Ambas as atitudes, na
7 “ Ele (Feu erbach) não vê que o mundo sensível que o cerca não é
uma coisa que lhe seja dada diretamente de toda eternidade, sempre
igual a si mesmo, mas o produto da indústria e do estado social, no
sentido de que é, em toda época histórica, o resultado, o produto da
atividade de toda uma sucessão de gerações, que se ergueram umas
sobre os ombros das outras, m odificando a ordem social de acordo
com as necessidades m odificadas” . Ideologia alemã, idem, p. 161.
270
medida em que se esforçam em determinar a natureza
da realidade (ou então, do que existe principalmente)
a partir do fato primordial da sensação, da relação teó
rica com o objeto, são levadas inevitavelmente a favore
cer o aspecto “objetivo” ou o aspecto “subjetivo” , sem
jamais conseguirem libertar-se completamente da falsa
dialética que remete indefinidamente de um ao outro.
Ora se fará da “representação” a cópia ou o reflexo in
terior da realidade “objetiva” , ora, com a preocupação de
considerar apenas o que é experimentado, reter-se-á
apenas o dado imèdiato da consciência considerando-o
como fato primeiro e fundamental. Assim, o pensamen
to será ora considerado decalque do “ mundo exterior” ,
ora o “mundo exterior” será considerado expressão to
tal ou parcial do pensamento. Nesse intercâmbio, e ao
remeter-se constantemente de um termo a outro,
Kant mostrou claramente que não há razão alguma
para escolher esta atitude e não a outra. O desenvolvi
mento unilateral de um momento abstrato da prática
leva a construir argumentos vãos, fundados no privilé
gio excessivo concedido a uma parte apenas da expe
riência, isto é a uma experiência falsificada.
O idealismo objetivo escapa a essas dificuldades
porque reconhece inicialmente o caráter decisivo da
atividade humana na constituição da objetividade, por
que se recusa a formular o problema do estatuto do ob
jeto em termos de representação, e porque afasta como
insuficiente a oposição do interior e do exterior. Toda
via, “ esse aspecto ativo foi desenvolvido pelo idealismo
em oposição ao materialismo, mas apenas abstratamen
te, pois o idealismo não conhece naturalmente a ativi
dade real, concreta como tal”8. O lugar em que o homem
manifesta seu poder criador é o domínio puro do pen
samento, do Espírito: o resultado dessa atividade é uma
decisão ou um discurso, a ordem ou a inteligibilidade
introduzida deixando intata a empiria; o homem conce
bido essencialmente como pensamento tem por tarefa
m
essencial pensar e seu trabalho ou sua realização con
sistem em forjar um logos graças ao qual o inconcebível
se conceba, o inexplicável se explique. Era preciso que o
poder empírico do homem, pelos êxitos que obteve brus
camente e pelos problemas práticos que suscitou — apa
recesse no seio da existência humana para que a ativi
dade pudesse descobrir-se em seu estatuto real. A ma
nifestação primordial da relação com aquilo que não
é ele e existe diante dele é a necessidade (e seu corre
lato, o desejo) e o trabalho (e sua implicação, desde que
o trabalho alcança determinado nível, a organização so
cial e política).
Os problemas propostos pelo materialismo e pelo
idealismo revelam-se, assim, falsos problemas; e a supe
ração realizada pelo idealismo objetivo, uma solução
ilusória. No domínio da necessidade e do trabalho, a rea
lidade que aí está se mostra como existindo à parte da
quele que dela tem necessidade e que trabalha para
obtê-la, como se obedecesse a processos independentes
do desejo humano, como sendo em-si, oara usar o voca
bulário tradicional. O “realismo” naturalista do mar
xismo, salientado pela crítica antimaterialista, encontra
raiz profunda no estatuto atribuído ao homem, como ser
que sofre e que trabalha : o que acontece com o homem
é encontrar-se em um meio cuja natureza é igual à sua,
o qual, de acordo com as leis que lhe são próprias, o
constrange, suscita seu desejo renovado e se oferece a
ele como objeto a transformar. A “ existência exterior”
da materialidade não tem outra justificação além do
fato, desde o momento em que o homem passa a consi
derar-se em seu ser fundamental como trabalhador, da
inumanidade do meio em que existe. A exterioridade
deve ser assim compreendida, não como a diferença da
da entre o ser e a representação que se elabora “ no” cé
rebro — o aue é a rigor ininteligível — , mas como o cor
te de fato existente entre o aue é imediatamente obie-
to do desejo e a realidade desenvolvendo suas determi
nações fora da necessidade, entre a acão paciente, dolo
rosa e ençenhosa do homem, modelando a realidade pa
ra atingir a satisfação e a recusa (recusa interpretada
272
ora como oposição da contingência da hyle à ordem das
essências, ora como oposição da necessidade natural à
invenção e à liberdade) dessa realidade a deixar-se sub
meter. A independência da matéria apresenta-se inicial
mente no fato de que muito pouco é dado à humanida
de, que só possui o que conquistou pelo seu esforço, que
há um registro do ob-jectum ao qual ela não está ime
diatamente adaptada. A obrigação para o homem de ser
trabalhador atesta, de certo modo, a exterioridade e a
independência, em relação a ele, do domínio que habita.
Perguntarão, no entanto, com que direito o marxis
mo compreende esse domínio como ser-material, admi
tindo-se que esse termo designe a realidade corpórea ou
espacial cujos caracteres cabe às ciências positivas des
cobrir experimentalmente. Não seria mais legítimo ater-
se às formulações habituais do pensamento contempo
râneo não-materialista que reconhece ou propõe a trans
cendência do em-si, mas não admite considerá-lo como
ser material? Não se estará aqui resvalando (como as
sinalávamos no primeiro capítulo) do que é dado à ex
periência humana, o trabalho entrando em lugar da per
cepção, ao que constitui o resultado da pesquisa cientí
fica? Nada prova, ao que parece, que o lugar da prática
seja idêntico a esse objeto estudado pelo físico, pelo geó
logo e pelo biólogo. A physis, habitáculo do homem, po
derá ser identificada com o mundo físico? Será justo
considerá-la como a verdade da physis e apresentar os
decretos da ciência positiva como únicos aceitáveis, úni
cos capazes de trazer, no que se refere à realidade, de
terminações corretas?
A resposta a essas perguntas é de grande importân
cia na medida em que pode esclarecer a oposição do mar
xismo às doutrinas contemporâneas que se incluem na
corrente que se convencionou chamar de “ filosofias da
existência”, e compreender em que ótica admite, como
decisivos, no que se refere ao dado natural, os resultados
experimentais. Por que o marxismo “ acredita” na ciên
cia? Essa “crença” não pode, de modo algum, tornar-se
inteligível se permanecermos na problemática habitual
273
da teoria do conhecimento. Esta supõe que haja, de um
lado, um objeto a conhecer e, de outro, um sujeito que
possui a propriedade de conhecer; fixa inicialmente a
existência de uma representação subjetiva ou interna
que entretém certa relação com a realidade da qual é a
representação; e pergunta-se como, ou por que proces
so (caso tenha pretensões normativas) a representação
é representação verdadeira dessa realidade. Ela se co
loca, pois, na perspectiva em que a relação privilegiada
do homem e do dado é de ordem teórica, uma “ contem
plação” — quer seja essa contemplação concebida como
sensação, visão intelectual, afeto ou qualquer combina
ção desses diversos termos. Com outras palavras, a teo
ria do conhecimento em geral, admitindo com ponto pa
cífico o fato de que a relação importante com o objeto
é cognitiva e que o resto — a ação, por exemplo, — ou
é de outra ordem, ou constitui apenas uma preparação
ou aplicação dessa relação essencial. Esse é um pressu
posto que Hegel criticou vivamente e no qual julgamos
necessário insistir.
Procuramos mostrar, no segundo capítulo, por vias
diferentes e suscitando outros problemas, que, se o pro
blema da relação com o objeto é proposto em termos teó
ricos, não pode receber solução teoricamente satisfató
ria do conhecimento em geral, admitindo como ponto pa-
tirmos da separação entre a representação subjetiva do
objeto e o objeto, seremos levados ou ao dogmatismo ou
ao relativismo. A diferença entre essas duas atitudes
consistiria simplesmente em que a primeira acredita tér
encontrado um sinal adequado da representação objeti
va, ao passo que a segunda procura em vão esse sinal e,
não o encontrando, é levada a admitir a relatividade do
conhecimento. Sem dúvida, o filósofo imaginou muitas
vezes sair do dilema e julgou ter demonstrado os vícios
dos dogmatismos que o precederam e as insuficiências
da crítica cética. Se continua, no entanto, a propor o
problema nesses termos está condenado a cair sob os
golpes de um novo ceticismo: que prova poderá jamais
apresentar de que a representação que julga verdadeira
o é efetivamente, que sua certeza é também verdade,
274
uma vez que se situa no nível de uma representação que,
como tal, permanece presa necessariamente ao sujeito?
Será necessário dar algum golpe de força, apelar para
o consensus, para Deus, ou para uma convergência de
pensamentos; precisará ascender ao transcendental, cons
tituir-se ele próprio em intellectus archetypos o qual,
por graça ou habilidade, soube, ao mesmo tempo, per
manecer representação e juiz da qualidade da repre
sentação. Será sempre um cético ou um historiador que
mostrará, com todo direito, que o sujeito permaneceu
empírico e que suas evidências, longe de apreender o
Absoluto, ou as condições do Absoluto, dependem de
uma situação empírica: preocupações individuais, at
mosfera ideológica, problemática de conjunto em deter
minado momento...
De fato, a luta entre o dogmatismo e o ceticismo
leva a formular o problema transcendental, a perguntar
em que condições é possível um conhecimento efetivo.
Esse problema, no entanto, por maior profundidade que
o pensamento lhe atribua, permanece tributário da di
ficuldade que o suscitou; trata-se sempre de perguntar
sobre o direito que tem um sujeito de conceber a reali
dade tal como a concebe, de conhecê-la como a conhe
ce. Cada um afirmará que apreende as coisas em si mes
mas, que as vê “ em pessoa” , que realizou os aprofun
damentos últimos: não poderá, diante dos céticos, dos
técnicos da vida quotidiana, senão apelar para o teste
munho daqueles que partilham a mesma graça. Assim,
dois pensadores de grande profundidade esforçaram-se,
no século XX, em superar a problemática gnosiológica
tradicional. Bergson e Husserl, em óticas muito diferen
tes, recusaram essa separação da representação subje
tiva e do objeto. O primeiro negou que seja necessário
partir da noção de uma coisa exterior e estranha da qual
seria preciso forjar a representação adequada; o segun
do afastou a idéia de que o sujeito seja a sede de repre
sentações passivas que seriam cópias do objeto. Situam-
se, um e outro, em uma perspectiva mais elaborada em
que a dualidade do refletido e do refletor torna-se ab-
275
surda, em que o dado já é dado como apto a ser conhe
cido tal qual é, contanto que se operem as reduções con
cebíveis e que se apreenda o que é verdadeiramente
dado. No mundo das imagens de Matéria e Memória, na
Lebenswelt husserliana, o que se apresenta é mostrado
como se exibindo em sua verdade e não podendo mos
trar-se senão assim. A oposição do subjetivo e do obje
tivo, no nível do próprio conhecer, é abolida. A crítica
(cética, antifilosófica ou marxista) voltará à carga, e
com razão ao que parece: dirá que essa oposição já ha
via sido superada por Hegel e de modo muito mais pro
fundo e satisfatório; procurará mostrar, em todo caso,
que a supressão é operada precisamente porque se abo
liu totalmente o estatuto da objetividade e o problema
de seu controle. Toda licença não é dada doravante ao
pensador de propor como dado autêntico o que ele pró
prio experimenta como sendo autêntico? Essa problemá
tica interna da história do pensamento filosófico, a da
adaequatio rei et intellectus, não é resolvida somente
porque se suprimiu da questão a coisa, reduzindo-a a es
se vivido do qual cada um terá o direito de afirmar que
é o único efetivo. Restará como prova apenas o assenti
mento dos homens de pensamento, convencidos de que
se trata, no caso, da “ esfera primordial” , do “ dado ime
diato” : abrem-se, assim, as portas a todas as ironias de
Cálicles, e a preocupação de salvar o homem da aberra
ção empírica o entrega sem defesa à contingência de
uma opinião que acredita encontrar, na própria pru
dência e sutileza, o sinal de que é saber.
Não parece, pois, seja qual for o gênio dos pensado
res, que uma solução ao problema da prova da verdade
e de um enunciado possa ser descoberta no nível da teo
ria do conhecimento, e o marxismo, aceitando situar a
discussão nesse nível, coloca-se numa posição insustentá
vel. O materialismo que ele adota o leva a situar-se nas
piores perspectivas da ontologia realista: precisará per
guntar como o sujeito, situado materialmente, quer di
zer, segundo o marxismo, biológica, histórica e indivi
dualmente pode forjar uma representação objetiva de tal
276
realidade que aí está, e isso a partir do conteúdo inicial
da sensação. Deverá, acumulando os materiais de uma
enciclopédia, preencher o imenso vazio existente entre
a relação imediata com o objeto e o conhecimento ela
borado, proporcionado pelas ciências experimentais. A
cada momento de sua tarefa, verá surgir o dilema do
dogmatismo e do relativismo. Se admite, com efeito, que
a relação fundamental com o objeto é de ordem subje
tiva e sustenta, por outro lado, que todo sujeito se acha
situado materialmente num contexto histórico que de
termina o conteúdo desse conhecimento, aproximar-se-á
de Protágoras e de todo humanismo cético. Só por um
golpe de força poderá defender sua opção pelos resul
tados das disciplinas positivas, afirmando assim sua
crença; ao homem religioso, ao poeta, oporá pura e sim
plesmente a opinião segundo a qual a physis, para ele,
é idêntica ao mundo físico. E não poderá apresentar ou
tros argumentos além de sua convicção, a menos que
mascare a fragilidade de sua certeza colecionando ele
mentos das ciências experimentais recolhidos aqui e ali.
Mais ainda, estará desarmado desde o momento em que
a questão do fundamento do que afirma lhe for pro
posta: só pela fuga escapará do problema transcen
dental.
A ruptura do marxismo com a filosofia situa-se em
nível mais profundo: não se trata apenas de opor
uma teoria do conhecimento materialista a uma gno-
siologia idealista, nem se trata de contradizer a onto
logia espiritualista com uma ontologia da materialida
de. Deter-se nesse ponto corresponderia a situar-se no
estágio de uma polêmica infrutífera. A revolução que
Marx operou no pensamento situa-se, devemos repetir,
no nível da concepção do homem e das tarefas do pen
samento: ao homem abstrato da filosofia que, no en
tanto, chegou à concepção mais profunda e mais elabo
rada, importa substituir a consideração do homem em
sua realidade empírica, como ser prático e histórico. É
somente a partir dessa radical mudança de ótica que se
pode compreender o chamado “ cientismo” marxista. As
sim como é vão, a menos que nos resignemos a defen-
277
der apenas uma opinião, fazsr propaganda, querer trans
formar o materialismo em filosofia geral do Ser, assim
também é falacioso pretender fundar a assunção mar
xista dos resultados das ciências positivas em uma teo
ria geral do conhecimento.
Se o marxismo identifica a physis e o mundo físi
co, se declara descobrir a verdade do mundo percebido
e vivido nos enunciados das disciplinas experimentais,
não é em virtude de uma postulação, mas porque veri
fica um fato: a prática humana, atualmente, em seu
aspecto fundamental, enquanto produção e reprodução
dos meios de existência, não só pressupõe a materiali
dade “ exterior” , no sentido em que acabamos de defi
nir a exterioridade, mas considera fato incontestável que
esse dado possa justificar-se por uma análise objetiva,
proporcionada pelas ciências positivas. A atividade mais
importante do homem, aquelas graças à qual se man
tém em vida, desenvolve sua humanidade aumentando
seu poder real e se liberta da alienação, realiza-se, na
sociedade industrial, considerando decisivos os enuncia
dos pelas pesquisas experimentais. O reconhecimento da
validade da ciência é constante na prática: não exige,
portanto, demonstração alguma; impõe-se ao mesmo tí
tulo que se impõe o fato da civilização industrial. A fá
brica, onde os homens criam os bens e os instrumentos
graças aos quais aumenta o império da humanidade, on
de se prepara, graças à invenção sempre renovada, a co
lonização sempre mais ampla e mais profunda do dado,
está ligada — materialmente ligada — ao centro de es
tudos e ao laboratório. A pesquisa científica manifesta-
se, atualmente, como aquilo por intermédio do que uma
inteligibilidade é dada, de tal ordem que orienta e ilu
mina a ação sensível do homem à procura da satisfa
ção. A verdadeira questão não é portanto por que o teó
rico marxista “ acredita” na ciência e nos seus resulta
dos? mas “ por que o homem foi levado a reconhecer, em
certo modo de considerar a natureza que, após ter-se
manifestado confusa e parcialmente em certas épocas
e em setores limitados, desenvolve-se a partir do Renas
cimento e se atualiza plenamente no século X X aquela
278
que convém à realização de sua exigência fundamental:
a humanização do dado e a libertação satisfatória da
sujeição à natureza?” Trata-se, em suma, de compreen
der por que uma ligação de fato se estabelece entre o de
senvolvimento das ciências positivas e o crescimento do
poder prático do homem.
A resposta a essa questão não poderia situar-se em
uma perspectiva teórica: seria voltar, indiretamente, à
ótica da teoria do conhecimento perguntar, em virtude
de que natureza onitemporal do Espírito e do objeto,
o racionalismo científico é o modo geral de apreensão
correta e eficaz do dado geral. É a partir do estudo his
tórico da prática do objeto e da situação social a ele li
gada que pode tornar-se inteligível a conexão, de fato
existente, entre essa prática e a constituição de uma pes
quisa experimental sistemática. O problema é de gran
de dificuldade: sua solução implicaria que se conseguis
se mostrar de que modo, a partir de um vagaroso cres
cimento, lentamente preparado, das forças produtivas,
descobrem-se para o homem possibilidades práticas ra
dicalmente novas, acarretando ao mesmo tempo a for
mação de uma classe consciente pelo fato de que seu
transformar-se está ligado ao enriquecimento do poder
humano empírico, o aparecimento de uma técnica de
investigação de que Bacon e Galileu fixaram as normas
e o surgimento de uma concepção revolucionária da
natureza que é justo chamar, de acordo com a admi
rável análise de HusserP, de gálileu-cartesiana. Devería
mos mostrar, também, como o transformar-se das for
ças produtivas e das relações sociais após o Renasci
mento permitiu a atualização e a universalização dos
temas teóricos e práticos descobertos nos séculos XV
e XVI. Somente estudos históricos rigorosos são capa
zes de tornar clara a ligação existente entre ciência e
279
técnica científica, de um lado, e a prática do objeto,
de outro, em determinado momento da história da hu
manidade. Não se trata de considerar aqui tal proble
ma: trata-se apenas de compreender, nesse estágio da
presente pesquisa, por que razão o marxismo decide en
campar a ciência experimental como portadora da mais
profunda inteligibilidade.
Essa razão encontra-se na conversão revolucioná
ria operada por Marx: considerar o homem em sua prá
tica real, em sua relação efetiva com o dado. Se é preci
so privilegiar os enunciados científicos em relação às
lições do sentir, da consciência que o sujeito tem de si
mesmo, da impressão vivida, da reflexão transcenden
tal, é porque a prática lhes confere esse privilégio. A su
perioridade que apresentam decorre apenas do fato de
que a prática da sociedade industrial, da qual são o mo
mento teórico, revela-se superior às práticas e às con
cepções da relação com o objeto que até então surgiram
na história humana. Sua validade deriva de um fato
histórico: o fato de que, na civilização industrial, a hu
manidade se encontra na posse dos instrumentos graças
aos quais é capaz de resolver um problema crucial que
a obcecava, o da sujeição à natureza. Nesse sentido, tal
validade pode ser considerada absoluta, na medida em
que é pouco concebível que um tipo de conhecimento di
ferente do conhecimento experimental proporcione uma
inteligibilidade mais profunda; assim sendo, é pouco
provável que outro tipo de sociedade, além da sociedade
industrial, possa atualmente proporcionar ao homem a
satisfação empírica universal, levando-se em conta o fa
to de que a sociedade industrial atualmente existe e es
tá longe de ter resolvido os problemas de sua organiza
ção.
Sem dúvida, é possível lamentar essa preeminência
da sociedade industrial e do reconhecimento da validade
das ciências que ela implica: pode-se desejar um retor
no ao tempo — mítico ou real? — em que o homem vivia
na presença da physis e se entregava à simplicidade da
relação imediata com o dado; é sempre possível sonhar
com a ingenuidade da infância (ou da pseudo-infância)
280
e erigir esse sonho em saber ou esperança. Resta que a
sociedade industrial existe com seus problemas doloro
sos, seu transformar-se, as possibilidades que oferece e
as lutas que provoca. Na verdade, privilegiar o vivido em
relação à ciência, é, atualmente, abolir, no pensamento
a problemática real proposta pela realidade contempo
rânea ou, na melhor das hipóteses, apresentar para essa
problemática uma solução que apela para o acaso ou
para a boa vontade; é resolver-se, por preocupação de
conforto, a ignorar o que é ou preparar-se, mais corajo
samente, para “ atravessar o Ródano” . Ao contrário, ad
mitir o valor absoluto do racionalismo científico, no sen
tido que acabamos de definir, é apenas reconhecer o fa
to que está presente na existência quotidiana de cada
um, que a penetra inteiramente e que, aliás, é vivido
efetivamente pelo filósofo desde o momento em que apa
nha sua caneta-tinteiro e liga o interruptor de sua lâm
pada elétrica: a ciência positiva como momento da prá
tica da civilização contemporânea.
Verifica-se, assim, que o problema da significação
que convém atribuir aos enunciados da geologia, da pa
leontologia, da cosmologia científica, revela-se, ao mes
mo tempo, secundário e resolvido. É importante, no en
tanto, observar que a formulação desses enunciados é
relevante na medida em que implica ou não um retorno
às perspectivas caducas da ontologia. Já observamos que
enunciados como: “ a matéria existe antes do Espírito”
ou então: “ a materialidade é cronologicamente ante
rior à consciência” encerram ciladas que levam direta
mente ao dogmatismo. Se devemos levar a sério a ciên
cia, importa fazê-lo seriamente e não generalizar seus
resultados por extrapolações terminológicas. Estabele
ceram, a geologia, a paleontologia, a cosmologia cientí
fica, que, anteriormente à existência do homem, houve
um devenir natural efetivo desenvolvendo-se de acor
do com leis, que é possível observar regendo a natureza
atual e produzindo organizações materiais cada vez mais
elaboradas; que essa história natural não implica, de
modo algum, a aceitação de uma finalidade que a tenha
orientado em seu desenrolar, nem qualquer criação ex-
281
tranatural do homem cuja gênese, a partir das forma
ções animais, é, senão conhecida, em suas minúcias, ao
menos claramente estabelecida; que se exige mesmo da
queles que sustentam a necessidade, seja de uma cria
ção ex nihilo da natureza, seja uma criação extranatu-
ral do homem, de provar cientificamente sua afirmação,
o que não é de modo algum exigível dos cientistas que
se apóiam em observações e experiências controladas.
Em outros termos e ainda mais banalmente, o que pro
va experimentalmente a ciência, é que as perspectivas
de que nos permitiremos chamar de ontologia teológi
ca fundam-se num tipo de experiência limitada e indi
vidual ou em uma simples afirmação que contradiz e
destrói a técnica experimental. O absurdo, — a ausên
cia de significação, atualmente ao nível da civilização
industrial — das afirmações segundo as quais existe
uma realidade espiritual transcendente ao dado e que o
engendrou, é apenas isso que provam a geologia, a pa
leontologia e a cosmologia; essas disciplinas invertem o
problema tradicional: era de praxe reclamar do ateísmo
que provasse a não existência de Deus; com mais mode
ração e liberalismo, essas disciplinas verificam que nada
manifesta tal exigência, que o fato de nela crer é uma
opinião, mas que seriam necessárias outras justificações,
além de sentimentos ou de simples afirmações, para eri
gi-la em verdade.
Às múltiplas crenças que podem suscitar as incli
nações de cada um, às infelicidades individuais, às so-
brevivências sociais, as ciências positivas substituem fa
tos controláveis e pedem que nunca se vá além do que
pode ser controlado; ao irracionalismo das preferências,
opõem, não uma racionalidade abstrata e, como tal,
constantemente posta em questão pela vida quotidia
na, mas um racionalismo aplicado10: continuam, em su
282
ma, no que se refere aos diferentes tipos de objetos que
se apresentam, a superação efetiva das doxoi diversas
e contraditórias, capazes de desenvolver-se. O programa
da ontologia tradicional é realizado positivamente por
essas ciências, e não poderia haver outro conteúdo para
uma teoria de conjunto da natureza além do sistema dos
resultados confirmados que chegaram a estabelecer. Não
há pois outra prova da existência de um caráter atri
buído à realidade em geral senão a que se pode extrair
dos resultados da experimentação científica, dentro dos
limites em que essa experimentação se impõe.
É nessa perspectiva que convém formular a famosa
questão: há uma dialética da natureza? Vimos, a esse
respeito, em que confusão se travava a polêmica do ma
terialismo e do antimaterialismo. Este sustentava que
está implícita na noção de dialética a idéia de negativi-
dade a qual, por definição, é estranha à natureza, cujos
processos se efetuam no seio de uma plena positividade,
e concluía que a dialética é introduzida na natureza pelo
olhar humano; o materialismo, em resposta, multipli
cava os exemplos dos fatos científicos que implicam con
tradições, oposições, lutas internas. Nesse nível, é claro
que nenhuma solução é mais legítima do que a outra. A
ambigüidade decorre do fato de que as duas partes si
tuam-se em óticas diferentes. O antimaterialismo colo
ca-se na perspectiva de um Cogito, em que a experiên
cia fundamental é a do vivido e onde o mundo físico
aparece como uma construção a partir desse vivido pré-
científico: é evidente, então, que todo fato científico re-
reconhecido como dialético deve receber esse caráter do
próprio olhar que o reconheceu, constituiu ou construiu.
O materialismo marxista, ao contrário, sustenta que não
se trata, de modo algum, de fundar a validade das ciên
cias experimentais, que são legitimadas pela prática da
sociedade industrial: o que lhe permitiria afirmar que
há uma dialética dá natureza é o fato de que o mundo
físico, experimentalmente, manifesta-se como tal: é con
veniente, para compreender a posição marxista, reali
zar o desvio indispensável e tornar clara a necessidade
283
da passagem da filosofia ao racionalismo, tal como foi
definido por Marx.
Ainda assim, mesmo que se tenha aceito essa tran
sição como legítima e se considere necessária a supera
ção da filosofia, a noção de dialética da natureza é pou
co clara. Constitui, com feito, uma determinação ge
ral referente à realidade natural: a esse título, signi
fica, em primeiro lugar, que há um devenir da natureza
considerada em seu conjunto, que há uma história na
tural e que as leis universais que a governam fazem
surgir assim formações originais, mais ricas e mais ela
boradas do que as formações anteriores. Opõe-se, por
tanto, nesse sentido limitado, ao substancialismo dos fi
lósofos criacionistas que consideram a natureza como
a soma de entidades separadas que repetem invariavel
mente seus traços característicos. Além disso, na idéia
de uma dialética da natureza está implícito o fato de
que o devenir é dramático, que opera, não como progres
so linear, mas como luta, que o novo resulta da supera
ção do antigo e que a realidade deve ser apreendida como
sistema complexo e movediço de tensões, oposições, con
flitos. Parece, a esse respeito, que os resultados da físi
ca em geral, confirmam semelhante ótica: o que se sa
be atualmente sobre a formação do sistema solar, a his
tória da terra, a gênese vagarosa da animalidade, mos
tra que devemos rejeitar tanto a perspectiva criacionis-
ta quanto a do progresso linear por acúmulo. Trata-se,
porém, de uma verificação que só é legítima porque se
apóia em enunciados experimentais confirmados; não é
de modo algum uma demonstração que deduzisse o fato
dialético do conceito da natureza. Orà, parece que pen
sadores marxistas — caindo na cilada da ontologia —
pretenderam, a partir dessas observações, e das que se
fizeram no campo da história humana, fazer generaliza
ções e submeter assim as pesquisas científicas a precei
tos metodológicos que lhes seriam impostos pela nature
za do ser. Essa extensão parece totalmente abusiva:
quando o teórico marxista pede ao historiador que volte
sua atenção para um fato que se mostra decisivo na es
trutura da sociedade atual, o da luta de classes, propõe
284
sem dúvida uma concepção do devenir humano; mas,
de um lado, demonstra por que razões lhe parece lícito
considerar as revelações trazidas pela sociedade indus
trial princípios de pesquisa válidos para formações his
tóricas anteriores e, por outro lado, a proposição que
apresenta só pode ter validade se for confirmada pelo
acontecimento analisado cientificamente. No que se re
fere ao mundo físico, uma demonstração desse tipo é ina
ceitável. O que prova a prática da sociedade industrial
é apenas que, a propósito do dado natural, a inteligibi
lidade mais profunda é a proporcionada pelo conjunto
das ciências experimentais. Por isso mesmo, o encargo
de determinar a estrutura do mundo físico é integral
mente confiado a essas ciências: não há outra natureza
do ser além da que é descoberta pela experimentação.
Toda extrapolação é perigosa e conduz ao formalismo:
leva — e o desenvolvimento da ontologia materialista a
partir da Dialética da natureza de Engels o mostra —
a procurar, a todo preço, nos enunciados científicos, for
mulações dialéticas, a atribuir arbitrariamente impor
tância maior aos que se conformam com o esquema ló
gico e, finalmente, a interpretar a própria dialética de
maneiras diversas e igualmente contingentes. A esse res
peito, as críticas de pormenor do antimaterialismo es
tão plenamente justificadas: vê-se mal, por exemplo, que
dialética encerra o simbolismo matemático enquanto
sistema axiomatizado e que relação existe entre a “ opo
sição” do pólo positivo e do pólo negativo em eletricida
de e a “contradição” do ácido e da bese nos aminoácidos.
Que seja necessário, contra o criacionismo, contra o pro-
videncialismo teológico ou naturalista, defender, fun
dando-se constantemente nos resultados efetivos obti
dos, a idéia de um devenir dramático da realidade na
tural, isso parece pressuposto pelo novo racionalismo do
qual o marxismo se tornou o promotor; é cair na “ ilu
são transcendental” pretender atribuir antecipadamen
te às regiões objetivas que se oferecem à pesquisa cien
tífica um caráter dialético do qual nenhuma definição
clara, aliás, foi até agora apresentada.
Assim, o materialismo dialético, contanto que re
285
nuncie à ambigüidade, que se recuse a constituir-se, de
acordo com os hábitos do pensamento filosófico, em on
tologia ou em teoria do conhecimento, que aceite a ta
refa que lhe é atualmente atribuída, enquanto elemento
de luta pela instauração de uma prática visando a sa
tisfação humana empiricamente universal: ser a teoria
da passagem do racionalismo filosófico abstrato ao ra-
cionalismo concreto, não passa, no conteúdo, da respos
ta, a um tempo constante e renovada, aos argumentos
da paixão individual e do interesse de classe e às cons
truções sérias daqueles que, empolgados pela beleza e
pela grandeza da tradição filosófica, desprezam a reve
lação que, sobre a realidade humana, trouxeram a revo
lução industrial e as transformações políticas que a
acompanharam. Como tal, a propósito do dado físico,
em particular, não está de modo algum obrigado a apre
sentar uma concepção geral e sistemática da natureza:
sua missão consiste apenas em fazer valer os resultados
experimentais confirmados contra as elaborações abs
tratas; em sua perspectiva, o físico não pode estar er
rado contra o filósofo, porque precisamente o materia
lismo significa, antes de mais nada, que os fatos cienti
ficamente estabelecidos jamais estão errados. Quanto à
idéia de fazer da teoria marxista uma “ suma” dos resul
tados experimentais, de defender a ciência vulgarizan
do-a e pretendendo sistematizá-la tirando as conseqüên
cias de tal sistematização, semelhante idéia perde-se na
insipidez e na ingenuidade. As ciências dispõem de su
ficientes armas teóricas e práticas para revelar seus re
sultados: o que resta estabelecer, é por que se tornou
atualmente necessário, pelas mesmas razões que deter
minaram outrora a decisão de filosofar, considerar as
ciências e a pesquisa experimental únicas capazes de tra
zer a verdadeira inteligibilidade.
286
sa concepção, de construir uma nova ontologia, de apre
sentar uma nova teoria do conhecimento, e, ainda me
nos, de constituir-se como uma enciclopédia das ciên
cias. O que visa, mostrando porque o visa, é mostrar
que a humanidade não pode realizar sua exigência fun
damental: a da satisfação empírica universal, implican
do o acréscimo do poder do homem sobre a natureza, ai
multiplicações das necessidades humanas, a possibilida
de de satisfazê-las e a abolição definitiva da violência
histórica, senão reconhecendo-se ela própria, em seu
ser-fundamental, como materialidade ativa lutando con
tra um mundo material cuja inteligibilidade é doravan
te proporcionada pelas ciências experimentais. Essa
demonstração, renovada em função da situação ideoló
gica e dos acontecimentos históricos, constitui a tarefa
histórica do marxismo. Com efeito, na atual fase histó
rica, no momento em que a sociedade industrial procura
o caminho que lhe permitirá deixar de ser um regime de
exploração, multiplicam-se as vias oferecidas à paixão,
à ilusão, e ao fanatismo. Essa época vê crescer a violên
cia. Alguns pregam a conversão moral; as filosofias abs
tratas preconizam soluções ideais. O marxismo, como ele
mento objetivo na luta pela satisfação, empenha-se, em
seu aspecto teórico, na análise científica dessa situação
dramática: tem por missão opor às doutrinas da paixão
e do interesse, às construções imaginárias, às contrafa
ções dogmáticas, a própria realidade no conjunto de suas
determinações, tal como lhe é possível descobrir apoian
do-se nos princípios de pesquisa que lhe forneceram Marx
e seus continuadores.
A esse respeito, parece que as construções ontoló
gicas, os sistemas da natureza, as teorias do homem e de
sua consciência, são outras tantas maneiras de evitar
a questão essencial e desviar a pesquisa das verdadeiras
tarefas da atualidade. O teórico marxista deve resignar-
se; encontra-se no momento da transição e a teoria que
pode fazer é a da transição. É inútil querer imaginar o
que poderá ser a reflexão teórica quando for instaurada
a sociedade empiricamente satisfeita. Atualmente, im
porta — com exclusão das tarefas de cultura e, em par
287
ticular, dos trabalhos históricos graças aos quais a gê
nese dos atuais modos de pensar e de agir pode tornar-se
inteligível — garantir à humanidade um conhecimento
tão claro e completo quanto possível de sua situação. A
obra essencial de Marx é O Capital, a de Lênin não é
Materialismo e empirocriticismo, que um dia deverá ser
considerada medíocre, mas o Estado e a revolução ou
Que fazer? Essa teoria da passagem pode ser desenvol
vida em vários níveis: pode tratar-se de tentar tornar
clara a necessidade teórica da passagem do racionalis-
mo filosófico abstrato à concepção defendida pelo mar
xismo; o presente trabalho não tinha outro objeto e sua
insuficiência, suas obscuridades, mostram à saciedade
que a empresa deve ser constantemente aprofundada e
ampliada; é possível, também, que se trate de análises
mais precisas a respeito das circunstâncias históricas da
passagem: tarefas de considerável amplitude apresen
tam-se então ao teórico, tarefas essas que suscitam pro
blemas universais concretos em substituição aos que o
filósofo costuma formular abstratamente. Qualquer enu
meração seria irrisória: digamos, no entanto, que a pro
blemática atual da humanidade revela como essenciais
— não a relação da alma e do corpo, a existência de Deus,
o fato da dialética no interior de tal setor da química ou
a realidade de um segundo sistema de sinalização — ,
mas questões como, por exemplo, a da função da teoria
revolucionária na transição para a sociedade industrial
corretamente organizada, da relação dessa teoria com
as diversas forças sociais em determinado país, das pos
sibilidades apresentadas pela organização da Sociedade
civil que permita, no entanto, uma “ deterioração” do
Estado, da compreensão e da orientação das lutas em
preendidas pelos povos das regiões subdesenvolvidas, do
sentido que convém atribuir, de um ponto de vista cien
tífico, aos combates dos explorados de acordo com as si
tuações particulares em que se encontram.
Nisso precisamente, e apenas nisso, pode consistir
a “ posição de partido” . Essa posição, em ultima análise,
reduz-se a salientar a importância de certos tipos de pro
blemas, a afastar como vãs ou ilusórias as interrogações
288
abstratas, a recusar as soluções que não impliquem a
possibilidade de solução efetiva no nível da existência
quotidiana, e isso sem jamais prejulgar respostas que só
a análise objetiva pode impor. É claro que tal tomada
de posição diz respeito especialmente às ciências huma
nas cujo estatuto de objetividade deve procurar estabe
lecer. Parece, nesse sentido, que a revolução marxista
nesse domínio — revolução continuada não só pelos se
guidores de Marx, mas também por cientistas não mar
xistas, etnólogos, sociólogos, economistas, médicos, geó
grafos, historiadores — pode ser comparada à que ope
raram, no domínio das ciências da natureza, os filósofos,
os experimentadores e os matemáticos nos séculos XVI
e X V II. Esses fixaram as condições graças às quais tor
nava-se possível atingir o dado natural em seus caracte
res próprios, de tornar inteligível o sistema dos fenôme
nos, de exprimi-lo por um conjunto organizado de leis
e de permitir o desenvolvimento das técnicas de apro
priação. De maneira análoga, admitindo como necessá
rio considerar o homem em sua realidade empírica, con
siderar seu devenir como devenir da prática, o marxis
mo fixa as condições de desenvolvimento das disciplinas
objetivas graças às quais pode tornar-se inteligível tan
to quanto possível em determinada época, a situação, re
solvendo realmente as questões vitais, por ela apresenta
das. Trata-se, pois, de “ tomar partido” pela objetividade
não só admitindo como válidos apenas os fatos e os
acontecimentos estabelecidos e controlados pelas técni
cas adequadas, mas ainda de esclarecer que tipos de
problemas e que maneira de considerá-los permitem es
perar a descoberta das estruturas profundas.da reali
dade humana.
Aquilo a que nos convida a concepção marxista —
tendo mostrado, aliás, por que razões culturais e causas
históricas: o malogro do racionalismo abstrato da filo
sofia e a constituição da sociedade industrial — , é pon
a considerar como essencial certo estilo de problemáti
ca teórica, o que exprime e reflete, no nível da elabora
ção conceituai, a problemática real da humanidade. To
mar partido significa, desde então, apreender o fato de
289
que a teoria, para constituir-se em teoria que responda
ao que é exigido da teoria, deve ser, antes de mais nada,
teoria da prática humana efetiva de produção e de re
produção dos meios de existência.
Essa “prescrição legitimada” não poderia entrar em
mais minúcias metodológicas: pretende apenas fazer
valer — no estado atual da cultura — a necessidade da
passagem do homem-abstrato da filosofia (e também
da economia liberal, da sociologia positivista, da histó
ria espiritualista) ao homem real, definido como, antes
de tudo, produtor e reprodutor de seus meios de exis
tência no seio de uma sociedade humana. Deve entre
gar — e é o simples bom senso que o aconselha — .ao gê
nio de cada pensador e à particularidade de cada situa
ção o cuidado da descoberta: não lhe cabe impor, entre
outros, um método do tipo daqueles freqüentemente de
senvolvidos pelas pedagogias marxistas, métodos que de
sembocam — a pretexto de dialética — em um forma
lismo irrisório. Também não poderia antecipar os resul
tados da pesquisa: a experiência da evolução do mar
xismo teórico, nos últimos trinta anos, mostra a que er
ros grosseiros conduzem semelhantes antecipações, subs
tituindo ao estudo da realidade esquemas previamente
construídos, seja por analogia seja por decisão política
subjetiva. Em outros termos, o partidarismo não con
cerne nem ao método — entendido como conjunto de
técnica de investigação — , nem aos resultados que de
veriam ser interpretados desta e não daquela maneira
(as questões de método devem ser entregues aos técni
cos e a idéia de uma interpretação dos resultados está
em contradição com a idéia de análise objetiva), mas à
concepção de conjunto que convém adotar quando se
pretende apreender a realidade em sua mais completa
e mais profunda inteligibilidade. Semelhante partidaris
mo só é tomado porque, graças a ele, a teoria pode dei
xar de ser a expressão hábil do interesse ou da paixão
ou construção harmoniosa mas ilusória; tal teoria é ca
paz de alcançar o fim implícito na vontade que se acha
na origem da constituição da própria teoria: a organi
zação de uma vida humana desalienada.
290
O fundamento real de tal concepção do exercício
teórico encontra-se, como já vimos, na situação históri
ca do homem que pertence à civilização industrial, e é
essa mesma situação histórica que explica porque, to
mando o partido da objetividade aprofundada, o “ teó
rico” marxista coloca-se no ponto de vista do proletaria
do. Essa expressão, como a de “posição partidária em
filosofia” é, na verdade, profundamente deplorável e in
troduz confusões às quais voltaremos brevemente nas
linhas seguintes. Sua significação, no entanto, é menos
obscura quando consideramos o movimento de conjun
to, cultural e histórico, que está na raiz da constituição
do marxismo. A necessidade para o teórico de situar a
problemática humana em seu nível empírico e a possi
bilidade que lhe é oferecida de ajustar a aparelhagem
conceituai, graças à qual lhe é dado elaborar soluções a
um tempo efetivas e universais, tem por origem a mes
ma situação de fato que confere à prática seu estatuto
verdadeiro e engendra uma classe social cujo interesse
a orienta no sentido da realização de uma sociedade
na qual o indivíduo seja liberto da sujeição natural e da
violência histórica. O teórico não adota o “ ponto de vis
ta do proletariado” como se adota, após deliberação,
uma religião ou como se escolhe ir para a esquerda e não
para a direita: é sua vontade de alcançar a objetividade
mais profunda em relação à realidade humana que o le
va a considerar particularmente importantes as posi
ções adotadas por aqueles cujo lugar na sociedade indus
trial predispõe a lutar contra todos os obstáculos histó
ricos que se antepõem à realização da sociedade univer
sal. Assim, de um lado, o teórico que reconheceu como
necessária a passagem à concepção do homem definida
por Marx e as organizações revolucionárias proletárias,
são aliados “naturais” (deveríamos dizer: históricos) e,
por outro lado, o teórico, em sua pesquisa, é levado a
dedicar especial atenção às lutas, às palavras de ordem
dessas organizações na medida mesma em que travam
o mesmo combate que ele.
Não é o momento de mostrar de que modo o conhe
cimento dessa conjunção de fato acarretou a constitui
291
ção de partidos revolucionários no seio dos quais o con-
ironto dos resultados adquiridos pela análise objetiva
dos fatos e a situação histórica, em determinado momen
to das diversas forças sociais empenhadas na batalha
pela abolição da sociedade de classes tem por fim a fixa
ção de uma linha estratégica e tática graças à qual a
passagem da sociedade industrial de seu nível capitalis
ta a seu nível socialista poderia ser efetuada em condi
ções mais humanas, em condições menos dolorosas para
os indivíduos. Também não é o momento de analisar os
processos históricos pelos quais as falsificações teóricas
do marxismo — de que demos alguns breves exemplos —
provocaram erros graves relativos à organização do par
tido revolucionário e permitiram a determinação de li
nhas políticas erradas que tornaram mais difícil ainda a
passagem ao socialismo e levaram a recorrer a violências
inúteis.
O que é importante assinalar, no entanto, porque
se trata de uma questão propriamente teórica, são as
interpretações falsas suscitadas pela noção de “posição
de partido”. Já no primeiro capítulo, indicamos que o
fundamento do materialismo não se pode encontrar nem
numa intuição moralizante, nem, tampouco, numa con
fiança sem limites concedida ao exercício teórico como
tal. A digressão que fizemos permite compreender me
lhor o erro freqüente que se acha na origem dessas duas
interpretações opostas. O “subjetivismo de classe” e o
objetivismo — que nos permitam assim designar provi
soriamente a atitude de acordo com a qual somente a
reflexão teórica permite a introdução da verdade — su
põem um e outro que há uma escolha a fazer; o primei
ro escolhe o marxismo porque “ reflete” o “ponto de vis
ta do proletariado” ; o segundo o adota porque é verda
deiro. Nenhum dos dois, porém, prova, de modo algum,
porque se deve escolher o proletariado, nem porque o
marxismo é verdadeiro. Um admite, implicitamente, uma
mística do operário, o outro, e devemos salientar que
esse erro é infinitamente menos grave em suas conse
qüências teóricas e práticas do que o precedente, que
há uma espécie de objetividade a-histórica que emana
292
ria do emprego do conceito em si-mesmo. Aquele se des
prende do relativismo histórico por um golpe de força
efetivo — a consciência operária enquanto tal é sábia
— este, liberta-se por uma referência ao poder a-histó-
rico do intelecto. Nos dois casos, é desconhecido o alcan
ce propriamente científico de obras como o O Capital
e O Imperialismo, estágio supremo do Capitalismo : o
“objetivismo” esquece que a verdade desses textos resul
ta não do emprego da dialética ou de qualquer concei
to seja qual for, mas do fato de que repousa em uma
análise histórica objetiva de situações dadas; o “ subjeti-
vismo de classe” afirma — o que é mais perigoso — que
sua verdade resulta do fato de que Marx e Lênin dis
seram o que a classe operária pensava. A concepção
marxista é verdadeira: não porque soube — por que mi
lagre? — empregar conceitos adequados, mas porque a
prática da sociedade industrial lhe permitiu descobrir
a perspectiva de acordo com a qual é necessário, quan
do se quer chegar a qualquer resultado teórico ou prá
tico, considerar a realidade humana; é também revolu
cionária porque, de acordo com a admirável expressão
de Gramsci, “ a verdade é revolucionária” e todo conhe
cimento aprofundado da situação é uma arma nas mãos
dos que combatem pela liberdade efetiva.
Aparece, assim, claramente o sentido da ligação en
tre a teoria e a prática. A teoria é o elemento objetivo
da luta prática da humanidade pela satisfação empírica
universal porque é a teoria dessa prática. Não há que
perguntar o que torna prática a teoria: se a teoria é
realmente análise objetiva da situação do homem lu
tando para sair da sujeição natural e abolir a violência
histórica, já se constitui como fator objetivo dessa luta.
O que faz a verdade de O Capital, não é nem o desen
volvimento do movimento operário a partir da morte de
Marx, nem as vitórias do proletariado mundial, nem a
formação de Estados que pretenderam ou pretendem
ter realizado (parcial ou totalmente) a sociedade sem
classes: é a exatidão da descrição que apresentou da
prática da sociedade industrial no nível do capitalismo
mais desenvolvido que conhecia. Porque essa descrição
293
era exata e porque, aliás, esse estágio do capitalismo é
particularmente revelador, as leis que descobriu pude
ram fornecer princípios de pesquisa relativos aos dife
rentes níveis da sociedade industrial e auxiliar as lutas
operárias. Em outros termos, as verdades que revelou
não esperavam confirmação alguma: porque eram ver
dadeiras, foram confirmadas, levando-se em conta a
evolução da sociedade industrial, que Marx não podia
nem pretendia prever.
Em outros termos ainda, a prova da validade das
análises de O Capitai encontra-se não no século XX,
mas no século X IX . E, se os estudos relativos à socie
dade contemporânea confirmam em grande parte os
de Marx sobre o mundo capitalista, é porque esse mun
do constitui um momento privilegiado que salienta os
traços fundamentais da civilização industrial e mani
festa, ao mesmo tempo, as contradições e as forças so
ciais reais que provocarão seu pleno desenvolvimento.
A objurgatória dirigida aos filósofos: “de que serve o
que vocês fazem?", não é marxista. A única prescri
ção que um teórico pode permitir-se formular, é pedir
que lhe digam a verdade e toda a verdade, sem deter-se
no caminho, sem limitar-se ao homem que pensa, mas
dizendo também e principalmente o que se refere ao
homem em luta contra a necessidade, contra a violên
cia histórica, contra as estruturas econômicas, políticas
e sociais que o mantêm na alienação.
As observações que acabamos de fazer e as que
apresentamos no capítulo precedente tornam enfim
sem objeto, ao que parece, as discussões que se trava
ram entre as filosofias da subjetividade e a interpre
tação ontológica do marxismo. A crítica antimateria-
lista acusava o materialismo histórico de conceber o
devenir humano como submetido a um determinismo
mais complexo, análogo, no entanto, em sua essência,
ao determinismo físico, de considerar a relação da si
tuação e do ato como uma relação de causa e efeito, em
suma, de negar a função da subjetividade e desconhe
cer a liberdade humana. Insistia, além disso, numa
294
contradição flagrante que lhe parecia perceber: de um
lado, como teoria, o materialismo considera o ato ou a
representação como um produto das circunstâncias, e,
de outro, como política, não hesita em formular jul
gamentos morais nem convocar os indivíduos para agir
desta ou daquela maneira; de um lado, postula uma
rigorosa determinação; de outro, supõe uma liberdade
de escolha e de decisão. Devemos dizer, desde logo, que
essas críticas são plenamente justificadas quando diri
gidas a essa interpretação ontológica do marxismo da
qual já salientamos outras insuficiências. Se conside
rarmos (no seio de uma caracterização geral e formal
da natureza humana) a relação das “ condições de exis
tência” com a “consciência” como determinação causal
simples, somente subterfúgios podem permitir que se
reintroduza essa latitude, essa possibilidade de escolher,
implícita em todo esforço para convencer os outros. De
nada adianta, em particular, duplicar essa causalida
de simples sustentando que a consciência reage em
seguida sobre as condições de existência (pois, ou há
mais na consciência determinada do que na situação
que a determina — e, nesse caso, não se pode mais
fazer do conteúdo da consciência nem um efeito sim
ples, nem um reflexo — ou bem a consciência é puro
reflexo e a “ reação” sobre a situação é então comple
tamente ilusória). De nada serve invocar a dialética de
um termo ao outro, se não se define com rigor o sen
tido dessa palavra. De fato, trata-se, no caso, de formu
lações que procedem de uma metafísica da natureza
humana estranha ao marxismo.
As análises objetivas, econômicas e históricas, dos
teóricos materialistas, permitem compreender o que
significam as expressões famosas segundo as quais “ as
condições de existência determinam a consciência” .
Não querem, evidentemente, dizer que em certo momen
to os pensamentos e os atos de tal pessoa são determi
nados — no sentido físico do termo — pela situação
objetiva na qual essa pessoa se encontra: pode-se sus
tentar, sem dúvida, tal opinião; pode-se sustentar a
opinião oposta e invocar a irredutibilidade do livre ar
295
bítrio. Após as demonstrações dadas por Hegel, após a
revolução teórica efetuada por Marx, verifica-se que esta
interrogação: “ o homem é ou não livre?” é desprovida
de significação, que não chega nem mesmo a ser uma
interrogação pois é possível responder a ela de uma ou
de outra maneira sem que nenhum partido seja capaz
de impor sua verdade. A afirmação de que as condições
de existência determinam a consciência significa, mais
concreta e universalmente, que o devenir da humani
dade só pode encontrar sua inteligibilidade profunda
na consideração do homem em sua realidade empírica,
como ser material compelido a resolver — com os ins
trumentos que lhe são dados, as estruturas sociais que
lhe são impostas, o grau de saber que lhe é transmi
tido pelo seu passado, sua situação em relação ao obje
to e aos demais homens, e o horizonte ativo que essa
situação implica — questões de ordem vital que dizem
respeito à manutenção, ao desenvolvimento e à perda
de seu ser-empírico. A solução que traz é uma decisão
que emana de si; é sua obra. A metafísica do livre
arbítrio diria que é livre. Mas, o que é em si mesmo,
a situação objetiva na qual se encontra, os meios à sua
disposição, e o grau de seu saber, lhe são dados. O
que faz “ livremente” , o faz para evitar a morte com
recursos que não dependem dele: a partir daí, sem dú
vida, inventa ou não inventa. A experiência da histó
ria prova que grupos humanos inventaram onde outros
simplesmente receberam, tateando ou repetindo, para
sobreviver, as lições aprendidas.
Esse fato da invenção — que aqui preferimos cha
mar de decisão, para melhor salientar seu caráter deli
berado e ativo — não pode, no entanto, erigir-se, como
tal, em traço característico do ser humano em geral,
traço a partir do qual o devenir se explicaria (ou antes
deixaria de ser explicável). O que é importante — sem
ignorar que se trata de uma invenção, de um ato —
é aplicar-se ao conteúdo das invenções humanas. A
ciência histórica parece mostrar — e seu estatuto de
disciplina científica digna de interesse está ligado à
possibilidade de fazê-lo — que esse conteúdo, embora
296
inventado, é função da situação objetiva em que sur
giu: a solução que tal indivíduo, integrado em tal ca
mada ou classe social, propõe teoricamente ou realiza
praticamente, manifesta-se como inteligível em seu con
teúdo quando a compreendemos como solução deste
indivíduo, desse grupamento social colocado em tal pro
blemática e vendo seu futuro desenhar-se de tal modo.
Nesse sentido, a situação — e esse termo deveria ser
definido em cada caso, de acordo com o que significa:
situação particular fechada em si mesma, situação par
ticular aberta à problemática de conjunto da sociedade
ou situação particular capaz de confundir-se com essa
problemática por um tempo limitado ou por um perío
do mais amplo — determina o ato humano em seu
conteúdo. Já apresentamos, neste trabalho, alguns bre
ves exemplos dessa perspectiva de estudos. O materia
lismo histórico consiste, nesse sentido, em substituir a
inteligibilidade histórica radical, implícita na idéia de
uma liberdade tal que cada um decidiria fazer o que
lhe convém ou de pensar e de viver o dado como esco
lheu, a experiência de uma inteligibilidade estabelecida
a partir dessa noção de que o ato, a solução inventada
e, conseqüentemente, o vivido, podem ser apreendidos
como ato como solução, como vivido implícito em tal
problemática vital que pode ser obietivamente estu
dada nelas técnicas Drónrias das ciências humanas. A
referência à realidade humana empírica — como refe
rência a determinado couteúdo da vida em dado mo
mento — permite, desde então, compreender norque tal
solução é adotada, tal modo de viver a situação é esco
lhido. sem que seja necessário por isso negar que essa
escolha, cme evS.sa solução seiam invenções devidas à de
cisão dos indivíduos ou dos grupos.
O que o materialismo histórico quer mostrar, é que
há uma inteligibilidade do passado humano, contanto
aue façamos referência ao homem como realidade empí
rica e não apenas ao homem como pensamento (ou
f'omo criatura realizando seu destino de ser criado).
Não se trata, de modo algum, de negar a funcão do
sujeito histórico na história, mas, ao contrário, de con-
297
siderá-lo, finalmente, como sujeito histórico, compelido
a resolver problemas determinados, em situações e
perspectivas dadas. Verifica que a análise do complexo
histórico lhe permite compreender, por exemplo, por
que, em determinada época, prevalecem soluções não-
inventivas, soluções que “ inventam” repetir o passado
e porque, em outras, decisões surgem que permitem,
seja a construção de soluções coerentes, mas imaginá
rias, seja o preparo de uma ação revolucionária. E a
melhor prova que pode apresentar da justeza de sua
perspectiva, é o fato de seu próprio surgimento. Sabe
mostrar que esse aparecimento é devido à formação de
determinada estrutura econômica, social e política.
Essa estrutura engendra as condições históricas, as for
ças sociais anunciando sua supressão e sua realização
e. também, a concepção que é a teoria dessa Aufhébuna.
Constantino fundou Bizâncio livremente ou não? O
imperador, se revivesse, deveria travar duras batalhas
filosóficas para dar a essa pergunta uma resposta séria
que convencesse a todos. O que é certo, é que realizou
um ato, e que, assim agindo, tomou uma decisão que
resolvia um problema dado, problema que descobria e
apreciava com os elementos de que lhe era dado dispor.
298
tóricos. Tais insuficiências e obscuridades são imputá
veis ao autor: são também devidas ao fato que, apesar
da abundância das obras inspiradas pelo marxismo, o
problema essencial da realização e da supressão da fi
losofia continua sendo até hoje um domínio inexplora
do; é preciso decidir-se a apresentar esboços, mesmo
que apenas para suscitar as críticas graças às quais a
solução desses problemas poderá ser definida e apro
fundada. O que desejaríamos, é ter mostrado que tal
problema é o problema teórico atualmente importante,
que deve ser tratado em seus diversos aspectos e que a
elaboração dessa nova concepção das tarefas do pensa
mento pode ajudar muito a tornar menos dramático e
doloroso o acontecimento capital do mundo moderno:
a transição da sociedade industrial do estágio capita
lista para o estágio socialista.
O que também desejaríamos, é ter mostrado que a
necessidade da superação da filosofia está fundada, não
no desprezo ou subestimação, mas no reconhecimento
da importância histórica e humana da decisão filosó
fica; que o novo modo de pensar que o marxismo se
empenha em criar, não só considera essencial a filoso
fia passada, mas também não poderia ter-se constituí
do sem apoiar-se nos resultados decisivos por ela con
quistados; que o “malogro” da filosofia tem como razão
profunda um fato: a situação histórica do homem du
rante um longo período, que lhe permite conceber a
liberdade mas não realizá-la, perceber a função do pen
samento universal, mas não torná-lo prático, propor as
soluções para os problemas da alienação natural e so
cial. mas não agir para que essas soluções se tornem
efetivas; que, atualmente, a filosofia, se mantém gra
ças à própria dificuldade da transição para a sociedade
industrial plenamente bem sucedida. Para o marxismo,
a filosofia, como estilo de pensar, repousa numa infe
rência análoga, em sua forma, a que Kant denunciava
a propósito do argumento ontológico: que o pensamen
to universal da satisfação ou que a satisfação universal
pensada implica a realidade da satisfação universal.
Contra o particularismo afirmado pelas paixões indivi-
299
duais, pelas crenças coletivas, pelos interesses dos gru
pos, o filósofo reivindica legitimamente a exigência de
universalidade, mas considera suficiente ter provado em
que condições a universalidade pode ser concebida de
modo coerente. Entrega ao acaso, à boa vontade indi
vidual, à graça, à ação divina, o cuidado de realizar um
mundo ou uma sociedade em que cada um — trata-se
de cada um, de todo homem — possa ser livre, quer
dizer, capaz de ser si mesmo, de não viver na estranheza
e na hostilidade do domínio que habita, de não mais
temer a violência histórica. Trata-se, pois, na época
histórica que torna pensável e realizável tal vontade,
de efetuar, nos fatos, o que essa época concebeu: uma
sociedade no seio da qual o indivíduo possa libertar-se
da sujeição natural pela satisfação das necessidades
imediatas, existir como homem e não como animal, em
que possa querer o que pretende fundamentalmente
sem constituir-se em adversário e concorrente dos de
mais homens, querer sua própria realização e, simulta
neamente, o reconhecimento dessa realização como hu
mana, em que escape das alternativas perigosas e dolo
rosas: dominar a outrem ou ser dominado (pois domi
nar-se é uma ingenuidade orgulhosa ou uma saída fal
sa), ser satisfeito provisoriamente oprimindo e conside
rando constantemente o sobressalto do ser oprimido ou
ser oprimido sendo infeliz e temendo um acréscimo de
opressão.
A negação da filosofia é, assim, a realização de seu
objetivo mais profundo. Importa fazer existir na pró
pria empiria a vida universal concebida pelo filósofo e.
para fazê-lo, manifestar inicialmente a insuficiência
da solução abstrata, não para recair no desespero, no
cinismo ou na habilidade, mas para levar o universal ao
seu maior desabrochamento, realizando-o. E essa pró
pria negação só é possível por uma revolução na con
cepção do homem a respeito de si mesmo, de sua pró
pria história e de seu querer: trata-se, para permitir
a solução da problemática humana da satisfação, de
compreender o homem como sendo inicial e fundamen
talmente realidade-material, de apreender o problema
300
da satisfação como primeiramente a da satisfação em
pírica, de fazer aparecer a raiz da violência histórica,
não na natureza maligna da humanidade — subme
tida à physis ou ao pecado original — não somente na
ignorância do verdadeiro Bem, devida à paixão ou ao
predomínio dos interesses individuais, mas na estru
tura real da sociedade. A partir daí, um caminho se
abre a desenhar novos horizontes para a pesquisa teó
rica: e esse caminho torna-se por si mesmo e nesta
condição, o caminho da solução prática das questões
vitais apresentadas ao homem pela sua existência quo
tidiana. Mais precisamente, a teoria se transforma por
si mesma em prática pelo fato de ser a teoria da prá
tica e considerar como questões essencias as que o ho
mem encontra na sua vida empírica.
Nesse sentido, a concepção proposta pelo marxismo
é o momento teórico da revolução prática histórica que
se opera no mundo contemporâneo: é a teoria da luta
por uma sociedade empiricamente satisfeita e, conse
qüentemente, luta, de fato e enquanto é fiel às suas
origens, com os meios científicos que são os seus, con
tra toda concepção da realidade que desconhece o ser
fundamental do homem e contra a manutenção de
qualquer regime, seja qual for o nome com que o bati
zem, que freie ou impeça a passagem da civilização
industrial para seu estágio de plena realização. Tem
diante dos olhos um mundo no qual se apresenta a pos
sibilidade da libertação humana da sujeição natural,
em que a violência histórica se mostra claramente como
resultado de certa organização da sociedade, em que os
homens — e, singularmente, uma classe de homens,
aqueles que sofrem mais diretamente com essa organi
zação — tomaram consciência desse fato e lutam para
que desapareça tal situação. Sabe a que a sociedade
empiricamente satisfeita é possível; sabe também que
nada é definitivamente conquistado, que são numero
sos os riscos de erro, que a passagem pode ser constan
temente adiada ou realizar-se com tamanhas violên
cias que dela a humanidade sairia ferida; em face dessa
esperança e desses perigos, atribui-se como tarefa guiar
301
e organizar, pela análise das situações dadas, essa luta
dos homens pela liberdade efetiva, esse combate do
qual ela própria é um momento.
Encontramos aqui dificuldades, no entanto, que
não seria lícito deixar de mencionar. Parece, de mo
do especial, que um aspecto decisivo não foi menciona
do e que essa negligência pode constituir uma contes
tação dirimente da tese defendida. O marxismo, como
dissemos, realizando a vontade dos filósofos, combate a
alienação e, conseqüentemente, luta pela instauração de
uma sociedade universal empiricamente satisfeita. Não
haverá, nessa dedução, uma postulação ilegítima? Não
supomos, aqui, implicitamente, porque nos fundamen
tamos em obras filosóficas como as de Platão e de
Hegel, que a vitória sobre a natureza e a satisfação das
necessidades empíricas, que a abolição da violência his
tórica, que o reconhecimento de cada um por todos que
disso deve resultar, bastam para realizar a liberdade
efetiva, para desalienar o indivíduo? Não haverá, para
o indivíduo, precisamente, uma alienação mais profun
da e mais grave, a finitude em seus diversos aspectos?
Dar ao homem os meios para viver na plenitude empí
rica, suprimir o sofrimento por todas as descobertas
técnicas que quiserem, abolir a possibilidade da violên
cia, permitirá também tornar amado aquele que não o
é? Será, principalmente, por mais que se imagine pro
longar a vida, suprimir a sujeição natural mais' apa
vorante, a morte? Mesmo que se admita, com o mar
xismo, que as limitações humanas tradicionalmente re
conhecidas pela análise filosófica: o sofrimento físico,
o medo, a insegurança, a ignorância, a estupidez, o
tédio, a estagnação, o crime, possam desaparecer pela
organização da sociedade humana, pelo desenvolvimen
to dos meios de apropriação da natureza, pelo enrique
cimento do patrimônio cultural da humanidade, resta
um fato empírico cuja supressão é inconcebível’ e que
constitui a limitação absoluta: o homem é mortal e o
pensamento da morte lhe é presente. E é tanto mais
presente quanto mais consegue o homem eliminar suas
crenças num além, apreender a irrealidade das soluções
302
filosóficas, e descobrir-se como fundamentalmente ser-
empírico: se o homem é fundamentalmente empiria, a
morte é finitude radical e o pensamento da morte pro
voca a incurável insatisfação11.
Assim, a descrição que tentamos fazer da realida
de humana, como dialética da necessidade do trabalho
no seio de uma sociedade histórica, talvez seja insufi
ciente: deveríamos acrescentar que o homem envelhe
ce e morre. Ora, para esse fato, nenhum remédio uni
versal empírico é concebível. Sem dúvida, posso lutar
contra a morte como acontecimento singular que pode
ocorrer, posso, sem dúvida prevenir-me contra o “ aci
dente” e organizar uma sociedade humana em que as
doenças, os riscos seriam eficazmente combatidos, em
que a vida poderia ser prolongada e protegida. Tais
providências, no entanto, não permitem afastar o fato
da morte. A insuficiência do positivismo consiste, em
simular ignorá-lo, dele se afastando com uma falsa co
ragem e exaltando como único positivo o fato da vida:
por entre parênteses a morte como dimensão do ser
empírico do homem, é, ao mesmo tempo, reduzir o al
cance e a seriedade do retorno à empiria e, a pretexto
de “boa saúde” , escolher arbitrariamente, entre os da
dos positivos, o que causa menos desprazer; é recusar
por um artifício — a simples omissão — o que as reli
giões — admitindo como ponto pacífico a imortalidade
— se empenham também em negar: a finitude radical
dada. O problema é de importância capital: se é fato
que o ser mortal e, mais banalmente, o ser imperfeito
são características empíricas da existência humana real.
que despertam no indivíduo uma insatisfação que ne
nhuma prática pode abolir e nenhuma disposição em
pírica suprimir, não teria razão o filósofo em definir o
homem fundamentalmente como pensamento, uma vez
303
que, em relação ao pensamento, pode pretender-se que
possua a imortalidade ou, ao menos, a onitemporalida-
de? Não deveríamos, antes, orientar a reflexão no sen
tido de uma meditação sobre a finitude humana e suas
conseqüências últimas, conceber o devenir histórico em
função desse destino profundo? Não deveremos, em to
do caso, substituir aos esforços técnicos de organização
da vida, que se mostram irrisórios, uma investigação
“moral” visando a tornar possível no seio da limitação
radical, a posse de uma sabedoria, e trazer o esqueci
mento ao homem perdido em face da finitude ou, mais
profundamente, dar-lhe a segurança e a coragem ver
dadeiras? Um ressurgimento da religião e da filosofia,
da “moral” , nesse estágio último, revelar-se-ia necessá
rio?12 A coisa é impensável, desde que consideremos
justos os resultados obtidos até aqui; tal renovação cons
tituiria, de fato, uma crítica total da concepção mate
rialista na medida em que admitisse que o homem é,
apesar de tudo, fundamentalmente, pensamento e que a
conservação da alma é, finalmente, mais importante
do que a organização da existência empírica. Quanto
à idéia de uma justaposição — o marxismo como teoria
da prática histórica e a filosofia da alma como medi
tação sobre o homem individual — , permanece aquém
da seriedade exigível e só poderia ter surgido nessa
época da transição que, como já assinalamos, acumula
as ambigüidades e as confusões.
Seja como for, resta que o marxismo, hoje em dia.
não pode deixar de explicar-se sobre esse ponto. Qual
é sua atitude diante da finitude humana, não como
problema abstrato, mas como dimensão empírica do in
divíduo, dimensão que é, no mínimo, tão decisiva quan
to a necessidade e o trabalho? A essa questão, é impos
304
sível responder aqui de modo suficiente: uma resposta
completa exigiria um estudo aprofundado das doutri
nas que, depois de Kierkegaard e Nietzsche, puseram a
ênfase no fato da finitude e em sua significação, no seio
desse mundo da passagem em que nos encontramos.
Tal estudo não caberia no quadro limitado e programá
tico que atribuímos ao presente trabalho. Que nos per
mitam, ainda nesse nível, fazer apenas algumas obser
vações. Devemos salientar, inicialmente, a tal ponto a
hipoteca do positivismo e do praticismo e, mais geral
mente, da propaganda política de vistas curtas, trans
posta em sistema e em visão do mundo, pesou sobre o
desenvolvimento do pensamento marxista ao longo
destes últimos trinta anos, que nenhuma solução de
tipo moralizante pode ser aceita por uma análise obje
tiva. A idéia da felicidade ulterior dos homens, a no
ção do indivíduo que se transcenderia em um ser-gené-
rico ou geral — conjunto dos descendentes, classe, par
tido — não poderiam ser aceitos como “ consolações”
que permitissem a esse homem esquecer que é mortal e
que nada, para ele, subsistirá de seu projeto e de sua
ação: essas são idéias religiosas que só se compreendem
no quadro da religião. Se há alguma mediação que per
mita transpor tais dificuldades que atualmente nos de
têm, só pode provir da lucidez e não de qualquer trans
posição das místicas antigas.
Na verdade, a consideração da empiria exige que
seja reconhecida essa dimensão trágica da existência
humana. Descobrindo-se como existente singular, cujo
ser, inteiro, limita-se à vida prática sensível, apreen
dendo-se finalmente tal qual é, como individualidade
entregue a si mesma, o homem contemporâneo, que vive
o período da passagem e o compreendeu, encontra-se
preso numa contradição: de um lado, concebe-se como
ativo, como ser cujas condutas são levadas em conta:
pensa-se como ligado a essa história da humanidade da
qual é um resultado e como responsável pelo mundo de
que participa; pensa-se como ser histórico, isto é, como
ser que se quer e se sabe livre — libertável — ; mas,
por outro lado, essa descoberta que fez de si mesmo lhe
305
revela seu destino de finitude inelutável e a absoluta
contingência de sua existência. Essa contradição, ne
nhum artifício poderia desfazer: não posso querer-me
plenamente vivo — em meu ser-sensível, em minhas re
lações concretas com outrem, em minha tarefa — se
não sabendo também que estou votado à morte e ata
cado por uma doença incurável faça eu o que fizer, se
jam quais forem os progressos que se realizem nas ciên
cias do corpo, seja qual for o voto que eu formule.
A poesia do nunca-mais, a meditação sobre a mor
te, deverão, pois, prevalecer e a lucidez revelar irrisório
o esforço para organizar a vida? Não parece que possa
ser assim: o problema que se apresenta é o de saber o
modo de aparecimento atual da morte e da imperfei
ção no seio da prática real da humanidade. O ser mor
tal, a limitação individual, manifestam-se ao homem
empírico que tomou consciência de seu estatuto sensí
vel como um fato, significativo do trágico inelutável da
existência? Tem o homem a liberdade de apreender sua
própria: vida como destino de finitude, individual e con
tingente de que tem o encargo? E possível que pensa
dores, enquanto pensadores, atinjam essa liberdade; a
humanidade, porém, que se sabe livre, experimenta-se
sofredora e humilhada; para ela, a tragédia está fal
seada e se apresenta com o aspecto confuso e sem gran
deza dos dramas terríveis nascidos da desordem dos ne
gócios humanos, do infortúnio (um infortúnio superfi
cial que é o contrário do destino profundo) ou da má
vontade. O trágico atualmente é impuro. Não se mani
festa como conflito entre uma situação de finitude e
de imperfeições fundamentais e a liberdade de um in
divíduo; apresenta a face absurda e caricata do “ aci
dente” . A morte, para aqueles que estão empenhados
na determinação da necessidade e nas hostilidades da
história, é apenas um acontecimento; tem um nome:
chama-se fome, miséria, guerra, polícia; não passa de
um aspecto e como que um resultado da vida sofre
dora. Este morre na guerra; e morre porque a história
e o ignóbil infortúnio armaram uma conjuntura em
que o assassínio torna-se legítimo e normal: não en
306
frentou a morte; aconteceu-lhe como ocorre um acon
tecimento. A coragem trágica, atualmente, na prática,
é interdita ao homem, porque o homem não é livre; o
que lhe é dado é a coragem histórica de libertar-se, de
fazer desaparecer, tanto quanto possível, esse sofrimen
to e essa humilhação que o alienam.
O que seriam a morte e a imperfeição para o ho
mem libertado da sujeição natural e da violência, é vão
pretender imaginá-lo. Mas, em todo caso, não é lícito
pedir à humanidade que exerça sua liberdade enfren
tando resolutamente o fato da morte, pois não é livre
e, ao que aspira, é simplesmente viver e evitar o
acontecimento que mata; o mundo da passagem é tam
bém o do drama histórico; e, para o homem que nele
se encontra, todas as dimensões da existência adquirem
a cor desse drama. É, sem dúvida, permitido ir além
dessa situação, considerar o homem como já libertado,
mas, assim fazendo, não trairemos a vocação do pensa
mento da realidade humana em seu movimento pela
conquista de si mesma? Não se trata, de modo algum,
de negar a finitude, nem de ignorar sua “ importância” :
o mundo contemporâneo, mostrando o caráter empí
rico da existência, o revela claramente; a finitude,
como tal, porém, não é o elemento determinante da
problemática humana atual; só poderá vir a sê-lo no
dia em que o homem livre puder pensar seu destino e,
não como hoje, empenhar-se em fazer sua história.
Se assim é — e trata-se apenas, ainda uma vez, de
uma observação — talvez seja porque a alienação pela
morte e a imperfeição sejam de outra ordem que a alie
nação que resulta da sujeição natural e da violência
histórica. Entre a vida que nos é dada, mortal, e a
sofredora, existe, ao que parece, uma diferença profun
da, diferença de fato que se manifesta na prática atual
da humanidade. A alienação pela morte, porque é dada
de modo radical, porque não pode ser objeto de nenhu
ma solução efetiva na realidade empírica, constitui me
nos um problema do que um fundo permanente im
posto à existência humana. Só enquanto acontecimento
307
é que posso lutar contra a morte; desde o momento
em que a penso como uma característica geral, é um
fato que me angustia, que talvez me paralise, mas deixa
de me interessar praticamente. A vida sofredora é o
oposto da plenitude; uma e outra se concebem dialeti-
carnente. A morte não tem relação dialética com a vi
da: não tem conteúdo algum. Desde já imagino, conce
bo mesmo, a sociedade universal empírica satisfeita ou
a caminho da satisfação; não sei o que é a vida imor
tal. O fato da morte pertence pois à esfera do que é
puro dado a propósito do qual se pode dizer, entusias
mar-se, lamentar-se, mas não saber realmente e fazer.
Constitui uma dimensão existencial irredutível do mes
mo modo que a existência em geral, que o fato da exis
tência em geral. Dizer que é irredutível, é dizer que
não pode ser modificado e que se acha abandonado à
sua contingência, pura e brutal: como fato, é um objeto
do pensamento exercendo-se no interior de si próprio.
Só poderia ser plenamente compreendido, se é que isso
tem sentido, por um pensamento libertado e senhor de
si mesmo. O pensamento, no momento da transição,
encontra-se apenas em estado de libertação: para ele,
há inicialmente acontecimentos que deve enfrentar; se
a alienação pela morte é, a seus olhos, menos “ grave” ,
é porque está mergulhado na vida sofredora e exprime,
antes de mais nada, a vontade dos homens que sabe ter
conquistado os meios reais para alcançar a vida em sua
plenitude. Devemos repetir, como o pensamento com
preenderá a essencia mortal do homem (e sua imper
feição essencial), é absurdo procurar concebê-lo. Atual
mente, o problema do homem se apresenta em termos
não de destino, de “ fato” ou de essência, mas de his
tória .
Esse primado da historicidade empírica que se ma
nifesta na produção social dos meios de existência, en
contra seu “ fundamento” na própria situação que é
dada ao homem contemporâneo, vivendo na sociedade
industrial na época da passagem. Tal situação exige,
de acordo com o marxismo, a constituição de um modo
de pensar novo que supere a universalidade abstrata
308
reivindicada e alcançada pela filosofia. Mas, os pensa
dores que salientam o que, para simplicar, chamamos o
trágico da existência humana — em perspectivas di
versas: existencial, ontológica e mesmo visando ir além
da ontologia — sem dúvida não reconhecerão que o
Aufhebung operado pelo marxismo seja a única conce
bível; contestarão sua radicalidade. A rigor, fora do
materialismo, depois de Kierkegaard e de Nietzsche, a
morte da filosofia foi muitas vezes proclamada e a ne
cessidade para o pensamento de voltar-se finalmente
para o importante — o existente humano em sua rea
lidade, como esse ser pelo qual, na angústia de ser,
advém toda questão e toda vontade — foi também pro
clamada muitas vezes. Essa corrente encontra sua ex
pressão mais alta e mais difícil na obra de Heidegger.
Não pretendemos aqui apresentar os temas dessa obra
nem tampouco determinar qual é a resposta do marxis
mo, pois o presente trabalho tem por fim apenas indi
car o que é a Aufhebung materialista e porque é desse
modo. Mas, seríamos incompletos se não observásse
mos, de um lado, que o marxismo não é o único modo
de superação proposto e que, de outro, a análise dessa
outra superação é para ele de grande importância, faz
parte de suas tarefas primordiais no momento atual na
medida em que lhe permitiria precisar sua posição e
compreender, com mais profundidade do que até agora,
as dificuldades do pensamento na hora da passagem.
Esses pensadores que também verificam o “ malo
gro” da filosofia e concebem a obrigação de abrir um
novo caminho, apresentam ao marxismo uma questão
séria: pretender afastar essa questão — como fizeram
vários doutrinários de inspiração marxista, a pretexto
de que essas reflexões são irracionalistas — é frívolo,
pois o objeto da pergunta é precisamente o do estabele
cimento da razão. Essa questão é tanto mais séria quan
to Heidegger reconhece a importância do marxismo 1:!
309
e, se toma outro caminho, é , ao que parece, porque
contesta que a superação operada por Marx seja sufi
ciente. Para Heidegger, não é apenas a filosofia que
deve ser posta em questão, mas a própria civilização
industrial e os modos de pensamento que correspondem
à “ civilização planetária” 14. O marxismo compreendeu
o mundo moderno, mas não o fez com bastante pro
fundidade; não viu que o que está na sua origem é
uma “perda” , a perda do sentido do ser em sua inte
gridade: o homem, desde Platão, esforçou-se em cons
truir uma (representação adequada da realidade, em
aprisionar o dado na rede das determinações lógicas
cada vez mais finas e sutis; consagrou-se a uma ação
espiritual, a uma ação de transformação, esquecendo
que o único verdadeiro devenir é o da physis originária.
A civilização técnica e seu infortúnio são o desfecho
desse “ erro” fundamental: porque jamais chegava a
elaborar a representação adequada que a satisfizesse in
teiramente, a humanidade abandonou-se à vontade de
poder que a conduziu ao “ niilismo” atual. Assim sendo,
toda tentativa para fazer dessa perda um ganho está con
denada ao fracasso: o que importa, é tentar inclinar-se
à escuta do ser, interrogar aqueles que a preocupação
da lógica e da técnica, no sentido moderno dessas ex
pressões ainda não tornou surdos e tentar, por um inter
rogatório constante, apreender o momento originário no
seio do qual seja dada a fusão real do que é e do que é
dito, onde a alteridade do pensamento e do ser mostre-se
como tendo sido sempre absurda, onde o lugar a mora
dia já seja o da presença e da razão. Trata-se de chegar
a essa presença em que a physis e o logos surgem de si
mesmos confundidos. A problemática autêntica não se
situa nem no mundo a-histórico das essências, nem na
história: encontra-se rumo à origem... O “ niilismo” dos
tempos modernos é o anúncio talvez de uma época em
que se assinala a possibilidade desse voltar à escuta do
ser, a esse retorno fundamental ao acontecimento que
310
está na própria fonte do ente e que permitiria ouvir a
resposta que está implícita na questão que o homem ss
propõe a respeito de si mesmo e do ser.
O que exige, em suma, ao que parece, um pensa
mento desse tipo — contanto que se possa em observa
ções tão breves e exteriores unificar seus temas e entre
ver sua profundidade — é uma radicalização total da
questão referente ao homem. A insuficiência do mar
xismo consistiria então em aceitar a historicidade hu
mana como fato que dispensa qualquer elucidação, em
esquecer que, além dos problemas postos na historici
dade, há o fato do próprio destino histórico que remete
a um momento originário em que esse destino se tra
çou. O que semelhante pensamento condenaria no ma
terialismo contemporâneo é considerar indiscutível a es
trutura da existência humana, sem procurar garantir
sua inteligibilidade, enclausurando-se no ente sem ten
tar compreender porque é assim e não de outro modo.
Que o fato da necessidade e do trabalho tenha deter
minado o sentido da história e tenha levado à formação
da civilização técnica, que permitiu tomar consciência
desse fato como decisivo, isso é claro, e, a respeito, a per
gunta é a um só tempo técnica (como isso aconteceu pre
cisamente?) e prática (como é preciso pensar e agir para
que essa civilização alcance seu pleno desenvolvimento?).
Mas, poderemos pensar em qualquer resultado com sen
tido se não explicarmos o fato do trabalho e da necessi
dade como estrutura necessária da existência? Ora, para
responder a essa questão, é preciso sair desses proble
mas limitados e voltar à questão sempre proposta e que
a metafísica, pelos pressupostos que aceita, fica impe
dida de resolver: de que se trata, a propósito do ser?
Já indicamos qual é, em tese, a resposta do mar
xismo. Consiste em negar que haja outros tipos de per
guntas e de soluções, referentes à estrutura dada da
realidade tal como é dada, além das que podem ser pro
postas pelas ciências positivas. Assim como não precisa
mos demonstrar que o homem é trabalho, também não
precisamos provar que é consciência ou ser mortal: tra
ta-se apenas de mostrar cientificamente que é assim.
311
E, essa apresentação só pode remeter a outros fatos e a
outros acontecimentos. O “ fundamento” da história hu
mana é a história natural. À pergunta leibniziana: “por
que há isto e não aquilo?” o marxismo responde deixando
a palavra às disciplinas positivas. E, à questão mais am
pla e mais profunda que tal pergunta suscita: “por que
há alguma coisa e não o nada?” , opõe o fato de que tal
questão, para ter sentido, supõe que possamos nos colo
car nessa esfera indeterminada que seria prévia à exis
tência; sem dúvida, podemos nos colocar nessa esfera,
mas em imaginação, e as soluções que traremos serão
também do domínio do imaginário, do domínio da
poesia.
Que haja angústia diante da morte e da existência,
é um fato; que essa angústia suscite sentimentos e pa
lavras, isso também é dado como particularmente carac
terístico do homem que vive os dramas da época da pas
sagem. Pode-se, certamente, afirmar que a revelação
dessa angústia é o acontecimento importante da época e
constitui precisamente o elemento no qual deve desen
volver-se o modo de pensamento que superará a filoso
fia. Essa afirmação, porém, por mais legítima que seja,
corre hoje o risco de ficar aquém da prática da huma
nidade. Pois, para o marxismo, o que determina o sen
tido e o conteúdo da interrogação teórica, é a problemá
tica prática do homem, compreendida esta como ato de
produção social dos meios de manter e desenvolver a vi
da humana e enriquecer suas possibilidades. Pode-se la
mentar o advento da civilização técnica, considerar o de-
venir do homem como uma “perda” e aspirar à tran
qüilidade que, no infortúnio contemporâneo, se recusa
e se anuncia. Mas, para o teórico marxista, não é de
modo algum operar uma radicalização entregar-se, a par
tir dessa nostalgia, a uma procura que permita ao pen
samento colocar-se à escuta do ser: pois, a seus olhos,
trata-se, ainda aqui, de uma tentativa que pretende rea
lizar a vocação do pensamento apenas no pensamento.
A pesquisa verdadeira radical é a que visa compreender
a promessa de uma satisfação que se acha contida na
vida atual a agir para que essa satisfação se torne efe
312
tiva. Não se trata, de modo algum, de eliminar os esfor
ços para abrir ao pensamento um caminho diferente dn
quele que é proposto pelo materialismo marxista, quali
ficando-os de irracionalistas, de místicos ou de “ reacio
nários” . É preciso antes definir as relações que entretém
com o modo de pensar filosófico e perguntar se a supe
ração que pretendem efetuar não passa da retomada —
em modalidades diferentes, no seio de outra problemá
tica ideológica e em dado momento da passagem — da
solução que, em seu tempo, Hegel havia elaborado.
Não se trata, de modo algum, como vemos, de pre
tender que os problemas individuais, que o problema es
sencial do indivíduo, sua imperfeição, sua angústia e sua
finitude, não tenham importância ou sejam resolvidos
pela construção de um mundo humano realmente coe
rente. Ao contrário, o que o marxismo afirma, ao qu^
parece, é que esses problemas só poderão ser resolvidos
— de que maneira? seria ingênuo querer profetizar —
em um universo onde o indivíduo se encontre finalmente
em liberdade, na riqueza de suas determinações singula
res. O que importa é conhecer a problemática atuál da
humanidade e participar lucidamente do combate que
ela trava para que se instaure uma sociedade que per
mita o desenvolvimento indefinido das potencialidades
humanas, que faça existir o homem como homem, que
realize a liberdade efetiva; uma sociedade em que o pen
samento seja liberto da sujeição natural e do temor, em
que a poesia — no duplo sentido do dizer e do fazer indi
viduais — da vida e da morte tenha sua livre eclosão:
em que o indivíduo seja capaz de formular e de resolver
pessoalmente seus problemas pessoais; em que nenhum
biombo mascare mais a presença à natureza e à vida da
cultura.
Marx dizia isso de um modo ao mesmo tempo mais
técnico e mais beloin: “ O reino da liberdade começa on
de acaba o trabalho determinado pelas necessidades e os
fins exteriores: pela própria natureza das coisas, está
313
fora da produção material. O civilizado deve, assim co
mo o selvagem, lutar contra a natureza para satisfazer
suas necessidades, deve fazê-lo em todas as formas de
sociedade e em todos os modos possíveis de produção.
Com seu desenvolvimento, ampliam-se, ao mesmo tempo,
o reino da necessidade natural e as necessidades: mas
as forças produtivas ampliam-se na proporção mesma
em que satisfazem essas necessidades. A liberdade, nes
se domínio, só pode consistir no seguinte: o homem em
sociedade, os produtores associados, regulam racional
mente essa troca material com a natureza, submetem-na
a seu controle efetivo em vez de serem dominados por
ela como por um poder cego; realizam-na com os esfor
ços mais reduzidos que é possível, nas condições mais
dignas de sua natureza humana e as mais adequadas a
essa natureza. Mas, um reino da necessidade subsiste
sempre. É além desse reino que começa o desenvolvi
mento dos poderes do homem, que é para si mesmo seu
próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade, que, no en
tanto, só pode desabrochar apoiando-se no reino da ne
cessidade. A redução da jornada de trabalho é a condi
ção fundamental”.
Talvez devêssemos acrescentar10 que a conquista
dessa liberdade individual, possível por um domínio mais
amplo da natureza, só poderá ser efetiva se a atividade
trabalhadora, fonte e meio da liberdade, for, ela própria,
livre, se os trabalhadores tiverem o poder político real de
organizar e gerir eles mesmos sua produção, de controlar
seus produtos, fazendo desaparecer assim totalmente, da
mais alta atividade humana, o trabalho, toda servidão e
toda alienação e fundindo em uma só e mesma prática
triunfante a -poièsis e a praxis.
31$
seu correlato, o dogmatismo, e de restituir ao conjunto
do método seu caráter científico. Parece que, nesse sen
tido, a solução proposta carece da radicalidade. Procura-
se mostrar precisamente que a degenerescência atual do
marxismo oficial não está somente ligada ao emprego
de conceitos erroneos, mas a um desconhecimento total
da revolução teórica operada por Marx. Tornando-se
doutrina oficial de Estados e de partidos institucionali
zados, o “materialismo dialético” escamoteia sistematica
mente o que há de fundamentalmente revolucionário e
crítico na obra de Marx, da qual só retém os aspectos ex
teriores, os mais “ metafísicos” e fabrica uma doutrina
“ confortável” cujo poder de contestação foi reduzido ao
mínimo. Assim, à crítica constante da sociedade indus
trial e de sua organização, desejada e desenvolvida por
Marx, substitui-se um pálido e insípido racionalismo utili-
tarista. Não será elaborando novos conceitos metodológi
cos que se poderá lutar contra semelhante falsificação,
nem tampouco apelando para as inquietações e a ironia
da subjetividade insatisfeita. A verdadeira contestação,
no nível teórico, deve operar-se em dois planos: pela aná
lise histórica do processo político, e econômico de dege
nerescência (a esse respeito as revistas Socialismo ou
1
barbárie e Argumentos trouxeram, em óticas diferentes,
preciosos elementos) e pela redescoberta do novo modo
de pensar definido e aplicado por Marx. É a esta segun
da tarefa que se aplica o presente trabalho.
As mesmas observações poderiam ser feitas a pro
pósito das Investigações dialéticas de L. Goldmann em
que o autor de Deus oculto revela os princípios meto
dológicos que lhe permitiram estudar, sob perspectiva
materialista e dialética, as obras de Kant, de Rascine
e de Pascal. Não se trata, aqui, de julgar tais inves
tigações (ver cap. IV ). Quaisquer que sejam, no en
tanto, seu valor e seu interesse, implicam uma inter
pretação do marxismo muito contestável: este não se
apresenta mais como um método particularmente fe
cundo — mais fecundo que o da “ história literária” .
Face à história idealista que só considera os indivíduos,
há a história materialista que define “visões do mundo”
316
e as integra dialeticamente em seu contexto econômico-
social. A revolução teórica operada por Marx é conside
rada apenas uma conversão do pensamento por uma
compreensão melhor do próprio pensamento. De fato,
essa interpretação do marxismo prende-se à ótica hoje
definida como “materialismo dialético” , concebido como
teoria geral do Ser e do Conhecer implicando certo mé
todo aplicável nos diversos domínios do conhecimento e
da ação. L. Goldmann, — porque tal é a sua “especia
lidade” — o utiliza a propósito da história da cultura,
como outros podem fazê-lo em outros domínios: arte,
ciência ou política. O sentido fundamentalmente prá-
tico-revolucionário do marxismo é posto entre parênte
ses e a teoria se aplica aos seus objetos habituais; a mu
dança radical de interesse desejada por Marx não é rea
lizada. Assim, L. Goldmann — Como J.-P. Sartre quan
do admite discutir Flaubert — situa-se na perspectiva
definida por Garaudy e entra no recinto fechado onde
se desenrolam esses debates irrisórios e essas lutas de
escola em que se trata de saber quem é mais “ forte” , o
materialismo “ ortodoxo”, o materialismo “ aprofundado” ,
o “ existencialismo ou a história tradicional” de inspira
ção cristã.
O livro de J.-P. Sartre, Crítica da razão dialética,
situa-se em perspectiva muito diferente: ocorre que —
julguemos válidos ou caducos os resultados que obtém
— uma obra desse tipo inaugura um novo modo de pen
sar — na filosofia francesa ao menos — ; a preocupação
do conteúdo e de seu movimento é constante: aos argu
mentos de escola se substitui uma análise reflexiva e
dialética que incide sobre a própria experiência. A con
clusão de Questões de método é, a esse respeito, signifi
cativa: constitui aparentemente uma transição entre os
textos publicados em Temps moáernes e a Crítica da
razão dialética; assinala, com efeito, uma ruptura. As
Questões de método consideram os problemas na perspec
tiva da filosofia tradicional. A Crítica da razão dialética
situa-se, desde logo, além dessa perspectiva: deixando
de lado a polêmica inútil, que sistematizamos em nosso
capítulo I, toma por objeto de sua reflexão crítica a pró
317
pria praxis. Realiza precisamente essa radical conversão
do interesse reclamada por Marx: o objeto da teoria não
é mais a Matéria, o Espírito, a preeminência do econô
mico ou do individual, mas o homem enquanto se cons
titui historicamente no seio de determinada formação
social. Nesse sentido, situa-se já no nível da superação
da filosofia e indica os objetos e os problemas aos quais
deve aplicar-se a teoria se quiser deixar de ser especula
ção abstrata. Todavia, a maneira de encarar esses pro
blemas e considerar esses objetos difere sensivelmente da
que foi descoberta por Marx e que o último capítulo do
presente trabalho tenta redefinir. J.-P. Sartre, fundan
do-se na experiência crítica — experiência que poderia
ser a de “qualquer um” no período pós-stalinista (p.
141) — propõe-se a lançar as bases de “ prolegômenos a
toda antropologia futura” (p. 153) isto é, reunir os ele
mentos de uma “ antropologia estrutural e histórica”
(p. 9, p. 156). Propõe assim certo número de “ modelos”
dinâmicos: modelos da relação inter-humana fundamen
tal, da socialidade, do grupo e de seus desenvolvimentos.
Define, assim, uma gênese ideal que vai da praxis indi
vidual à História, gênese que faz aparecer as categorias
— as “ essências” — graças às quais o devenir aventu
roso do homem poderá ser apreendido do interior de sua
necessidade. Procede, pois, como Rousseau no Discurso
sobre a origem da desigualdade e no Contrato social e
se refere explicitamente à análise abstrata a que pro
cede Marx no começo de O Capital. A propósito de tal
atitude, a questão não é de legitimidade, mas de legiti
mação. Que prova se pode dar da validade universal de
semelhantes modelos? O problema deve ser proposto no
momento em que, de todos os lados, nas ciências huma
nas, surgem “modelos estruturais” com a pretensão de
universalidade. Esses modelos e o que é proposto por
J.-P. Sartre, apesar de sua amplitude e de sua riqueza,
não escapam a essa crítica, e só podem invocar como fun
damento exemplos, tomados aqui e ali no devenir da hu
manidade. Pelo temor de fazer concessões excessivas à
razão positivista (a que preside à elaboração da história
científica, por exemplo) esse gênero de reflexão chega
318
a outro positivismo, menos controlado e menos perigoso
talvez: a escolha livre do pensador que isola as ilustra
ções que convêm à sua demonstração. Quando Marx
analisa abstratamente a natureza da troca, situa-se sem
dúvida fora da história: mas, o que então estuda, é uma
condição inerente a todo homem enquanto produtor e
reprodutor de sua existência. O “ modelo” proposto vale
apenas na medida em que revela um estatuto fundamen
tal comum à “humanidade genérica” . Não é certo, ao
contrário, que a relação ternária estivador-jardineiro-
cantoneiro ou que a análise das jornadas de julho de
1789 permitam apreender o conteúdo prático da relação
Grego-Bárbaro no século V ou o retorno triunfal de
Trasíbulo à frente de suas tropas após a tentativa de
Crítias. Não há, sem dúvida, antropologia estrutural ou
histórica: mais precisamente, uma antropologia histó-
ricà não poderia ser estrutural, no sentido em que desco
brisse estruturas universais. As estruturas que revela só
têm alcance e valor heurístico nos limites de determina
da época; e, se ocorre que as estruturas reveladas por
Marx em O Capital têm significação particularmente
ampla, é porque a realização da sociedade industrial, es
tudada por Marx em sua fase capitalista, revela o as
pecto fundamental, até então oculto, da existência hu
mana. O modelo marxista — em sua generalidade —
permite encarar com um fio condutor toda a civilização,
sendo claro que essa generalização indica apenas uma
direção de pesquisas, não de resultados. É de recear que
o modelo sartriano, pelo fato de dizer muito e não pro
var suficientemente, tenha apenas um sentido circuns
tancial. Bastará, no entanto, nesta fase da transição,
que o modelo seja circunstancialmete correto?
K. Axelos em Marx, pensador da técnica, pretende
reencontrar, além da degenerescência pós-marxista, a
mensagem autêntica de Marx. Ora, para apreender tal
mensagem, importa, antes de mais nada, compreendê-la
com suas contradições. Marx, teórico da praxis da so
ciedade moderna, constrói um humanismo prático que
nega e supera a metafísica ocidental; esse humanismo,
no entanto, cçn§erva alguma coisa daquilo que pretende
319
superar; desenvolvendo um materialismo e um realismo
simplistas, permanece na ótica da filosofia tradicional;
trabalhando pela supressão' de todas as alienações, negli
gencia — embora pressentindo — a alienação funda
mental, a dilaceração e a negatividade; convoca o homem
para a conquista do mundo e vê na técnica o meio de
realizar a humanidade, mas sabe também que toda téc
nica é fragmentária e despojadora. E o universo que
quer construir aparece ora como ser na plenitude de suas
determinações, ora como supressão de toda determina
ção, como nihil. Esse diálogo com Marx — alimentado
pelo pensamento nietzscheano e heideggeriano — res
taura toda a profundidade e complexidade de uma con
cepção que as apologias sociais-democratas, e em segui
da stalinistas, que as exposições críticas de inspiração
cristã freqüentemente apresentaram como “ sistema” su
perficial e linear. Conquistado esse ponto, e também a
idéia de que Marx, homem do século XIX, era tributário
daquilo contra o que lutava (metafísica ocidental, pro-
gressismo, política, positivismo cientista), resta uma
questão que põe em jogo toda a interpretação dada por
K. Axelos: é possível colocar no mesmo plano textos
como a Contribuição à crítica da filosofia do Estado de
Hegel, os Manuscritos de 1844 e O Capital? O ponto
de vista que aqui sustentamos é que O Capital e a ação
política constituem, em forma e conteúdo, a resposta às
questões propostas naquilo que se convencionou, na
França, chamar de “obras filosóficas” . O Capital, obra
científico-crítica, momento teórico da prática aue Marx
vê desenvolver-se em sua época pretende ser. pelo objeto
e proieto, a superação efetiva da especulação filosófica
e do economismo positivista (e, o que é desnecessário
dizer, do estreito praticismo político): inaugura —
descobre, diria L. Althusser em notável artigo publicado
no n<? 96 da revista Pensée (março-abril de 1951, pp.
3-26) — um novo modo de pensar que, na época da so
ciedade industrial em realização, deve substituir-se ao
Saber dos filósofos e ao empirismo parcelar dos cientis
tas. Pode-se lamentar que Marx tenha assim resolvido a
questão do homem moderno e pensar que as perguntas
320
formuladas nos Manuscritos de 1844 não tenham rece
bido uma resposta mais tópica e mais rica. É possível
julgar que as “soluções” propostas pelo O Capital negli
genciam uma parte importante, talvez; essencial, da
problemática humana. Procuramos mostrar neste tra
balho que enquanto essas “soluções” não são efetiva
mente concretas, enquanto as condições da satisfação
empírica universal, definidas por Marx, não nos são da
das, os outros problemas (o da finitude, em particular)
formulam-se em termos falsos, e mesmo que alcancem
profundidade e “ verdade” em um indivíduo, permanecem
sem conceito, quer dizer, sem expressão legitimável e sem
solução prática, pelo simples fato de se recortarem so
bre o fundo da insatisfação empírica universal.
321