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Série

RUMOS DA CULTURA MODERNA


Direção Editorial de Moacyr F élix
Volume 42
François Chatelet

LOGOS E PRAXIS

Tradução de
R o l a n d C o r b isie r

Paz e Terra
Traduzido do original francês:
LOGOS ET PRAXIS
© Société d’Édition d’Enseignement Supérieur, 1962

Capa:
R a g n ar L a g e r b la d

Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela


EDITORA PAZ E TERRA S.A.
Av. Rio Branco, 156 — s/1222
Rio d e J a n e ir o — g b .,
que se reserva a propriedade desta tradução.

19 7 2
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
Sumário

Prefácio

I — o MATERIALISMO DIALÉTICO E A CRÍTICA


CONTEMPORÂNEA
1. O materialismo dialético 12
2. As objeções do antimaterialismo 29
3. A resposta materialista 58
4. Novas objeções antimaterialistas 76
5. O sentido do debate 83

II — O EXERCÍCIO DA FILOSOFIA E O PROJETO DO DISCURSO


INTEGRALMENTE LEGITIMADO
1. O fundo da oposição materialismo-antima-
terialismo 86
2. O problema do discurso integralmente legi­
timado e o nascimento da metafísica 87
3. A solução metafírúca e o seu fracasso 114
4. Os caminhos após o fracasso da metafí­
sica 119
5. A superação da metafísica e o êxito da filo­
sofia 125
6. A “ciência” 137
III — 0 ÊXITO DA FILOSOFIA E A EXIGÊNCIA DE SUPERAÇÃO
1. Significação do saber absoluto 137
2. O êxito da filosofia e o destino empírico do
homem a “crítica” do jovem-hegelianis-
mo 141
3. Do “fracasso” do saber absoluto à idéia da
superação da filosofia 161

IV — o CAMINHO DA SUPERAÇÃO: A APREENSÃO DO HOMEM


EM SUA REALIDADE EMPÍRICA
1. Retomada dos resultados adquiridos 177
2. A solução filosófica do problema do Estado
e a exigência de superação 180
3. Problemas da definição do homem no seu ser
empírico 200
4. Notas sobre a concepção marxista de histo­
ricidade 218
5. O estatuto teórico do marxismo 233

V — O CAMINHO DA SUPERAÇÃO: AS TAREFAS DO


PENSAMENTO ATUAL
1. O estatuto teórico do marxismo e a decisão
filosófica 253
2. O que significa o materialismo marxista 264
3. O que significa a ligação da teoria e da prá­
tica 286
4. O que significa a superação da filosofia 298

Apêndice 315
Prefácio

E b a n a l e justo salientar a importância assumida


pelo pensamento marxista, como teoria e como prática,
na vida contemporânea. Forças sociais de importância
considerável organizaram-se, invocando — pouco impor­
ta, no momento, que tal patrocínio seja legítimo ou não
— princípios enunciados por Marx, Engels e Lênin; par­
tidos políticos, que desempenham papel decisivo na his­
tória atual, consideram necessário, quando fixam sua
linha estratégica ou determinam sua tática, referir-se
às análises ou às fórmulas do marxismo; Estados que,
pelo seu potencial econômico, sua população ou situa­
ção, pesam no destino da humanidade, fizeram do ma­
terialismo dialético sua doutrina oficial, que, não só é
utilizada — corretamente ou não — para elaborar ou
justificar políticas internas ou externas, mas é também
ensinada a milhões de indivíduos como a verdadeira con­
cepção da realidade e a expressão justa dos mais altos
ideais do homem; povos que a propagação do capitalis­
mo lançou no drama internacional, apesar da repugnân-
1
cia que suas tradições possam ter por semelhante modo
de pensar, voltam-se para o marxismo porque a luta des­
crita por Marx lhes parece ser sua própria luta e porque
a sociedade por ele anunciada é o objeto de seu mais
vivo desejo, embora muitas vezes o mais oculto. Em face
das grandes concepções do mundo — que as religiões
reveladas chegaram a definir e a transportar para a
realidade, a que o humanismo liberal pratica sem ter lo­
grado unificar sua estrutura teórica —, uma nova con­
cepção nasceu, a qual, apesar da oposição que encontra
e as violentas crises por que passa, constitui o elemen­
to histórico decisivo na dinâmica do mundo moderno.
Q filósofo, prevalecendo-se, com razão, dos direitos
do livre pensamento, poderá pretender desinteressar-se
de tal fato e ver em semelhante Weltanschauung uma
das muitas simplificações de que o vir-a-ser é costumei­
ro. Defrontar-se-á, novamente, com os problemas pro­
postos pelo marxismo a partir do momento em que qui­
ser levar em conta, em suas pesquisas, os resultados ad­
quiridos pelas ciências e pelas técnicas no que diz res­
peito à realidade humana. Perceberá, então, que aque­
les cuja especialidade pôs em relação com o homem, do
etnólogo ao psiquiatra, não podem, desde que levem
muito adiante suas investigações, negligenciar os temas
que Marx suscitou e cuja importância o marxismo cons­
tantemente salienta. Ser-lhe-á fácil, sem dúvida, na
análise dos métodos empregados e dos resultados obti­
dos por essas disciplinas, encontrar elementos que põem
em questão, sobre este ou aquele ponto, a validade do
marxismo: não poderá negar, porém, que o historiador
que salienta a função das determinações econômicas ou
o jogo da luta de classes e das camadas sociais, que o
psiquiatra que deve levar em conta, no tratamento deste
assunto, das estruturas econômico-políticas, dos mitos
e da linguagem que essas estruturas suscitam, que o
etnólogo que compreende tal tipo de “mentalidade” por
referência a tal nível de forças produtivas, que o soció­
logo que interpreta esse movimento em função dessa
mudança das relações de produção em determinada con-
2
juntura, adote, em maior ou menor número, noções de­
finidas por Marx e seus sucessores.
No momento que procure inteirar-se da complexi­
dade da vida econômica contemporânea, recorrer, como
material de sua reflexão, às disciplinas científicas, e,
em particular, às ciências do homem, desde que procure
resolver as questões tradicionais procurando apoio na
experiência atual, e procure elucidar, como historiador
da filosofia, a presente situação da cultura, o filósofo
encontrará o marxismo. E mesmo que tenha chegado a
elaborar uma doutrina original cuja problemática esca­
pe às determinações da época, ser-lhe-á necessário, sob
pena de não ser ouvido e de parecer negligenciar um as­
pecto essencial, situar-se em relação à ótica marxista, a
qual, hoje em dia, não é sério deixar ds levar em conta.
Ora, se esse filósofo, para saber com exatidão com
o que deve tratar teoricamente, interrogar as exposições
propriamente filosóficas do marxismo, será tomado de
grande surpresa. Verificará, inicialmente, que, na pró­
pria obra de Marx, não se encontram semelhantes expo­
sições; verá, em seguida, se consultar Engels e Lênin,
que sua preocupação em travar polêmicas em que se
misturam argumentação política e argumentação filosó­
fica deixa à analise chamada especulativa um domínio
muito restrito. Todavia, se voltar-se, como é normal,
para as obras marxistas atuais e, em particular para
aquelas que a conjuntura histórica oficializa, encontra­
rá textos cujo título e cujo estilo provam que se trata
realmente de pesquisas filosóficas, das quais pode espe­
rar um esclarecimento suplementar. Mas, esse contato
desprevenido com tais obras ameaça deixá-lo insatisfei­
to: observará desde logo que a diversidade dos autores
não implica necessariamente a diversidade dos pensa­
mentos e que, de um texto a outro, os mesmos temas e
as mesmas formulações se repetem, que a pesquisa, para
o marxismo atual, não consiste em demonstrar ou expri­
mir o verdadeiro de outra maneira ou melhor do que o
fizeram até então, mas em repetir peremptoriamente
verdades propostas de uma vez por todas, o único esfor-
3
ço de originalidade consistindo em procurar novos exem­
plos mais adaptados às circunstâncias e ao público vi­
sado. Enfrentará uma escola — no sentido mais restrito
do termo — que se compraz no jogo da repetição e da
citação e que se contenta em trazer uma revelação que
já contém todas as verdades essenciais.
Aprenderá, assim, que o princípio fundamental, pe­
lo qual é necessário começar sob pena de cair cedo ou
tarde no idealismo, afirma a anterioridade da matéria
em relação ao espírito, que é preciso confiar nas ciên­
cias e que estas, devidamente interpretadas, ensinam que
todos os processos da realidade natural e humana são
dialéticos, que a noção de progresso dialético implica,
entre outras coisas, a passagem da quantidade à quali­
dade. Em suma, estará diante de um conjunto organi­
zado de princípios, de uma filosofia completa que, em
relação a todas as questões importantes, diz o essencial
e que, apresentando-se como a expressão contemporâ­
nea do racionalismo, admite como ponto pacífico que as
descobertas e os acontecimentos futuros não deixarão
de justificá-la. Em face de tamanha segurança filosófica,
o filósofo indagará sobre o direito de que essas filoso­
fias gerais marxistas se prevalecem para liquidar tão
sumariamente a questão. Ficará surpreso em verificar
que o problema da legitimidade dos enunciados, em ge­
ral decisiva para o filósofo, é mantida, no mais das ve­
zes, em silêncio, que não é, por assim dizer, jamais en­
carada de frente e que as “filosofias” ou as “teorias do
conhecimento” marxistas preferem afirmar o que jul­
gam ser verdades do que formular o problema do esta­
tuto da verdade. Encontrar-se-á, então, na situação do
filósofo a quem se apresentam fórmulas como verdadei­
ras, mas a quem não se diz porque e a que título filosó­
fico são verdadeiras.
De fato, o êxito histórico do marxismo, a importân­
cia que assumiu nos diversos setores da pesquisa não são
acompanhados de desenvolvimento equiva^nte nesse do­
mínio da teoria que se costuma chamar de filosofia. Se
a concepção do mundo de que Marx definiu os temas.
4
assumiu amplitude e consistência, a “filosofia” que a
ela corresponde, pelo contrário, estiolou-se e esclero-
sou-s9 (é claro que nos referimos especialmente — so­
bre esse ponto nos explicaremos no começo do capítulo
primeiro — às exposições filosóficas do marxismo que
recebem a caução dos Estados e dos grandes partidos
políticos que invocam a obra de Marx). De sorte que, o
pensamento filosófico enfrenta atualmente um parado­
xo: para onde quer que encaminhe sua investigação,
encontra noções de que Marx foi o iniciador e se defron­
ta com o que J.-P. Sartre chama de “marxismo prático”;
mas, se interroga a doutrina filosófica atual que se
apresenta — e pretende ter algum direito histórico a
fazê-lo — como a herdeira do pensamento de Marx e de
seus sucessores, descobre apenas um sistema pobre e es­
quemático, aliando ao dogmatismo do estilo um con­
teúdo completamente injustificado e traindo as mais ele­
mentares exigências da reflexão filosófica.
Ora, tal situação faz recair, atualmente, sobre o de­
senvolvimento da pesquisa teórica, uma hipoteca mui­
to pesada. Instaura-se uma polêmica filosófica — o pri­
meiro capítulo do presente trabalho resumirá seus prin­
cipais temas, desenvolvidos, na França, ao longo destes
últimos anos, sendo a França um campo particularmen­
te revelador, em razão não só de seus hábitos filosóficos
e de sua paidéia mas também porque os movimentos re­
volucionários e o “marxismo prático” nele desempe­
nham há muito tempo importante papel — e opõe pen­
sadores que, longe de menosprezar a contribuição do
marxismo, recusam as filosofias gerais materialistas
atuais e se declaram antimaterialistas, a teóricos que
sustentam agressivamente uma doutrina que confunde
elementos do legado marxista e formulações ontológicas
ou “gnoseológicas” filosoficamente injustificadas. Seme­
lhante debate termina inevitavelmente na confusão, sus­
peitando a crítica antimarxista que, ao refutar as filo­
sofias gerais materialistas, não refutou totalmente a teo­
ria marxista, não sabendo porém onde encontrar essa
“filosofia marxista”, tendo os pensadores materialistas
5
a impressão de que não fazem senão dizer o que disse­
ram os fundadores da doutrina, esquecendo-se, no en­
tanto, porque e como o diziam e enclausurando-se no
dogmatismo.
O objetivo da presente pesquisa, que procura apre­
ender a significação teórica do marxismo, quer dizer de­
finir a maneira pela qual Marx, em oposição à filosofia
tradicional, concebe o trabalho teórico, em sua forma e
em seu conteúdo, é o de contribuir para levantar essa
hipoteca. O fio condutor que orientará esta pesquisa é
a verificação de qus hoje, tanto os adversários quanto
os adeptos do materialismo marxista, esqueceram a
idéia, decisiva para Marx, de que é preciso cessar de
“fazer filosofia”, no sentido em que Platão e Hegel “fa­
ziam” filosofia, que a tarefa do pensamento teórico é
doravante outra e que a constituição de um contexto
universalmente aceitável, por necessária que seja, não é
suficiente, e que a operação inicial que define o mate­
rialismo nega, supera e engloba a problemática filosó­
fica. A atual crítica filosófica do marxismo, as exposi­
ções filosóficas do marxismo dialético, desconhecendo
essa idéia, contribuem para separar ainda mais a in­
vestigação teórica do drama da vida contemporânea, a
voltar a essas discussões que Marx, depois de Hegel,
mostrou que é necessário precisamente evitar se quiser­
mos restituir ao pensamento teórico sua dignidade, se­
riedade, e eficácia.
As limitadas proporções deste estudo não permitem
ir muito longe na análise dessa idéia da superação ne­
cessária do modo de pensar filosófico; mas, o fato de
que semelhante tema seja hoje em dia tão constante­
mente desprezado e a dificuldade da tarefa, autorizam
talvez a dar apenas indicações e direções de pesquisas
ulteriores. Não é somente, devemos notá-lo, o sentido
profundo do empreendimento marxista que é, em geral,
esquecido; tende-se, também, a esquecer que, durante a
segunda metade do século XIX, no momento em que a
sociedade industrial começa a atravessar crises profun­
das que impedem não só de acreditar no otimismo libe­
6
ral, mas também de supor que um sistema, por gran­
dioso que seja, como o de Hegel, é capaz de dar conta
do mundo modemo, pensadores como Kierkegaard e
Nietzsche descobrem, eles também, “o fim da filosofia” 1
e reclamam a instauração de um novo modo de pensar.
O que chamaremos, ao longo deste trabalho, período de
passagem da sociedade industrial mal organizada à sua
organização correta e humana, período que começa na
Europa Ocidental com a morte de Hegel e no seio do
qual ainda nos encontramos, ressoa de semelhantes ape­
los e a obra de Heidegger deve ser compreendida, hoje
em dia, como um desses apelos. Todavia, seja qual for
a originalidade que tenha manifestado e a descoberta
que tenha feito, o modo de pensar filosófico — procura­
remos esclarecer o que entendemos por essa expressão
— mantém seu estilo tradicional e a técnica da prova,
critério do “êxito” filosófico que elaborou. Tão firme­
mente o mantém que o materialismo marxista, impe­
lido pelo ambiente, mas também pela preocupação da
propaganda, julgou necessário, desde a Dialética da na­
tureza, desde Materialismo e empirocriticismo, recons­
truir-se como filosofia e definir assim uma doutrina bas­
tarda, que ignora Marx e propõe uma filosofia não legi­
timada .
O caminho que se deve seguir para tentar eviden­
ciar essa exigência de uma Aufhebung da filosofia e que
deverá ser endossada pela teoria que se propuser apreen­
der o que há de importante da vida moderna, é difícil.
Provocará muitas oposições. E, em primeiro lugar, as
dos filósofos que dizem não ter sentido pretender su­
perar a filosofia por outra coisa que não seja uma filo­
sofia e que essa noção que acabamos de empregar, de
um estilo que seria próprio da filosofia, não é aceitável.
Procuraremos mostrar o que entendemos por filosofia e
que essa “essência” da filosofia, assim compreendida, é
a que admitiam, por exemplo, Platão e Hegel, e tam­
bém Marx, Kierkegaard e Nietzsche. Esta análise será
talvez criticada por interpretar livremente o marxismo.
Talvez tivesse sido mais correto estudar a obra de Marx
7
e ver em seguida por que processos o pensamento do
fundador se infletiu progressivamente, se é que houve
inflexão. O método seria certamente mais correto: mas,
além de sua aplicação superar de muito os esforços de
um só homem (também implicaria, com efeito, a aná­
lise dos movimentos históricos no seio dos quais se efe­
tuaram esses processos), correria o risco ds logo encon­
trar as mesmas objeções.
E o motivo pelo qual escolhemos o caminho da livre
reflexão, apresentando referências apenas quando é evo­
cada uma idéia precisa de determinado autor, pondo
entre parêntesis o aspecto político dos problemas pro­
postos, não tendo propriamente preocupação de histó­
ria da filosofia, mas visando, a partir dos temas consi­
derados reveladores, a definir a situação do pensamento
teórico atual e dissipar as confusões que embaraçam
seu desenvolvimento. A fim de evitar a abstração, to­
maremos como ponto de partida essa situação, evocando
o debate entre materialismo e não-materialismo sobre os
temas da filosofia geral marxista: Descobriremos, então,
o que a crítica antimaterialista condena nesta última
e, a partir desse ponto, poderemos enfrentar o problema
da “essência” do enunciado filosófico e mostrar porque
Marx reclamou (e como definiu) um novo modo de pen­
samento teórico e porque, atualmente, no período da
passagem, se desejarmos que o trabalho teórico mante­
nha sentido, deveremos elucidar, aprofundar e enrique­
cer essa descoberta de Marx2.

1 Cf. o artigo de K. Lõwith, “A conclusão da filosofia clássica por


Hegel e sua dissolução cm Marx e Kierkegaard”, in Recherches philo­
sophiques, 1934-1935, pp. 232-257 e a obra de J. Wahl, Estudos kier-
kegaardianos, em particular os capítulos IV e V.
2 Cf., em apêndice, as observações relativas a quatro obras publica­
das após a publicação deste estudo: A Suma e o Resto, de Henri Le-
febvre, Pesquisas dialéticas, de Lucien Goldmann, o t. I da Crítica da
razão dialética, de J.P . Sartre, e Marx pensador da técnica, de Kostas
Axelos.

8
I

O Materialismo Dialético
e a Crítica Contemporânea

D EPiNiDO tanto quanto possível, num prefácio, o


programa desta pesquisa, importa caracterizar mais ni­
tidamente o objeto do primeiro capítulo. Um dos as­
pectos mais significativos da situação do pensamento
teórico atual, na França, em particular, — já indicamos
por que razões esse exemplo parece característico —
parece ser o conflito que opõe os partidários do mate­
rialismo dialético e os filósofos que, interessados pe’a
teoria marxista, recusam, por motivos diversos, seus
enunciados fundamentais. Há cerca de quinze anos, po­
lêmicas às vezes violentas, nas quais a argumentação
propriamente teórica nem sempre pesou como seria de
desejar, puseram em evidência as contradições existen­
tes entre pensadores que, de pronto, declaram tomar
como ponto de partida os princípios do materialismo e
aqueles que, não só não admitem a imediata validade
desses princípios, mas concluem pela sua falsidade, in­
suficiência ou obscuridade. Entre todas essas críticas do
9
materialismo dialético, não há sem dúvida acordo com­
pleto no seio da própria crítica, e seria errôneo isolar
uma corrente não-materialista única, da qual se pode^
riam determinar claramente os temas positivos; parece,
no entanto, que filósofos com óticas e propósitos tão di­
ferentes quantos os que vão ser evocados nas páginas se
guíntes, têm, ao menos, em comum, a dupla idéia de que
é necessário falar do materialismo dialético e que é di­
fícil, desde o momento em que se fala dele filosofica­
mente, considerá-lo uma doutrina filosófica séria, quev
dizer, uma doutrina que atende às características nor­
malmente exigidas de um contexto filosófico.
Assim também, será lícito falar de um sistema
quanto ao materialismo dialético? Será justo, por exem­
plo, agrupar sob a mesma rubrica pensadores como
Henri Lefebvre e Roger Garaudy, Lucien Goldmann e
Pierre Naville? Se. a rigor, é inteligível evocar, em con­
junto, a crítica antimaterialista, na medida em que essa
critica encontra certa unidade na contestação, havevc.
alguma verdade histórica em supor a unidade do mar­
xismo teórico? A questão mereceria ser proposta se r
materialismo dialético fosse uma escola filosófica entre
outras. Ora, por motivos e causas históricas que o pre
sente trabalho não pretende analisar, constituiu-se um
marxismo, senão oficial, pelo menos oficializado, que
procurou e encontrou sua expressão filosófica, e a partir
do qual o filósofo, crítico ou partidário, queira ou não
é levado a situar-se. É tarefa do historiador da cultura
determinar qual dos dois, Stalin filósofo ou Lukács. au­
tor de Geschichte and klassenbewusstsein, representa
melhor o pensamento dos fundadores do marxismo. A
situação atual é a seguinte: ao lado de certas dispari­
dades de pormenor, há uma corrente de conjunto qir
— com ou sem razão — reivindica a ortodoxia e a obtém,
o materialismo dialético, em relação ao qual pesquisas
como as de Henri Lefebvre, Pierre Naville ou Lucien
Goldmann são consideradas dissidentes ou “originais” .
Em conjunto, o materialismo dialético, em suas
atuais exposições oficializadas, apresenta-se como uma
10
filosofia geral que soube propor e resolver, como con­
vém, os problemas tradicionais do ser e do conhecer.
Apoiando-se em textos como a Dialética da natureza ou
o Anti-Duhring de Engels ou Materialismo e empirocri-
ticismo, de Lênin, as obras de Roger Garaudy, A Teoria
materialista ão conhecimento e .4 Liberdade, ou de G.
Besse e M. Caveing, Princípios elementares de filosofia
— qu2 provocaram na França grande repercussão —
têm por objetivo opor aos sistemas que chamam de
“idealistas” um sistema materialista que responda de
modo concludente às questões que é habitual propor em
filosofia. Definem, assim, uma doutrina — veremos, em
confronto com a crítica que dela se faz, se é coerente
ou não — que constitui, atualmente, o materialismo dia­
lético .
Assim sendo, se quisermos, como propõe o “Prefácio”
deste trabalho, levantar a hipótese que atualmente im­
pede o livre desenvolvimento do pensamento teórico, im­
porta saber o que são essas exposições gerais do mate­
rialismo marxista. Não pretendemos distribuir certifica­
dos de autenticidade; não se trata de saber quem se
inscreve na linhagem de Marx ou quem a trai. Um pri-
neiro problema é proposto: a importância do marxis­
mo em todos os domínios da vida contemporânea; obras
aorssentando-se como a expressão correta, no domínio
da fUosofia, do pensamento de Marx e dos fundadores
do marxismo; um fato é inegável: as teses sustentadas
n~ssas obras são submetidas a contestação por autores
que sa’ientam suas lacunas e confusão. A primeira per­
gunta aue formularemos será, portanto, a seguinte, per-
punta imrênua que. como se verá, deverá ser ultrapas-
?ada: quem tem razão nesse debate? Quem tem direito,
do ponto de vista filosófico, nessa oposição, de reivindi­
car a verdade? Qual das duas correntes, o materialismo,
em sua expressão oficializada, ou a crítica antimateria-
lista. traz a prova de sua validade?
Neste primeiro capítulo, pediremos ao leitor que
admita por entre parêntes das correntes
designadas pela expressãc marxista e o
fato de que a crítica dos filósofos não-materialistas pro­
venha de horizontes muito diferentes. Para a comodi­
dade da exposição, pediremos ao leitor que admita sejam
qualificadas como filosofias gerais marxistas as perspec­
tivas defendidas pelos pensadores citados em notas, e
que seja chamada “filosófica” a crítica que delas é feita.
Esperamos mostrar, em seguida, que essas qualificações
não são apenas extrínsecas e que, de fato, a argumenta­
ção antimarxista atual é uma crítica, segundo o estilo
de pensamento filosófico, de um modo de pensar novo
que o supera e que o erro cometido pelas apresentações
atuais do marxismo — erro que implica em desastroso
desconhecimento de seu conteúdo e de sua significação
teórica e prática — consiste em apresentá-lo como filo­
sofia geral.
No momento, é necessário, se quisermos dissipar as
obscuridades, colocarmo-nos na própria confusão da si­
tuação atual e tentar definir a oposição entre filosofia
materialista e filosofias antimaterialistas, tentando cap­
tar o momento preciso em que se produz a ruptura entre
as duas óticas.

As teses sustentadas pelos que são considerados qua­


se sempre credenciados para exprimir o estado atual da
füosofia ou da teoria do conhecimento marxista, resu-
mem-se em poucas palavras, quer se apresentem em
obras de estilo erudito ou em textos mais limitados, de
vulgarização ou de apologética. O objetivo visado é sem­
pre o mesmo e as formulações permanecem idênticas:
trata-se de expor certo número de enunciados princi­
pais, muito gerais, pensados como se fossem decisivos
e fora dos quais não poderia haver nem verdade, nem
moralidade autêntica.
O problema não é o de refletir sobre o conteúdo
desses enunciados, de por à prova sua validade, de pro-
12
vá-los a outrem — admitindo que a ótica do interlocutor
possa ser, ao mesmo tempo, diferente e de boa fé —,
mas de repeti-los incansavelmente, sabendo descobrir
algum fato científico recente1, algum acontecimento
contemporâneo que os confirmem. Todo o esforço con­
siste, pois, em elaborar as fórmulas mais simples e mais
peremptórias — as que mais podem decidir o senso co­
mum a adotá-las e, além disso, em encontrar exemplos
originais, novas ilustrações. A idéia essencial, com efei­
to, é que, após a constituição do materialismo dialético,
nada de novo, de fato, no domínio da filosofia, aconte­
ceu, que apenas confirmações suplementares foram dadas
e que a única tarefa legítima consiste em expor nova­
mente, à luz dos fatos atuais, o que já é conhecido. Pa­
ralelamente, em perspectiva semelhante, todos os escri­
tos filosóficos depois do aparecimento de Materialismo
e empirocriticismo são considerados hábeis, ou engenho­
sas retomadas de posições que já foram criticadas por
Marx, Engels e Lênin: toda doutrina moderna é redu­
zida a uma obra refutada e é qualificada de solipsista,
como a de Berkeley, de teológica como a de Leibniz, ou
de agnóstica, como a de Kant ou de Mach2. A demons-

1 Roger Garaudy menciona assim ( Teoria materialista do conhecimen­


to, Introdução, pp. 43-44) quatro “passos decisivos” realizados pela
ciência soviética que confirmam e reforçam a validade do materialismo
dialético e permitem apresentá-lo em nova “forma” (mas com o mes­
mo conteúdo fundamental): “O triunfo espetacular dos mitchuristas
e de Lyssenko”, “o aprofundamento, pelos sucessores de Pavlov, de suas
teses sobre o segundo sistema de sinalização”, “as intervenções de Stalin
a propósito do marxismo em lingüística”, e o plano de transformação
da natureza, publicado em 20 de outubro de 1948. Assim também,
no conjunto da demonstração, o autor cita em apoio da ótica ma­
terialista: em cosmologia, O. Schmidt e Ambartsoumian, em biologia:
Oparine e Lepechinskaia.
2 Assim, para R. Garaudy (Id. introd., pp. 3-5) toda doutrina não
explicitamente materialista é idealista e “Berkeley form ulou... a tese
fundamental de todo idealismo”, que “conduz necessariamente ao so-
lipsismo ou à teologia”; e o autor cita, em apoio de sua tese, as
obras de Fichte, Bradley, Hamelin, Le Senne, Husserl e J.P. Sartre.
13
tração desenvolve-se, assim, na clareza e na simplici­
dade .
Surgem, assim, obras estranhas. As mais importan­
tes não repelem a erudição que, no entanto, é utilizada
em sentido único. Trata-se de encontrar a citação de
um dos fundadores do marxismo que convenha a este
momento preciso do desenvolvimento e, em última aná­
lise, parece que o ideal consistiria em justapor essas ci­
tações com tanta habilidade que o autor não tivesse fi­
nalmente outra coisa a fazer senão dar referências. Tra­
ta-se, também, de solicitar os resultados das ciências,
que, no entanto, são especialmente escolhidos para ilus­
trar a tese defendida; e, a esse respeito, é verdade que
o marxismo, na maior parte de suas atuais apresenta­
ções, não é um positivismo, pois os fatos estabelecidos
pelas disciplinas particulares não são recolhidos e reti­
dos quando são também confirmações da tese filosófica
proposta3. Todavia, essa vontade de encontrar sólidos
apoios é acompanhada pela preocupação de não compli­
car demais as coisas e, particularmente, de evitar os es­
crúpulos excessivos dos historiadores da filosofia ou dos
epistemólogos : a partir daí, escolherão — de acordo com
um critério do qual deve-se dizer que é bastante arbi­
trário — os textos “claros” (evitar-se-ão, por exemplo,
os Mamcscritos de 1844 e os Cadernos filosóficos, consi­
derados muito obscuros, e tratar-se-ão os resultados
científicos admitidos com a preocupação de vulgarizá-los
e simplificá-los. De tal conjunção, resulta um estilo pe­
dagógico muito particular. O leitor tem sempre a im-
3 Pois é admitido como ponto pacífico que somente os resultados
que convêm às teses do materialismo dialético são realmente cientí­
ficos. Cf. em particular, R. Garaudy, O humanismo marxista, sobre
os intelectuais, p. 252: “A concepção positivista está estreitamente
ligada à alienação do pensamento: exige que se registrem “fatos”,
“dados” e que se estabeleçam as relações constantes que os ligam.
Impede de ir além. O positivismo é fundamentalmente um agnosti-
cismo: todo pensamento que se esforça em ultrapassar a película su­
perficial das aparências “dadas”, do empirismo, é qualificado com
desprezo de “metafísica” .

14
pressão de estar um pouco na situação do escravo do
Menon; lembram-lhe, constantemente, o elementar e,
muito cedo, percebe que o consideram, seja qual for o
saber que possa possuir, de cabeça muito fraca. Esse
leitor esqueceu que não escapa ao domínio da ideologia
da classe dominante e que é idealista, mesmo se declarar
o contrário ou pretender desinteressar-se de tal questão.
A pedagogia converte-se, então, em polêmica e em retó­
rica: polêmica que visa ridicularizar toda atitude não
materalista, a opor ao vazio e à mentira do idealismo a
solidez provada dos enunciados da filosofia marxista;
retórica que tende mais a exaltar sem restrições os fun­
dadores do materialismo contemporâneo, esses gigantes
do pensamento que, afinal de contas, tudo previram (não
é possível, com algum cuidado, encontrar a citação que
corresponda a cada problema atual?) e a mostrar, ge­
ralmente a título programático, as possibilidades que
oferece à humanidade, em todos os domínios do pensa­
mento, a crença nos princípios do marxismo.
Esses caracteres gerais, de natureza formal, da maior
parte das atuais exposições da filosofia geral materia­
lista, não deixam de ter relação com o conteúdo que
expõem. Nelas encontramos, misturadas a referências
históricas e citações muitas vezes preciosas e belas e
enunciados científicos importantes, demonstrações su­
perficiais, refutações injustas ou levianas assim como
afirmações dogmáticas apresentadas em terminologia
monótona e sem matizes. Admite-se, em geral, que a viga
mestra do sistema é o enunciado segundo o qual a ma­
téria existe anteriormente e exteriormente ao espírito4.

4 Após a declaração: “o problema fundamental de toda filosofia é


o de seu começo”, à questão: “por onde começar? Pelas coisas ou
pela consciência que delas tenios?’’ R. Garaudy responde, Teoria ma­
terialista do conhecimento, introd., p. 1: “O materialismo afirma:
19) que os fenômenos do universo são os diversos aspectos da ma­
téria em movimento, sendo a matéria o que existe fora de meu es­
pírito e de todo espírito e que não precisa de nenhum espírito para
existir; 2?) que a matéria é, conseqüentemente, a realidade primeira

15
Esse princípio da precedência — a um tempo ontoló­
gica, cronológica e “gnosiológica” — da materialidade
sobre o pensamento, conteria, desde que corretamenta
interpretado, o segredo da verdade. Como é possível,
contra o idealismo (solipsista ou teológico) demonstrar
a validade desse princípio? Pode-se, desde logo, na se­
qüência do materialismo chamado ingênuo, apelar para
a prática quotidiana e lembrar que “o pudim se come”
pois é necessária toda a astúcia dos partidários de Ber-
keley, confessos ou não, para negar esse fato e preten­
der que a natureza seja apenas um feixe de sensações
subjetivas. Mas, além da experiência banal, é à ciência
que convém referir-se. Esta, não deixa chance alguma
às operações idealistas. Não mostra a fisiologia, sem equí­
voco possível, que o surgimento de uma representação
na consciência está ligado ao fato de que um agente
exterior vem tocar os órgãos sensoriais, determina o apa­
recimento de um influxo nervoso que é transmitido ds
transmissor em transmissor até a zona cortical onde, em
virtude de processos muito complexos, transforma-se em
representação desse objeto exterior6. A existência de re-

da qual nossas sensações e nosso pensamento não passam de produto


e reflexo”. Cf. J . Stalin, Materialismo dialético e materialismo histó­
rico, p. 10: “O materialismo filosófico marxista parte desse princí­
pio que a matéria, a natureza, o ser, é uma realidade objetiva exis­
tente fora e independentemente da consciência; que a matéria é um
dado primeiro, pois é a fonte das sensações, das representações, da
consciência, ao passo que a consciência é um dado segundo, derivado,
pois não passa do reflexo da matéria, o reflexo do ser”.
5 “O objeto situado fora de nós é anterior à imagem que dele for­
mamos; aqui também nossa representação, a forma, vem depois do
objeto, de seu conteúdo. Se olho e vejo uma árvore, isso significa
simplesmente que, muito antes que a representação da árvore tenha
surgido na minha cabeça, existia a árvore, que fez nascer em mim
uma representação correspondente” . J. Stalin, Anarquismo ou socia­
lismo, p. 23.
6 “A sensação é imagem da matéria em movimento. Nada podemos
saber das forças da matéria nem das forças do movimento a não ser
pelas nossas sensações; ora, as sensações são determinadas pela ação

16
presentações imaginárias, não pode constituir uma ob­
jeção dirimente, tanto quanto a possibilidade, para o
pensamento, de criar termos abstratos. Dados imaginá­
rios e conceituais têm a mesma raiz nesses movimentos
nervosos primeiros que nascem do contato do corpo com
o mundo no qual vive.
Em nível inferior, nos seres pouco evoluídos, essas
incitações provocam apenas movimentos reflexos sim­
ples; em seguida, à medida em que se complica o sistema
nervoso na escala animal, os reflexos se tornam mais
ricos e mais ágeis; fenômenos de condicionamento se
produzem e sensações cada vez mais ricas e cada vez
mais claras aparecem; ao nível humano, a prodigiosa di­
ferenciação do aparelho nervoso permite não só o con­
siderável desenvolvimento do sistema dos reflexos e das
ligações condicionadas, mas também a elaboração de um
segundo sistema de sinalização7. Graças a este, o ho­
mem torna-se capaz de pensamento e de palavra.

da matéria em movimento sobre nossos órgãos dos sentidos. Tal é a


lição das ciências naturais. A sensação de luz vermelha reflete as
vibrações do éter a uma velocidade aproximada de 620 trilhões de
kms. por segundo. As vibrações do éter existem independentemente
de nossas sensações de luz. Nossas sensações de luz dependem da
ação das vibrações do éter sobre o órgão humano da vista. Nossas
sensações refletem a realidade objetiva, quer dizer, que existe inde­
pendentemente da humanidade e de suas sensações humanas” . Essa
idéia de Lênin, Materialismo e empirocriticismo, p. 41, é retomada,
desenvolvida e comentada por R. Garaudy, id.t 11^ parte, pp. 136-147.
Cf. igualmente J. Stalin, Materialismo dialético e materialismo his­
tórico, pp. 10-11: “ . . . o pensamento é um produto da matéria, quan­
do esta atingiu em seu desenvolvimento um alto grau de perfeição;
mais precisamente, o pensamento é um produto do cérebro, e o cé­
rebro o órgão do pensamento”. E .G . Besse e M . Caveing, Princípios
fundamentais de filosofia, 10^ lição, § 2, p. 181: “A tese marxista
significa que o conteúdo de nossa consciência não tem outra fonte
além das particularidades objetivas apresentadas pelas condições ex­
teriores nas quais vivemos, dadas a nós pelas nossas sensações”.
7 Pavlov descobriu os mecanismos do reflexo em todos os seres vivos
cotados de sistema nervoso. Estudando em cada etapa o modo de
dependência do organismo em relação ao meio, definiu três momen-
17
Essa constante ligação, cientificamente estabelecida
por todas as disciplinas que visam tornar inteligível a
evo’ução füogenética e ontogenética do animal, entre a
diferenciação nervosa, a capacidade prática e a eleva­
ção do nível de consciência, é uma prova da verdade do
materialismo. Assim como a sensação subjetiva é cau­
sada por um fato objetivo que determina seu conteúdo,
assim tarnbém aquilo que o,s filósofos idealistas chamam
de ataa, pensamento, consciência tem origem na lenta
e dramática ascensão do ser vivo a formas cada vez mais
complexas*. Do inorgânico mais simples ao cérebro do
homem, há uma cadeia cujo estudo experimental já lo­
grou descobrir muitos anéis. A esse propósito, deve-se
salientar — acrescentam essas apresentações atuais do
marxismo — a importância de obras como as dos anti­
gos atomistas e dos materialistas franceses do século
XVIII; embora esses pensadores carecessem de suficien­
te informação científica, souberam desvencilhar-se das

tos decisvos na evolução do comportnmento: 1?) os reflexos incon-


dicionados organizados em instintos; 2*?) o primeiro sistema de sina­
lização constituído pelos sentidos, as cores, os odores, as formas, as
situações dos objetos no espaço, em uma palavra, todos os dados ex­
ternos ou internos dos órgãos dos sentidos; 3?) o segundo srstema
de sinalização, constituído pela linguagem, e que é característico do
homem” . R. Garaudy, icl., p. 176.
8 “As ciências naturais mostram que a insuficiência do desenvolvi­
mento do cérebro em determinado indivíduo constitui o maior entrave
ao desenvolvimento da consciência, do pensamento: é o caso dos idio­
tas. O pensamento é um produto histórico do desenvolvimento da
natureza em alto grau de perfeição que é representado nas espécies
vivas pelos órgãos dos sentidos, o sistema nervoso e notadamente
seu segmento superior, central, que comanda todo o organismo: o
cérebro. O cérebro reflete ao mesmo tempo as condições que reinam
no organismo c as condições externas”. G. Besse e M. Caveing, op.
cif., § 3, pp. 183-184. Cf. principalmente os desenvolvimentos con­
tidos na 2:l parte do op. cit. de R. Garaudy, Pré-história da sensibi­
lidade.

18
ciladas da superstição, da religião e do idealismo, e afir­
mar o primado da matéria9.
Esse primado, atestado pela análise fisiológica, pela
ciência da evolução, é também claramente confirmado
pelo estudo geológico e paleontológico. A idéia da cria­
ção do mundo por qualquer princípio transcendente tor­
nou-se inaceitável. O que prova a pesquisa científica é
que, anteriormente à época em que o homem apareceu,
sucedsram-se eras geológicas ao longo das quais, de
acordo com as leis da causalidade física, formações quí­
micas constituíram-se, permitindo o nascimento e o de­
senvolvimento do vegetal e do animal10. Trata-se de
épocas cujos vestígios e estruturas podemos atualmente
prescrutar. Em outras palavras, houve um tempo em
que alguma coisa existia efetivamente, em que alguma
coisa se produziu: a erosão alpina, por exemplo, na qual
pensamento algum, manifestamente, estava presente.
A idéia de que se constituiu uma “representação”, da
realidade — mesmo formaliter spectata, para retomar a
expre:são kantiana — mostra-se portanto absurda. E a
idéia, cara ao empirocriticismo, de um complexo sujeito-
objeto, anterior à diferenciação dos termos, é contestada
pelos fatos estabelecidos. A matéria, com a estrutura
que a ciência física revela, existiu anteriormente ao es­
pírito; existe sem ele. Não render-se a essas evidências
é mergulhar na ilusão e no misticismo; é opor a dados
objetivos crenças subjetivas.
De fato, o idealismo, em todas as suas diversas for-

9 Cf. Curso de jüosojia, Introd. üc C. Angrand, pp. 19-24.


10 “ . . . São as ciências naturais que nos mostram que o pensamento
apareceu depois da matéria. A matéria orgânica é um fenômeno tar­
dio, produto de uma longa evolu ção... e mesmo depois da forma­
ção, na terra, de matérias orgânicas, foram necessários milhares de
milênios para que nascessem formas superiores de matéria viva do­
tadas de sensibilidade. A consciência, o pensamento são produtos de
uma evolução mais avançada ainda. A matéria existiu, pois, antes da
consciência, e esta nasceu em certa etapa do desenvolvimento da
m a téria...” R. Garaudy, id., introd., p. 23.

19
mas, ideologia da classe dominante, não pôde elaborar-
se, desenvolver-se e durar, senão explorando o medo do
homem em face do desconhecido, sua debilidade diante
da natureza e, para a época contemporânea, salientando
as dificuldades de crescimento das ciências experimen­
tais. Há, sem dúvida, problemas que permanecem pen­
dentes e é normal que, influenciados pela concepção
obscurantista do mundo, apresentada pela religião e
pelas doutrinas irracionalistas, os cientistas tenham sido
freqüentemente levados a salientar essas dificuldades, a
desencorajar-se e apelar para explicações não-materialis-
ta s11. O conhecimento da verdade do materialismo mar­
xista permitirá, doravante, evitar semelhantes erros. As
ciências provam a validade do materialismo; este, po­
rém, estabelecendo alguns princípios claros que definem
um rumo e um programa, por sua vez, os orienta e lhes
dá o método de conjunto do qual careciam. Esse mé­
todo pode ser caracterizado em poucas palavras: trata-
se de ter sempre presente ao espírito a idéia segundo a
qual é correta e fecunda toda pesquisa que mostra a
anterioridade da matéria, que assegura o triunfo do ma­
terialismo. Assim, é trabalho científico e sério — contra
todas as sutilezas e os arcanos em que se refugia o vita-
lismo — afirmar que a estrutura celular pode formar-se
a partir de matéria viva a-celular12.
Entre as obscuridades que não deixará de salientar
a crítica antimaterialista, encontra-se a que sempre se
invocou a propósito do materialismo e que constitui, de

11 Tal é, entre outros, o caso de W .K . Ciifford, de P. Duhem, de


H. Helmholtz, de T. Huxley, de E. Mach, de W. Ostwald, de K.
Pearson, de H . Poincaré, de P. Volkmann citados por Lênin em
Materialismo e empirocriticismo. Tal é também o caso, no que se re­
fere à física contemporânea, de Niels Bohr e da escola de Copenha­
gue, de um lado, e de Einstein, de outro (Cf. Garaudy, id., III? parte,
cap. II, pp. 217-254).
12 Por exemplo, os trabalhos de O. Lepechinskaia, Origens das cé­
lulas a partir da matéria, amplamente utilizados por R. Garaudy, id.,
I? parte, cap. II, pp. 113-115.

20
fato, o argumento característico do bergsonismo: como
explicar, a partir da relativa simplicidade dos movimen­
tos nervosos, a riqueza da consciência? Como dar conta
da individualidade do pensamento tomando como ponto
de partida apenas a estrutura orgânica? De modo mais
geral, como evitar os impasses do epifenomenismo se,
para explicar o conteúdo do pensamento, adotam-se, co­
mo base única, os fatos corporais, registráveis objetiva­
mente, que o acompanham? A questão é capital e, na
medida em que as ontologias e teorias do conhecimento
marxista, atuais, visam constituir um sistema geral,
preocupam-se em responder a essa pergunta. A dificul­
dade para essas teorias, ao menos aparentemente, não
é considerável pois defendem uma concepção, não ape­
nas materialista, porém materialista-diaZéíica13. Vol­
taremos a tratar do significado desse termo, do sentido
que lhe atribuem, talvez levianamente, as exposições
contemporâneas do marxismo em França e do alcance
que, em conseqüência, conviria atribuir-lhe. Digamos,
porém, desde logo, que as filosofias gerais materialistas
das quais se procura, neste capítulo, resumir o estilo e
o conteúdo, inspiram-se no Engels da Dialética da Na­
tureza 14, atribuem à noção de dialética uma amplitude
bastante grande: incluem nessa categoria, — e, sem
dúvida, sem pensar que o pensamento da identidade há

13 Cf. as numerosas refutações do materialismo mecanicista, inspi­


radas nas análises de Engels, Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia
clássica alemã, parte II, in Etudes philosophiques, pp. 26-27: R. Ga-
raudy, op. cit. Introd., pp. 37-39 e Cone. da P parte, pp. 94-97; G.
Besse e M. Caveing, op. cit., 9* lição, parte II, pp. 153-156; J. Stalin,
Materialismo dialético e materialismo histórico, pp. 3-10; cf. igual­
mente, a título de exemplo, a defesa do pavlovismo como materialis­
mo não-mecanicista, por R. Garaudy, O Humanismo marxista, dialé­
tica e liberdade, p. 175: “A psicologia pavloviana... não se contenta
em adicionar reflexos, mas procede, ao contrário, por via de inte­
gração, de totalização, que comporta, nos diversos graus de desen­
volvimento do psiquismo, mudanças dialéticas qualitativas”.
14 E, em particular, as pp. 29-55 da trad. publicada pelas Éditions
Sociales.
21
muito tempo pôs em evidência as dificuldades que essas
assimilações continham — a justaposição ou a suces­
são das diferenças (o branco e o preto, a flor e o fruto),
o confronto dos juízos contrários (todo homem é mortal,
nenhum homem é mortal) e todas as formas de oposi­
ção das contraditórias. Assim, a tarefa de definir, de
precisar, em face das objeções, é consideravelmente sim­
plificada: desde o momento em que há devenir, quer se
trate de mudança (de alteração) ou de movimento, a
dialética é, sem dúvida, invocada; mas, basta que haja
simples diferença para que se proceda da mesma ma­
neira .
Veremos quais as críticas a que se expõe semelhan­
te atitude. É preciso determinar agora aquilo a que se
esforça em responder. À argumentação do espiritualis­
mo — quer dizer, do idealismo, que insiste na indepen­
dência da alma em relação ao corpo e na diferença qua­
litativa existente entre um influxo nervoso, por mais
complexo que se queira, e o mais pobre pensamento —
a ontologia (ou a “gnosiologia”) marxista, em seu ava-
iar contemporâneo na França, não responde. Mais pre­
cisamente, afirma que está de acordo; mas só o faz para
declarar imediatamente sua oposição a toda doutrina
que nisso encontraria um pretexto para o idealismo.
O que mostra a dialética, herdada de Hegel como bem
imóvel e inalienável, é que a idéia da passagem do
mesmo ao outro não é inconcebível, que Parmênides es­
tava errado quando queria compelir o enunciado a não
se contradizer e que a verdade está com Heráclito que
reconhecia a importância do devenir e da contradição.
Assim, da matéria ao espírito, do corpo à alma, o vín­
culo é dialético. A partir do momento em que a reali­
dade orgânica atinge certo estágio, produz-se um salto
qualitativo que faz aparecer o ser vivo e o explica em­
bora permaneça essa realidade orgânica, qualitativamen­
te inferior a ele. Assim também, em certo momento da
maturação nervosa, uma novidade aparece: o pensamen­
to. que, em sua totalidade, encontra sua causa na etapa
22
precedente e que, apesar de tudo, a ultrapassa e instaura
uma nova maneira de ser13.
Essas passagens dialéticas, já tão abundantes na
Filosofia da natureza de Hegel, não teriam maior con­
sistência se o pensamento materialista não lhes confe­
risse conteúdo científico. Para as ontologias materia­
listas contemporâneas, basta interrogar as disciplinas
experimentais para perceber que existe uma dialética
real da natureza. Sem entrar nas minúcias das leis da
dialética, é fácil verificar, mesmo no nível de uma in­
vestigação elementar, que a contradição rege todos os
fenômenos. Não é evidente, por exemplo, que a química
repousa sobre o fato do conflito entre corpos que se
opõem e que, entrando em combinação, fazem surgir
uma realidade nova que integra em sua composição os
elementos de ambos os corpos antagônicos? 10 Ou me'hor:
não se verifica que há — nos aminoácidos em particu­
lar 17 — combinações que, por assim diz?r, se recusam a
abandonar o que quer que seja daquilo que põem em
fusão, realizando a síntese perfeitamente bem sucedida?
Por que ir tão longe? A meteorologia adota como prin­
cípio a oposição do ciclone e do anticiclone; a e.etrici-

15 Cf. ainda Mao Tsé-Tung, “A j-»o"ósiio da prática”, in Cahiers


du Communisme, fevereiro de 1951, p. 242: “O que se chama de grau
emocional do conhecimento, isto é, o grau rias sjnsações e das impres­
sõ es... tal é o primeiro gra.i do conhecimento. A continuação da
prática social acarreta na prática dos homens a repetição múltipla de
coisas que percebem pelos sentidos e que nt-les produzem determinado
efeito; em conseqüência, produz-s.' no cérebro do homem um salto
no processo do conhecimento: surge o conceito. Por sua natureza, o
conceito representa a assimilação da natureza das coisas, do que têm
de comum, de sua ligação interna. Há, entre o conceito e a sensação,
uma diferença não só de quantidade, mas de qualidade” .
16 Cf. Enaels. Antidiihrinc, cap. XÍI. pp. 158-160 e R. Garaudy,
Teoria materialista do conhecimento, I? parte. cap. I, pp. 75-76.
17 Cf. J .B .S . Haldane, A filosofia marxista e as ciências, p. 120;
“Um aminoácido é um corpo muito particular. É um magnífico exem­
plo da união dos contrários — um ácido e uma base. Apresenta algu­
mas das propriedades de cada um deles c também propriedades novas”.

23
dade admite como ponto pacífico a contradição do pólo
positivo e do pólo negativo13; a própria matemática —
apesar dos preconceitos do formalismo da identidade que
a governam — reconheceu, além das simplicidades do
cálculo elementar, a existência de contradições: as do
-j_ e do — 5 10, do infinito em extensão e do infinito por
divisão, também a do & do cálculo infinitesimal que é
ao mesmo tempo uma quantidade e uma ausência de
quantidade20.
Assim, seja qual for o domínio da ciência para o
qual nos voltemos, a dialética, definida com a amplitude
que acabamos de indicar, manifesta-se como a lei mais
geral que rege os fenômenos. Determinante em física e
em química, também o deve ser em fisiologia e psicolo­
gia: o erro do materialismo é o de ter pretendido redu­
zir os fatos de consciência aos fatos corpóreos; ora, é
claro que há duas realidades diferentes por natureza;
essa diferença, porém, não implica de modo algum a in­
dependência da consciência em relação ao corpo; este,
em virtude de sua organização própria, a engendra dia-
leticamente. Os resultados adquiridos pela fisiologia
pavloviana já mostraram, sobre certos pontos, como se
opera semelhante causalidade dialética. Pretender que
tudo tenha sido esclarecido nesse, domínio, é antepor a
preocupação maníaca do fato às hipóteses geralmente
confirmadas pela razão científica. Uma vez que a natu­
reza é dialética, o é evidentemente em todas as suas
“regiões”; e, o que importa, é orientar os trabalhos cien­
tíficos nessa direção. Graças ao emprego dessa lei da

18 Cf. entre outros, Engcls, Dialética da natureza, p. 82.


19 Engcls, Antidiihring, cap. XIII, pp. 167-168.
20 Exemplo que, como o precedente, tem o mérito, não só de por
em evidência a existência de contradições, mas ainda de ilustrar a lei
da negação da negação (— ax + a = a2; do mesmo modo, adicionan­
do grandezas infinitamente pequenas, no cálculo diferencial, obtemos,
uma grandeza real). Cf. ibid. e cap. XII, pp. 153-154.

24
dialética, em suas quatro formas21, abrem-se perspecti­
vas de um saber sistemático positivo capaz de integrar
todos os resultados das ciências e desenhar um quadro
de conjunto da realidade e de sua evolução2-. Pode-se,
então, pelo jogo dessa nova causalidade, discernir as
principais etapas da evolução que conduziu os corpos

21 A análise de Stalin, Materialismo dialético e materialismo histó-


rico, pp. 4-5, é tradicionalmente repetida: — primeira lei (chamada
da ação recíproca e da conexão universal): “A dialética considera a
natureza não como acúmulo acidental de objetos, de fenômenos des­
tacados uns dos outros, isolados e independentes uns dos outros, mas
como um todo unido, coerente, no qual os objetos, os fenômenos,
estão ligados organicamente entre si, dependendo uns dos outros e con­
dicionando-se reciprocamente”; — segunda lei (chamada da mudança
universal e do desenvolvimento incessante): “A dialética considera a
natureza não em um estado de repouso e de imobilidade, de estag­
nação e de imutabilidade, mas como um estado de movimento e de
mudança permanente, de renovação e de desenvolvimento incessantes,
onde cada coisa nasce e se desenvolve, onde cada coisa se desagrega
e desaparece”; terceira lei (chamada da mudança qualitativa): “A
dialética considera o processo do desenvolvimento, não simples pro­
cesso de conhecimento, no qual as mudanças quantitativas não che­
gam a mudanças qualitativas, mas como desenvolvimento que passa
das mudanças quantitativas insignificantes e latentes a mudanças apa­
rentes e radicais, a mudanças qualitativas; onde as mudanças quali­
tativas não são graduais, mas rápidas, súbitas e se fazem por saltos,
de um estado a outro; essas mudanças não são contingentes mas ne­
cessárias; são o resultado do acúmulo das mudanças quantitativas in­
sensíveis e graduais; — quarta lei (chamada da luta dos contrários):
“A dialética parte do ponto de vista de que os objetos e os fenô­
menos da natureza implicam contradições internas, pois têm todos
um aspecto positivo e um aspecto negativo; um passado e um fu­
turo, todos têm elementos que desaparecem ou que se desenvolvem;
a luta desses contrários, a luta entre o antigo e o novo, entre o que
morre e o que nasce, entre o que perece e o que se desenvolve, é
o conteúdo interno do processo do desenvolvimento, da conversão das
mudanças quantitativas em mudanças qualitativas” . Para os comen­
tários dessas quatro leis, cf., entre muitos textos, R. Garaudy, Teoria
m a t e r i a l i s t a I? parte, cap. I, pp. 95-97, e G . Besse e M. Ca-
veing, op. cit. P parte, 1-7* lições.
22 R. Garaudy, id. Cone., p. 374: “A dialética materialista é o estudo
das leis mais gerais do movimento na natureza, no pensamento e na his­
tória. . e, algumas linhas adiante: “A teoria do conhecimento é a

25
mais simples à complicação do organismo humano e,
daí, ao pensamento.
Uma objeção, no entanto, ameaça surgir no espírito
idealista. Reduzindo assim, mesmo dialeticamente, o
“superior” ao “inferior”, não se retoma necessariamente
a ótica do epifenomenismo? Que acontece então com a
liberdade humana, com o poder do pensamento, com a
individualidade do ego consciente? Esse argumento, com
efeito, declara a filosofia geral materialista, repousa nu­
ma incompreensão do processo dialético23: a realidade
mais rica, engendrada a partir da realidade menos rica,
libera-se, por assim dizer, em relação a esta e se torna
capaz de reagir sobre ela. Assim, o pensamento nascido
da matéria será capaz, pela prática, pelo trabalho, de
transformá-la, de imprimir-lhe sua marca. Essa idéia da
reação do engendrado sobre o engendrante é particular­
mente clara no domínio da história: a ideologia, quer
dizer o conjunto dos pensamentos e das instituições vi­
gentes em determinada época, é uma superestrutura;
suas formas e seus conteúdos diversos têm como causa
a situação material do homem nessa época — sendo cla­
ro que se deve compreender a situação material não só
como situação natural, mas principalmente como situa­
ção social em que o nível das forças produtivas e a na­
tureza das relações de produção desempenham pápel de-

dialética, quer dizer, o estudo do movimento da matéria e de suas


leis, em todos os aspectos e em todos os níveis, desde o da mecânica
até o da história, e de seu reflexo na cabeça dos homens” .
23 Cf. J. Stalin, Socialismo ou Anarquismo, p. 22: “ . . . a idéia de
que a consciência é uma forma de ser não significa de modo algum
que a consciência, por sua natureza, seja também matéria. Só pensa­
vam assim os materialistas vulgares (por exemplo, Biichner e Moles-
chott), cujas teorias contradizem fundamentalmente o materialismo de
Marx, e que Engels com razão ironizou em seu Ludwing Feuerbach.
De acordo com o materialismo de Marx, a consciência e o ser, a
idéia e a matéria, são duas formas diferentes de um só e mesmo
fenômeno que, em tese, se chama natureza ou sociedade. Logo, um
não é a negação do outro e, além disso, não constituem um só e
mesmo fenômeno” .

26
terminante24. A ideologia, portanto, quer seja homogê­
nea, quer oponha correntes contraditórias, é produzida
por dado estado de fato, que ela reflete -5. Todavia, por­
que é consciente da situação, poderá, por sua vez, influir
no dado: poderá, por exemplo, denunciar sua injustiça
ou organizar uma ação política que produzirá — é o
caso das revoluções — uma transformação radical das
relações de produção que permitirá uma modificação do
nível das forças produtivas e, mais profundamente ainda,
uma transformação no ambiente “natural” do homem20.
Seria considerar unilateralmente o processo dialético e
ignorar os fenômenos de interação que se produzem entre
a causa e o efeito.
O materialismo marxista não desconhece, pois, nem
a existência, nem o papel do pensamento: salienta, pelo

24 Assim, após ter afirmado que o meio geográfico e o crescimento


e a densidade da população não são causas determinantes da “fisio­
nomia da sociedade, suas idéias, suas opiniões, suas instituições polí­
ticas”, J. Stalin em Materialismo dialético e . . . esclarece que a força
principal é “o modo de obtenção dos meios necessários à vida dos
homens, o modo de produção dos bens materiais”, entendendo-se que
este “engloba tanto as forças produtivas da sociedade quanto as re­
lações de produção entre os homens, e é assim a encarnação de sua
unidade no processo de produção dos bens materiais” (pp. 16-19).
25 Utilizando o célebre texto do Prefácio à Contribuição à Crítica
da economia política (ed. Molitor, p. 29): “Não é a consciência dos
homens que determina sua existência, é sua existência social que de­
termina sua consciência”, J. Stalin, por exemplo, escreve {id. p. 14):
“É prcciso procurar à fonte da vida espiritual da sociedade, a origem
das idéias sociais, das teorias sociais, das opiniões políticas, não nas
próprias idéias, teorias, opiniões e instituições políticas, mas nas con­
dições de vida material da sociedade, no estado social do qual essas
idéias, teorias, opiniões, etc. são o reflexo”; assim (p. 21): “ao modo
de produção da sociedade correspondem, quanto ao essencial, a pró­
pria sociedade, suas idéias e teorias, opiniões e instituições políticas.
Ou, mais simplesmente, tal gênero de vida, tal gênero de pensa­
mento”.
26 '\A superestrutura é engendrada pela base, mas isso não quer
dizer que se limite a refletir a base, que seja passiva, neutra, que se
mostre indiferente ao destino da base, das classes, à índole do regi-

27
contrário, as condições nas quais o espírito humano po­
de ser verdadeiramente eficaz e exercer um poder efeti­
vamente real. Constitui, assim, o único humanismo au­
têntico. Voltado contra o idealismo, que visa sempre, se­
jam quais forem seus disfarces, afastar o homem de sua
tarefa prática, difundir concepções místicas com as quais
as classes dominantes procuram fazer com que os explo­
rados aceitem a infelicidade e a opressão, a minimizar,
sob o falacioso pretexto de “fundá-los”, a importância
dos resultados científicos, a lançar a dúvida e o descré­
dito sobre a técnica e a exaltar doutrinas em que se de­
monstra que “o homem anda de cabeça para baixo27”,
a teoria marxista do ser e do conhecimento, apresenta
uma visão clara e científica das origens e da situação
real da humanidade. Graças às descobertas dos funda­
dores da doutrina, pela firme sustentação dos princí­
pios e pelo uso do instrumento dialético, novo impulso

me. Ao contrário, desde que surge, torna-se imensa força ativa, ajuda
ativamente sua base a cristalizar-se e afirmar-se; toma todas as pro­
vidências para ajudar o novo regime a completar a destruição da ve­
lha base e das velhas classes, e a liquidá-las” . J. Stalin, A propósito
do marxismo em lingüística, Últimos escritos, pp. 14-15. Semelhante
perspectiva é comentada por G. Besse e M . Caveing, op. cit. 4* parte,
19* lição e por R. Garaudy, id., principalmente na 4* parte, cap. II,
2 e cap. III, B; cf. igualmente R. Garaudy, Humanismo marxista,
p. 203: “As relações entre a base e a superestrutura não são de modo
algum mecânicas. A superestrutura não está simplesmente “colocada”
sobre a base, para protegê-la, como a palavra sugere. É, ao contrário,
“oposta” a ela, no sentido de que reage contra ela, a contradiz em
certos aspectos, para acelerar ou deter seu desenvolvimento” .
27 Foi a operação tentada, no começo do século, pelo empirocriti-
cismo e suas variantes, denunciada por Lênin, op. cit.; mais recen­
temente, é, segundo R. Garaudy, na época do capitalismo em decom­
posição, o sentido das obras de W . James e J. Dewey, Teotia mate­
rialista... p. 326, de Bergson, pp. 331 ss, de Merleau-Ponty, pp. 332-
359, dos estudos semânticos, pp. 362-363 e. finalmente, de todas as
pesquisas filosóficas que não consideram absolutamente verdadeiros
todos os principais enunciados do materialismo dialético.

28
foi dado às disciplinas experimentais28. A justeza da
concepção materialista, que as descobertas recentes e os
acontecimentos contemporâneos constantemente confir­
mam, proporciona, além disso, à humanidade, a possi­
bilidade de libertar-se dos preconceitos religiosos, do
obscurantismo, e constitui a poderosa alavanca por meio
da qual a ação em favor de um mundo de justiça triun­
fará.
Às sutilezas do idealismo, é preciso opor a clareza
dos princípios cuja evidência pode ser por todos compro­
vada. Não se trata, de modo algum, de rejeitar tudo o
que foi elaborado pela filosofia passada, mas de repensar
suas aquisições à luz do marxismo, à luz do pensamento
materialista e dialético, aquele que, para defender e ilus­
trar o princípio essencial: “a matéria existe anteriormen­
te e exteriormente ao espírito”, soube definir as quatro
leis da dialética, permitindo, assim, a constituição de um
método universal isento, enfim, de incerteza29.

Tal é, esquematicamente apresentada, em seu estilo


e conteúdo, essa filosofia geral materialista que pretende
ser, na atualidade, a expressão da teoria marxista-leni-
nista e, como tal, entra em debate com as diversas dou­
trinas e atitudes não-materialistas. Sua argumentação,
que acabamos de resumir, é diversa: apela ora para a

28 “A estrela polar que orienta o trabalho do cientista ou do filó­


sofo, é o materialismo dialético, a teoria materialista dialética do re­
flexo, a única doutrina filosófica que generaliza todo o conhecimento
científico” . R. Garaudy, id., IV parte, II.
29 “Essa filosofia (a filosofia marxista) realmente científica, apóia-
se em todo o conjunto das verdades relativas descobertas pelas di­
versas ciências e grupadas com o auxílio do método dialético, quer
dizer, do único método realmente cien tífico ...” Id., III® parte, III,
p. 280.
29
prática quotidiana e para a evidência “mundana” que
a acompanha30, ora para demonstrações análogas em
sua estrutura às demonstrações filosóficas tradicionais31,
ora para essa verdade positiva de que se prevalecem as
ciências experimentais32. Acontece-lhe, também, arriscar
(voltaremos a salientar esse aspecto), perspectivas mo­
rais e opor a solidez e a universalidade dos valores que
defende à fragilidade e a obscuridade dos valores “idea­
listas” 33. Na realidade, porém, não consegue nem per­
suadir nem convencer. Por mais que afirme que toda re­
flexão que não aceita os princípios do materialismo é le­
vada a tornar-se antimaterialista, que o idealismo é uma
sobrevivência e a base mais sólida do poder das classes
dominantes, não conseguirá eliminar do espírito dos fi­
lósofos, não suspeitos de paixão partidária, sua descon-

30 “Pois, enfim é claro, para todo homem são de corpo e de espírito


que o objeto não deixa de existir mesmo que não haja nenhuma ação
recíproca entre ele e o sujeito, quer dizer, mesmo que a experiência
não ocorra. Ninguém duvida de que o sol nascia e se punha antes
do nosso nascimento e do de todo ser vivo e que nascerá e se deitará
depois de nossa morte e mesmo após o desaparecimento de
qualquer vestígio de consciência e de vida em nosso planeta”. R. Ga-
raudy, O Humanismo marxista, dialética da natureza e materialismo,
p. 128. Cf. igualmente as formulações de Lênin, Materialismo e em-
pirocriticismo, p. 111: “A admissão ou o repúdio da noção de matéria
é para o homem uma questão de confiança no testemunho dos senti­
d o s ...” (nas duas citações o autor é que sublinha).
31 Cf. por exemplo a exposição do pensamento teórico apresentada
em Materialismo dialético e materialismo histórico, não havendo dú­
vida, aliás, Anarquismo e socialismo, p. 7> que “o m arxism o... é
uma concepção completa do mundo, um sistema filosófico” .
32 É o estilo geral da demonstração apresentada por R. Garaudy
em sua Teoria materialista do conhecimento, que citamos abundante­
mente, na seção anterior.
33 “Contra o individualismo exagerado e o pensamento sem ação,
o pensamento desencarnado do capitalismo em decomposição, o co­
munismo traz o sentido profundo de solidariedade humana e de efi­
cácia social: é pela minha colaboração com o todo que me torno um
homem”. R. Garaudy, O comunismo e a moral, p. 124.

30
fiança em relação aos enunciados fundamentais do ma­
terialismo ou, ao menos, a preocupação de criticá-los e
pô-los à prova. Debitará, então, essa “incompreensão” 34
na conta de hábitos mentais há muito enraizados na
profissão filosófica; e chegará a considerar essas obje-
ções um produto de dimensões psíquicas individuais.
Esses processos de nada lhe servirão na medida em que,
apresentando-se, desde logo, como filosofia, obriga-se a
aceitar o debate filosófico como tal; deve supor a boa fé
do interlocutor e reconhecer que, no diálogo, cada um
parte com as mesmas chances de atingir a verdade. Em
outros termos, uma vez que afirma ser a manifestação
contemporânea do racionalismo, obriga-se, ao mesmo
tempo, a admitir que, a uma demonstração correta, ne­
nhuma ótica individual, nenhum hábito de espírito pode
resistir. E, quando invoca a pressão da ideologia domi­
nante, comete uma petição de princípio, pois a própria
idéia dessa pressão só pode ser admitida por aqueles que
reconhecem a validade de suas perspectivas de conjunto.
De fato, na posição adotada por essa filosofia geral
materialista, nada, a não ser um subterfúgio, autoriza a
evitar a discussão filosófica tal como se costuma travá-la.
E é preciso dizer que a ontologia (ou a teoria do conhe­
cimento materialista), se considerarmos suas produções
atuais, não está de modo algum em situação de triun­
far. A crítica antimaterialista — e por essa expressão
designamos as objeções provenientes da filosofia perennis
e as que emanam dessas novas correntes chamadas exis­
tenciais — fará, em primeiro lugar, recair sua dúvida
sobre o sentido e a validade do enunciado fundamental:
“a matéria existe exteriormente e anteriormente ao es­
pírito”. Perguntará, e é difícil negar-lhe o direito de

34 Essa incompreensão tem como raiz as duas características dos


intelectuais qiu compreenderam “a falência da burguesia que os for-
nlOu,, mas “são levados a adotar o ponto de vista que contradiz
fundamentalmente a herança mais tenaz de sua formação burguesa”:
a abstração e o individualismo. Cf. Garaudy, Humanismo marxista,
sobre os intelectuais, pp. 244-247.

31
fazê-lo, o que querem dizer as palavras então emprega­
das . Verificará que, na demonstração dada pelo materia­
lismo a propósito desse enunciado, há ambigüidade. Nin­
guém jamais negou, dirá inicialmente, que “o pudim se
coma” e Berkeley jamais pretendeu que sua demonstra­
ção mudasse o que quer que seja no fato empírico tal
como se apresenta3r-: quer a “matéria” seja coisa-em-si
ou feixe de representações, propõe-se, ein todo caso, como
empiricamente real e é uma fraude confundir o imate-
rialismo do autor dos Diálogos de Hilas e Filonus com
o solipsismo — quem jamais foi filósofo solipsista? —
ou com qualquer irrealismo. É bem verdade, observará
a crítica, que o materialismo só se atém a essa argumen­
tação elementar nas polêmicas exteriores. A prova que
prefere utilizar é a proporcionada pelas ciências positi­
vas: fisiologia, ciência da evolução, paleontologia, geo­
logia36. Não percebe, porém, que confunde então dois
aspectos da objetividade sobre os quais há muito tempo
costuma a reflexão interrogar-se37. O problema posto

35 "Hylas: quando negais a matéria, sou levado a supor inicialmente


que negais as coisas que vemos e tocam os... Não concordaríeis em
conservar o nome de matéria e aplicá-lo às coisas sensíveis? Pode­
ríeis fazê-lo sem em nada modificar vossa maneira de pensar; e, acre­
ditai-me, seria o meio de conquistar certas pessoas que podem ficar
mais chocadas com uma inovação verbal do que com a novidade de
uma opinião. Philonous: de todo meu coração, conservai a palavra
matéria e aplicai-a aos objetos dos sentidos se o quiserdes” . Berkeley,
Diálogos cie Hylas e Philonous, p. 211, texto citado por Ferdinand
Alquié em sua demonstração de A nostalgia do ser, p. 53.
36 É o sentido de todas as análises feitas por Lênin em Materialismo
e empirocriticismo; é também a atitude assumida por R. Garaudy,
desde a 1* página de sua Teoria m aterialista...: “Essa filosofia (o
materialismo dialético) é totalmente fiel aos ensinamentos da ciência”.
37 Cf. a demonstração de F. Alquié, op. cit., pp. 52-55, consagrada
à refutação da “doutrina do objetivismo cientista... batizada mate­
rialista, e que consiste, contraditoriamente, depois de ter afirmado
que a matéria é anterior em relação ao espírito, em defini-la ao nível
do objeto científico, quer dizer, precisamente como construção do
espírito”: “os objetivistas. .. são, eles próprios, idealistas que se ig-

32
é o de sentido que convém atribuir à noção de matéria.
Lênin, por exemplo, declara que a matéria é “aquilo que
atuando em nossos órgãos produz a sensação; .. .é a
realidade objetiva que nos é dada na sensação” 38; admi­
te, pois, como ponto pacífico, que a materialidade é o
que nós percebemos e a causa da percepção. Há, com
efeito, duas definições que não coincidem exatamente
ou a propósito das quais seria preciso demonstrar, ao
menos, que remetem a realidades idênticas: de um lado,
com efeito, a materialidade é apreendida como aquilo
que se mostra — tò fainómenon — na percepção; de
outro, é considerada causa eficiente do ato de perceber.
Essa é uma assimilação que é perigoso fazer quando não
se provou sua verdade filosófica. De um lado, há, sem
dúvida, o mundo percebido que é horizonte da consciên­
cia e ergue diante dela sua opacidade e seus reflexos;
esse mundo é vivido tanto quanto é percebido, e sua
objetividade é uma objetividade de ser, a de algo irre­
dutível que está aí sem mim, mas sempre diante de
mim, e, de certo modo, por mim; de outro, há o mundo
estudado pelo físico e pelo biólogo, universo de ondas e
de forças, distribuído em um suscetível de ser estudado
experimentalmente e quantificado. Mas, quem garante
que esse dois mundos se correspondem? Com que direito
se confunde o ser, tal como aparece na imediatidade vi­
vida, e a construção do cientista? 39 Responderão que não
se trata de modo algum de assimilá-los totalmente, sa-

noram”, pois “assimilar o ser ao objeto conhecido, é constituir um


objetivismo que a mais simples reflexão, descobrindo que só há per­
cebido para um perceptor, transformará em idealismo” .
38 O p. cit. pp. 110-111.
39 Cf. por exemplo, M. Merleau-Ponty, Fenomenologia da Percep­
ção, Prefácio, pp. 11-111: “Tudo o que sei do mundo, mesmo pela
ciência, o sei a partir de uma visão minha e de uma experiência do
mundo sem a qual os símbolos da ciência nada quereriam dizer. Todo
o universo da ciência é construído sobre o mundo vivido e se qui­
sermos pensar a própria ciência com rigor, avaliar exatamente seu

33
bendo-se que o conhecimento científico é mais rico e mais
profundo do que a apreensão perceptiva, mas que, pre­
cisamente, aquele explica esta, que o mundo percebido
se explica pelo conhecimento conceituai que dele nos dão
as ciências positivas10; acrescentarão que estas — à mar­
gem de uma crise de nominalismo sempre provisória e
agora superada — sempre souberam que experimentam
com aquilo mesmo que os homens percebem e que acre­
ditam na existência real de entes científicos cujas leis
estabelecem.
Responderá a crítica, por sua vez, que é atribuir con­
fiança excessiva, filosoficamente excessiva, ao cientista
e às ciências, aceitar sem demonstração seus preconcei­
tos; insistirá mostrando de que modo o vivido, por sua
riqueza, por sua diversidade, excede sempre a descrição
científica que dele é possível fazer. Concluirá afirmando
que, nessa fase, aparece um primeiro aspecto do dogma­
tismo da filosofia geral marxista: confundir, como se
essa assimilação fosse ponto pacífico, o dado tal como
se mostra na vida e na percepção e o objeto-material,
a coisa-científica, tais como são conhecidos pelo cientis­
ta -11. Ora, devemos salientá-lo, essa crítica contemporâ­
nea não se faz em nome de um idealismo de tipo berke-
leyano ou mesmo fichtiano. Provém, freqüentemente,

sentido e alcance, deveremos inicialmente despertar essa experiência


do mundo do qual a ciência é a expressão segunda. A ciência não
tem e jamais terá o mesmo sentido de ser que o mundo percebido
pela simples razão de que é uma determinação ou uma explicação”,
e o cap. IV da Introdução, o Campo Fenomênico.
40 Cf. entre outros, Mao Tsé-Tung, Da Prática, que retoma, na análi­
se do grau emocional do conhecimento e de sua passagem ao grau
racional, a ótica tradicional, representada contemporaneamente por
Alain e L. Brunschvicg.
41 Cf. por exemplo, M . Merleau-Ponty, ibid., pp. 384-385: “A
coisa e o mundo só existem vividos por mim ou por sujeitos seme­
lhantes a mim, pois são o encadeamento de nossas perspectivas, mas
transcendem todas as perspectivas porque esse encadeamento 6 tem­
poral e inacabado” .
34
de doutrinas que, inspirando-se em graus diversos e em
orientações diferentes, nas filosofias chamadas da exis­
tência, estão prontas a reconhecer a independência ou
uma independência do ser em relação à consciência (em­
bora, para a maior parte delas, seja no ser da consciên­
cia que o ser se experimente com maior plenitude) mas
recusam-se a tratar o ser como o cientista considera seu
objeto e, mais ainda, a atribuir-lhe propriedades de ca­
ráter científico. Que haja “alguma coisa”, “exterior” à
subjetividade, que a ultrapasse por sua plenitude com­
pacta e pelo seu caráter próprio de ser dado (ou de ser
mostrando-se) isso, elas o admitem e o sustentam como
essencial; é ilegítimo, desse ponto de vista, ao menos se
conservarmos o sentido tradicional das palavras, qualifi­
cá-las de idealistas43. Algumas, dentre elas, salientam,
ao contrário, a realidade, a “exterioridade” e uma espé­
cie de precedência do ser que não é a consciência; sepa­
ram-se, no entanto, do materialismo, a partir do momen­
to em que este pede à ciência que prove essa indepen­
dência e justifique objetivamente o dado. E, se adotam
essa atitude, é porque não vêem de modo algum a neces­
sidade que leva do ser (experimentado, vivido ou perce­
bido) ao objeto (científico).
A seu ver, há uma grave carência, considerando-se a
exigência filosófica, no fato de que o materialismo assu­
ma por sua conta o realismo espontaneamente adotado
pelas ciências. Com efeito, além desse equívoco que pesa
sobre a noção de matéria, desenha-se o “cientismo” que
a ontologia marxista herdou do século X IX 43. Essa on-

42 Entre os autores aos quais nos referimos neste capítulo para ex-
por a argumentação antimaterialista, nenhum pode ser considerado
seriamente idealista. J. Wahl, F. Alquié, J.P. Sartre, M . Merleau-
Ponty, propõem, uns e outros, explicitamente, e sob perspectivas di­
ferentes, a independência do ser em relação à consciência; quanto aos
autores “cristãos”, J. Lacroix, H. I. Marrou, J. Y. Calvez, P. Bigo,
inscrevem-se, ao que parece, na corrente realista tradicional.
43 Sobre as acusações de cientifismo, de objetivismo e de naturalismo,
dirigidas seja a Marx, seja a Lênin e ao materialismo dialético con-

35
tologia utiliza constantemente as idéias de verdade, de
existência, de ser, de objetividade, sem jamais interro­
gar-se a respeito de sua significação, seu alcance filosó­
fico e o direito que temos de empregá-las. Acabamos de
verificar a ambigüidade dessa noção de objetividade que
significa, ora o fato de dar-se ou de ser dado à cons­
ciência, ora a possibilidade para um fenômeno de ser
integrado na rede das relações universais estabelecidas
pelas disciplinas positivas. É ilegítimo não reconhecer
essas duas significações, mesmo que fosse para redu­
zi-las em seguida a uma só. Mas, a carência é particular­
mente grave quando se trata com semelhante desenvol­
tura o problema do enunciado verdadeiro. Há como que
uma recusa em filosofar no fato de admitir, como não
constituindo problema, que alguma coisa possa ser co­
nhecida autenticamente; e, considerar o verdadeiro co­
mo um reflexo puro e simples do real “na” consciência,
é aceitar o mais ingênuo objetivismo. Sem dúvida, é justo
dizer que um enunciado é verdadeiro quando é adequa­
do ao seu objeto; mas, a filosofia consiste em perguntar
como se dá tal possibilidade, e de que modo, em todo
caso, se conhece e justifica essa adequação. Ora, acres­
centa a crítica antimaterialista, é inevitável, a partir do
momento em que se formulam semelhantes questões,
inerentes ao correto exercício da filosofia, que sejamos
remetidos do objeto ao sujeito; pois, na idéia de um enun­
ciado verídico, seja científico e cercado de todas as pre­
cauções experimentais, está implícita a noção de um
poder de verificação ou de legitimação pelo qual a ver­
dade advém, poder esse que não pode ser senão o pró-

temporâneo, cf. J.P. Sartre, Materialismo e revolução, Situações III,


pp. 136-145, Questões de método, Tempos modernos, n? 139, pp. 359-
361, M . Merleau-Pnty. A querela do existencialismo e Marxismo e
filosofia, Senso e Não-Senso, pp. 154-164 e pp. 253-276, As aventu­
ras da dialética, pp. 61-89; J.Y. Calvez, O pensamento de Karl Marx;
F. Alquié, A nostalgia do Ser, ibid.

36
prio sujeito 44. É inevitável que se abra, assim, uma
problemática obscura, difícil de resolver ou mesmo inso­
lúvel; mas a filosofia só começa se admitirmos seme­
lhante problemática e a exigência profunda de legiti­
mação que a implica. O materialismo, porque se tornou,
sem procurar disso justificar-se, o depositário das cren­
ças realistas e positivistas do século passado, menospre­
za uma questão que se tornou tradicional na filosofia;
a da possibilidade do verdadeiro, e por meio dela, a do
“valor da ciência”; considerando esse problema resolvi­
do antes mesmo de o ter proposto, representa uma re­
gressão do pensamento situando-se numa perspectiva
que é, no mínimo, anterior à crítica kantiana45.
Assim, embora pretendendo o título de filosofia, es­
sas exposições gerais da teoria marxista não compreen­
dem que é necessário distinguir dois planos, duas atitu­
des, dois domínios diferentes por essência. Há o domí­
nio da existência quotidiana, que é também o das ciên­
cias positivas, o domínio “mundano”, no seio do qual
o fato como tal — presença imediata na percepção natu-

44 “Se, portanto. . . o realismo não deve ser contestado, mas man­


tido, deverá, para isso, ser orientado. Pois, se permanecer ao nível do
qualitativo, ou mesmo da relação objetiva, não ficará, em nenhum
espírito sincero, ao abrigo da reflexão que nos leva a reconhecer que
a neve não poderia perceber-se a si mesma como branca, que o fogo
não se sente queimando, e que uma relação matemática não se pensa
sozinha”. F. Alquié op. cit. pp. 54-55.
45 De modo geral, o cientismo está ligado à teoria do reflexo que
constitui em si uma desoladora regressão do pensamento; cf. M.
Merleau-Ponty, As aventuras da dialética, p. 82: “Repetindo que o
pensamento é um produto do cérebro, e, através dele, do real exte­
rior, retomando a velha alegoria das idéias-imagens, Lênin pensava
instalar solidamente a dialética nas coisas, esquecendo-se de que um
reflexo não se assemelha à sua causa e que, efeito das coisas, o co­
nhecimento se acha por princípio aquém do seu objeto e só atinge
sua reprodução interna. Anulava-se, assim, tudo o que se pôde dizer
a respeito do conhecimento, desde Epicuro, e o próprio problema
de Lênin — o que ele chama de “questão gnosiológica” da relação
entre o ser e o pensamento — restabelecia a teoria do conhecimento
pré-hegeliana”.

37
ral, eficácia na ação ou presença controlada nos labo­
ratórios — constitui a única justificação exigida para a
validade de um enunciado. Quando o geólogo, por meio
de observações precisas e de manipulações experimen­
tais, mostra que tal camada de terreno, na qual discer­
ne vestígios humanos, é mais recente do que outra, em
que nenhum desses vestígios foi descoberto, apesar de
múltiplas investigações, quando, além disso, auxiliado
pelo químico e pelo biólogo, mostra de que modo a exis­
tência de determinadas condições naturais e a ordem
normal de evolução dos seres vivos tornam inteligível o
aparecimento de animais muito evoluídos, tem o direito,
cientificamente, de afirmar que “a materialidade des­
provida de consciência precede a materialidade dotada
de consciência”. As idéias de materialidade, de consci­
ência e de anterioridade, são por ele recebidas como se
não constituíssem problema; e isso é legítimo. O filó­
sofo não pode contentar-se com semelhante modo de
justificação; exige que as noções sejam plenamente elu­
cidadas; quer, sobretudo, que o conceito de anteriorida­
de revele sua significação e seu fundamento40 (veremos
como, a propósito do uso feito por essa filosofia geral
materialista da dialética, como se desenvolve sobre es­
se assunto a argumentação crítica). Admite que, além
dessa região “mundana”, desenham-se os contornos de
um domínio — estranho para aqueles que permanecem
na atitude natural, no qual se impõe a exigência do fun­
damento último, em que todo conceito deverá mostrar
seu significado último e “confessar” a origem do poder
de validação que possui, se é que o possui. Ora, a onto­
logia e a teoria do conhecimento materialistas ignoram
esse segundo domínio: conhecendo as ciências e seus re­
sultados, os aceitam, sem mais. Reivindicam, no entan­

46 Cf. as críticas às noções de dialética e de materialidade tais como


são entendidas pelo materialismo nas obras citadas, na nota 3 da p. 26
e também na 3* parte, cap. II da Fenomenologia da percepção e no
Tratado de metafísica, de J. Whal.

38
to. o título de filosofias. Não haverá nisso uma contradi­
ção grave ou, em todo caso, fraqueza ou cegueira?
Essa insuficiência do materialismo manifesta-se, co­
mo já vimos, na obscuridade da definição da materia­
lidade, interpretada ora como horizonte da vida, ora
como tò fainómenon, ora como objeto conhecido ou a
conhecer, como realidade científica. Suas relações com
o espírito, que, para a teoria marxista, é segundo em re­
lação à matéria, também não são claras. Freqüente­
mente, com efeito, a matéria é compreendida de modo
puramente negativo ou indefinido, para retomar a ex­
pressão kantiana: é considerada o que não é espírito,
aquilo que o precedeu; é representada como o não-espí-
rito que, no entanto, engendrou o espírito (na evolução)
ou o suscita atualmente (na percepção)47. Essa, porém,
não é uma definição aceitável: com efeito, ou bem a
espiritualidade é, de qualquer modo, deduzida da maté­
ria, retornando-se finalmente a uma posição análoga à
de Epicuro, Helvetius ou Vogt, de acordo com a qual a
consciência aparece como se fosse manifestação, atribu­
to ou espécie da matéria, concebida como substância ou
gênero último; nesse caso, permanece de pé o conjunto
das críticas dirimentes e dos fatos acumulados contra
o materialismo mecanicista; ou então, admite-se que há
mais no espírito do que na matéria — e essa parece ser
a perspectiva do marxismo — e, nessa hipótese, tratar-
se-á, ainda, de materialismo?48 Para que fosse assim, se-

47 Cf. J. Whal, op cit., p. 215: “ . . . só se pode definir a matéria


dizendo que ela é o que não é o espírito. Chegaríamos assim a esta
fórmula, para designar o materialismo, que o espírito não é o espírito,
e é produzido pelo que não é o espírito. O espírito deve ser reduzido
ao que não é espírito. Ora, mesmo para pensar a palavra espírito, é
preciso pensar alguma coisa que não é exatamente a mesma coisa
que o não-espírito. Não chegaremos assim bastante perto do que
podemos conceber como a dialética do materialismo, e mesmo como
o materialismo dialético”.
48 ld., p. 214: “pois como ter uma idéia precisa da matéria e como
atribuir um sentido preciso à palavra materialismo se há movimento
no espírito e na matéria”; cf. igualmente J.P. Sartre, Materialismo

39
ria preciso garantir a dedtição filosófica, que permitis­
se passar da materialidade (justificada negativa ou re­
lativamente) à espiritualidade de que qualquer um ex­
perimenta em si mesmo o caráter positivo. Em suma, o
materialismo, por essa série de argumentos, acha-se
acuado ao seguinte dilema: ou admite, sem razão filo­
sófica, a atitude realista49 e os resultados das ciências
positivas e trai a exigência filosófica à qual pretende
submeter-se; ou, então, submete-se a essa exigência e,
nesse caso, chega apenas a resultados medíocres, confu­
sos e obscuros60.
As filosofias gerais marxistas têm, como salienta­
mos, uma resposta pronta: o que a crítica chama de
confusão e obscuridade é, de fato, o resultado do em­
prego de um método agora comprovado: o método dia­
lético. As objeções antimaterialistas, desconhecendo o
caráter dialético da realidade e do pensamento, e das
ciências que os refletem, enxergam dificuldades que
uma doutrina que soube romper com os preconceitos da
lógica da identidade sabe facilmente superar. Basta com­
preender, como atesta o progresso do pensamento'tanto
filosófico quanto científico, desde que Marx e Eneels
souberam forjar o instrumento materialista dialético,
que a realidade está em vir-a-ser, que este envolve em
seu curso uma multidão de interações, que procede por
saltos e que toda mudança progressiva na quantidade
acarreta, em certa fase, uma brusca mudança qualitati-

e revolução, I, Situações III, p. 162: “ . . . nossos materialistas cons-


truíram sem boa fé um conceito escorregadio e contraditório de ma­
téria. Ora é a mais pobre abstração, ora a totalidade concreta mais
rica, conforme suas necessidades”.
49 J. Wahl, ibid.: “O que Lênin afirma, é . . . que há alguma coisa
que é dada; e é preciso partir desse dado. Quando Lênin fala de
materialismo, é freqüentemente ao realismo que se refere”.
50 ld., p. 215: “ ...poderíam os mostrar que uma tensão subsiste no
interior do pensamento materialista, e poderíamos dizer uma tensão
dialética, entre o materialismo dialético e o materialismo de teorias
como a de Watson e a de Pavlov”.

40
va. Os mistérios da passagem da matéria ao espírito, do
movimento nervoso à consciência, das dificuldades da
definição, a um tempo relativa e absoluta, da materia­
lidade, dissipam-se então. Vimos os numerosos exem­
plos dados pela ontologia e pela “gnosiologia” materia­
lista para provar a validade dessa ótica de conjunto,
exemplos tomados das ciências da natureza, da histó­
ria, das matemáticas, da lógica e da linguagem quoti­
diana.
Devemos, sem dúvida, reconhecer que o não-mate-
rialismo ou o antimaterialismo não está de modo algum
convencido por essa técnica dos exemplos. A crítica sus­
citará, inicialmente, objeções propriamente formais, que
já assinalamos: surpreender-se-á com a facilidade que
leva os filósofos marxistas a incluir no pensamento dia­
lético simples oposições lógicas — o branco, o preto, que
são unicamente termos contrários —, mudanças efe­
tivas ligadas ao fato do devenir — a semente, a flor, o
fruto —, fenômenos de tensão estudados pelo físico, ten­
sões expressas por meio de palavras contraditórias, - +
e, ciclone e anticiclone, diferenças reais ou concentuais
e contradições propriamente ditas. Acusará, então, seu
interlocutor de esquematismo; não terá dificuldade em
mostrar que, de um lado, na exposição geral, aceita um
modelo pronto que não procura de modo algum apro­
fundar e justificar e, de outro, recorre, para ministrar
a prova, a simples exemplos, heterogêneos extraídos ar­
bitrariamente das disciplinas do pensamento e das mais
diversas regiões da realidade.
A crítica contemporânea, porém, desenvolverá sua
argumentação especialmente contra a materialização da
dialética, operada pela filosofia geral marxista. Não se
trata de que a filosofia não-materialista atual recuse,
geralmente, a idéia de dialética51. Pelo contrário adota-

51 Nas páginas seguintes, utilizaremos as análises críticas da con­


cepção materialista dialética principalmente de J.P. Sartre e M. Mer­
leau-Ponty. Ora, é incontestável que esses dois pensadores usam cons­
tantemente “idéias negativas”, para retomar a expressão de J. Wahl.
41
a; atribui grande importância à noção do devenir for­
mador e, a esse respeito, abandonou a ótica atribuída
a Platão de acordo com a qual o movimento é, por na­
tureza, corruptor; verificou que a formação do homem
não se faz sem dramas e que, em conseqüência, impor­
ta considerá-la do ponto de vista de uma luta de con­
trários ou de contraditórios; essa noção da polaridade
do real lhe é cara e se compraz em descobrir essas rup­
turas em torno das quais desenvolve reflexões sutis e
atraentes. Na medida em que se esforça em recuperar a
“seriedade da vida”, encontra na dialética um meio que
convém à sua preocupação: o espírito de Hegel, quer
se transmita por Kierkegaard, Nietzsche, Dilthey ou
Marx, permanece vivo, assim como permanece constan­
te a recusa de uma metafísica que imobüiza as noções.
Assim também, a Hegel e a seus continuadores, toma a
noção de negatividade do homem, concebida de manei­
ras múltiplas. Ora é interpretada como nada da cons­
ciência que insere o vazio na compactidade maciça do
em-si; ora é experimentada como apreensão trágica da
finitude humana manifestando a presença do nada no
seio do ser; ora é considerada como o projeto que recor­
ta no horizonte da situação a vertigem das possibilida­
des indefinidas; ora, mais tranqüilamente, é concebida
como essa espécie de limitação positiva introduzida pelo
enunciado que nega o dado e, ao mesmo tempo, o eleva
ao rigor do conceito. Em todos os casos, como aspecto
da atividade, do sentimento ou do logos, o homem é con­
siderado um poder de negação que suprime, mantém e
integra aquilo com que se defronta. É claro que tal ati­
tude se faz acompanhar de uma presunção da histori­
cidade como dimensão essencial do homem; o indivíduo
humano não é: ex-iste; projeta seu ser que jamais é,
em virtude dessa temporalidade que é seu fundamento.
Todavia, essa perspectiva opõe-se radicalmente à
ótica materialista. Não admite, com efeito, que se fale
de uma dialética da natureza: a expressão lhe parece
desprovida de significação e julga surpreendente que a
filosofia marxista a aceite com tanta facilidade. Sobre
esse ponto, sua argumentação é de grande riqueza e nos
42
escusamos de mencionar dela apenas alguns traços. O
antimaterialismo — que é doravante um antimateria-
lismo dialético — apresenta, em primeiro lugar, a ques­
tão do sentido da história natural que a cosmologia, a
geologia, a paleontologia tomam como objeto de estu­
dos e que o marxismo utiliza abundantemente. Essas
disciplinas supõem um devenir real da natureza e se
atribuem como tarefa desvendar sua ordem efetiva; ad­
mitem, pois, a existência de uma temporalidade própria
a essa realidade ante-histórica. Quanto à ciência, seu
direito a semelhante postulação é evidente: a física, do
mesmo modo, atribui ao móvel que se desloca sobre um
plano inclinado uma temporalidade que é integrada em
seu saber na forma de um parâmetro. A operação, po­
rém, torna-se ilegítima desde o momento em que a fi­
losofia se apodera desse tempo para dele fazer uma tem­
poralidade real. Basta, para convencer-se disso, conti­
nua o antimaterialismo, considerar atentamente a pró­
pria noção de temporalidade. Um “lapso de tempo” é
uma série unificada de momentos sucessivos, quer dizer,
um conjunto dinâmico compreendendo uma ordem tal
que este momento existe antes daquele que, por sua vez,
precede aquele outro. Ora, só há temporalidade para
um ser capaz de unir agora esse momento passado lon­
gínquo e esse momento passado próximo, de operar uma
síntese entre olim e nunc. Um ser apenas é suscetível de
efetuar semelhante síntese e esse ser é a consciência hu­
mana que é, fundamentalmente, temporalidade, quer di­
zer, essencialmente memória e projeto52. A natureza, em
si mesma, limita-se a um eterno presente, pois cada um
de seus estados, embora ligado aos outros, não poderia

52 “Quando digo que anteontem a geleira produziu água que agora


corre, subentendo uma testemunha situada em certo lugar no mundo
e comparo suas visões sucessivas... A mudança supõe certo posto em
que me coloco e de onde vejo as coisas desfilarem; não há aconte­
cimentos sem alguém a queni aconteçam e cuja perspectiva finita fun­
da sua individualidade. O tempo supõe uma visão sobre o tempo”.
M. Merleau-Ponty, benoinenologiu <la percepção, 1119 parte, cap. II,
p. 470.

43
ser apreendido como seqüência do estado precedente e
como anúncio do estado seguinte"3. Assim sendo, afir­
mar que existe uma temporalidade da natureza, é pro­
jetar sobre o dado uma propriedade que só pertence à
consciência. De fato, o tempo das coisas só pode ser o
tempo de uma consciência que se acha em face das coi­
sas e as temporaliza. Para convencer-se disso, basta vol­
tar à experiência de si: que chamamos de temporalida­
de, no sentido originário, senão essa mudança que ex­
perimentamos precisamente porque guardamos a lem­
brança da situação que não é mais e sentimos abrir-se
diante de nós o abismo do futuro. Se não há um especta-
dor-ator, de certo modo onipresente, que faça existir es­
se acontecimento como tendo surgido antes dêsts ou­
tro, resta apenas a absoluta diversidade dos fatos he­
terogêneos. Assim, o esforço filosófico tendente a elu­
cidar a estrutura da temporalidade conduz do tempo
das coisas ao tempo da consciência e, daí, à consciência
do tempo (ou temporalizante), única que se apresenta
como temporalidade real54.
Essa argumentação, prossegue o antimaterialismo,
pode ser retomada a propósito da noção de história que
se acha implícita na idéia de história natural. Assim
como o tempo remete à consciência, assim também a

53 Ibid., “A própria noção de acontecimento não tem lugar no mun­


do objetivo”, e p. 471: “O passado e o presente existem demais no
mundo, existem no presente e o que falta ao próprio ser para ser
temporal, é o não-ser do alhures, do outrora e do amanhã. O nuindo
objetivo é pleno demais para que nele haja tempo”.
54 “O tempo é pensado por nós antes das partes do tempo, as re­
lações temporais tornam possível os acontecimentos no tempo. É pre­
ciso, pois, correlativamente, que o próprio sujeito não esteja situado
no tempo para que possa estar presente cm intenção no passado e
no futuro. Não digamos mais que o tempo é um “dado da cons­
ciência”, digamos, mais precisamente, que a consciência desdobra ou
constitui o tempo”. ld.y p. 474.

44
história remete ao homem55. Pela palavra história, de­
vemos, com efeito, entender o local dramático em que
uma ação ligada ao próprio passado retoma esse passa­
do em função do futuro que projeta. As diversas posi­
ções da bola no plano inclinado não são acontecimentos.,
mas simples fatos justapostos: o que constitui um acon­
tecimento, é o fato de que um cientista diante desse
fenômeno, à luz do que sabe, invente um novo conceito
que, conforme sua justeza, determinará de certo modo
o futuro. Em outros termos, para que haja história, é
preciso que haja um desejo ou uma vontade, um homem
que realize um ato, em certa situação e tendo em vista
certo fim (que não é necessariamente refletido como
histórico). A erosão alpina nada desejou e nada quis:
só é histórica por metáfora. Isso é evidente para quem
quer que tenha elucidado a ligação entre historicidade
e temporalidade. Só pode ser qualificada, a rigor, de
histórica, a ação humana, e, em conseqüência, o mé­
dium em que ela se desenrola; a humanidade, enquan­
to sofre, deseja e quer, secreta a temporalidade; fora
dela, há apenas um dado bruto que exige a temporaliza-
ção na medida em que se apresenta como horizonte do
conhecimento e da ação do homem. Não podemos dei­
xar de observar, desde logo, a ressonância kantiana des­
ta demonstração; ao sujeito transcendental, substituiu-
se o sujeito existencial; o homem, pelo fato que percebe,
não impõe apenas ao fenômeno o ser no tempo; porque
existe, impõe também à situação a ser vivida como tem­
po, ou, mais precisamente, como história.
Encontramos aqui um tema constante do pensa­
mento não-materialista contemporâneo e do nomina­
lismo latente que o anima. As propriedades atribuídas
aos objetos pelas ciências não são consideradas proprieda-

55 “ . . . é claro que a noção de história natural é absurda: a história


não se caracteriza nem pela mudança, nem pela ação pura e simples
do passado; define-se pela retomada intencional do passado pelo pre­
sente: só pode haver história humana”. J.P. Sartre, Materialismo e
revolução, Situações III, p. 148

45
des reais (ou de importância real); são antes considera­
das significações de certo tipo, significações intersubje-
tivas cuja raiz se encontra no ser humano considerado
seja como consciência, seja propriamente como existên­
cia™. E esse existente é considerado irredutível: descre­
ve-se, mas não se deduz. Em semelhante perspectiva, a
dialética, tal qual o materialismo a define, torna-se in­
teiramente incompreensível: não poderia ser concebida
como estrutura do movimento da natureza e da socie­
dade. Que significa, por exemplo, a luta dos contrários?
Pode ser que se trate de uma noção lógica: um conceito
só se põe opondo-se; ou mais precisamente, de acordo
com a sugestão de Spinoza, toda definição é uma nega­
ção e, como tal, implica em sua compreensão o termo
negado. É a razão pela qual as diversas disciplinas cien­
tíficas — pelo fato de se exprimirem num contexto —
apelam para relações de contrariedade que são, aliás, de
tipos extremamente diferentes: o positivo e o negativo
não se opõem do mesmo modo no domínio da eletricida­
de e no domínio matemático. Mas, seja o que for dessa
diversidade, a contradição (ou a contrariedade) é da
ordem da linguagem científica; remete a uma consciên­
cia que a estabelece, a põe em forma. Dir-se-á que, nes­
se contexto científico, a oposição dos termos reflete con­
tradições reais e que há luta efetiva, ruptura geradora
de movimento e de progresso entre o + e o — do mate­
mático, o pólo positivo e o pólo negativo do eletricista,
as forças de atração e de repulsão do físico, o ciclone e
o anticiclone do geógrafo? Seria falar, segundo a crítica
do materialismo, com a maior leviandade: para que ha­
ja luta real, é preciso que um dos termos seja efetiva­
mente positivo em relação a outro efetivamente negati­
vo. Ora, na natureza, só poderia haver plena positivida-
de: o sinal — é tão positivo quanto o sinal +, o cátodo

56 M. Merleau-Ponty, /V/., p. 151: “ . .. cada uma das equações da


física pressupõe nossa experiência pré-científica do mundo e essa re­
ferência ao mundo vivido contribui para constituir sua significação
válida” .

46
tão positivo quanto o ânodo e a alta pressão quanto a
baixa pressão. Se falamos de luta, é unicamente por me­
táfora ou, mais precisamente, por antropomorfismo. Se
existe dialética nas noções científicas, é apenas em vir­
tude de certas exigências da linguagem e da consciên­
cia57.
Assim também, prossegue o antimaterialismo, há
lirismo em pretender que a flor refute ou negue o botão
e que seja, por sua vez, refutada pelo fruto. A planta
amadurece, dá nascimento a um botão que desabrocha
e em seguida engendra a fruta: trata-se apenas de su­
cessão de estados, todos positivos e diferentes uns dos
outros. A consciência tomará a akmé de cada um desses
estados e interpretará a seqüência dos fatos como com­
bate dramático do seguinte contra o antecedente; assim
fazendo, romantiza. “A seriedade, a dor e a paciência”
do negativo só aparecem no nível do homem e da his­
tória humana. Na idéia de uma dialética da natureza,
há uma transferência ilegítima de uma realidade revela­
da ao nível da ação do homem, entregue ao trabalho e
à história, para a realidade natural. O ser humano é efe­
tivamente agente dialético, reconhecem certos antima-
terialistas; transforma o dado por uma ação negadora
e o objeto original ou a situação nova que faz surgir
constituem, sem dúvida, uma superação; o devenir que
constrói e ao qual, ao mesmo tempo, se acha entregue,
é certamente dialético: a burguesia industrial engendra,
em função de uma necessidade própria, sua contradição,
o proletariado, que não pode deixar de trabalhar pela
supressão das classes. Essa lei histórica tem um senti­

57 Cf. também J.P. Sartre, Id., p. 151, esta refutação da passagem


da quantidade à qualidade: “Para o cientista, a quantidade engendra
a quantidade: a lei é uma fórmula quantitativa e a ciência não dis­
põe de símbolo algum para exprimir a qualidade enquanto tal. O que
F.ngels pretende apresentar-nos como um passo da ciência, é o puro
e simples de seu espírito que vai do universo científico ao do realis­
mo ingênuo e retorna em seguida ao mundo científico para recuperar
o da sensação pura” .

47
do, pois corresponde à prática econômico-social do ho­
mem. O dado natural, ao contrário, nada manifesta de
semelhante: o terciário é diferente do secundário, a flor
diferente do fruto e a ciência tem por fim elaborar con­
ceitos que expliquem a passagem de um estado ao esta­
do diferente, e nada mais58.
Assim, mesmo quando reconhecem a existência do
devenir real da natureza, independente da consciência,
os adversários do materialismo surpreendem-se com que
se possa considerá-la submetida às leis da dialética. Ora
negam que se tenha o direito de falar de uma história
da natureza, a não ser no seio dessas “ontologias regio­
nais” que são a cosmologia e a geologia; ora admitem
essa possibilidade, mas recusam a essas disciplinas qual­
quer importância filosófica; em todo caso, declaram va­
zia de significação real a idéia de um movimento dialé­
tico da matéria que explicaria o devenir natural e o
aparecimento do homem e da história humana. O essen­
cial da argumentação consiste, devemos insistir nesse
ponto, na concepção desses pensadores a respeito da lu­
ta dos contrários e da negatividade. Ambas as noções
são consideradas por eles em termos de consciência:

58 Cf. esta observação de J.P. Sartre, Id. pp. 148-149, sobre a idéia
de Engels de que Darwin teria verificado em sua doutrina da evolu­
ção o princípio da dialética materialista: “ . . . s e Darwin mostrou
que as espécies derivavam umas das outras,, sua tentativa de explica­
ção é de ordem mecânica e não dialética... Quanto à luta pela vida,
não poderia produzir uma síntese nova pela fusão dos contrários: tem
efeitos estritamente negativos uma vez que elimina definitivamente os
mais fracos. Basta, para compreendê-lo, comparar seus resultados com
o ideal verdadeiramente dialético da luta de classes: neste último
caso, com efeito, o proletariado fundirá em si a classe burguesa na
unidade de uma sociedade sem classes. Na luta pela vida, •js fortes
fazem pura e simplesmente desaparecer os fracos”. Cf., ibid., p. 217:
“Não há “luta de contrários’* no seio da unidade material. Para di­
zer a verdade, não há nem mesmo contrários: o quente e o frio são
simplesmente graus diversos na escala termométrica, passa-se progres­
sivamente da luz à obscuridade: forças iguais e de sentidos opostos
se anulam e produzem simplesmente um estado de equilíbrio. A idéia
de uma luta de contrários é a projeção das relações humanas nas rela­
ções materiais” .

48
contradição e negatividade alimentam-se, em última aná­
lise, desse poder reservado ao espírito humano de não
ser mais ele próprio. Para esses pensadores, se o movi­
mento dialético e não: aZloíosis (mudança) ou kínesis
(movimento) vem ao mundo, é sempre pela mediação
do existente humano que, no seu ato ou sua presença,
tem por propriedade ser “distância de si mesmo em re­
lação ao objeto, e mesmo distância de si mesmo em re­
lação a si mesmo”59. Sem o existente humano, haveria
apenas a positividade compacta do dado.
Percebe-se o sentido dessa crítica: consiste em opor
a uma visão pretensamente científica e objetiva uma
perspectiva mais humana e mais real que não pode dei­
xar de recorrer ao papel determinante da subjetividade
como tal. O que se põe em questão, em suma, é a possi­
bilidade, para a filosofia geral materialista, de construir
um humanismo que atribua à humanidade o lugar que
lhe compete e, em particular, reconheça seu papel na
construção de seu próprio destino. O erro do materialis­
mo, comprometido com uma posição cada vez mais cien­
tífica, está em considerar o indivíduo humano como
coisa™, que recebe do exterior as determinações que o
levam a ser o que é, a fazer o que faz, está em despre­
zar — malgrado suas afirmações em contrário — o ca­
ráter decisivo da tomada de consciência e silenciar so­
bre a dimensão que confere ao existente humano sua
originalidade de ser: a liberdade01.
Esse preconceito de objetividade da filosofia mate-

59 J. Wahl, op. cit.


60 Cf. por exemplo, esta observação de J.P. Sartre: “Quando Marx
escreve: “A concepção materialista do mundo significa simplesmente
a concepção da natureza tal qual é, sem nenhum acréscimo externo’*,
ele se faz olhar objetivo e pretende contemplar a natureza tal qual é
absolutamente. Tendo eliminado toda subjetividade e assimilando-se à
pura verdade objetiva, deambula em um mundo de objetos habitado
por homens objetos” . “Questões de Método I,”, Les Temps modernes,
n<? 139.
61 “O idealismo do homem revolucionário o mistifica na medida em
que o amarra a direitos e valores antecipadamente dados; mascara-lhe

49
rialista, prossegue a crítica, é encontrado em todos os
níveis: o devenir histórico é considerado como uma sé­
rie de acontecimentos determinados pela infra-estrutura
e a categoria utilizada pelo historiador marxista é a de
causa6-', no domínio da crítica e da história do pensa­
mento, tal poeta ou tal pintor é vinculado imediatamen­
te ao meio social, econômico, que o leva a exaltar a tris­
teza do destino individual, se pertence à burguesia deca­
dente, ou a pintar reuniões de mercadores satisfeitos,
se participa de um mundo no qual triunfa a economia
mercantil; de modo mais geral, a situação, considerada
no sentido mais objetivo do termo, é considerada o fator
essencialmente determinante. Sem dúvida, o marxismo
fala de uma reação da superestrutura sobre a infra-es­
trutura e admite que um escritor tenha “ manias” . Mas,
se o faz, é sempre em termos de causalidade; e, em úl­
tima análise, a escolha do indivíduo é limitada ao aci­
dental, permanecendo o essencial, produto da infra-es­
trutura63.
Depois do materialismo e depois da dialética, é a ex­
plicação materialista em história que, por sua vez, se
contesta. Ao longo desta pesquisa tentaremos mostrar
que tal refutação interpreta o materialismo histórico tal
como é apresentado por Marx com uma curiosa ampli­
tude e só é válida contra as “ revisões” atuais04. Impor­
ta, no momento, mencionar seus principais argumentos.

o poder de inventar seus próprios caminhos. Mas o materialismo tam­


bém o mistifica, roubando-lhe a liberdade1*. J .P . Sartre Materialismo
e Revolução II, Situações III, p. 196.
62 Ou da condição necessária. Cf. a esse respeito a análise de J.P.
Sartre, “ Questões de M étodo” , Les Temps Modernes, n? 139, e, em
particular, as pp. 396-397.
63 C f. também J .P . Sartre ld., pp. 375 ss., a propósito de Valéry
e de Flaubert e Materialismo e revolução II, Situações III, pp. 192 ss.
64 A esse respeito, verifica-se que os autores que levaram mais longe
a crítica do “ marxismo oficial” — J .P . Sartre e M . Merleau-Ponty
— têm por objetivo salientar o pensamento vivo de Marx, seja distin­
guindo entre o que, em Marx, participa de uma concepção realmente
dialética e o que tende para um naturalismo cientista próprio do século

50
É evidente, antes de mais nada, que, ainda nesse nível,
o antimaterialismo contemporâneo não retoma as po­
sições tradicionais do espiritualismo e do idealismo: não
interpreta o devenir humano como límpida manifesta­
ção de uma vontade providencial, nem mesmo como re­
sultado do desejo ou da vontade de alguns personagens
que as circunstâncias ou sua “ forte personalidade” pu­
seram em condições de efetuar a contingência. Ao con­
trário, as críticas do materialismo histórico parecem
conceder-lhe, de início, alguns de seus temas fundamen­
tais03. O indivíduo é considerado “jogado” em um mun­
do que não desejou, com uma estrutura existencial dada,
a braços com uma situação histórica que lhe é imposta.
Sua “ facticidade” é dupla: de um lado, ele é, faça o que
fizer, e, de outro, é isto e não aquilo: francês, burguês
e gago e não italiano, bem falante e proletário. Seu tra­
balho, seus desejos, suas relações humanas, sua manei­
ra de viver e de sentir não são nem o resultado de uma
graça (ou de uma desgraça), nem o fruto de seu capri­
cho, mas fatos. E os fatos se compreendem à luz do pas­
sado e do meio econômico e social: o proletário na Fran­
ça, no meio do século XX, vive no seio de uma classe
que quer a paz e isso faz parte da história06.
Todavia, acrescenta o antimaterialismo, nada se dis-

X IX , seja pondo em evidência as contribuições freqüentemente sumárias


de Engels (J .P . Sartre fala do “ nefasto encontro com Engels” , Mate­
rialismo e revolução, p. 213, n° 1) e as contestáveis interpretações de
Lênin (M . Merleau-Ponty, “ As aventuras da dialética” , cap. III,
Pravda), seja, finalmente, opondo o marxismo como “ materialismo
prático” aos dogmáticos atuais.
65 Cf., por exemplo J .P . Sartre que declara ( Questões de método,
p. 351 e p. 358): “ Estávamos convencidos... de que o materialismo
oferecia a única interpretação válida da história” e “ quando Garau-
dy escreve (Humanité de 27 de maio de 1955) “ O marxismo constitui
atualmente, na realidade, o único sistema de coordenadas que permi­
te situar e definir um pensamento seja em que domínio for, da eco­
nomia política à física, da história à moral” , estamos de acordo com
ele (é o autor que sublinha).
66 C f. também as análises T 13 i ' P t m „ t í* n é n n t a q
parte, cap. 1, II, Liberdade
se a respeito do assunto quando se disse tudo isso. Mais
exatamente, situaram-no, mas não explicaram seu ser
na primeira pessoa. Não será, com efeito, senão um ele­
mento passivo do devenir histórico? A experiência mos­
tra que tal proletário vai constituir-se em proletário que
quer a supressão do regime que o explora, ao passo que
tal outro procurará salvar-se individualmente, tentando
“ aproveitar-se” do regime burguês. Essa escolha é irre­
dutível, na medida em que é primeira em relação a qual­
quer horizonte objetivamente dado. A crítica decisiva à
explicação materialista é de esquecer a consciência: ne­
nhuma situação é determinante, se não for assumida
pelo indivíduo como situação que .0 determina07. O que
esta demonstração volta a por em questão, é a noção
mesma de situação. Para esse antimaterialismo, uma si­
tuação objetiva é apenas um limite: toda situação é
para um sujeito que a constitui desta ou daquela manei­
ra de acordo com o que alguns pensadores não-materia-
listas chamam o irrefletido. Desse irrefletido, aliás, nada
há a dizer. Mais precisamente, deve-se manifestá-lo como
irrefletido inexplicável, no sentido estrito, e dado em
primeira pessoa, e tornar claras suas estruturas gerais
(é sexual, espacial, tem poral... etc.) e, quando se tra­
ta de Pedro ou de Paulo, resta apenas descrevê-lo. Uma
contingência se reintroduz, que não é a contingência
total da indiferença, nem tampouco a contingência li­
mitada daqueles que, absurdamente, “ levam em conta
a liberdade” : é a contingência mesma do existente hu­
mano integral e inteiramente livre03.

67 Cf., entre múltiplos textos, a notável análise consagrada por Sar­


tre, ob. cit., 4^ parte, cap. I, à fundação de Bizâncio por Constan­
tino.

68 Cf., o último capítulo da Fenomenologia da percepção e também


esta frase de Sartre, Materialismo e revolução II, pp. 205-206: “ As­
sim, a liberdade só se descobre no ato, constitui uma unidade com o
a to ;... não frui jamais dela mesma mas se descobre em e pelos seus
produtos... E . .. o poder de engajar-se na ação presente e de cons­
truir um futuro; engendra um futuro que permite compreender e mu-

52
Esse modo de conceber a ação e o papel do sujeito
leva a adotar, em relação ao problema da explicação na
história, uma atitude que contradiz a posição de rigor e
de objetividade definida pelo materialismo histórico. Ao
longo deste trabalho, repetimos, deveremos mostrar se
efetivamente o fato de considerar a história uma ciên­
cia, aproximativa, sem dúvida, mas rigorosa, implica
que se renuncie a atribuir à primeira pessoa o lugar que
lhe compete. Os críticos do marxismo estão convencidos
disso e se comprazem, a esse respeito, em retomar, com
maior ou menor clareza, os argumentos expostos por
Dilthev e reformulados em óticas diversas, pela “ filoso­
fia crítica da história” 09. A partir do momento, dizem
eles, em que o sujeito é interpretado — por motivos fi­
losóficos — como irredutível poder de escolha, como lu­
gar em que a significação se atualiza, torna-se absurdo
falar de determinismo histórico. O devenir faz aparece­
rem situações que definem, quer dizer, limitam, e mar­
cam o horizonte dos indivíduos; mas, o próprio de uma
situação é ser ambígua: este a considerará derrota, fu­
turo bloqueado e ameaça de morte, aquele a apreende­
rá como luta a encetar, futuro difícil e médium do he­
roísmo70. É, portanto, debalde reduzir o sujeito histó­
rico a uma causalidade qualquer, seja econômica, psí­
quica ou ideal. Os pensadores subjetivistas consideram,
aliás, que, freqüentemente, o materialismo substitui a
determinação que era habitualmente considerada pelos

dar o presente. Assim o trabalhador aprende, com efeito, a liberdade


pelas coisas: mas, precisamente porque as coisas lhe ensinam, é ele
tudo no mundo, exceto uma coisa” .

69 Devemos salientar, a esse respeito, a importância das obras de


R . Aron, Introdução à filosofia da História e a Filosofia crítica da
História; cf. também H . I . Marrou, D o conhecimento histórico e P.
Ricoeur, História e verdade (Introd. e 1* parte).

70 J .P . Sartre, L ’Etre et le néant, pp. 510 ss. a análise das atitudes


revolucionárias dos operários das fábricas de seda de Lião, em 1831,
e do povo parisiense em 1848 e o problema posto pela ação dos Gi-
rondinos, Questões de método, pp. 364 ss.

53
historiadores clássicos, a do caráter ou da vontade, uma
causalidade na aparência mais científica, mas igual­
mente “ dogmática” e, finalmente, naturalista. Pois, em
suas perspectivas, o sujeito é liberdade: nada determina
Constantino a fundar Bizâncio; dirá o especialista que
os acontecimentos o solicitaram a edificar um centro
romano que estivesse ao abrigo das ambições bárbaras;
mas, essa não passa de uma interpretação, a que se po­
de dar atualmente, agora que se pôde comparar o des­
tino diverso do Império do Oriente e o do Ocidente. Cons­
tantino nada sabia de tudo isso e seu ato fundador foi
uma aposta, triunfante, assim como a dos revolucioná­
rios franceses da Comuna foi uma aposta perdida. As­
sim sendo, se quisermos sistematizar uma visão “ con­
creta” da história, deveremos evitar o excesso de objeti-
vismo que consiste em privilegiar o aspecto econômico
da evolução humana71. É evidente que a dimensão eco­
nômica e social não deve ser desconhecida e que o “ idea­
lismo” clássico que reduz os atores do devenir a psykai,
mais ou menos bem dotadas ou mais ou menos bem in­
tencionadas é insuficiente; mas, igualmente insuficien­
te é o método que pretende limitá-los ao papel de “ pro­
dutores” ; é preciso “ inflar” a noção de situação a fim
de nela integrar todas as determinações próprias da exis­
tência humana72. O econômico não deve ser concebido
como fato decisivo, mas com essa mansira de existir

71 Cf., por exemplo, a oposição muito sugestiva estabelecida por


I . P . Sartre, ibid., pp. 353 ss. entre a ótica de Marx, explicando a
Revolução de 1848, e a perspectiva adotada pelo que ele chama de
“ idealismo marxista” : “ Jamais, em Marx, encontram-se entidades; as
totalidades (por exemplo, a “ pequena burguesia” no 18 Brumário)
são vivas” ; em compensação o “ idealismo marxista” procede a duas
operações simultâneas: a conceitualização e a ultrapassagem do limi­
te"; e o elemento que permite ambas as operações de empobrecimento,
é o “economismo” .
72 C f. a nota muito importante acrescentada por M . Merleau-Pon-
ty ao 59 capítulo da 1* parte da Fenomenologia da percepção, pp.
199-202, em que o autor desenvolve a tese segundo a qual a noção
de existência “ quando bem compreendida” permite superar a alternativa
economismo-espiritualismo.

54
muito importante que é vivida desta ou daquela manei­
ra — e, em particular, como importante ou não — de
acordo com a própria existência do sujeito. Trata-se, em
suma, de um esforço de síntese que não recusa o cará­
ter material do dado, que pode ser estudado objetiva­
mente, mas que o recobre com alguma outra coisa que é
o sujeito, a inexplicável escolha cujo caráter contingen­
te se impõe a quem quer que reflita sobre a noção de
ato humano. Sem dúvida dificilmente se verá em seme­
lhante ótica, que uma história científica possa vir a lu­
me. A essa última idéia, julgada ingenuamente positi­
vista, o antimaterialismo histórico contemporâneo subs­
titui ou o que chama de “ a colocação em perspectiva” ,
a partir da situação atual do historiador, ou uma espé­
cie de crítica que visa esclarecer o dinamismo profundo,
oriundo do próprio indivíduo histórico, e, no entanto,
dele ignorado, graças ao qual os atos desse indivíduo
assumem sentido de conjunto. Seja o que for desse pro­
blema epistemológico, a história rerum gestarum não
tem mais o caráter de disciplina objetiva, mas como um
dado de importância capital (porque, no plano ontoló­
gico, o sujeito é considerado como ser temporalizante
que secreta a história = res gestas), e, por natureza;
ambígua, que uma primeira pessoa, igualmente ambí­
gua, decifra e exalta em função de sua situação, de seu
projeto73.
De sorte que o devenir não tem um sentido, mas, de
acordo com uma fórmula célebre, sentido apenas; e, a
realização desse sentido, projetado existencialmente pelo
agente histórico (e pelo historiador) é, finalmente, pro­
blema de vontade. Vê-se claramente, nesse nível, o as­

73 Id., p. 201: “ Uma teoria existencial da história é ambígua, mas


essa ambigüidade não pode ser criticada, pois está nas coisas... O
ato do artista ou do filósofo é livre, mas não ssm motivo. Sua li­
berdade reside no poder de equívoco. . . ou ainda no processo dc fu­
g a . . . ; consiste em assumir uma situação de fato dando-lhe um sentido
figurado além de seu sentido próprio” . Cf., igualmente, o último ca­
pítulo do livro e, em particular, as páginas 505-517 de A ambigüi­
dade da história segundo Boukharine em Humanismo e Terror.

55
pecto freqüentemente moral que assume a crítica con­
temporânea do materialismo histórico. O que condena
no marxismo é a ênfase dada às motivações objetivas
que o leva a por entre parênteses o que permite um jul­
gamento moral74: para poder condenar a ação de um in­
divíduo, para poder apreciá-la, é necessário concebê-la
como livre; para todos esses pensadores, parece que a
idéia kantiana: “a liberdade é a ‘ratio essendi’ da lei mo­
ral” é considerada definitiva, embora permaneça tácita.
Além disso, em sentido mais moderno, a filosofia parece
ser concebida, para eles, menos como saber daquilo que
é do que como reflexão arriscada sobre a vida, reflexão
graças à qual um sujeito, atualmente, pode reconhecer
sua situação e agir com lucidez. Compreende-se melhor,
nessa ótica, porque certos adversários do materialismo
estão prestes a reconhecer a precedência histórica da
matéria em relação ao espírito — como afirmações cien­
tíficas — , sem que isso os leve a concordar com as ou­
tras teses do marxismo. Admitem que o terciário prece­
deu o quaternário; que o homem primitivo é o resulta­
do de uma complicação orgânica; pensam, no entanto,
ao mesmo tempo, que isso não é interessante75. Pois a
vontade humanista, moralista, os obriga a situar-se no

74 Salienta, também, a incoerência do pensamento marxista que se­


para teoria e prática, que trata teoricamente o homem como uma
coisa determinada por sua situação econômica e, praticamente, ao
nível da ação política, não pode deixar de emitir julgamentos morais.
C f. J .P . Sartre Materialismo e revolução II, p. 193: “ O simples fato
de que o revolucionário consinta em sacrificar sua vida por uma or­
dem a cujo advento jamais imagina assistir, implica que essa ordem
futura, que justifica todos seus atos e da qual no entanto ele não frui­
rá, funciona para ele como um valor. Que é, com efeito, um valor
senão o apelo do que ainda não é?M

75 É notável, a esse respeito, que o O Ser e o nada e a Fenomenolo-


gia da percepção comportem muitas análises propriamente históricas
nas quais o filósofo se esforça por apreender a atitude e a consciên­
cia do indivíduo, ou de determinada classe social, em face do drama
do devenir humano, ao passo que uma obra como Teoria materialista
do. conhecimento os ignora quase totalmente ou se contenta com os
esquemas explicativos habituais.

56
âmago do drama do indivíduo, sofrendo e combatendo,
a braços com a adversidade da situação. Que importa a
pedra polida e a lenta progressão da humanidade, se a
verdadeira questão não é a do começo, mas a do destino!
O essencial é esse ser singular que está diante dos meus
olhos, que carrega com ele sua salvação ou sua decadên­
cia, que arrisca sua vida ou sua dignidade em uma deci­
são quotidiana. Se quero compreendê-lo, e compreendê-
lo para ajudá-lo, é menos à sua gênese do que à sua vi­
são do mundo que me devo dirigir, à sua maneira de
existir. É de pouca importância que, antes do homem,
tenha havido pedras e amebas: atualmente um cogito
se interroga e se acha interrogado; a existência de um
ser vivo tem mais sentido do que a vida suposta e re­
construída do Australopiteco. Ciência e saber filosófico
objetivo estão englobados na mesma recusa, a recusa
de uma especulação inoperante que repele para a região
remota das idéias ou de um passado morto a solução de
um problema que o menor olhar que encontra o meu
suscita com urgência e necessidade. Eis por que os ensi­
namentos da ciência — nessa perspectiva que é muito
próxima da de Kant — são considerados, ao menos, co­
mo insuficientes: o que importa, é ajudar o homem a
forjar para si um destino; a pretensão à objetividade é
considerada ingênua e logo, aos olhos desse humanismo,
a história, naturalis encontra a história sacra entre as
ocupações inventadas pela cultura para tentar esconder
a inquietação do homem em face do sentido de sua exis­
tência.
Assim, o marxismo trataria com leviandade os pro­
blemas da subjetividade; e, desse modo, se exporia a
uma grave contradição: defendendo uma explicação ob­
jetiva da história, é levado a considerar o indivíduo co­
mo determinado; mas, propondo uma prática política,
deve apelar para a responsabilidade das pessoas. Quan­
do condena a covardia, a crueldade ou a hipocrisia des­
te ou daquele, põe-se em contradição com sua teoria fi­
losófica que define a consciência como reflexo e efeito
de um devenir e que apresenta a ideologia como produ­
to do vir-a-ser. Como conciliar esse apelo feito à liber-

57
dade e ao julgamento com aquilo que o antimaterialis-
mo considera negação da liberdade?70 Essa dificuldade
é sintomática, segundo a crítica, da ruptura existente
entre a prática marxista, enxertada na vida, e sua teo­
ria filosófica que, cega pelo preconceito objetivista, su­
bestima o papel do sujeito, diminui a importância da
“ tomada de consciência” individual e se priva de toda
visão realmente humanista. Assim como a crítica do ma­
terialismo apoiava-se na irredutibilidade do eu, assim
como as críticas à concepção dialética do ser material
fundavam-se na idéia da onipresença necessária de uma
consciência (ou de uma existência humana) negadora
e unificante, assim também a crítica feita ao materia­
lismo histórico põe em evidência a obrigação em que se
encontra para explicar o ato do homem em manter a
dimensão que lhe é tradicionalmente concedida: a li­
berdade.

A crítica de conjunto dirigida pelo pensamento an-


timaterialista contemporâneo à filosofia geral marxis­
ta aparece agora claramente: admitindo, na base de
sua concepção de conjunto, enunciados não legitimados,
assumindo a atitude não-reflexiva do cientista realista,
escolhendo arbitrariamente entre os resultados aqueles
que convém ao seu objetivo, desconhecendo o papel da
subjetividade, o marxismo, por seu estilo e seu conteú­
do, situa-se fora do domínio atribuído à filosofia; pre­
tende definir uma filosofia nova, enquanto apresenta

76 Cf. a observação de J .P . Sartre, Materialismo e revolução, id.,


n° 1.: “ Essa ambigüidade encontra-se nos julgamentos que o comu­
nista enuncia sobre seus adversários. Pois, afinal de contas, o mate­
rialismo deveria impedi-lo de julgar: um burguês não passa do pro­
duto de uma rigorosa necessidade. Ora, o clima de VHumanité, c o
da indignação moral” .

58
apenas uma teoria vaga e não justificada, tomando ao
século X IX positivista seus preconceitos e seus mitos:
acredita ter ultrapassado, pela introdução de considera­
ções dialéticas muito confusas, as insuficiências do ma­
terialismo mecanicista: nem por isso deixa de permane­
cer em ótica pré-kantiana; declara desenhar os contor­
nos de um novo humanismo; suprime de fato o que há
de mais precioso no homem, a personalidade irredutí­
vel. E essa carência geral, essa incultura de conjunto,
manifesta-se de modo especial, devemos repetir, no cons­
tante menosprezo por toda pesquisa de uma prova uni­
versalmente válida, de um saber apodítico que encontre
em si mesmo seu próprio fundamento. O marxismo co­
locar-se-ia assim, na crença e na paixão sem fazer o me­
nor esforço para delas libertar-se77: sua adesão às ciên­
cias, sua fé na realidade das coisas, sua decisão de su­
por uma lógica da história — posições que qualifica to­
das de racionais — tornam patente seu engajamento
na atitude natural ou naturalista, engajamento jamais
criticado, jamais posto em questão. Talvez haja uma jus­
tificação filosófica da sociologia, da economia política,
da política marxista. Em todo caso, não é a filosofia ge­
ral materialista atual que pode proporcioná-la78.
Essa filosofia responderá a tais argumentos com ex­
trema vivacidade; diante de tamanha incompreensão,

77 “ Essa confusão reflete-se na atitude subjetiva do materialismo em


relação à sua própria doutrina: pretende estar certo de seus princí­
pios. Afirma, porém, mais do que pode provar. “ O mateialismo ad­
mi t e. . . diz Stalin. Mas por que o admite? Por que, pois, admitir
que Deus não existe, que o espírito é um reflexo da matéria, que o
desenvolvimento do mundo se faz pelo conflito de forças contrárias,
que há uma verdade objetiva, que não há no mundo coisas incog-
noscíveis mas apenas coisas desconhecidas? Não nos dizem porque” .
J .P . Sartre, Materialismo e revolução, /, p. 167.

78 A o que parece, o propósito tanto de Sartre quanto de Merleau-


Ponty, é o de elaborar uma filosofia capaz de explicar, na direção
indicada por certos textos de Marx e contra o dogmatismo simplifi-
cador do materialismo dialético atual, o movimento da sociedade mo­
derna e do homem revolucionário.

59
abandonará sua bonomia e sua tranqüilidade: adotará
claramente, o tom polêmico. Perguntará — e para ela
é uma questão decisiva — em que ponto de vista se co­
loca a crítica para arbitrar esse pseudoconflito entre a
exigência filosófica e a concepção materialista. Devol­
verá, assim, a objeção que lhe era dirigida: condenavam-
na por despreocupar-se em legitimar seus enunciados;
em nome de que pretende o pensamento não-materia-
lista chegar a princípios plenamente legitimados? A que
critério se refere? Afirma situar-se no ponto de vista
fundamental, no “pensamento” , na “ razão” , na “presen­
ça” , no “ sentido” ; atribui-se, assim, arbitrariamente, a
possibilidade de julgar a partir de uma zona neutra,
prévia a qualquer opção entre o materialismo e o idea­
lismo; não tem, no entanto, direito algum de fazê-lo,
concedendo-se uma prerrogativa em si ilegítima79. En­
quanto afirma recusar qualquer pressuposto, pressu­
põe que há um além ou um aquém, à luz do qual é per­
mitido invalidar ou validar a atitude do cientista idea­
lista, julgar a objetividade e optar, com toda lucidez,
pelo primado da matéria ou pelo do espírito.
Essa “ zona neutra” prévia, esse lugar universal só
existe para aqueles que nele pretendem encontrar-se. O
que de fato existe — e, ao ver da filosofia geral mate-

79 “ Toda filosofia e, com efeito, um elemento da superestrutura


ideológica da sociedade. N o seio da ideologia, desempenha um papef
em função da base econômica dessa sociedade, seja servindo de jus­
tificação dessa base, seja, ao contrário, combatendo-a e preparando o
advento de novas relações de produção. Isso se explica porque o co­
nhecimento não flutua indiferente, acima da sociedade e da prática
social, mas, muito ao contrário, reflete em seu conteúdo o movimento
dessa prática e adquire sua significação exprimindo as exigências que
se desenvolvem no seio dessa prática. . . O homem não pode, pois,
tomar das coisas uma consciência que seja absolutamente neutra, ab­
solutamente indiferente às relações de produção características do grau
de desenvolvimento da sociedade na qual vive” . J .T . Desanti, In ­
trodução à História da Filosofia, I, II. 3, p. 60.

60
rialista que se funda em enunciados de Engels80, esse
é um dado histórico sobre o qual não cabe mais discus­
são — , é uma oposição que domina todo o vir-a-ser do
pensamento: a do materialismo e do idealismo. E essa
oposição, a propósito da qual é inútil tergiversar, apa­
rece na escolha que se faz no começo>81. Se escolhermos
como ponto de partida a consciência, e a interrogação
que dirige a si mesma, tenderemos imediatamente para
uma “ gnosiologia” idealista que, negando, no ponto de
partida, a existência do objeto e privilegiando a do sujeito,
correrá logo o risco de resvalar para o solipsismo ou a
teologia82. Se preferirmos considerar inicialmente o ob­
jeto, a fim de determinar em que condições objetivas se
acha refletido na consciência, seremos levados a atribuir
toda a importância às ciências positivas e todo seu po­
der à razão humana; estabeleceremos, então, as bases
de uma teoria do conhecimento materialista. Do mesmo
modo, se considerarmos o problema ontológico em sua

80 Ludwing Feuerbacli. . . , II I e, em particular: “ Conforme respon-


diam desta ou daquela maneira a esta questão (a grande questão fun­
damental de toda filosofia e especialmente da filosofia moderna, a da
relação do pensamento e do ser), os filósofos se dividiam em dois
campos. Os que afirmavam o caráter primordial do espírito em rela­
ção à natureza. . ., formavam o campo do idealismo. Os outros, que
consideravam a natureza como o elemento primordial, pertenciam às
diferentes escolas do materialismo” , p. 22.

81 “ O problema fundamental de toda filosofia é o de seu come­


ço. Estamos engajados em uma realidade de múltiplos aspectos; há a
natureza, seus fenômenos, seu devenir, e, em seguida, há nossos pen­
samentos, nossas relações sociais, nossa história. E nós temos a am­
bição da unidade. A última palavra da nossa filosofia dependerá da
primeira. Por onde começar? Pelas coisas ou pela consciência que
delas temos? O espírito é primeiro em relação à natureza? Ou bem
a natureza é o elemento primordial do qual o pensamento será a flo­
ração suprema ao termo de um longo desenvolvimento?” R . Garau-
dy, Teoria materialista. . . , Introd., p .l.

82 “ Solipsismo ou teologia. O idealismo está condenado a esse^ di­


lema desde que rompeu com o “ realismo ingênuo” que está implícito
em toda prática quotidiana do homem e em toda experiência cientí­
fica” . Ibid., p. 6.

61
generalidade, é evidente que se abrem apenas dois ca­
minhos: o do idealismo, que começa por colocar a rea­
lidade do espírito, esforçando-se em seguida em dele de­
duzir a essência e a existência da matéria, da natureza;
a do materialismo que, ao contrário, afirma a prece­
dência da matéria e, em seguida, graças às informações
proporcionadas pelas disciplinas positivas83, mostra co­
mo, dialeticamente, a natureza engendra a consciência
e a espiritualidade. A história do pensamento filosófico,
nessa perspectiva, perde qualquer obscuridade: fundan­
do-se em um texto de Engels, considerado decisivo, as
exposições atuais do marxismo assim a simplificam: de
um lado, há os pensadores que sustentam o caráter pri­
mordial do espírito em relação à natureza — “ esses cons­
tituem o campo do idealismo” — ; de outro, há os que
consideram a natureza como o elemento primordial:
constituem “ as diferentes escolas do materialismo” 84. O
único problema, então, é o de saber que caminho é con­
veniente trilhar: os fundadores do marxismo o indica­
ram claramente, e é justo segui-los.
Assim como não há zona neutra, prévia, também
não existe terceiro caminho que permita conciliar os
termos dessa oposição irredutível. Pretender definir

83 “ Há a questão: que é a matéria? à qual o materialismo respon­


de: é a realidade. objetiva, independente do espírito e que não ne­
cessita do espírito para existir. Há a questão: como é a matéria? à
qual o materialismo responde: é tarefa da ciência dar da matéria uma
representação aproximativa cada vez mais perfeita” . Id. p. 16.

84 “ O pensamento, tomado em sua atividade ou em seu produto (o


conceito) preexiste às coisas? A o contrário, as coisas tomadas em seu
conteúdo imediato (o fato de que sejam exteriores à consciência e
sejam dadas por meio dos sentidos) preexistem a todo pensamento, a
todo conceito? Materialismo ou idealismo? Tais são os termos nos
quais Platão e Aristóteles formulam o problema do ser e do conheci­
mento, através de todos os véus que deles mesmos os escondem. Essa
alternativa, a reencontraríamos em filosofias essencialmente diferentes
do idealismo an tigo... Nós a encontraríamos no centro das filosofias
ambíguas, nas quais parece envolvida” . J .T . Desanti, op. cit., § 7-8,
P. 53.

62
esse terceiro caminho, tentar qualquer síntese, leva a
estabelecer a pior confusão, que só poderá ser desfeita
retornando-se à clara contradição inicial85. Entre os
dois “campos” , nenhuma área de entendimento é pos­
sível: é absurdo, nessa ótica, cuja nitidez não podemos
deixar de reconhecer, não só admitir a possibilidade
“ gnosiológica” de uma dúvida de estilo cartesiano, mas
também de supor a existência de um elemento primeiro
indeterminado — o complexo ou a dualidade sujeito-
objeto80, por exemplo. Lênin, aliás, expõe claramente,
em Materialismo e empirocriticismo, as implicações últi­
mas dessa concepção de conjunto quando define o ma­
terialismo como postulação sustentada contra a postu­
lação adversa, a do idealismo87. Afastar a idéia da pos­
tulação filosófica necessária e a da escolha obrigatória,
é expor-se a construir sistemas “ acéfalos” cujo protó­
tipo é o empirocriticismo.
Em outros termos, há uma tomada de partido, uma
“posição” partidária em filosofia, como nos outros do-

85 Os textos das filosofias gerais marxistas atuais, dirigidos contra


a fenomenologia e contra o existencialismo, retomam, em geral, a ar­
gumentação dirigida por Lênin contra Mach e seus adeptos e se fun­
dam em numerosas passagens de Materialismo e empirocriticismo, nes­
ta em particular: “ Observamos. . . em todas as questões da gnosio-
lo g ia .. . a luta entre o materialismo e o idealismo. Sempre encontra­
mos, atrás das contorções da nova terminologia, atrás da confusão
da escolástica erudita, duas correntes principais. . . a causa de milhares
e de milhares de erros e de confusões nesse domínio, é que, sob a
aparência dos termos, das definições, dos subterfúgios escolásticos, dos
malabarismos verbais, deixa-se passar sem ver, essas duas tendências
fundamentais” , p. 309.

86 Cf. a refutação dada por R . Garaudy, Humanismo marxista,


dialética da natureza e materialismo, I, pp. 128-129, do “largumento
de Kant: não há objeto sem sujeito” .

87 Cf. Lênin, ibid. p. 105: “ A existência do que é refletido inde­


pendentemente do que reflete (a existência do mundo exterior inde­
pendentemente da consciência) é o postulado fundamental do mate­
rialismo” .

63
mínios88. Nenhum juízo, nenhuma doutrina tem di­
reito de pretender fazer abstração de semelhante toma­
da de posição. Há, no entanto, ao que parece, uma
obscuridade. Que significa essa postulação? O termo é
geralmente empregado pela epistemologia, para desig­
nar um enunciado admitido como verdadeiro, embora
não mantenha e nem prove sua verdade senão no inte­
rior do sistema do qual é o fundamento; que, portanto,
não é verdadeiro absolutamente, mas apenas relativa­
mente a um dado sistema de referência e precisamente
ao sistema de referência que adota. Isso equivale a
dizer que nenhum conjunto de postulados e que ne­
nhuma axiomática podem impor-se como verdadeiros a
não ser por uma escolha arbitrária feita pelo indiví­
duo em função de alguma intuição prévia e de outra
ordem. Esse modo de considerar o problema não pode,
de modo algum, ser o do materialismo: não se trata,
absolutamente, de escolher arbitrariamente entre o idea­
lismo e o materialismo, mas de optar por este último,
que é verdadeiro, contra o primeiro, que é falso 89. Assim,
o problema que se pretendia afastar, apresenta-se nova­
mente, embora um pouco menos complicado. Admitindo
essa visão maniqueísta da história da filosofia e a noção

88 “ Marx e Engels foram, em filosofia, do começo ao fim, homens


de p a rtid o ...” , id., p. 312. Essa idéia da posição de partido em
filosofia é retomada, em particular, por Stalin, Materialismo dialético
e materialismo histórico, p. 3: “ O materialismo dialético é a teoria
geral do Partido marxista-leninista” , Roger Garaudy, Teoria materia-
lista, pp. 316-319 e Humanismo Marxista, pp. 265-272; e A . Jdanov,
Sobre a literatura, a filosofia e a música, pp. 46-50.

89 “Sem dúvida, a partir do momento em que declaramos que o


materialismo não pode ser “ deduzido” , afirmamos, por isso mesmo,
que começa por um “ postulado” . Mas, desde quando a idéia de pos­
tulado se identifica com a idéia de arbitrário? Quando aceitamos o
“ postulado” de Euclides, afirmamos simplesmente que só esse postu­
lado nos permite construir uma geometria cujos diversos teoremas
correspondem à nossa experiência corrente, na escala dos atos hu­
manos quotidianos” . R . Garaudy, Humanismo marxista, p. 270. Cf.
sobre essa idéia de postulado, a análise sutil de H. Lefebvre, Os proble­
mas atuais do marxismo, pp. 97-103.

64
de escolha obrigatória, é preciso ainda saber que partido
convém escolher: onde está o vício e onde está a vir­
tude?
A essa interrogação, os teóricos atuais do marxismo
procuram responder. Percebem a importância do pro­
blema: vêem que precisam, ao mesmo tempo, defender
a noção de postulação e mostrar porque convém adotar
os principais enunciados do materialismo; encontram-
se, assim, compelidos a justificar a idéia — e, é preciso
dizê-lo, à primeira vista aberrante — de 'postulado ver­
dadeiro', não têm a possibilidade nem de recorrer a parte
ante a um fundamento metafísico (análogo àquele ao
qual se refere a epistemologia formalista dos matemá­
ticos, a “ intuição metafísica” de Hilbert, por exemplo),
nem de apelar, a parte post, como justificação, para o
êxito ou a eficácia da hipótese de trabalho escolhida90
(embora, na polêmica, entreguem-se freqüentemente às
facilidades de semelhante pragmatismo)91. De fato, só
resolvem a dificuldade transpondo-a para outro plano;
se, a seu ver, os princípios do materialismo dialético são
verdadeiros é porque refletem adeqüadamente e no nível
do conceito uma opção real que é justificada — dada
como justa, nos dois sentidos do adjetivo — por seu con­
teúdo histórico: o “ campo” materialista seria validado
porque exprime, em sua generalidade, o ponto de vista
da classe operária; do mesmo modo, o “ campo” idealista
mergulharia necessariamente no erro e, hoje em dia, no
irracionalismo, no obscurantismo, porque traduz os in­
teresses das classes exploradoras que, na época do impe­
rialismo, sentem seu fim próximo e se esforçam, falsifi-

90 Desde 1908, Lênin ataca energicamente o pragmatismo (W., p.


315, nota 1) Cf. crítica semelhante de G . Besse e M . Caveing, op.
cit, 2? lição, pp. 207-209, onde o praematismo é definido como “ uma
falsificação da noção marxista de prática” .

91 Uma dessas facilidades consiste, por exemplo, em apresentar


como prova da validade filosófica do materialismo dialético os êxitos
políticos, econômicos, artísticos ou militares obtidos pelos Estados ou
os partidos que declaram aplicar praticamente a teoria marxista.

65
cando o conhecimento, em deter o movimento da his­
tória.
Assim, a postulação filosófica que adota como prin­
cípio fundamental o primado da materialidade e o ca­
ráter dialético da realidade, implica e reflete uma esco­
lha mais profunda, de ordem política. A posição de par­
tido, simplesmente"-: trata-se, para o filósofo, de situar-
se nas perspectivas de conjunto do proletariado que luta
contra a exploração, de desentranhar as noções filosó­
ficas imanentes que orientam essa luta e de ajudar,
assim, o seu desenvolvimento, iluminando-o, e levando a
luta também para o domínio ideológico. Essa transpo­
sição do filosófico em político compreende-se facilmente
pela referência à teoria do reflexo, viga-mestra das
gnosiologias marxistas atuais. Cada doutrina filosófica
exprime, com particularidades devidas, sem dúvida, à
individualidade dos autores, o ponto de vista de uma
classe ou de determinada camada social. Assim, Platão
é um “ filósofo idealista da Grécia antiga, inimigo do
materialismo e da ciência, adversário da democracia
ateniense e defensor da aristocracia reacionária de Ate­
nas” 93. Bergson, um “ filósofo idealista francês, místico,
inimigo do socialismo, da democracia e da concepção
materialista, científica do mundo94. Assim também, as
diversas escolas materialistas representam os diversos
níveis da luta de classes ou das camada sociais explo­
radas: luta dos democratas contra os aristocratas na
Antigüidade, da burguesia contra as estruturas feudais
no século X V III, por exemplo95. O materialismo dialé­

92 “A “ posição de partido” em filosofia e nas ciências implica pois,


inicialmente, uma escolha política; a de servir a classe operária em
sua missão histórica, de destruir o capitalismo e construir o socia­
lismo” . R . Garaudy, Humanismo marxista, p. 265.
93 M . Rosenthal e P. Ioudine, Pequeno dicionário filosófico, p. 481.
94 Ibid., p. 43.
95 C f. entre outros, as análises de R . Garaudy sobre a evolução
do “ pensamento burguês” , Teoria m aterialista... lntrod., pp. 37-38
e 4? parte, III, pp. 327-332.

66
tico adota o ponto de vista do proletariado, da classe
oprimida, na época do capitalismo industrial.
Mas, essa opção política, feita pelo filósofo ao esco­
lher o postulado materialista, é, ao mesmo tempo, uma
opção pela verdade, pela ciência, pela objetividade, pela
Razão e pelos valores humanos. O enigma contido na
idéia dessa postulação verdadeira explica-se pelo fato de
que, adotando ao mesmo tempo o ponto de vista da
classe operária e o materialismo dialético que o reflete
abstratamente, o filósofo escolhe, ao mesmo tempo, o
verdadeiro. E isso porque a classe operária como tal é
portadora da verdade. Quando a burguesia, nos séculos
X V II e X V III, esforçava-se em quebrar os quadros feu­
dais que não mais correspondiam ao estado das forças
produtivas, produziu pensadores que defenderam os di­
reitos da Razão e da ciência, como Descartes, ou parti­
dários confessos do materialismo, como Helvetius ou
d’Holbach; Descartes, no entanto, permanecia sob o do­
mínio da teologia90 e o materialismo francês permane­
cia mecanicista. Esses filósofos só conseguiram alcan­
çar uma parte da verdade: a burguesia, da qual refle­
tiam os objetivos, era uma classe ascendente e inovado­
ra, mas visava substituir a opressão feudal por outro tipo
de opressão; como classe ascendente, queria a objetivida­
de; como classe interessada em manter a exploração do
homem pelo homem, não podia nem ver nem querer
toda a objetividade. O mesmo não acontece com o pro­
letariado: este, em razão das condições históricas de sua
formação, de seu desenvolvimento, e de sua tomada de
consciência, engendra um partido revolucionário, che­

96 C f. em particular a análise de V . V . Sokolov, criticando as te­


ses por demais favoráveis a Descartes, de H . Mougin, de R. Ga-
raudy e de Henri Lefebvre, que tende a provar que o “ dualismo car­
tesiano” é “ a expressão filosófica da fraqueza da burguesia francesa
no século X V I I ” , pp. 29-30 do opúsculo A filosofia de Descartes e a
luta ideológica na França na hora atual

67
fes políticos07 e teóricos98 que se acham, de certo modo,
habilitados por sua situação de partido, de chefes e teó­
ricos do proletariado, a procurar, de acordo com o mé­
todo conveniente, e a descobrir o que é verdadeiro nos
diversos domínios da ciência e aquilo que, em determi­
nadas circunstâncias, constitui o bem e até mesmo o
que é esteticamente belo. Tal foi o caso de Marx e En-
gels que souberam, antes de qualquer pessoa, tomar par­
tido simultaneamente em favor da classe operária e do
materialismo filosófico.
O que “ fundamenta” , portanto, em última análise,
a opção pelo postulado materialista, é o papel histórico
do proletariado. Essa noção, que efetivamente se encon­
tra na obra de Marx, nos textos anteriores a 1860, em
particular09, ensejou, tanto por parte dos defensores do
marxismo, quanto de seus historiadores, numerosas in­
terpretações. Não seria justo omitir a de Georges Lu-
kács, em sua obra célebre História e consciência de
classe que, apesar de seu caráter, ao que parece, errô­
neo, representa uma tentativa de compreensão em pro­
fundidade do marxismo, de importância e riqueza excep-

97 Cf. entre múltiplas declarações: “ Os chefes comunistas são diri­


gentes como jamais houve, que exprimem a vontade de seu povo, que
estão ligados ao povo por todas as fibras de seu ser, por toda sua
ação; estão na vanguarda de uma classe que tem por missão histórica
libertar todos os homens e que, portanto, não têm inimigos no povo;
de uma classe que não teme o futuro, que em tudo se apóia na ciên­
cia e que confia totalmente no homem’'. F . Cohen, “ Stálin e o cine­
ma” , Nouvelle Critique, n? 45, p. 94.

98 Estes, aliás, não se distinguem daqueles. Cf. o artigo de J. Fré-


ville, “ Stalin e a França” , ibid., e as pp. 10-11, em particular.

99 Admitindo essa data, não queremos de modo algum entrar no


debate que opôs, ao longo destes últimos anos, pensadores marxistas
a respeito do momento de formação do pensamento definitivo de
Marx. Sobre esse ponto, cf. as observações de H. Lefebvre, “ O Mar­
xismo e o pensamento francês” , Les Temps Modernes, n? 137-138,
p. 120.

68
cionais100. Deve-se mencionar, também, a tese segundo
a qual a descoberta, por Marx e Engels, da missão da
classe operária estaria ligada a uma intuição ética que
teria ocorrido a esses dois pensadores, impressionados
com a situação atroz imposta pelo capitalismo de mea­
dos do século X IX às classes exploradas 101. No presen­
te capítulo, porém, poremos entre parênteses essas in­
terpretações, por mais interessantes que sejam, pois tra-
ta-se de restabelecer esquematicamente a argumentação
formulada por essas filosofias gerais materialistas, que
constituem, atualmente, as apresentações oficiais do mar­
xismo, as que são habitualmente admitidas e que susci­
tam as críticas filosóficas mais significativas da situa­
ção ideológica atual.
De fato, para esses teóricos, a idéia de “ missão his­
tórica do proletariado” acha-se justificada de modo mui­
to simples. As análises econômicas de Marx e de Engels,
os acontecimentos históricos a partir da Internacio­
nal dos Trabalhadores, mostraram que a classe operária
é a classe radical, a que não pode se libertar da opres­
são senão suprimindo a própria sociedade de classes.
Todos os movimentos revolucionários anteriores, os que
foram dirigidos pelos mercadores e artesãos de Atenas
contra as famílias nobres, os desencadeados pelos bur­
gueses franceses e ingleses nos séculos XVTI e XVni, vi­
savam assegurar a vitória de uma nova classe contra a
ordem antiga, supondo, no entanto, a manutenção na

100 Cf. a tradução francesa de K. Axelos e de J. Bois publicada


pelas Éditions de M inuit, col. Arguments, n? 1 e, entre os comentários
recentes dessa obra, os trabalhos de L . Goldmann que teve o mérito
de ser o primeiro a salientar sua importância e originalidade, as aná­
lises de M. Merleau-Ponty, As aventuras da dialética, cap. II, e o ar­
tigo de A. Ghisselbrecht, “ As aventuras do marxismo ocidental” , N ou­
velle Critique, n? 67.

101 Tal é, esquematicamente, a posição adotada por M . Rubel em


sua obra, Karl Marx, Ensaio de bioqrafia intelectual; cf. as observa­
ções críticas de L . Goldmann, “Há uma sociologia marxista?” in
Les Temps Modernes, n? 140, pp. 729-751.

69
servidão econômica de uma parte da humanidade, os
escravos na Antiguidade, o “povinho” das cidades e dos
campos na época moderna. Ora, de acordo com o que é
ensinado no Manifesto com unista 102, o regime capitalista,
em razão de radicalizar a exploração do homem e fazer
aparecer a verdade das relações sociais, torna possível
a tomada de consciência pelos oprimidos da raiz real de
sua miséria e a organização de um combate tendo por
objetivo o desaparecimento de toda alienação política e
econômica. Tornando-se assim classe “ para-si” 103, o pro­
letariado, não só empreende a luta decisiva em sua ação
quotidiana — o operário que milita contra o patronato
capitalista age objetivamente em favor da supressão da
propriedade privada dos meios de produção e, assim,
contra o fundamento real do regime de classes — , pro­
porcionando ainda no teórico que sabe colocar-se em seu
ponto de vista a perspectiva graças à qual todo o mo­
vimento da história torna-se inteligível. Tomar o partido
da classe operária, aderir filosoficamente ao materialis­
mo dialético, que é a Weltanschauung dessa classe, tra­
balhar concretamente nas fileiras do Partido que a re­
presenta, em suma, inscrever-se voluntariamente na
classe histórica que está destinada a realizar a história,
é, para o filósofo, tornar-se capaz de considerar o real
tal qual é, “ sem acréscimo de nada estranho” 104, e, ao
mesmo tempo, de posse assim do bom método, determi­
nar o que é moralmente bom e o que é esteticamente
válido.
Mais ainda: a classe operária não é apenas a “ últi­
ma” classe; “ é a classe que pelo seu trabalho está dire­

102 Pp. 29-35 (Éditions Sociales).


103 “ N o próprio seio da sociedade capitalista criaram-se, assim, as
condições de uma organização do proletariado e de uma tomada de
consciência do proletariado, de tal ordem que esse proletariado não
é mais apenas uma classe “ em si” , mas uma classe “ para si’\ R. Ga-
raudy, La Liberté, 2? parte, I, p. 150.
104 F. Engels, “ Fragmento de Feuerbach não publicado” , in Êtudcs
philosophiques, p. 64.

70
tamente a braços com a natureza” 103. Assim sendo, e
de acordo com um esquema que é retomado da dialética
hegeliana do Senhor e do Escravo, pode “ conceber sem
mistificação as relações do pensamento e do ser e trazer
assim uma solução completa ao problema fundamental
da filosofia” 100. Nessa ótica, o proletariado é, em suma,
diretamente filósofo: a experiência que faz da realidade
material e das relações sociais em sua existência quoti­
diana, lhe revela, melhor e mais profundamente do que
aos teóricos que vivem na abstração, a verdade filosó­
fica 107. Esta se acha depositada, não no falso saber ela­
borado pelos representantes das classes exploradoras,
mas na ação trabalhadora e militante do operário, mais
exatamente no Partido revolucionário que é a vanguar­
da esclarecida do proletariado e na experiência acumu­
lada pelos seus chefes 108. O que o proletariado cons­
ciente compreende, de modo particular, é a importância
da prática social e é também o caráter errôneo de toda
concepção do mundo que considera a realidade como
espetáculo: porque está em luta direta contra a natu­
reza, apreende imediata e concretamente a mentira da
filosofia idealista e da religião e o modo unilateral, a
insuficiência com que o materialista mecanicista enfoca

105 Ibid.

106 Ibid.

107 Cf. L . Casanova, O Partido Comunista, os intelectuais e a na-


ção, p. 68: “ De tal sorte que o operário consciente já se move em
um nível de pensamento bem superior ao nível alcançado por qualquer
ideólogo, formado de acordo com as disciplinas da ideologia burguesa,
se a elas permaneceu submetido” .

108 Cf. R. Garaudy, Humanismo marxista, que é um partido operá­


rio revolucionário?, pp. 288-289: “ O partido é. . . uma organização
de combate. Mas, esse combate tem um caráter particular: é orientado
pelo conhecimento das leis objetivas do desenvolvimento histórico que
fixa as perspectivas da classe operária e permite descobrir cientifica­
mente, pela análise das condições objetivas, os meios de vencer. Com
isso queremos dizer que a disciplina do partido está fundada em um
conhecimento científico: o marxismo-leninismo” .

71
e resolve o “problema fundamental” . Justifica-se, assim,
a fórmula de Marx: “ o proletariado é o herdeiro da fi­
losofia” 100.
Elemento motor da história contemporânea e cons­
ciência verídica da relação do homem e da natureza, a
classe operária nada tem a temer dos resultados obtidos
pela ciência. Assim como a burguesia, em sua fase as­
cendente, apoiava-se nas disciplinas experimentais a fim
de denunciar a ideologia mistificadora do feudalismo
decadente, assim também o proletariado aceita e utiliza
em seu combate as lições do pensamento científico. Po­
de, no entanto, ir mais longe do que os pensadores do
século X V II: sua posição histórica de classe “ última” , o
desenvolvimento das forças produtivas, o progresso das
técnicas, a própria obra de Marx e de Engels no domínio
das ciências do homem, permitem-lhe compreender em
seu verdadeiro sentido as leis que refletem os proces­
sos da realidade objetiva, e confiar espontaneamente na
ciência e na Razão. De modo mais geral, a classe ope­
rária, em seu próprio interesse, procura espontaneamen­
te a verdade, que só lhe pode ser útil na medida em que
sua descoberta acelera o movimento da história e apres­
sa o triunfo de seus objetivos. Eis por que combaterá
com a maior energia todas as falsificações que procura­
rão impingir os representantes das duas classes explo­
radoras. A verdade do proletariado, praticamente reali­
zada nas lutas travadas pelos operários contra o capita­
lismo e pelos Estados socialistas contra os Estados im­
perialistas, teoricamente desenvolvida pelo Partido revo­
lucionário em sua doutrina, é, de fato, a verdade da hu­
manidade toda. São necessários todos os artifícios, todas
as violências das classes em declínio para que essa idéia

109 Cf. também, Contribuição à crítica da filosofia do direito de


Hegel, Oeuvres philosophiques, T .I , p. 107: “ Assim como a filosofia
encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra
na filosofia suas armas intelectuais” .

72
não seja aceita como evidente por todos aqueles que não
se beneficiam da exploração110.
É, pois, uma só e mesma coisa dizer que o proleta­
riado tem uma missão histórica e designá-lo como “ clas­
se universal” . Na verdade, a expressão correta dessa vi­
são verídica da realidade é a tarefa do partido que orga­
niza a ação da classe operária. Este, considerando ape­
nas sua tarefa teórica, reúne e compreende as experiên­
cias múltiplas e, graças ao método materialista dialé­
tico, delas extrai lições de conjunto que lhe servirão para
guiar o militante em seu trabalho político, o cientista,
o filósofo e o artista em suas pesquisas. Se é verdade,
com efeito, que a ciência, a arte, a filosofia são super­
estruturas refletindo a classe que as suscita, se é ver­
dade que existe, como Marx provou, uma economia po­
lítica liberal, que exprime, sob as aparências de uma
pseudociência, a alienação do trabalho em regime capi­
talista m , e que há uma filosofia que, como Engels dei­
xou claro, tende a manter os privilégios dos proprietá­
rios, o idealismo, também é verdade que há uma arte e

110 Em relação a todo este assunto, cf. Garaudy id., pp. 151, 152,
e Teoria m aterialista..., pp. 318-319: “ A classe operária não é ape­
nas a classe ascendente em dado momento da história. É a última
classe que exercerá uma dominação de classe; tem a missão histórica,
pela ditadura do proletariado, de criar as condições da sociedade sem
classes, do comunismo, e de instaurá-la; essa classe operária não vê
ascender, depois dela, nenhuma classe nova que estivesse destinada a
ser seu coveiro. Eis por que não precisa, em momento algum de sua
evolução, falsificar nem tentar deter a marcha do tempo. Pode explo­
dir todos os freios da história porque nada tem a temer da história.
Identifica-se com a ciência” .

111 É assim que R . Garaudy, Humanismo marxista, pp. 261 ss. justi­
fica a idéia de posição de partido em todos os domínios científicos e
na arte, pela referência à crítica feita por Marx à economia política
burguesa: “ Para descobrir, atrás do que a economia política burguesa
considerava como um dado inicial, a propriedade capitalista, por
exemplo, uma relação entre os homens e uma relação contraditória,
era necessário colocar-se em um ponto de vista diferente do ponto
de vista burguês: do “ ponto de vista” daquele que sofre essa contradi­
ção, que é esmagado ou dilacerado por ela” .

73
uma ciência que refletem o ponto de vista do proleta­
riado11-. Desde então, para quem sabe ver, as coisas se
tornam muito claras: o partido da classe operária e seus
dirigentes, pelo fato de resumirem em seu saber a ótica
da classe “ universal” possuem a capacidade de definir,
nos diversos campos do conhecimento e da cultura, a
perspectiva justa e têm o direito de interferir para orien­
tar as pesquisas113. No caso preciso do trabalho filosó-

112 Sobre a oposição da ciência burguesa e da ciência proletária cf.


o opúsculo publicado pelas Edições da Nouvelle Critique. Cf. igual­
mente, as análises de J. Kanapa ( Nouvelle Critique, n? 5, pp. 52-53)
“ Formulemos a questão: não significa isso que tampouco existe u m a
ou a natureza quanto u m a o u a ciência? Não significa isso que a
ciência nova deve levar em conta que a natureza com a qual experi­
menta tem, em um novo tipo de sociedade (socialista), uma realidade
social nova e que, inversamente, o poder dessa ciência deve orientar-
se no sentido da transformação da natureza em matéria social, capaz
de servir, de libertar o homem? Isso não significa que o objeto centífico
“ floresta colcoziana” não seja o mesmo objeto que a “ floresta feudal” ,
por exemplo? Que reclama um tratamento experimental diferente, se
o quisermos eficaz? E não é apenas isso, o objeto da ciência, atual­
mente, é um objeto social, sim, esse objeto, na u r s s é um objeto
socialista: foi necessária uma revolução social, em seguida uma re­
volução natural; já seria tempo de admitir que é necessária também
uma revolução científica. E não é a partir de uma reflexão conduzida
sem preconceitos, e violentando, às vezes, as normas tradicionais de
pensamento, que poderia fundar-se uma distinção de principio entre
ciência burguesa e ciência proletária (ou socialista)?” Sobre as re­
lações entre a luta de classe operária e a tarefa dos escritores e dos
artistas, cf., em particular, L. Casanova, artigo citado, e A . Stil,
“ Rumo ao realismo socialista” , que retomam os temas definidos por
A .D . Jdanov, op. cit. Igualmente R . Garaudy, Humanismo marxista,
pp. 176-275: “ O mesmo ocorre com a “ posição de partido” no domí­
nio da literatura e das artes. Nesse plano, como em todos os outros,
trava-se uma luta encarniçada entre a ideologia burguesa e a ideolo­
gia socialista. Não é verdade que a exaltação literária ou artística do
individualismo anárquico, do egoísmo sem perspectiva, do ceticismo,
proceda apenas de uma pretensa “ arte pura” ; tais fenômenos têm
uma significação de classe e trazem a marca da decadência burguesa” .

113 Cf. R . Garaudy, id.t p. 277: “ Essa função do partido não cons­
titui entrave, mas estímulo ao intelectual criador: a lembrança dos
princípios fornece-lhe as coordenadas sociais de todo pensamento e
de toda criação, dá profundidade e coesão às suas análises e às

74
fico, importa elaborar obras que correspondam às exi­
gências do momento na luta contra o “ campo” dos ex­
ploradores, de participar, no campo de batalha ideológi­
co, do combate militante. A posição de partido em filo­
sofia, que se funda em uma posição de partido em polí­
tica, determina certo estilo de filosofar do qual a preo­
cupação política jamais estará ausente.
Tal é a concepção de conjunto, com certas variações
devidas precisamente às circunstâncias114, afirmam as
filosofias gerais marxistas, concepção que a filosofia tra­
dicional e as diversas correntes subjetivistas ignoram.
Os pensadores que criticam o materialismo dialético pre­
tendem, quando não têm a ingenuidade ou a hipocrisia
de desconhecer deliberadamente o problema político, co-
locar-se “ acima das classes” e repensar o conjunto das
questões de seu ponto de vista, à luz apenas de sua “ vi­
vência” ou de qualquer razão abstrata. As refutações
que elaboram são freqüentemente hábeis: não atingem,
porém, seu objeto, pois esquecem ou fingem esquecer o
fato fundamental, a existência de uma luta de classes
que repercute em todos os setores do pensamento. Na
realidade, a afirmação, atualmente, de que é possível si­
tuar-se nessa famosa “ zona neutra” , nessa “ esfera pré-
objetiva” , anterior à escolha entre a postulação idealista
e a postulação materialista, a partir da qual poderíamos
julgar da validade de uma ou de outra (assim como a

suas criações; a lembrança das perspectivas fornece-lhe o indispensável


meio de situar em justo lugar os aspectos positivos e negativos dos
acontecimentos e dos homens, de escapar ao diletantismo dos estetas
desorientados nos quais a burguesia procura esquecer sua decadência.
O que alguns chamam atualmente de “ jdanovismo” era, quanto ao es­
sencial, a lembrança da necessidade do espírito de partido, quer dizer,
ao mesmo tempo do espírito, de princípio e do espírito de responsabili­
dade, nas questões da literatura, da arte, da cultura” .

114 Embora a idéia de posição de partido seja constantemente lem­


brada pelos teóricos que citamos, a distinção entre ciência burguesa e
ciência proletária é atualmente repudiada pelos mesmos teóricos; as­
sim também, a concepção do realismo socialista foi consideravelmente
abrandada.

75
pretensão de julgar em nome de que não se sabe que
concepção objetivista da pesquisa biológica, a respeito do
debate entre os partidários de Mendel e os mitchourinis-
tas) remete a essa idéia, historicamente absurda, de
que é permitido situar-se fora da luta de classes. E aque­
les que sustentam semelhante tese, queiram ou não, pro­
porcionam um auxílio real ao campo dos exploradores,
detêm o movimento da história e dificultam o desabro-
chamento dos valores mais altos da justiça e da solida­
riedade .

Nesse estágio, muda o sentido e o estilo da polêmica.


Os teóricos contemporâneos do marxismo apresentam
inicialmente o materialismo como uma filosofia entre as
demais, tendo, sobre elas, a superioridade de provar
positivamente sua validade, pela referência aos resulta­
dos das disciplinas científicas. Ora, a problematização
operada pela crítica, negando que tal referência cons­
titua prova, obriga a maior aprofundamento. Já apare­
ce a idéia de que o materialismo marxista difere, em
seu aspecto teórico, de uma ontologia ou uma teoria do
conhecimento, que, se tem fundamento, não é no sentido
em que um sistema como o de Descartes ou o de Husserl
declarava ser fundamentado. Todavia, ao examinar o
tipo de justificação que nos trazem as apresentações
atuais do marxismo em substituição ao fundamento tra­
dicional, percebe-se que, além de ser incapaz de conven­
cer o filósofo, suscita, no próprio seio do materialismo,
graves contradições.
A crítica assinalará, inicialmente, a obscuridade e
as dificuldades que implica a noção que é a viga-mestra
dessa nova “ demonstração” da verdade do materialismo:
a da missão histórica do proletariado. Para que seme­
lhante noção tenha sentido — limitando-nos aqui aos ar­
gumentos de ordem filosófica, com exclusão dos que se

76
referem ao domínio propriamente político — seria pre­
ciso que, por um lado, a análise sociológica e histórica
pudesse definir de maneira incontestável a existência de
uma classe proletária conceituada univocamente, e por
outro, que se pudesse, a partir do estudo de fatos, defi­
nir com suficiente precisão o conteúdo dessa consciên­
cia proletária genérica e discernir na evolução, ao me­
nos a partir do século passado, a existência e a constân­
cia de uma vontade única da classe operária. Ora, pros­
seguirá a crítica, mesmo admitindo a validade de con­
junto da análise econômica de Marx, e reconhecendo
que há certa unidade de situação dos explorados no
mundo inteiro, resta que, para o estudo sociológico ri­
goroso, por motivos históricos igualmente importantes,
essa unidade se fragmenta em elementos diversos e que
é impossível, do ponto de vista sociológico, falar em um
proletariado mundial. E fácil notar qiie, já nos traba­
lhos históricos de Marx, a noção de proletariado está
longe de ser unívoca; atualmente, com o progresso dos
meios de investigação, verifica-se que o “ fato proletário”
interfere com outros fatos, o fato nacional, o fato pro­
fissional, o fato da migração e da colonização, de tal
sorte que uma pesquisa deve antes falar, se quiser per­
manecer fiel aos dados, de uma multiplicidade de cama­
das sociais exploradas, com interesses objetivos diferen­
tes, que podem entrar em conflito umas com as outras
por causas objetivas ou unir-se contra a exploração, de
acordo com as circunstâncias115.
Essa diversidade de fato também se encontra quan­
do se examina a consciência desses grupos. A diversi­
dade das situações em que se encontram os diferentes
proletariados nacionais, e, no interior deles, as rivalida­
des que podem surgir entre as profissões “ refletem-se”
precisamente na consciência dos proletários. E fácil atri­
buir essa diversidade à ação da classe exploradora e do

115 Cf. os trabalhos de G . Gurvitch e, em particular, Determinismos


sociais e liberdade humana, 2? parte, 2? seção, cap. II, O determinis­
mo sociológico próprio das classes sociais, pp. 178 ss.

77
aparelho de Estado nos países capitalistas: é mais cien­
tífico verificar que o proletariado de determinado país,
em conseqüência de determinada conjuntura histórica,
pode adotar, por exemplo, uma atitude “ xenófoba” ou
entregar-se ao reformismo, renunciando à luta de clas­
ses . Interpreta-se a história com estranha latitude quan­
do se vê nessa luta apenas um conflito entre dois cam­
pos bem delimitados e com clara consciência de seus
interesses e ideais. Assim como há contradições no seio
da classe dos proprietários dos meios de produção, se­
nhores do Estado, o fato é que existem antagonismos
entre as diversas camadas de explorados e que falar de
uma consciência proletária genérica constitui mais um
voto piedoso do que uma observação. Marx e Lênin, aliás,
não insistiram nos “ erros” que pode cometer a consciên­
cia proletária e na necessidade de uma ciência118 e de
um partido que saibam explicar a situação e mobilizar
a energia operária sempre arriscada a ignorar seus ver­
dadeiros interesses.
Se há uma classe proletária lúcida, não pode pois
ser em virtude de uma situação objetiva que, mecani­
camente — ou dialeticamente — produziria a capaci­
dade de apreciação justa em todos os domínios da ação
e da cultura. É curioso observar, a esse respeito, salien­
tará ainda a crítica antimaterialista, que esses filósofos
marxistas que afirmam, de um lado, admitir a jurisdição
dos fatos como única, usam, para justificar a noção de
missão histórica do proletariado, idéias que não estão
isentas de misticismo. É sem dúvida tentador atribuir
— nas pegadas do jovem Marx 117 — significação espe­
cial ao sofrimento a que está condenada a classe ope­
rária no regime capitalista e ver na situação de extrema
privação que lhe é imposta a condição dialética de sua

116 Cf. Lênin, Que fazer?, II, A espontaneidade das massas e a cons­
ciência da social-democracia, Obras Escolhidas, t. I, pp. 195-217.

117 Cf., eni particular, o texto célebre, Contribuição à crítica da filo ­


sofia do direito, Oeuvres philosophiques, t. I, pp. 105-106, sobre o
proletariado, “ classe radical” .

78
completa liberação; e parece igualmente cômodo — e os
críticos do materialismo parecem o ter admitido algu­
mas vezes118 — atribuir um poder histórico extraordi­
nário àqueles cuja profissão põe em contato direto com
a dura materialidade e assim experimentam em sua
vida quotidiana a relação autêntica com o mundo sen­
sível. A análise efetiva, porém, tanto filosófica quanto
sociológica, mostra o quanto são aproximativas seme­
lhantes noções. É verdade que, na obra de Hegel, a dor
e o trabalho desempenham o papel de mediadores de
excepcional importância; deverá, porém, uma concepção
científica admitir, sem maior aprofundamento, conceitos
que só adquirem significado no seio do idealismo de
Hegel e que constituem a parte mais mística, a menos
válida, do legado hegeliano? Em todo caso, terá sentido
condenar o hegelianismo que faz “o homem andar de
cabeça para baixo” e tomar ao sistema suas idéias mais
contestáveis?
Na verdade, a tentativa de fundamentação que vai
da afirmação da verdade da opção materialista à posição
de uma classe universal incumbida de cumprir o destino
da humanidade suscita um novo messianismo, cujas con­
seqüências tanto filosóficas quanto políticas são graves.
Faz do materialismo dialético uma filosofia da história.
Observa-se aí uma contradição; pois, precisamente, as
filosofias da história, de Santo Agostinho a Hegel, pas­
sando por Vico, Herder e Comte, caracterizam-se por seu
desdém para com a análise objetiva rigorosa, pela von­
tade de salientar um elemento único de formação ou
de transformação, mesmo em detrimento da diversidade
imposta pelos acontecimentos, e pelo seu aspecto não-
científico. Tudo se passa como se, para semelhante in­
terpretação do marxismo, a ótica de conjunto do mate-

118 J .P . Sartre, Materialismo e revolução II, Filosofia da revolução;


cf. também, ’’Os comunistas e a Paz” , I, II, I II” , Temps modernes, n^s
81, 84-85 e 101 e as observações críticas de M . Merleau-Ponty, As
aventuras da dialética, cap. V, e principalmente, C. Lefort, “ O Mar­
xismo e Sartre” , Les Temps Modernes, n? 89.

79
rialismo constituísse mera laicização de dados que se
tornaram tradicionais por meio de certas concepções
cristãs: a alienação do proletariado é o pecado original;
seu sofrimento é o análogo da Paixão do Cristo e o ho­
mem total, por vir, o homem liberto de todas as contra­
dições, evoca o momento da Ressurreição dos Corpos, o
Fim dos Tempos119.
Essa idéia de uma virtude específica do proleta­
riado, que teria a capacidade de fazer o que convém para
realizar o destino da humanidade, de querer o que é pre­
ciso querer para realizar as mais altas virtudes, é tão
manifestamente insuficiente no domínio da prática que
os teóricos materialistas freqüentemente criticaram o
“ espontaneísmo” e insistiram no fato de que a Weltans-
chauung proletária, para adquirir toda sua força e toda
sua clareza, deve refletir-se no partido operário (que re­
colheu, ele próprio, a herança dos fundadores do mar­
xismo) . Na verdade, o agente histórico eficaz, para os
pensadores já mencionados, parece ser menos o proleta­
riado, “ classe para-si” , do que o partido que exprime seu
estado de espírito e mobiliza sua vontade. Assim, entre
o elemento propriamente conceituai da doutrina — o
materialismo dialético — e a “ visão do mundo” proletá­
ria, introduz-se um termo mediato: o partido operário.
A crítica filosófica poderá, a esse propósito, propor-se
múltiplas questões; verá, no fato de que é necessário re­
correr à mediação de uma organização à qual aderem os
indivíduos a prova de que a teoria do reflexo é incapaz
de explicar a prática e que não há “ consciência prole­
tária” , mas antes uma consciência que escolhe esta po­
lítica e não outra, estes valores e não aqueles; preo­

119 “Até Nietzschc, todo o pensamento ocidental viveu, no que se


refere à história, em função de esquemas cristãos; tal como se desen­
volveu, principalmente a partir de Condorcet e de Hegel, a “ filosofia
da história” aparece como lima transposição no plano natural dos
conceitos básicos herdados da teologia c r is tã ...” H . I . Marrou, Am bi­
valência do tempo e da história em Santo Agostinho, p. 15; cf. igual­
mente P. Ricoeur, História e Verdade, pp. 80 ss., O Cristianismo e o
sentido da História.

80
cupar-se-á, então, com o alcance que se pode atribuir a
semelhante fundamentação. Pois, se é obscuro afirmar
que as quatro leis da dialética são verdadeiras porque,
afinal de contas, exprimem em alto grau de elaboração
a concepção proletária, torna-se inaceitável considerá-
las válidas porque são reconhecidas como tais pelo par­
tido que se declara operário; que prova temos de que é
esse partido e não aquele outro — pois há vários parti­
dos que invocam o marxismo e a classe operária. — que
reflete os interesses do proletariado? Será legítimo sub­
meter a apreciação filosófica à variação das situações
políticas? Quem tem razão, o Lukács que escreve Histó­
ria e consciência de classe, ou o Lukács que redige Exis­
tencialismo ou Marxismo? Não se abrirá caminho à con­
tingência, ao arbitrário e ao dogmatismo confiando a
uma organização, a dirigentes que podem ser dominados
pela paixão e que, em todo caso, são obrigados, pela sua
própria situação de políticos, a levar em conta as con­
junturas históricas, o cuidado de fixar a “ linha” ideo­
lógica? O exemplo recente, que se convencionou chamar
de stalinismo, mostra a que desoladores excessos, a que
sectarismo e também a que versatilidade é arrastada a
pesquisa teórica.
Finalmente, assim apresentada sob os auspícios do
espírito de partido que constitui sua justificação última,
o materialismo dialético perde todas as características
próprias de uma doutrina filosófica. A idéia de que há
um espírito de partido em filosofia é, na verdade, uma
confissão: a confissão de que o problema filosófico como
tal, e especialmente o do fundamento, devem ser afas­
tados como desinteressantes, e que a única questão que
realmente importa é política e que a mensagem filosó­
fica deve ser considerada uma arma como as outras, lan­
çada na luta ideológica. Depois de Lênin, o materialis­
mo filosófico manifesta-se como um mito 120, que, para
melhor convencer a camada flutuante dos “ intelectuais” ,
assume todos os aspectos de uma filosofia, embora tenha

120 J.P. Sartre, “ Materialismo e Revolução” Situations H l, p. 175.

81
por fim único permitir uma vitória do proletariado ou,
mais exatamente, desse partido ou desse Estado que afir­
mam refletir os objetivos da classe operária. Sob essa
luz, todas as variações, todas as contradições dos teóri­
cos materialistas se compreendem; de acordo com o mo­
mento histórico e as exigências da luta, tal aspecto ssrá
silenciado, tal outro será exaltado, tal pensador não-
materialista será qualificado de “ idealista” que faz o
jogo da classe exploradora ou de “ companheiro de jor­
nada” provisoriamente extraviado; o materialismo se
apresentará ora como uma filosofia geral, que resolveu
em suas linhas gerais o problema do ser e do conhecer,
ora como prudente disciplina positiva que se contenta
em resumir os resultados das ciências121. A doutrina em
seu conjunto é um “ Proteu inapreensível” 122 que, na dis­
cussão, foge constantemente, passa sem deter-se de um
plano a outro, misturando, sem a menor preocupação de
clareza, a pesquisa filosófica, certos resultados científi­
cos e considerações políticas, e que encontra, como últi­
mo argumento, uma objurgatória de ordem moral: aque­
le que não aceita os enunciados fundamentais do ma­
terialismo ajuda um regime que mantém no mundo a in­
justiça, a desordem e a miséria.
Que aceite ou não o “ marxismo prático” — enten-
de-se por isso a política que invoca o marxismo — , que
se preocupe ou não com política, a crítica antimateria-
lista admite geralmente como refutação decisiva o fato
de que o materialismo dialético, ao menos tal como é
exposto na França, em particular, pelos seus teóricos
oficiais, não é uma filosofia, que se apresenta como filo­
sofia uma doutrina vaga e contraditória que, contraria-

121 . .O materialismo é uma metafísica dissimulada sob um posi­


tivismo: mas c uma metafísica que se destrói a si mesma, pois, mi­
nando por princípio a metafísica, retira todo fundamento a suas pró­
prias afirmações” , ld., p. 140.

122 “ Eis, pois, o materialismo em favor do qual nos querem fazer


optar: um monstro, um Proteu inapreensível, um grande vulto vago
e contraditório” . /</., p. 172.

82
mente à tradição da filosofia, postula seus princípios e
não consegue justificar-se senão referindo-se a um prin­
cípio extra filosófico, não justificado, a confiança na
ciência ou o espírito de partido. Limitado ao seu aspecto
sociológico ou considerado como doutrina econômica,
considerado igualmente como perspectiva política, o mar­
xismo poderia ser admitido e discutido como tal. A dis­
cussão torna-se impossível a partir do momento em que
pretende ser uma concepção filosófica, uma vez que se
recusa a formular em termos filosóficos o problema da
prova ou do fundamento e que resolve esse problema por
meio de simples postulação ^ . Dizer que não há “ zona
neutra” , lugar a partir do qual se possa julgar o “ valor
da ciência” , por exemplo, é confessar que se renunciou
a fazer filosofia, que se renunciou ao universal e talvez
mesmo ao livre exercício do pensamento.

Assim, parece que o debate termina com a derrota


do materialismo: nenhum dos princípios que as filoso­
fias gerais marxistas — as que se inspiram essencialmen­
te na Dialética da natureza e no Materialismo e empiro-
criticismo — julgaram poder invocar para justificar-se,
constitui legitimação a partir da qual poderia instaurar-
se uma discussão séria. A confiança atribuída à sensa­
ção ou à interpretação positivista da ciência, a posição
de uma classe universal, na medida em que são instituí­
das como último recurso que “ todo homem são de corpo
e de espírito” 124 não poderia recusar, situam a teoria ma­
terialista aquém do que é justo exigir de um contexto fi-

123 “ A ambigüidade do materialismo consiste na sua pretensão de


ser, ao mesmo tempo, ora ideologia de classe, ora expressão da ver­
dade absoluía” . /</., p. 222.

124 Cf. acima nota 30.

83
losófico. Eminentemente contestável em seu conteúdo, o
materialismo dialético logo revela, na polêmica, sua ca­
rência essencial: sua incompreensão da problemática pró­
pria de um pensamento que reivindica o título de filo­
sofia, a elaboração de uma prova ou de um fundamento
que não proceda de outro critério que não seja a exi­
gência da livre reflexão esforçando-se, em face da di­
versidade dos fatos e dos julgamentos, na pesquisa mais
aprofundada e menos preocupada com as convenções.
O teórico materialista não aceitará essa derrota: re­
cusará, por sua vez, o tribunal da livre reflexão, afir­
mando que se trata, no caso, de um ardil do idealismo
— e, conseqüentemente, da ideologia dominante em re­
gime capitalista — e que a pretensão de julgar fora da
opção fundamental, idealismo-materialismo, é em si ina­
ceitável. Retomará os argumentos de acordo com os
quais é desconhecer o caráter superestrutural da filoso­
fia conceder a qualquer princípio, seja qual for, vivên­
cia, consciência empírica ou transcendental ou razão de­
sencarnada, o direito de ditar leis sem levar em conta a
tomada de posição inicial. O debate desemboca assim na
obscuridade e na confusão. O esclarecimento que se es­
perava alcançar, partindo da situação característica da
França ao longo desses últimos quinze anos, revela-se
impossível. Tratava-se de saber qual dos dois, se o ma­
terialismo ou o antimaterialismo, traz a prova de sua va­
lidade. Ora, a exposição esquemática dos argumentos
trazidos de parte a parte mostra que a noção de prova,
na qual supunham poder apoiar-se, se não para resol­
ver, ao menos para pesar o positivo e o negativo, não é
compreendida por uns e por outros do mesmo modo.
Mais precisamente, parece que a refutação antimateria-
lista mantém a idéia da prova tal qual se apresenta ná
tradição filosófica: provar um enunciado, é tentar tor­
ná-lo aceitável por todo indivíduo de boa-fé, é propor co­
mo legitimação única a de um pensamento que chegou a
libertar-se do particularismo e da paixão.
Esse critério, as filosofias gerais marxistas parecem
aceitá-lo inicialmente; chegam mesmo a erigi-lo em prin­

84
cípio absoluto. Mas, nas demonstrações que apresen­
tam, verifica-se que admitem, na extrema confusão, um
modo de legitimação diferente. Parece que hesitam cons­
tantemente — hesitação ou astúcia? — entre um tipo
de justificação filosófica, caso em que são rapidamente
vencidas na discussão, e algum outro tipo de legitimação
que não chegam, por cegueira, ou não querem, por pro­
paganda, definir. De qualquer maneira, a interpretação
da idéia da prova no domínio teórico constitui o ponto
de ruptura mais nítido, embora nem sempre o mais re­
conhecido, entre o materialismo e seus adversários con­
temporâneos .
Assim, o debate que opõe o materialismo dialético
"oficial” e seus críticos, a esterilidade e a confusão dos
resultados aos quais chega, a hipoteca que faz pesar so­
bre o pensamento essa confusão exige que se formule
mais precisamente a questão da prova: de um lado, o
antimaterialismo recusa-se a admitir como válida outra
pedra de toque além de uma pesquisa que não aceita
“ fato” algum senão aquele que o pensamento livre e au­
dacioso reconhece como fato incontestável; de outro, o
materialismo que, desastradamente, tenta mostrar que
semelhante método leva a validar qualquer opinião, mé­
todo esse que admite como “ fato” decisivo dados que são
apenas dados, em sua própria opinião.
A digressão que fizemos, ao formular tão difícil
questão, parecerá talvez excessiva. Não é possível evi­
tá-la quando se quer sair da ambigüidade em que se
debate, e na qual às vezes se compraz, a pesquisa teó­
rica atual.

85
II
O Exercício da Filosofia
e o Projeto do Enunciado
Integralmente Legitimado

A p r i n c i p a l restrição dos críticos à filosofia geral


marxista é, como acabamos de ver, desprezar o proble­
ma do fundamento, enclausurar-se em postulados arbi­
trários, aceitar, sem justificar, os resultados das ciências,
aderir a uma visão da história insuficientemente legiti­
mada: criticam-na por usurpar o título de filosofia do
qual se prevalece e de apresentar como provado o que
carece de prova filosófica. A essa contestação, as atuais
exposições teóricas do materialismo não respondem ou
respondem levianamente; invocam apenas, como justifi­
cação última, convicções: confiança na razão científica,
crença na existência de uma classe universal; substituem
ao exercício da prova — que é decisivo para o filósofo —
uma retórica hábil ou desastrada. Ora, parece — e é
esse, de certo modo, o pressuposto deste trabalho — que

86
há mais na obra de Marx, no marxismo-leninismo, do
que na versão que dele atualmente nos apresentam, na
França em particular. O meio de verificar a validade
desse pressuposto, dessa hipótese, é perguntar se o filó­
sofo tem razão em querer semelhante prova, é saber o
que reclama então e a que exigência atende quando o
faz. Assim sendo, as primeiras questões que se impõem
são as seguintes: que é, para o filósofo, a prova filosófica,
e por que a procura? Essa procura corresponde realmen­
te à vontade filosófica tal qual se manifesta desde Pla­
tão? A que tipo de prova chega então o filósofo? A esse
conjunto de questões, três respostas são concebíveis: ou
bem o exercício da filosofia é efetivamente esse esforço
para construir um enunciado totalmente legitimado e
o filósofo é, então, bem sucedido, ou capaz de ter êxito
em semelhante empresa; ou bem a filosofia é outra coisa,
que será conveniente determinar, por exemplo, uma vi­
são do mundo expressa sistematicamente; ou, enfim, é
realmente essa tentativa de fundação integral do enun­
ciado, que jamais completamente realizada, exige, por
isso mesmo, sua superação.
Trata-se, pois, de examinar o que quer dizer: prova
em filosofia e, isso, para o filósofo. Há audácia em for­
mular semelhante questão que equivale, em suma, a per­
guntar o que é a filosofia, isto é, o que pretende o filó­
sofo. A preocupação em dissipar a confusão da situação
ideológica atual fará, talvez, perdoar essa audácia.

Admite-se freqüentemente que: concepção do mun­


do é uma definição suficiente da filosofia. Se nos atemos
a essa definição, subentendemos que qualquer maneira
de perceber, de sentir e de pensar a realidade é filosó­
fica. O que é dificilmente aceitável a longo prazo, pois
nos torna incapazes de dizer qual é a originalidade da
filosofia e, além disso, de compreender por que alguns
homens afirmaram que eram antifilósofos. É preciso,

87
pois, acrescentar alguma qualificação ao substantivo
“ concepção” , graças à qual uma diferença ou uma opo­
sição aparecerá. Essa qualificação é variável: freqüen­
temente contentam-se em esclarecer: concepção geral do
mundo. Diz-se, assim, alguma coisa, pois distingue-se a
filosofia do que não o é, conferindo-lhe a generalidade.
Esta, no entanto, é difícil de entender como tal: é pre­
ciso, para compreender o conteúdo de tal definição, refe­
rir-se a uma concepção do mundo que não fosse geral,
quer dizer, uma concepção especial ou individual. É evi­
dente, desde esse momento, que o progresso, embora
ainda não muito claro, é sensível: de um lado, há ho­
mens que têm sobre a realidade uma visão de conjunto,
unindo os diversos aspectos do dado em um todo e que
exprimem essa “ visão” em um contexto, o contexto filo­
sófico, precisamente; de outro, há homens que, em sua
linguagem, limitam-se a refletir sua própria maneira de
ver e de sentir ou da coletividade natural, profissional
ou institucional da qual participam. A distinção, no en­
tanto, não é ainda bem nítida, e é difícil dar-lhe um
conteúdo preciso e real: pode-se, por exemplo, opor “bom
senso” e “ filosofia” , “ afetividade” e “ razão” , “ imediatida-
de da vida” e “reflexão” e assim por diante. Mas, desta
vez, diz-se demais e dificilmente se percebe porque os
dois termos se opõem: percebe-se, confusamente, sem
dúvida, o que os distingue, mas não a significação e a
importância dessa distinção.
A fim de que apareça com nitidez, seria necessário
que a idéia de concepção não-geral do mundo fosse de­
terminada e que se pudesse atribuir-lhe algumas quali­
dades intrínsecas. Assim, a oposição assumiria um con­
teúdo e a idéia de filosofia atributos mais bem definidos.
Ora, o pensamento grego nos fornece um conceito de
grande riqueza graças ao qual um novo progresso se tor­
na possível: o conceito de doxa. Desculpamo-nos por con­
servar o vocábulo grego: a tradução implica o risco de
introduzir ambigüidades: “senso comum” , “ bom senso”
e “ opinião” , aceitáveis literalmente, devem, no entanto,
ser evitadas, a primeira expressão por ter um matiz pe­
jorativo desagradável, a segunda por conservar em fran­

88
cês algo da bona mens cartesiana, e a última, finalmen­
te, por remeter a a priori sociológicos que devem ser
evitados. A doxa pode ser descrita como um sistema de
crenças manifestando-se na prática, na conduta, nos sen­
timentos e nas falas, crenças tais que, quem as possui
nada mais deseja, e pensa, graças a elas, que atinge ne­
cessariamente a satisfação em todos os domínios: êxito
na ação, felicidade na alma e justeza no julgamento.
Por si, a doxa é certeza que não sonha sequer em con­
frontar seu conteúdo com qualquer outra “ visão do mun­
do” : se o homem da doxa fala, é para dizer e não para
discutir; situa-se, de início, na esfera da plenitude sa­
tisfeita e, se lhe ocorre utilizar a linguagem de modo
não utilitário, o faz na afirmação segura de seu valor.
Assim, considera-se como se tivesse recebido de nascença
uma espécie de graça que o premune não, sem dúvida,
em relação a qualquer malogro ou qualquer inexatidão,
mas do grave malogro e do erro que arruina. Essa “ gra­
ça” , que é seu apanágio, lhe indica o que convém fazer
e pensar no momento adequado: suas crenças refletem,
em suma, exatamente, graças a uma espécie de harmo­
nia preestabelecida, o ordenamento e a distribuição do
mundo. Ele sabe e não cogita de perguntar-se se sabe
realmente pois vive seu saber como se correspondesse
imediatamente ao que é. O privilégio do homem que
vive na d o m é análogo ao que experimenta o poeta ins­
pirado: mesmo que não me sinta inspirado, apreende-se
como possuidor de uma virtude que lhe garante que não
falhará essencialmente, que saberá fazer, sentir e conhe­
cer, quando for necessário. Considerada fora da contes­
tação filosófica (ou da contestação de outras doxoi,
achando-se as duas coisas ligadas), a “ opinião” situa-se
espontânea e constantemente em um universo onde não
há outra coisa a fazer ou a pensar senão o que ela reco­
menda: não considera ainda (ou mais precisamente,
ainda não possui) a oposição do erro e da verdade; sim­
plesmente, ela, possui o sentido — que não compreende
e não procura compreender — e tudo o que não é ela é,
a seus olhos, desprovido de sentido.

89
Em si, é fácil aproximar o homem da doxa do indi­
víduo pertencente a essas coletividades antigas onde o
laço social é naturalmente tão estreito que nenhum de
seus membros poderia constituir-se separado. Cada um
se reconhece nos valores, nas práticas e nas “ idéias”
adotadas pelo grupo e nenhum solicita outra coisa além
desse reconhecimento imediato, recebido como plenamen­
te satisfatório: os deuses dos ancestrais são deuses pro­
tetores — não de todo homem, o que permitiria supor
que se preocupam com os outros — , mas daquele que
precisamente tem esses deuses como protetores; as prá­
ticas agrícolas e artesanais legadas pelos pais, são práti­
cas eficazes; e a maneira de viver é a que convém exata­
mente à satisfação do desejo. A inserção na coletividade
(notemos que, evidentemente, não se trata, em uma
perspectiva histórica, senão de um limite) é tão completa
que a outra coletividade, cuja existência outra é experi­
mentada nas trocas e na guerra, não chega a assumir
importância; é totalmente relegada à estranheza da
outra, daquilo que o filósofo chamaria de inconcebível.
Qualquer inquietação que apareça, permanece interior ao
grupo: resulta, por exemplo, do temor de não viver com
os deuses ou de compreendê-los mal. Deve-se observar
que a certeza da doxa concerne não só os sentimentos
e a “ visão do mundo” mas ainda as téknai e a distribui­
ção dos privilégios sociais: nesse sentido, a “ opinião”
constitui a expressão de uma atitude existencial que des­
preza, como sem alcance real, todo modo de existência
diferente e que se apreende como absolutamente satis­
fatória. Tal é, ao que parece, o verdadeiro estado da
certeza imediata que parece menos ser a presença irre­
dutível do hic et nune sensíveis, do que a constante igual­
dade consigo mesmo nos sentimentos, ligada à plena sa­
tisfação da existência dada (dada e não conquistada por
um esforço qualquer, do pensamento ou da ação).
A doxa não formula questões: constitui antes uma
coleção de respostas. Esclareçamos que, evidentemente,
este último enunciado vale apenas em si, pois o homem
da doxa para-si, não formula nem questão nem respos­
ta: a linguagem é utilizada por ele como comentário,

90
pontuação ou substituto da ação. O único questionário
é o que lhe impõe sua existência e as respostas que ele
dá são, a seu ver — quer dizer, na etapa histórica em
que se encontra — inteiramente satisfatórias. Todavia,
em função de um devenir próprio que não poderíamos
aqui estudar, — tarefa da ciência histórica — , sobrevêm
um momento no qual as condições da existência se trans­
formam de tal maneira que a coletividade não mais pode
permanecer enclausurada em seu particularismo; ao
mesmo tempo, no interior dos próprios grupos, o desen­
volvimento das técnicas de produção suscita relações so­
ciais novas que são fermentos de dissolução do antigo
vínculo social. No caso do mundo grego, por exemplo,
que, por motivos geográficos e históricos é particular­
mente significativo, o desenvolvimento simultâneo da
técnica artesanal e da economia mercantil, o aperfeiçoa­
mento dos processos, o aparecimento de uma classe ser­
vil importante, o crescimento do número de indivíduos
que, voluntária ou involuntariamente, desprendem-se dos
constrangimentos impostos pelos géne constituem causas
efetivas que contribuem para arruinar a certeza das cren­
ças tradicionais. A esse respeito e a títulos diversos, em­
bora as produções literárias assinalem considerável atra­
so em relação às consciências, obras como as de Hesío-
do, Ésquilo e Heródoto manifestam essa dúvida que vem
corroer as grandes certezas herdadas dos tempos pas­
sados. Os grupos, interiormente debilitados, entram em
contato cada vez mais íntimo uns com os outros; novas
coletividades aparecem, fundadas não no sangue ou no
lugar (o génos e a k h ióm e) , mas nas circunstâncias for­
tuitas que unem os interesses; as guerras se multiplicam
e se tornam senão mais cruéis, ao menos mais radicais
em seus efeitos: o indivíduo — mesmo que fosse grego
— passava brutalmente da categoria de homem livre à
de escravo e a desgraça essencial e definitiva irrompe,
não mais em sua forma natural, mas em sua forma his­
tórica; e a experiência dramática da produção, da “ po­
lítica” e da guerra vem contestar o sólido empirismo dos
antigos: eis aí a idade de bronze a qual, sem dúvida, não
revela a violência, mas lhe dá um aspecto humano. Os

91
deuses do grupo são finalmente causa do infortúnio da
coletividade vencida: mas, há também responsáveis,
aqueles que, em sua certeza, deram ordens ou ditaram
soluções, cujo erro é dolorosamente sentido por todos;
outros agiram de maneira diferente e triunfaram. A
existência quotidiana, tornando-se diretamente histórica,
povoa-se de incertezas e a satisfação de sentir e de fazer
é substituída pelo problema vital da ação bem sucedida.
O conflito entre diferentes doxoi assume um aspecto
particularmente revelador ao nível dessa formação polí­
tica que é a polis. A cidade grupa duas classes sociais
propriamente ditas: os homens livres e os escravos; estes,
no entanto, por causas múltiplas, não contam e os anta­
gonismos surgem na própria classe dos cidadãos. As di­
versas camadas sociais que a constituem disputam a
“ renda nacional” fornecida pelo trabalho das terras, os
lucros comerciais, a pilhagem, a colonização: opõem-se
a respeito do modo mais conveniente de conceber o des­
tino do Estado para que a “ Cidade seja feliz e unida” ;
e essa oposição se manifesta em todos os domínios, pelo
aparecimento de doxoi contraditórias no que se refere
aos deuses, à virtude, à lei. Dionisos, por exemplo, volta
a ser uma divindade importante na Ática no momento
em que os pequenos agricultores que cultivam a vinha se
aliam politicamente aos comerciantes do litoral que ven­
dem o vinho; à antiga pedagogia que visava formar
guerreiros de costumes sóbrios e sentimentos piedosos
opõe-se uma nova paidèia que procura educar cidadãos,
hábeis em defender seus interesses e os do Estado na
Pnix e afeitos às novas têchnai; à idéia tradicional de
virtude que repousava na moderação e o temor da ybris
inspiradas pelo terror da Moira substitui-se uma concep­
ção mais “progressista” que oscilará constantemente
entre o humanismo e o cinismo; a própria noção de
Estado suscita dissenções, opondo-se o modelo ateniense
ao modelo espartano. Seria fácil multiplicar os exem­
plos dessa diversidade: a cidade de Péricles tornar-se-á
o lugar de disputas apaixonadas em que se manifestam
as diferentes doxoi: a tragédia, a comédia são a ocasião

92
de dramatizar esses conflitos; a descrição de aconteci­
mentos passados deixa de ser pretexto à poesia e permi­
te apreender a diferença das civilizações, de confrontar,
nos fatos, as opiniões dos políticos e dos chefes milita­
res . A própria especulação muda de aspecto: não expri­
me-se mais poeticamente, nos poemas grandiosos, mas
essencialmente “ dogmáticos” ; assume força argumenta-
tiva. Surgiu o diálogo, como expressão da luta dos inte­
resses e das paixões das individualidades e das classes
sociais.
Todavia, esse diálogo ainda não é troca ou discus­
são; é confronto. Mais precisamente, se a doxa renun­
ciou a essa certeza que a autorizava a não ver o outro,
nem por isso renunciou a apresentar seu próprio con­
teúdo como verdade. Nasceu a oposição da verdade ao
erro, mas cada uma das doxas julga que é a verdade.
Ainda não se pergunta e não se admite ser perguntado:
afirma-se aquilo de que se está convencido em face de
um outro que, por seu lado, está persuadido da exce­
lência de suas “ idéias” . A inquietação não leva ainda a
duvidar de si: reconhece o outro, sem dúvida, mas logo
se dissipa apresentando como verdade determinada con­
cepção do mundo. A técnica do discurso não consiste em
saber quem tem razão, mas de que maneira pode-se fazer
triunfar sua “ opinião” , o problema da justeza sendo igno­
rado ou posto entre parênteses. O discurso dogmático,
que está ligado às novas formas da civilização e que em-si
traduz a falência da certeza, não se tornou ainda um
instrumento de pesquisas: continuou sendo uma manei­
ra de dizer. Mais precisamente ainda, a linguagem con­
tinua sendo a linguagem do interesse e da paixão e sua
força persuasiva é posta a serviço daquele que compreen­
deu que, na nova vida política, é um meio de triunfar
ainda mais poderoso do que no passado. Alguns sofis­
tas, aliás, compreenderam isso admiravelmente, como se
verifica graças aos raros textos subsistentes e median­
te concepões que lhes atribui Platão: entre as diversas
ieknai graças às quais o indivíduo bem dotado pode de­
senvolver seu poder e aumentar sua satisfação, a arte

93
do discurso é a mais importante e é capaz, quase sempre,
de substituir eficazmente todas as demais.
Para-si, cada uma das doxas se apresenta como ver­
dade: qual, no entanto, dessas opiniões, é posse efetiva
do verdadeiro? A circunstância histórica é tal, na Grécia
clássica, que nenhuma delas pode pretender esse privi­
légio e é apenas paradoxo aparente afirmar que o “mi­
lagre grego” e, em particular, a vontade de filosofia,
foram engendrados pela própria confusão e por essa es­
pécie de falsidade que caracterizam a situação helénica
nos séculos V e IV . Os acontecimentos, com efeito, dão
sucessivamente razão a cada uma das partes conflitan­
tes e, no conflito que opõe a tradição ao progresso, a
agricultura ao comércio e ao artesanato, a oligarquia à
democracia, a natureza à história, a ordem dada à justi­
ça desejada, Aristófanes a Hipérboles e a Cleon, Sparta
a Atenas — esse acúmulo indicando a riqueza do pro­
blema e de modo algum a pretensão de esgotá-lo — cada
opinião pode encontrar exemplos e argumentos que lhe
dão razão. O drama, aliás, é precisamente esse: Crítias
vê mais longe e com mais justeza que seus adversários
democratas; é ele, no entanto, quem morre revoltado em
combate absurdo e que, legitimamente, endossa a res­
ponsabilidade da traição; Sócrates apreende genialmente
a significação da tragédia política de Atenas e seus ata­
ques contra a democracia permanecem irrisórios e esté­
reis; que nos permitam mesmo declarar: Platão torna
plenamente inteligível a estrutura desse destino da “ Gré­
cia da Grécia” e, no entanto, malogra em sua ação pes­
soal e elabora somente soluções ideais. O devenir, con­
forme sua necessidade, tece os fios de tal maneira que
nenhuma doxa pode impor-se como decisiva: cada um
sente, em contato com o acontecimento, sua limitação e
sua particularidade, mas cada vim logo a domina por
uma afirmação furiosa que sempre encontra no aconte­
cimento uma prova que lhe basta. O interesse de cada
grupo social, de cada individualidade, pode, em última
análise, pretender a verdade, pois cada ação violenta,

94
em seu tempo, soube triunfar ostentando argumentos da
razão.
Desse excepcional encontro de circunstâncias nas­
cerá o que se costuma chamar de filosofia. Os homens
falam e dizem, com habilidade, de acordo com seus dons,
seus interesses e suas paixões; vestem-nos de argumen­
tos e multiplicam os exemplos irrefutáveis: infelizmen­
te, cada um desses homens sabe que sua fala persuasiva
pode ser interrompida bruscamente por um aconteci­
mento irreversível, o ato de seu interlocutor que o mata
(ou que nele faz nascer tal temor que prefere nada mais
d izer). No começo, não o sabe bem: pensa que a nova
vida política confere ao discurso desinteressado uma es­
pécie de imunidade; mas por que o adversário gago, de­
sastrado na palavra ou, simplesmente mais forte, deter-
se-ia em semelhante aparência? O poder do discurso logo
manifesta sua fragilidade: os processos se multiplicam,
os banimentos e os assassínios tornam-se mais numero­
sos. Manifestando sua efemeridade, o discurso da doxa
redescobre por-si o que já era em realidade: substitutivo
da força ou meio de dissimular uma força insuficiente.
Desde então, falar, discutir, parecem brinquedos de pou­
ca importância. Paralelamente, o absurdo da existência
humana parece impor-se: não só cada interesse é capaz
de encontrar os argumentos que o justificam, mas tam­
bém, de acordo com as circunstâncias, cada um pode
triunfar e impor pela violência seu ponto de vista
aos outros. Aristófanes traduz mais grosseira e mais
diretamente do que Sócrates essa perplexidade do cida­
dão que assiste ao êxito dos indivíduos menos qualifica­
dos e vê manifestarem-se como justas as piores teses e
as mais incoerentes. E o êxito final do Paplagoniano em
Os Cavaleiros revela o caráter irrisório de todo ato his­
tórico que mergulha necessariamente no nãosenso e
suscita quando muito uma interpretação cômica. Em
outra perspectiva, Tucídides descobre como único remé­
dio para esse doloroso absurdo a existência de um homem
que, como Péricles, seria capaz de impor, pela irradiação

95
de sua personalidade e uma série de felizes circunstân­
cias, a ordem justa.
A lição é de um pessimismo apavorante: nada en­
trou em lugar da antiga certeza, a não ser o jogo de
uma violência cega que distribui suas provas ao acaso.
A Moira reaparece sob um aspecto ainda mais conster-
nador, pois agora se sabe que nada preside o acaso a não
ser o jogo caprichoso de uma sorte reduzida à pura con­
tingência. O ato filosófico, o de Sócrates, e principal­
mente o de Platão, representa a vontade corajosa de sair
dessa situação insustentável e de restituir ao homem a
esperança de assistir ao êxito duradouro de uma ação
sensata. Caberia estudar com precisão as circunstâncias
históricas que permitem a essa vontade definir seus fins
e realizar-se numa obra; também caberia mostrar porque
essa vontade necessariamente malogra. Devemos con­
tentar-nos, aqui, em salientar os traços gerais da empre­
sa filosófica nascente, traços graças aos quais será pos­
sível elucidar a oposição da filosofia à doxa. O primeiro
ato filosófico consiste precisamente em tomar consciên­
cia da tragédia da existência histórica e recusar as so­
luções parciais até então satisfatórias: o “ bom tempo
antigo” de Aristófanes, o homem providencial de Tucí-
dides, a “ boa vontade” de certos sofistas e o individua­
lismo egoísta e gozador de alguns outros, a moderação
e a exaltação das virtudes tradicionais defendidas pelos
políticos representantes das classes médias, tudo isso é
rejeitado como insuficiente e, finalmente, como ingênuo.
A experiência filosófica inicial é a da inanidade dessas
soluções: um olhar suficientemente amplo sobre a his­
tória de Atenas e da Grécia durante essa cruel guerra
do Peloponeso mostra que nenhuma delas é aceitável,
nem mesmo a da violência, pois todo vencedor, pela pró­
pria necessidade de sua vitória, determina-se como ven­
cido em potencial. A técnica que corresponde a essa to­
mada de consciência consiste em igualar todas as do-
xoi, em colocá-las lado a lado num diálogo que se recusa
a escolher qualquer uma delas. Desde então, no mo­
mento em que cada uma afirma e desenvolve sua argu­

96
mentação, vê a outra negá-la e achar argumentos e
exemplos que a destróem. Sócrates não toma partido:
não pode fazê-lo, pois deveria escolher uma doxa, e ne­
nhuma é capaz de provar sua validade. Os diálogos cha­
mados socráticos são um impressionante resumo dos ma­
logros do pensamento grego durante o século V:as di­
versas crenças que inspiraram os homens são relaciona­
das de tal maneira que cada uma delas logo confessa
sua incerteza. Percebe-se, nessa perspectiva, uma pri­
meira significação dessa generalidade que se costuma
atribuir à concepção filosófica do mundo. E, inicialmen­
te, a possibilidade de unir, não ainda numa totalidade,
mas num conjunto, as diversas visões parciais, de modo
a mostrar sua parcialidade e a fazê-las destruir-se mu­
tuamente. No começo, nada mais é do que uma nega­
ção utilizando como prova essencial a multiplicidade
das óticas individuais. Para que essa negação pudesse
ser efetuada, era necessário que o devenir histórico en­
gendrasse, de um lado, essa multiplicidade; e, também,
que as opiniões múltiplas se projetassem sobre o fun­
do de uma experiência comum. As lutas sociais do sé­
culo VI, as guerras médicas e, principamente, o anta­
gonismo de Sparta e Atenas, proporcionaram, ao que
parece, esse horizonte único. O destino próprio da de­
mocracia ateniense certamente contribuiu para enri­
quecê-lo. Contra as doxoi, invocando cada uma o teste­
munho de um elemento desse horizonte único, o filóso­
fo invoca o horizonte em seu conjunto; mais precisa­
mente, na medida em que o invoca em seu conjunto e
que esse conjunto é contraditório, mostra o absurdo do
recurso ao que se costuma chamar de experiência, pois
cada um pode nela encontrar o exemplo que legitima
sua crença.
Nesse nível, o progresso é considerável: cada doxa
se apresentava imediatamente como a verdade e situa­
va a outra no erro; agora, o simples fato de que sejam
grupadas em um discurso único e imparcial as múlti­
plas opiniões basta para precipitá-las todas no erro. Uti­
lizando a incerteza real que faz reinar a violência his­

97
tórica, o filósofo arruina a atitude mesma da doxa mos­
trando a falsidade da opinião em geral. Esse, porém, é
apenas o primeiro momento de sua tarefa; acontece que
a exigência da certeza perdura, que o homem — e, con­
seqüentemente, o filósofo também — quer saber o que
se deve pensar e como convém comportar-se para che­
gar à justeza e à felicidade. Resta que a inocência da
crença primitiva, que ignorava a oposição do erro e da
verdade, não é mais praticável: e, doravante, a aboli­
ção de todas as soluções aceitas revela a urgência em
definir uma atitude graças à qual poderá esboçar-se
uma solução verdadeira. Ora, como irá, no começo, de­
finir-se o filósofo? Que elementos possui para responder
a essa exigência de certeza? “Nada sabe” , segundo a
fórmula célebre; sabe apenas que os homens pensam sa­
ber e se enganam; sabe, também, que os fatos que cada
um invoca para justificar-se não são de modo algum
decisivos, tão grande é a variedade dos fatos e a tal pon­
to o interpretá-los depende da paixão. O único fato que,
portanto, subsiste para o filósofo é a existência de uma
linguagem que todos querem persuasiva e a multiplici­
dade das doxoi opostas. Restam, em suma, o crédito em
favor da forma do discurso e a contradição que se ma­
nifesta nos conteúdos dos diversos discursos.
Dessa extrema pobreza, o filósofo vai fazer uma ri­
queza: e é para a estrutura discursiva da linguagem
que visa persuadir, que vai apelar. Tendo feito surgir
o erro da contradição, esforça-se em construir o discur­
so coerente, capaz de suscitar, pela exclusiva virtude das
palavras, e apoiando-se em erros parciais, a adesão de
todos os interlocutores sérios. A todas as crenças, subs­
titui unicamente sua confiança no logos. Cada uma das
doxas fala: esta define a coragem desta maneira; aque­
la fornece da mesma virtude uma idéia diferente. A par­
tir dessa oposição e dos exemplos que cada um empre­
ga, é possível dizer o que é a coragem: a coragem é isto
ou aquilo, segundo as doxoi; isso equivale a dizer, uma
vez que ninguém pode impor sua concepção, que a co­
ragem é isto e aquilo, quer dizer, que é ainda essa outra

98
coisa que não é nem isso nem aquilo, mas que dá con­
ta de uma e de outra: e essa outra coisa é o que a co­
ragem é em verdade ou ainda, seu conceito. Não se tra­
ta, pois, de modo algum, de uma tentativa de somação
que reteria o que há de comum nas diversas perspecti­
vas: a experiência mostra suficientemente que seme­
lhante tentativa está condenada ao malogro; a ambi­
ção é maior: consiste, graças à arte do diálogo, — a
dialética no sentido platônico — em, formulando as
questões adequadas, obrigar o outro, não só a confessar
a insuficiência de sua posição, mas também a descobrir
o enunciado verdadeiro. De fato, cada um, falando, co­
nhecia o verdadeiro, mas, perturbado pelo interesse, de­
le ze afastava. E a técnica filosófica consiste em utili­
zar a preocupação de coerência daquele que fala para
revelar esta verdade: colocar em sistema as doxoi é ar­
ticulá-las de tal modo que, no desfecho do colóquio, a
definição justa se imponha com nitidez a todos os inter­
locutores de boa fé. Essa “ concepção geral” está pois
em relação dialética — no sentido moderno — com as
visões parciais: no momento em que as nega, formula
sua verdade e, por isso mesmo, a verdade.
O triplo sentido do termo logos resume essa dialé­
tica capital que conduz da expressão imediata da cren­
ça ao discurso filosófico. Enquanto palavra, o logos é
antes de mais nada declarativo; manifesta o sentimen­
to e designa um objeto sem inquietar-se com sua jus­
teza; é o fato da plenitude subjetiva que exterioriza sua
crença e canta seu universo. Se alguma contestação sur­
ge, o logos se torna discurso: conhece sua verdade e, em
face do erro do outro, argumenta e tende a fazer valer
seu conteúdo como único admissível; é uma organiza­
ção da paixão no seio da vida “ política” . Todavia, a ex­
periência revela a diversidade dos interesses e o fato de
que cada discurso, para-si, é legítimo e, em si, errôneo:
dessas disputas, ninguém sai convencido. Será preciso
deixar de falar e entregar-se à pura violência? Perdida
a inocência, será preciso admitir a barbárie como solu­
ção única? O filósofo recusa esse caminho; se o homem

99
que fala é capaz, às vezes, de convencer os outros, então
a linguagem possui em si mesma as promessas de sal­
vação: é preciso encontrar uma “ arte” tal que esse po­
der da linguagem se torne mais convincente do que a
paixão e a violência, de tal modo que o logos se transfor­
me em razão. O filósofo é aquele que consegue suscitar
a adesão do homem presa do interesse mostrando-lhe,
apenas pela linguagem, o que é verdadeiramente e dá
a razão de suas palavras, uma razão ao qual o outro não
pode resistir: o filósofo é o dialeta — no sentido platô­
nico — , aquele que sabe formular as questões e dar as
respostas convenientes.
Percebemos aqui a ligação existente, na noção de
filosofia, entre a idéia de generalidade e a de legitima­
ção. Uma concepção do mundo só pode pretender ser
geral se for capaz de converter à sua perspectiva as vi­
sões parciais, somente, portanto, se for capaz de dar
a razão de sua generalidade. É justo, conseqüentemente
— e é incontestável — reclamar da filosofia que seja
outra coisa além do desenvolvimento da crença, por mais
rico de fatos que possa ser esse desenvolvimento, por
mais evidente que seja seu “ êxito” . E, dar razão, legiti­
mar, justificar — também se pode dizer fundamentar.
Está implícito no exercício da filosofia que nela se pro­
cura evitar toda e qualquer postulação: a tal ponto que
é desse modo exato que se distingue formalmente do
exercício matemático cuja estrutura é hipotético-demons-
trativa: o filósofo não quer formular enunciado algum
que não seja geral — no sentido em que acabamos de
definir esse termo — , isto é, que possa ser admitido por
todo homem de boa fé, seja em que situação for. Deve-se
observar, desde logo, que se trata, no caso, de um pro­
grama ao qual a simples coerência do discurso não sa­
tisfaz plenamente. Esse programa, pode-se afirmar que
o pensamento filosófico, ao longo de sua história, esfor­
ça-se efetivamente em realizá-lo com as armas, as pre­
ocupações, os instrumentos que cada época lhe fornece;
pois, afinal de contas, trata-se sempre, para o filósofo,
de construir um discurso tal que cada um que o conhe­

100
ça possa nele encontrar os meios graças aos quais poderá
pensar com justeza e, ao mesmo tempo, viver na satis­
fação.
Na origem, pois, generalidade, legitimação e aceita­
bilidade podem ser equiparadas: o filósofo prova a gene­
ralidade de sua concepção graças a um discurso que im­
plica a adesão de todo interlocutor de boa fé. Com a
preocupação de coerência daquele que fala, obriga o ho­
mem da doxa a renunciar à sua parcilidade e a substi­
tuir sua visão abstrata por uma apreensão sistemática
e ordenada do real. O logos não é mais considerado ex­
pressão imediata da crença nem uma tékne particular­
mente cômoda: constitui o domínio no qual se constrói
o enunciado verdadeiro. Nele, e por suas virtudes pró­
prias, a existência quotidiana se reflete e transforma
de tal maneira que desaparecem os absurdos e as am­
bigüidades. De fato, à experiência irrisória e incoeren­
te da vida imediata, substitui-se a experiência do rigor
proporcionado pelo discurso que pretende ser realmen­
te persuasivo. A formação do conceito correspondente a
essa tentativa de dar à palavra tal consistência e soli­
dez que não permita a ninguém entendê-la de outra ma­
neira. Seria possível, sem dúvida, apresentar o signifi­
cado da nascente empresa filosófica de outra maneira
e opor, por exemplo, em perspectiva análoga, a dúvida
à reflexão, o sensível ao inteligível, o empírico ao racio­
nal: essas são, no entanto, categorias muito elaboradas
e historicamente posteriores. Parece claro que a filoso­
fia adquire sua fisionomia autêntica a partir do momen­
to em que um homem se preocupa em falar não para
afirmar ou persuadir, mas para convencer, em organizar
sua palavra de modo tão “ verdadeiro” que ninguém
mais possa acusá-lo de falar enquanto é ele próprio ou
para si mesmo, mas, como seja que homem for — digno
desse nome (e a restrição tem importância na socieda­
de grega) — falaria.
Foi necessário, no entanto, ao longo desta análise,
todas as vezes em que era evocado o interlocutor do fi­

101
lósofo, acrescentar que esse interlocutor devia ser hones­
to e de boa fé a fim de que o diálogo tivesse sentido.
Pode acontecer, com efeito, que o homem da doxa ao
qual se dirige o filósofo se recuse a discutir com ele,
que compreenda o perigo que representa para sua pai­
xão a argumentação filosófica e que se afaste pura e
simplesmente pretextando precisamente a importância
dessa paixão ao lado da qual os exercícios verbais são
apenas lúdicos. Nesse caso, o filósofo está desarmado.
Também o está quando o homem da doxa admite con­
versar, mas considera sem importância o fato de con­
tradizer-se ou de grupar experiências contraditórias em
um todo. O filósofo é igualmente impotente se, em ní­
vel ainda mais sutil, seu interlocutor declara falar ape­
nas por hábito ou polidez e sem que se deva dar o me­
nor crédito ao que ele diz ou ao que não diz. Devemos
lembrar aqui — depois de muitos — a importância ca­
pital do final do Georgias, quando Cálicles afirma —
com muito arrebatamento, mas também com astúcia —
que continua a discutir para agradar Georgias, embora,
para ele, o colóquio não tenha mais significação algu­
ma1. E. Weil desenvolveu essa idéia com admirável segu­
rança: basta remeter à sua demonstração2 e salientar
com ele que “ o filósofo socrático” realiza seu propósito
sempre que a doxa aceita a filosofia: se a recusa, ne­
nhum recurso é possível. E a eventualidade extrema —
a que doravante pesará sobre o desenvolvimento de todo
o pensamento filosófico — é que a paixão, irritada pela
argumentação filosófica e pelo efeito qus produz sobre
os ouvintes menos avisados, tome a decisão de negar a
filosofia: a marte de Sócríates assinala irremediavel­
mente os limites do discurso convincente.

1 ‘"Calliclès: Saiba, além disso, que tudo aquilo que V. me diz m#


é completamente indiferente! Foi para agradar a Georgias que apresentei
a V . essas respostas!” Georgias, 505 c.

2 Lógica da filosofia e, em particular, a Introdução, A , reflexão sobre


a Filosofia, II, o Homem como violência.

102
Para afastar a eventualidade de uma condenação,
o filósofo pode evidentemente manter-se em silêncio e
renunciar a convencer seus concidadãos: na intimida­
de de si mesmo, fruirá a satisfação proporcionada pelo
conhecimento do que é. Infelizmente, essa solução é, de
fato, impraticável: a filosofia, nascida do diálogo, não
pode renunciar a convencer sem logo perder-se e se cor­
romper. Revelando a parcialidade das diversas doxoi, o
filósofo visa, entre outros fins, tornar manifesta a to­
das a boa organização política, a que permite a cada um,
conforme sua natureza, obter um contentamento dura­
douro: entre os conceitos que procura definir em verda­
de, há o da justiça e, entre as condutas que tenta de­
terminar, há a conduta justa. Desde então, o filósofo
não pode deixar de pretender-se justo: e como o seria
se vive na Cidade injusta? Como escapar da desonesti­
dade se participa, enquanto cidadão, de açõss imorais?
O exemplo mostra que a melhor natureza se corrompe
numa ordem política submetida às flutuações e às de­
sordens da doxa: Alcibíades, o mais bem dotado dos ho­
mens, traiu sua pátria; Crítias pereceu, sedicioso e de­
sonrado. Sócrates não pode permanecer siencioso: ca­
lando-se, aceitará, sem dizer palavra, a violência dos ou­
tros, e então cairá inevitavelmente na imoralidade. Não
há “ torre de marfim” para o filósofo: é um daímon que
o impele a lutar contra as visões parciais e errôneas e
contra a violência, pois somente na medida em que rei­
nar a justiça poderá filosofar com a segurança de alcan­
çar o conhecimento verídico e o comportamento do sá­
bio. Para ele, a alternativa não está entre a palavra e o
silêncio, mas entre a palavra e a corrupção, entre o ris­
co da morte e a imoralidade.
Descobrir o conteúdo dessa alternativa, é revelar a
implicação necessária existente entre o exercício da fi­
losofia e o ato pedagógico e político. Seria relativamen­
te fácil mostrar como, no sistema platônico, as três ta­
refas, filosófica, política e pedagógica, se organizam
e permutam constantemente seus fins e seus interesses:
a estrutura da Republica testemunha sua estreita liga­

103
ção. Sócrates morreu em uma cidade injusta porque
quis; por ter pretendido definir a justiça: importa dora­
vante modificar a ordem política, a fim de que o filóso­
fo possa viver permanecendo filósofo. Tratava-se, inicial­
mente, de estabelecer em lugar das desordens do dis­
curso uma palavra coerente; importa, agora, lutando
contra as desordens políticas, assegurar a sobrevivência
daquele que se recusa a contradizer-se. A própria exis­
tência do filósofo torna-se aquilo mesmo que a filosofia
põe em jogo. Logo, porém, o empreendimento manifes­
ta-se difícil e cai numa espécie de círculo vicioso: para
que o filósofo viva, é preciso que a justiça reine; mas,
para que isto seja possível é necessário que os homens
acreditem na filosofia, que já sejam filósofos; ora, se
assim fosse, a justiça já reinaria. Ou ainda: o discurso
coerente, capaz de promover a boa ordem, o que garan­
te a segurança do filósofo, não pode só ser ouvido num
mundo no qual o filósofo, porque nele se acredita, já tem
sua segurança garantida. Na Cidade injusta, a pedago­
gia filosófica é ineficaz: aos que são dominados pela pai­
xão apresenta-se como um jogo estéril ou um disfarce
do interesse. E não há meios, pelo discurso, de romper
o reino da violência que se engendra a si mesma.
Ainda uma vez, tendo compreendido o perigo que o
espreita, o filósofo se acha desarmado: sua ação, que
está toda na palavra, acha-se condenada antecipada­
mente ao malogro. Sem dúvida, pode esperar ou confiar:
esperar que uma cidade apareça, na qual seus dirigen­
tes compreendam a filosofia; esperar que o acaso faça
nascer reis filósofos ou filósofos reis. Essa é uma solução
bem aleatória que somente uma crença infundada —
uma crença do tipo da doxa — pode entreter. Não res­
ta, pois, senão a ação propriamente dita, a que não he­
sita em recorrer à violência. Entre a violência do apai­
xonado e a do filósofo que se tornou político, há sem dú­
vida uma diferença: a primeira é cega, a segunda é ilu­
minada pelo logos. Mas, não será isso uma espécie de
malogro, uma confissão da importância do discurso em
existir por si mesmo como discurso coerente? Na reali­

104
dade, esse malogro teria pouca importância se fosse
acompanhado de um êxito efetivo, se o filósofo pudesse
instaurar — mesmo pela violência — a ordem filosófica
(voltaremos a essa questão, precisamente, a propósito
do marxismo), pois seria capaz, em seguida, de criar as
condições que lhe permitiriam fazer-se entender pelos
outros e justificar sua ação. Mas, o fato é, queremos di­
zer, é histórico, que o filósofo, quando tentou o caminho
da atividade política ativa, pouco tempo após o nasci­
mento da filosofia, não logrou êxito: nenhum sobera­
no fez de Platão seu primeiro ministro e a aventura na
Sicília terminaria em malogro. Por motivos históricos,
a Calípolis permanece uma utopia: depois da morte de
Sócrates, esse malogro constitui o segundo acontecimen­
to que vai contribuir para dar à filosofia seu aspecto tra­
dicional. Desarmada no nível da palavra, a filosofia é
vencida no campo da ação. Resta-lhe calar-se ou espe­
rar a morte sem significado. Resta-lhe também tornar-
se retórica e renunciar a si mesma ou aceitar esse he­
roísmo da paixão que é sua própria negação.
Tais eventualidades são, de fato, irrealizáveis: a
exigência da justificação surgiu e as condições que a
fizeram nascer perduram. A incoerência das ãoxoi sub­
siste e a incapacidade da violência em resolver os proble­
mas humanos é tão aguda como sempre. A recusa da fi­
losofia é possível; enriqueceu-se mesmo com argumen­
tos novos e persuasivos: mas a idéia de um saber que
superasse as “ opiniões” unificando-as, a idéia de uma
conduta que levasse em conta a violência sem a ela re­
correr como prova, permanecem. Mesmo aqueles que re­
nunciam ao ato de filosofar têm escrúpulo em repudiar
a palavra que parece carregada de significação mágica
e perturbadora. Finalmente, a morte de Sócrates reve-
la-se, contraditoriamente, normal e injusta, e o malogro
de Platão mostra, ao mesmo tempo, a ingenuidade e a
justeza da ambição filosófica. Um novo caminho está
aberto — que o pensamento platônico impelido por sua
necessidade própria já havia amplamente utilizado —
e que será durante longos séculos o caminho real da fi­

105
losofia: o que corresponde a consolidar a filosofia con­
tra a doxa, o que pretende dar a prova da inanidade da
paixão, o que tenta fundar a exigência de um funda­
mento com as próprias provas do interesse e do desejo.
Essa procura entusiástica e todavia ordenada de uma
ordem de fato que esteja na raiz do direito, essa vonta­
de jamais desarmada de erguer contra a “ lucidez” do
cínico ou a “ força” do coração, um mundo efetivo que
prove a estupidez da violência imediata e a inanidade
da reivindicação individual determinam exatamente es­
se movimento que leva da filosofia nascente à metafí­
sica, de Platão a Aristóteles, e daí a tudo o que se cos­
tuma chamar a filosofia perene, até Hume e Kant. A con­
denação de Sócrates, de um lado, e, em outra medida,
o malogro político de Platão — acontecimentos que, re­
petimos, são o fruto do devenir histórico — compelem,
de certo modo, o filósofo a uma vontade nova: tratava-
se, antes de mais nada, para ele, de utilizar o crédito de
que desfruta o discurso coerente para determinar con­
ceitos que permitam pensar o real e a conduta com jus­
teza; à luz dessas experiências dolorosas, verifica então
a insuficiência da palavra, mesmo justa: a “ maldade”
de Cálicles, o “ bom senso” de Anitos, a “ ininteligência”
de Dionísio tornam ineficaz a “ demonstração” filosó­
fica. E a infelicidade é que os fatos, em sua crueza, dão
razão — uma razão fundamentalmente não razoável —
a esses adversários da filosofia. O ser está de seu lado,
com suas ambigüidades, e não do lado do discurso bem
organizado, não do lado do diálogo entre pessoas de boa
fé. O logos mostra que é, de fato, o que era aos olhos de
seus detratores: um divertimento inútil e, em todo ca­
so, perigoso para aquele que o pratica. A lição do real
não dá razão ao filósofo e o filósofo sabe que tem ra­
zão: se a vontade filosófica não fosse justificada, então
haveria apenas a violência e a desordem, nem mesmo o
silêncio, mas o discurso utilitário. Todavia, um recurso
é oferecido pela necessidade própria da reflexão que a
necessidade histórica, aliás, torna efetivamente viável:
a que consiste em mostrar que o mundo que renega a

106
filosofia não é o mundo verdadeiro, mas uma ilusão, uma
aparência.
A exigência de ordem, a recusa da contingência e
daquilo que os ensaístas contemporâneos chamam de
absurdo, levam os filósofos a legitimar, não mais ape­
nas logicamente, mas também ontologicamente seu dis­
curso. O que dizem, não é a obra de uma palavra que
irrisoriamente contradiz o mundo, é a revelação do
mundo real, que não se percebe imediatamente, mas
que, à luz da reflexão e para a reflexão, existe muito
mais do que o mundo dado. Desde logo, o filósofo deixa
de ser uma simples subjetividade que, em virtude de uma
mania ou de um daímon, exprime seu desacordo com as
maneiras de viver e de pensar da doxa: torna-se o intér­
prete fiel do que é verdade e escapa à maioria. Como sa­
lientou admiravelmente E. Weil — em cujo pensamento
esta análise repousa constantemente — , ganha o pen­
sador por não poder ser contestado (ou condenado) a
justo título: se algo deve ser culpado, não é este ou
aquele homem, mas o próprio ser3. Tratá-se, evidente­
mente, de um subterfúgio: mas é importante e susten­
tou durante muito tempo a vontade do metafísico; Aris­
tóteles, exilado e perseguido — ao menos segundo a le­
genda, que é bela e significativa — pode invocar não o
que ele pensa, mas o que é: pode designar o objeto que
lhe impõe dizer o que é; e Platão, antes dele, havia in­
ventado os eidos, graças aos quais Sócrates, seu porta-
voz, sai da palavra para entrar no domínio sólido e re­
confortante daquilo que é em realidade. O caráter pleo-

3 “ A gora, a contradição ameaça o homem que, representante de to­


dos os homens, fala oonsigo mesmo, não para estar de acordo consigo
mesmo, mas para estar certo de que está de posse da verdade sobre
o que é: é preciso que não haja contradição entre o que o homem diz
e a própria realidade, é preciso que o que diz não esteja em contra­
dição com o que encontra, com o que lhe acontece, com o que observa.
Em uma palavra, seu discurso deve dar conta do mundo” . E. W eil, op.
cit. Introdução, B, Reflexão sobre a filosofia, II, O discurso do indi­
víduo e do ser, pp. 29-30.

107
nástico desta expressão deixa de ser chocante se nos
lembrarmos que a situação histórica permitira aos an-
tifilósofos desarticular a realidade e a verdade, o fato
e a expressão coerente do fato, a “ ontologia” e a lógica.
A vontade filosófica, atribuindo-se por tarefa a revelação
do que é verdadeiramente, esforça-se em fazer desapa­
recer esse hiato, em reconciliar o discurso e o real, isto
é, em revelar o real não-contraditório que corresponde
à expressão não-contraditória.
Além dessa aparência, que se chama de mundo, há
pois outro universo do qual a filosofia é conhecimento.
A generalidade permanece generalidade da aparência,
mas só é tal graças à mediação desse outro dado ime­
diato. Mais precisamente, o dado, que não se dá, cons­
titui a generalidade desse dado que se dá e permite pen­
sá-lo com justeza, segundo a generalidade. A legitima­
ção do fato não está mais apenas no conceito, está no
próprio objeto que confere ao conceito seu peso e sua
autoridade e que se pode, por exemplo, chamar de Idéia.
A reflexão filosófica se desdobra: é inicialmente refle­
xão do fato no discurso, em seguida reflexão do discur­
so em um fato superior e definitivamente probante. Apa­
rece, assim, esse mundo das essências que, pela media­
ção do logos, constitui a verdade da existência. O mo­
vimento de pensamento que conduz dos frutos ao con­
ceito de fruto e daí a esta entidade: o Fruto, por mais
aberrante que pareça, é o resultado de obstinada tenta­
tiva de anular a violência cínica e os ímpetos descon­
trolados do coração. O que se costuma, perpetuando um
jogo de palavras cuja importância já se salientou várias
vezes, chamar de meta-física, cria um além-mundo on­
de as ambigüidades se tornam diferenças, os antagonis­
mos oposições claras, a desordem organização. Esse cal­
mo universo não é uma dublagem: é uma concretiza­
ção, ou ainda, um produto da reflexão sobre este mun­
do que é, de fato, inconcebível. Nele a filosofia encon­
tra a satisfação, as razões para recusar definitivamente
as doxoi e também um sério motivo para sua coragem.

108
Agora, a segurança foi obtida: Sócrates não é um insen­
sato, nem um criminoso; falava em nome de uma rea­
lidade que os outros não viam, mas que existe; condená-
lo, não é triunfar sobre um homem, mas querer ser cego
e insensato.
Todavia, o filósofo deve ainda provar a realidade
desse além-mundo, pois, até agora, é o único a conhecer
sua existência, a saber que é em si. Para os outros, a
Idéia (ou a Essência ou a “ verdadeira e imutável natu­
reza” ) não se dá: permanece uma invenção, produto de
uma reflexão vaticinante. A tarefa filosófica consiste,
portanto, de um lado, em tornar manifesto o caráter fe-
nomênico deste mundo e, de outro, em fazer aparecer
o que não se dá imediatamente. Trata-se, em suma, de
uma espécie de troca; o que é real para a maioria deve
confessar sua irrealidade e o que não se apresenta como
real deve provar sua realidade; o ser-aí será revelado co­
mo falso-ser, o ser que não está aí como ser verdadeiro.
Em outras palavras, o empreendimento filosófico con­
serva seu caráter pedagógico: importa levar aquele que
é ainda uma criança a reconhecer a puerilidade de suas
crenças e a viver em contato com o mundo sólido e cla­
ro das essências. O acento, porém, se deslocou: à educa­
ção do logos, convém agora atribuir um fundamento
ontológico; é a alma que se deve converter a fim de
torná-la capaz de perceber o que está oculto. A procura
da generalidade transforma-se em esforço de revelação:
modificação da alma, que descobre seu vérdadeiro poder,
e revelação do ser efetivamente real. É claro, a partir
daí, que essa educação se acha compelida a apresentar
as provas de sua legitimidade e de seu sentido no pró­
prio seio da existência quotidiana e, em conseqüência,
a encontrar no ser-aí as manifestações da essência. A
troca torna-se uma dialética: confessando sua inessen-
cialidade, o ser fenomenal deve negar-se e fazer conhe­
cer o que é. E, ao mesmo tempo, o além-mundo deve
mostrar-se como aquilo de que a aparência é aparência.
Entre o falso-ser e o ser, não poderia haver exclusão nem
mesmo corte — ao menos no início. Nesse sentido, a fi-

109
losofia exclui o misticismo que, desde logo, se acha em
comunidade com o ser e, assim, se afasta do quotidia­
no como de um dado, por natureza, inessencial e des­
provido de importância. Em outros termos, para o filó­
sofo, algo do ser já deve estar na aparência, pois, caso
contrário, restaria para ele o desespero silencioso neste
mundo e, no além, a fruição silenciosa; inversamente,
o ser deve apresentar-se como o ser da aparência, senão,
de acordo com a observação de Aristóteles, ele seria, mas
inutilmente4.
O problema da prova, do fundamento, acha-se ago­
ra delimitado de modo muito mais preciso; trata-se de
descobrir, a partir da diversidade, dada imediatamente,
não só a prova de que há o verdadeiro, mas ainda o meio
ou o caminho que permitirá conhecer o que é verdadei­
ro. Da contradição e da confusão dos fenômenos, con­
vém extrair os traços que são ao mesmo tempo sinal e
manifestação da essência, e tirar do desespero ou do
tédio quotidiano razões de esperança e de satisfação.
Esse esforço alimenta a vontade metafísica de Platão e
Aristóteles a Descartes e os cartesianos. Existe, sem dú­
vida, no seio dessa vontade, grande variedade de con­
teúdos; sem dúvida, a época e o gênio de cada pensador
trazem grande diversidade de preocupações e de solu­
ções. Trata-se sempre, no entanto, de fazer ver o que
não é visto e de revelar o objeto estável e “lógico” do
qual o discurso filosófico é a expressão fiel; insistamos,
trata-se de revelá-lo àqueles mesmos que a animali­
dade, a paixão, o interesse, a tradição ou a ignorância
mantêm no seio de uma vida falsa e geradora de infe­
licidade. Essa apresentação da tarefa metafísica poderá
parecer estranha: o positivismo habituou-nos a consi­
derar a “ realidade metafísica” como o produto inútil e
malsão da imaginação e do medo; chegou-se mesmo a
sustentar, interpretando o marxismo de maneira sim­
plista, que ela representava como tal um instrumento

4 C f. Metafísica, A 9, 990 e ss.

110
de opressão. É verdade que o débil desenvolvimento das
técnicas de produção e a falta de consciência de classe
daqueles que trabalham efetivamente tornam possível
a atualização da vontade metafísica; é verdade, tam­
bém, que a obra do metafísico é utilizada pelos que se
beneficiam com a afirmação de um mundo diferente e
mais verdadeiro do que este mundo em que sofremos.
Mas, nem por isso é justo fazer da metafísica um pro­
duto direto da fraqueza humana ou do interesse de
alguns em explorar a maioria. Ao contrário, o metafí­
sico se apresenta, inicialmente, como aquele que se es­
força em responder, pela revelação de uma realidade
oculta, à pergunta do homem da doxa que sofre e per­
cebe confusamente que existe outra coisa além desta
dolorosa irrisão; é aquele que recusa os horrores da Guer­
ra do Peloponeso, que se revolta com a sorte de certos
cidadãos, que quer “ reabilitar” , por uma demonstração
de fato e não pela retórica, o cientista Galileu, e aquele
que, prudente e sorridente, incorre na condenação de
três Igrejas. A tentativa de constituir um discurso coe­
rente visava contrapor-se à violência ingênua ou cíni­
ca; seu malogro de fato leva a constituir o universo das
essências: que essa solução não seja a boa, isso não quer
dizer que haja em sua raiz qualquer intenção delibera­
damente má. Uma questão estava proposta, que o meta­
físico resolvia com as armas que lhe eram oferecidas (e
a solução platônica dura até Spinoza e Leibniz). Na ori­
gem da vontade metafísica, há a procura de uma ra­
zão: a razão dada não é certamente satisfatória; não
podia ser, aliás; resta que a busca do fundamento não
é de modo algum insensata.
A rigor, a metafísica, nessa perspectiva, é, por defi­
nição, racionalista. Assinalaremos, nas páginas seguin­
tes, os limites dessa racionalidade. Nem por isso o me­
tafísico deixa de estar animado pela intenção corajosa
de dar razão e de escapar, pela mediação do saber (pos­
suído ou apenas indicado), ao jogo consternador dos
impulsos animais, das j&^ivaÇõe^ psíquicas ou das “li­
vres escolhas” , termos aos quais finalmente se reduz a
“racionalidade” do universo na ótica do não-filósofo.
Para empregar palavras mais modernas, poderíamos di­
zer que o filósofo — enquanto se torna metafísico —
recusa a contingência do pormenor e procura uma ge­
neralidade precisamente, graças à qual o que parece
ahstrato, separado, encontra finalmente seu lugar no
seio da organização do mundo efetivamente real. Ora a
operação metafísica simplifica arbitrariamente sua ta­
refa rejeitando no inessencial o que a ela se apresenta
como “ sem razão” ; ora quer descobrir nos fatos contin­
gentes algum indício revelador (ou que assinale) a ra­
zão; ora, em fase de maior elaboração, utiliza o próprio
fato da contingência para postular a necessidade de
uma razão. Em todos os casos, importa ao metafísico não
abandonar aquilo que se dá ao puro fato de dar-se e de
ir do “ mostrado” à demonstração: a seus olhos, nada do
que é justo — no duplo sentido da justeza e da justiça
— se não pode, ao mesmo tempo, dar conta do próprio
fato dessa existência. É importante salientar essa “ na­
tureza” da metafísica se quisermos compreender seu ma­
logro. Pois é precisamente na medida em que essa pes­
quisa da razão última se converte em injustificável pos­
tulação que o empreendimento metafísico confessa sua
impotência: se chega a bom resultado é por deficiência
de seu poder e não por desfalecimento de sua vontade.
Platão e Spinoza continuam a dar exemplo de raciona-
lismo, mesmo que os tipos de racionalidade por eles pro­
postos fossem a prova de seu caráter desarrazoado.
O grande problema da metafísica é, pois, o de des­
cobrir a substância. Há sempre grande dificuldade, sem
dúvida, em utilizar termos como Essência, Idéia ou
Substância; sua distinção é imprecisa e suas significa­
ções são numerosas. Resta que a vontade do metafísico
— desejoso de fundamentar uma predicação absoluta­
mente legítima e de assegurar uma conduta coerente —
esforça-se por distinguir entre o acidental e o substan­
cial, entre o ser provisório e fluido e o ser constante e
sólido. Trata-se, para o metafísico, de fazer ver a pouca

112
importância daquilo a que a maioria atribui interesse e
o caráter decisivo da realidade que só ele conhece. A di­
ferença entre os metafísicos não é diferença entre as
vontades, mas diversidade entre os tipos de separação
que introduzem entre o essencial e o inessencial. O que
distingue Aristóteles de Platão, Leibniz de Descartes,
não é a oposição das intenções mas, inicialmente, o con­
teúdo que atribuem à substância, não a maneira pela
qual a definem (formalmente), mas o modo pelo qual
preenchem essa definição. Isso permite compreender, em
parte, porque, impelido pela necessidade interna de sua
própria história, o pensamento metafísico acaba por
preocupar-se principalmente com as diferenças existen­
tes entre as essências, isto é, a empenhar-se em tornar
clara a estrutura do conteúdo do ser verdadeiro, muito
mais do que a significação de sua vontade e da relação
que mantém a essência e o ser-aí. E o motivo pelo qual,
também, é fácil — esquecendo sua origem — acusá-la
de sutilezas excessivas: na verdade, cada época — de
acordo com sua problemática política e moral, seu ní­
vel técnico e científico — , cada pensador — de acordo
com seu gênio — trazem às questões propostas por Pla­
tão novas respostas, elaboradas sempre, porém, na mes­
ma ótica: qual deve ser a substância, o essencial exis­
tente, para que, revelada, essa substância permita um
discurso coerente e uma conduta satisfatória e mostre
a insuficiência das doxoi e dos comportamentos que a
elas se ligam? Como deve ser essa substância para que
se imponha como verdade do mundo da paixão e do in­
teresse, quer dizer, como sua negação e seu fundamen­
to? E posteriormente: qual deve ser a ordem das essên­
cias para que seja conjuntamente ordem em-si e reor­
ganização da aparência, quer dizer, explicação da de­
sordem?
É evidente que o pensamento metafísico, ao longo
de sua evolução, nem sempre foi capaz de realizar posi­
tivamente sua vontade. Aconteceu-lhe, por motivos que

113
a história da cultura pode estabelecer, malograr, não
descobrir a realidade verdadeira e isso apesar de sua
esperança e de sua coragem. O resultado desse malogro
é o que se chama de atitude cética, que se assemelha à
do cínico ou do ingênuo que permaneceu no nível da
doxa, e o ceticismo passa muitas vezes por uma antifi-
losofia. Essa identidade é apenas superficial. O cético,
como o filósofo, e na mesma perspectiva metafísica, pro­
cura o ser substancial; essa procura, porém, não chega
a resultado algum: em lugar da clara solidez da essên­
cia, é o vazio da imaginação que se apresenta e a deses­
pera. A partir daí, o único existente com o qual se pode
contar é a aparência contraditória e confusa. Tudo se
passa como se a tomada de posição antifilosófica fosse
justa; de fato, é antes justificada. Mais precisamente,
o cético não parte da reprovação da metafísica: pro­
curando uma razão, encontra a ausência de fundamen­
to. Se encontra o homem da doxa, é porque lhe dá razão
e não porque participe de suas certezas. Da atitude me­
tafísica, só pôde guardar a forma à qual não conseguiu
dar conteúdo: resta-lhe calar-se, rir ou manifestar com
desespero seu malogro. E mesmo a incompreensão dessa
situação dolorosa: filosófica em sua forma, e antifilo­
sófica em seu conteúdo, que permite o desenvolvimen­
to dessas pobres “refutações” de acordo com as quais o
ceticismo se contradiria pois demonstra a inanidade de
toda demonstração e estabelece a verdade da não-verda-
de. Semelhantes críticas ignoram simplesmente que o
ceticismo é o resultado de um movimento e que, se há
contradição, está entre termos sucessivos e não justa­
postos: animado, inicialmente, pela vontade de saber,
o cético se choca em seguida com uma impossibilidade
que julga definitiva. A rigor, se nos colocamos, como
convém, no nível da vontade, o cético é tão metafísico
quanto o que se costuma chamar de dogmático: é um
metafísico que não teve êxito.

114
3
O pensamento metafísico procura a Substância.
Todavia, o problema das provas que é capaz de apresen­
tar permanece urgente e intato. O discurso coerente
não basta para suscitar a adesão de todos; precisa mos­
trar alguma coisa; mas, o que deve mostrar não é o que
se mostra imediatamente. Como provar, então, que o ser
revelado é o ser verdadeiro? É nesse nível, precisamen­
te, que se define o malogro da metafísica; é aí que en­
contra sua refutação efetiva. Se considerarmos as diver­
sas doutrinas metafísicas, de Platão aos cartesianos,
perceberemos que á prova produzida, com matizes e
modalidades diversas, é sempre do estilo da revelação.
O pensador, para tornar incontestável sua doutrina e
fazer aparecer o conteúdo da realidade verdadeira, ape­
la sempre para alguma coisa que parece a percepção.
A noésis platônica, o ato do nous poietikós, a fantasia
kataleptiké, os diversos tipos de intuitus do cartesianis-
mo, são, de certo modo, tomadas de contato direto com
o essencial existente; são meios de apreensão que não se
oferecem a não ser após o esforço de mediação filosófi­
ca. Mas, a posse do ser é análoga, em sua estrutura, à
posse do fenômeno no nível da percepção. Há duas ma­
neiras de ser: uma fenomênica, à qual corresponde um
conhecimento sensível e um saber enganador, e outra
“ essencial” , a que corresponde o conhecimento filosófico
e um saber legítimo. E assim como a segunda não passa
da primeira invertida, assim também a apreensão da
essência é da mesma natureza da apreensão do dado
imediato, embora afetada de predicados contraditórios.
À intuição sensível e às suas modalidades, que alimen­
tavam as certezas da doxa, substitui-se a intuição espi­
ritual graças à qual se atualiza a vontade metafísica. A
descrição dessa intuição é muito importante e se torna
cada vez mais rica na proporção das próprias dificulda­
des que suscita: isso permite compreender porque a teo­
ria do conhecimento assume importância cada vez maior

115
na elaboração da metafísica, porque o problema da na­
tureza dessa essência, que é a alma, apresenta-se de mo­
do cada vez mais preciso. Percebe-se melhor, também,
porque a metafísica é necessariamente espiritualista:
precisa supor que um existente possui um poder de co­
nhecimento não-sensível graças ao qual a essência se
tornará manifesta, poder que esteja aí, embora não ime­
diatamente utilizado. Basta, para convencer-se dessa
necessidade, lembrar as contradições e as dificuldades
que encontra a metafísica materialista (no sentido em
que esse termo se opõe não à idealista, mas à espiritua­
lista), contradições e dificuldades tais que delas o espi­
ritualismo facilmente triunfa.
A metafísica, em última análise e se considerarmos
as coisas de modo muito geral, apela pois para a evidên­
cia. O movimento de legitimação, que a levara da defini­
ção do discurso coerente à procura de seu fundamento
ontológico, a conduz a determinar a maneira pela qual
esse ser é conhecido em verdade. A procura do famoso
“ critério da verdade” termina por essa afirmação de que
a realidade autêntica se dá àquele que quiser fazer o
esforço de voltax-se para ela e isso porque o homem pos­
sui por natureza o que é necessário para apreendê-la.
O fundamento último da ciência filosófica é, para o me­
tafísico, o ato mesmo de ciência do filósofo que vê cla­
ramente o que é (mesmo que fosse incapaz, como Pla­
tão, de fazer corresponder a essa apreensão do que é,
no mais alto grau, um discurso mais do que sugestivo).
Assim, a metafísica é teórica — no sentido etimológi­
co — : sua pedagogia tem por fim primeiro (primeiro,
pois não lhe é difícil utilizar em seguida seu saber em
alguma tarefa prática, moral ou política) permitir a
contemplação do autenticamente real, uma contempla­
ção que produza a clareza na alma e acarrete imedia­
tamente sua adesão. Todavia, que diferença há entre o
“ estado de alma” do homem da doxa e o do metafísico?
O primeiro, dir-se-á, é um estado de simples certe­
za ao passo que o segundo é verdade, assim como o ates­
ta o sentimento de evidência (ou de presença, ou de sa­

116
tisfação, ou de plenitude). Essa diferença, no entanto,
é percebida apenas pelo metafísico; para aquele que per­
maneceu no nível da doxa (ou para o observador “ ex­
terior” ou “ imparcial” , para o psicólogo), não é de mo­
do algum decisiva: pois essa obrigação de aderir ele
também a sente. À experiência da mediação operada pe­
lo metafísico, oporá sua experiência ativa da vida. Sem­
pre lhe será fácil voltar contra a argumentação do fi­
lósofo uma argumentação análoga: dirá que o pretenso
ser verdadeiro é um produto da imaginação, que a es­
sência é aparência. E cada um só terá como prova a
certeza que experimenta. Teremos oportunidade, em
trabalho mais extenso e mais fundamentado historica­
mente, de mostrar como os diversos sistemas metafísi­
cos esforçam-se por legitimar a doutrina da evidência
que adotam sem consegui-lo inteiramente. Poderíamos
evocar com precisão a acusação formulada contra Des­
cartes de fazer um círculo quando fundamenta o valor
da evidência; mostraríamos facilmente que o cartesia-
nismo — como todos os sistemas — deve aceitar esse
círculo ou reconhecer a validade absoluta de um intui-
tus que não encontra outro fundamento além de si-
mesmo. O problema seria, sem dúvida, menos simples
para Aristóteles ou para Leibniz que se esforçam pre­
cisamente por atenuar as dificuldades apresentadas pe­
lo “ intuicionismo” platônico ou cartesiano: veríamos,
no entanto, que, finalmente, é sempre a presença do es­
sencial que serve de legitimação última.
Sem dúvida, o metafísico poderá ainda afirmar que,
contrariamente às doxas variáveis e múltiplas, o saber
filosófico é único e estável. Infelizmente, o pensamen­
to metafísico definiu, ao longo de sua história, o ser es­
sencial de tantas maneiras diversas que é impossível
aceitar essa resposta. À multiplicidade das doxas corres­
ponde, de fato, a multiplicidade das doutrinas metafí­
sicas. Em última análise, nada mais resta que permita
distinguir fundamentalmente a opinião da filosofia.
Assim, a recusa da opinião e o desejo de instaurar um
saber legítimo para negar e superar a certeza dada

117
levam a atribuir-se a certeza. A vontade metafísica
queria legitimar o discurso coerente, e o fez descobrin­
do o universo das essências mas, quando lhe foi neces­
sário, diante da incompreensão da antifilosofia, provar
que esse universo das essências é o único que autoriza
a fundar o saber verdadeiro e a conduta conveniente,
só pôde apelar para a intuição (espiritual ou intelec­
tual), para a experiência (metafísica), quer dizer, para
uma referência do tipo daquela que a opinião utiliza­
va. Negando o conteúdo da doxa, não pôde a metafí­
sica desprender-se de sua forma. A vontade metafísica
malogra, não porque procure um fundamento, mas
porque não consegue apresentar um que seja efetiva­
mente aceitável; sua vocação, que era de nada admitir
que não fosse legítimo, converte-se, irrisoriamente, nu­
ma afirmação que ela declara legítima porque não che­
ga a legitimá-la.
Um único dos “ sistemas” metafísicos parece ter
tomado plena e corajosa consciência dessa dificuldade
revelada pelos temperamentos diferentes de Kant e de
Hegel: o de Spinoza. Não há, em sua perspectiva, pro­
blema de legitimação. Enquanto verdade e admissão
da metafísica, o spinozismo situa-se imediatamente na
esfera do legitimado. Não só o ser essencial se dá, mas
se dá enquanto dado. Trata-se, simplesmente, para o
filósofo, de saber: o problema da justificação desse saber
não é pois decisivo, na medida em que o justificado se
apresenta como tal na totalidade orgânica de suas de­
terminações. É admirável que cada uma das partes da
Ética comece por uma série de axiomas e de definições:
encontra-se aí como que uma afirmação grandiosa e
altiva da dificuldade, acompanhada pela certeza de que
não é possível deixar de aderir ao conteúdo da doutrina;
a exposição more geometrico é por assim dizer o desen­
volvimento dessa certeza. Resta, no entanto, uma difi­
culdade dirimente: mesmo que aceitássemos em sua to­
talidade o spinozismo, mesmo que encontrássemos em
cada momento do desenvolvimento uma razão para con­
cordar, subsistiria uma questão que o sistema não per-

118
mite resolver universalmente. Essa questão pode ser
assim formulada: por que Spinoza é o homem que soube
entrar em contato imediato com o Ser? Assim, o mais
admirável produto da vontade metafísica, revela o limi­
te último do esforço de legitimação tal como é conce­
bido pelo metafísico: mesmo que nos colocássemos ori­
ginariamente no Absoluto e recolhêssemos o assentimen­
to universal, seria ainda necessário mostrar por que o
Absoluto se dá dessa maneira, por que é relativo, pode­
ríamos dizer, parafraseando a bela frase de Hegel.
Revela-se, pois, a metafísica, como uma doxa de tipo
especial que tampouco é capaz de provar a autenticida­
de da “ Substância” quanto a opinião é capaz de provar
o valor da “ aparência” . Vontade em sua origem e for­
ma, manifesta-se desde logo como expressão de certa
crença, a da elite, crença daqueles que o devenir, de
acordo com seu curso próprio, coloca em situação tal que
lhes permite apreender a insuficiência das crenças da­
das, embora nem por isso sejam capazes de elaborar um
saber efetivo. Eis por que a metafísica é utópica: não
aceita a desordem atual; vê que há uma ordem a pro­
mover; mas, afinal de contas, não pode provar que sua
ordem é a boa. A razão profunda é que não passa da
negação pura e simples da doxa: qusria repeli-la; não
passa de sua contradição abstrata. Seu esforço para en­
contrar, naquilo que nega, a prova do valor daquilo que
afirma malogra constantemente. Continua a ser do do­
mínio do coração: é paixão sublimada. De sua vontade
grandiosa, subsiste uma esperança: a que nos é dada
pelo fato de a violência não proporcionar satisfação ao
homem. Mas esse é apenas um programa, que a voca­
ção metafísica não cumpriu.

O fracasso da metafísica leva a pensar que não exis­


te Saber absoluto. Cada sistema acreditou ter alcança­
do a verdade: mas cada um não fez senão descrever as
preocupações de um homem e de uma época. Que resta,

119
então? Deveremos renunciar à filosofia e entregar-nos à
contingência da opinião, à solução da violência? Deve­
remos, simplesmente, lembrando-nos da esperança des­
pertada pela filosofia, “ compor” com a violência e, re­
nunciando a promover uma ordem, organizar-se tecni­
camente na desordem? Afinal de contas, não está pro­
vado que o mundo das aparências seja definitivamente
inabitável: semelhante vida certamente não proporcio­
nará a plenitude e a satisfação; mas será, ao menos,
uma vida isenta de desejos quiméricos e de coragem inú­
til. Para levar a bom termo essa empresa modesta e li­
mitada à individualidade, basta convencer-se de que a
exigência do fundamento — por mais humana que seja
— permanece sem efetividade para um homem e, ha­
vendo somente homens, a Substância está ausente. A
simples procura da quietude sem satisfação pode adotar
diferentes formas: ora tenderá a desenvolver tanto quan­
to possível um saber do objeto tomado em si mesmo, a
fim de permitir aos homens a satisfação de suas neces­
sidades; ora tentará fazer reviver em cada um os te­
souros acumulados pela tradição e renovar as belas cer­
tezas da doxa; ora se empenhará em exaltar — uma
vez que tudo é paixão — alguma paixão particularmen­
te nobre ou bela ou útil (a do nobre, do belo ou do útil,
por exem plo). Desabrocha, assim, um novo ceticismo:
não se define como avesso da metafísica (à maneira da­
quele que evocamos alguns parágrafos atrás), ou aves­
so da filosofia (à maneira do de Cálicles), mas, de certo
modo, como colapso da filosofia. Não se entrega nem à
violência nem ao desespero sorridente ou raivoso: reco­
nhece que há somente fatos fundamentalmente desor­
denados, que o homem (cada homem) é um fato contin­
gente e que convém arranjar-se da melhor maneira
nessa situação cuja solução ou transformação seria in­
sensato imaginar.
Adotar semelhante atitude, é reconhecer a disjun­
ção do Saber e do Absoluto, é situar o Absoluto em exte­
rioridade inacessível e limitar o saber à pessoa de um
homem, isto é, à paciência e ao talento individuais. Se-

120
melhante tomada de posição pode ser indefinidamente
retomada e prolongada: à exigência do metafísico, o in­
divíduo poderá sempre opor a contingência do aconte­
cimento e o caráter insensato e perigoso dessa procura
obstinada da razão; poderá sempre mostrar, no momen­
to adequado, o acidental, que nada explica, pedir que lhe
“ deduzam a caneta tinteiro” e exigir que lhe digam se
existe realmente uma Idéia do “ cabelo e da escória” . Há,
no entanto, como limite dessa nova doxa, a constante
eventualidade da violência e o apelo constante lançado
pelo homem para dela libertar-se em definitivo, e achar
a satisfação. Na realidade, a honesta renúncia à filoso­
fia é como a aceitação da morte, da brutalidade, da
opressão; e o desejo de conciliar com a desordem, a sub­
missão à desgraça. Escolhendo uma espécie de salvação
na “ existência positiva” , o antimetafísico, ao mesmo
tempo, na medida em que reconhece a violência como
fundamental, acaba por atribuir-lhe valor. Não seria
essa uma dificuldade real se fosse verdade que o homem
em geral aceitasse como justos o sofrimento, a aliena­
ção em suas diversas formas. Ora, é um fato que não
os aceita.
É, portanto, impossível não levar em conta esse mo­
vimento no sentido da vida satisfeita que a vontade filo­
sófica suscitou em sua origem. Não há terceiro caminho
entre C á lic ^ e Sócrates: reconhecer, com reservas, ma­
tizes ou ( jjeções de pormenor, a visão do mundo de Cá-
licles é, finalmente, expor-se a correr o risco de ser cí­
nico ou vítima do cinismo. O único recurso do “homem
positivo” é então o de desejar que, durante sua breve
existência, a desgraça não lhe aconteça e que ele seja
“ bem sucedido” sem fazer nem suportar nenhum mal
em excesso. Indefinidamente reiterável, semelhante ati­
tude mostra-se indefinidamente insuficiente.
Não é verdade, no entanto, que haja um Saber abso­
luto no qual o homem possa reconhecer-se e pelo qual
possa realizar-se. Resta pois a hipótese de que o Abso­
luto existe, mas não é um Saber. Semelhante solução
dá à filosofia novo impulso: assinala, ao mesmo tempo,

121
o declínio da metafísica e sua renovação. De um lado,
com efeito, denuncia com energia a “ ilusão transcen­
dental” que levou os pensadores, cedendo à esperança
da Razão, a erigir em Substância os produtos da ima­
ginação e da elocubração; a partir do momento em que
se abandona o terreno da experiência, nenhum enuncia­
do pode ser verdadeiro: a melhor prova dessa tese é
que é possível demonstrar a igual validade de duas for­
mulações metafísicas contraditórias. A propósito da
Alma, do Mundo e de Deus, é possível multiplicar os
enunciados sem encontrar a menor contradição interna:
e isso não acontece porque se diz de cada vez alguma
coisa verdadeira, mas porque, a rigor, nada se diz. Isso
não significa, de modo algum, que não haja um saber:
a perfeição da matemática e a solidez da física provam
que o homem pode conhecer alguma coisa e conhecê-la
com rigorosa objetividade; todavia, esse saber universal
que, por isso mesmo, é, de certo modo, absoluto, não
é um saber do Absoluto: o que apreende é apenas a exis­
tência fenomênica e não essa Coisa-em-si da qual o me­
tafísico imaginava apreender a essência. Esta, escapa
sempre ao conhecimento, pois o simples fato de conhe­
cê-la a transforma e lhe confere um stahis relativo ao
homem. O que importa, pois, para filosofar com serie­
dade, é criticar a Razão e mantê-la nos limites de seu
uso legítimo: nesse domínio teórico, só é permitido de­
senvolver experimentalmente a ciência, no sentido res­
trito do termo, permanecendo convencido de quç é in­
capaz de proporcionar uma posse integral do ser-em-si.
Por outro lado, no entanto, há um domínio no qual o
uso da Razão pode desenvolver-se de acordo com sua
vocação: o da vida moral. O Absoluto, que é recusado
ao homem no nível teórico, se dá em toda sua riqueza
no nível da Ação da Liberdade. Constituindo-se como
vontade livre, desprendendo-se, pela escolha de um des­
tino humano, das determinações mundanas, o indivíduo
tem acesso ao além dos fenômenos. Somente fazendo-se
“ legislador e sujeito” , ou então personalidade que se cria
a si-mesma como querer, que emerge de sua situação

122
relativa e conquista a “ integral determinação” . As obras
da ciência, as ambições do Saber parecem bem modes­
tas quando comparadas a essa tarefa grandiosa e peri­
gosa, a de fazer a Razão no Ato ou, mais precisamente,
de ser si mesmo a Razão agindo. Ser metafísico, o indi­
víduo humano só se realiza na esfera prática: nenhuma
prova, aliás, pode ser dada do êxito dessa empresa, a
não ser aquela que o sujeito se dá a si-mesmo conhe-
cendo-ss como realização da lei moral. Não cabe pro­
curar no mundo fenomênico sinais desse êxito: o Abso­
luto torna-se enfim o que sempre foi, uma “ tarefa infi­
nita” , um ideal. Resta que o homem pode encontrar a
plenitude e tem o direito de esperar a completa satis­
fação, como ser livre e não como ser cognoscente.
Essa solução — a respeito da qual nos deveríamos
estender longamente para desenvolver toda a riqueza
que contém, — é de grande beleza. Representa uma to­
mada de consciência muito importante do sentido da
vontade filosófica e mostra que, em suma, essa vontade
é, antes de tudo, o aprofundamento da vontade huma­
na em geral: aquela que consiste para o homem em
definir-se (ou “ conhecer-se” , mas a fórmula tem uma
ressonância excessivamente psicológica), a fim de co­
nhecer a maneira que lhe permita ser duradoura e ge­
ralmente satisfeito. Ora, essa vontade, até então, acre­
ditara que lhe competia descobrir a essência do homem
e determinar a ligação existente entre essa essência e o
universo total das essências. Situara o problema e a so­
lução, após a condenação de Sócrates e o malogro sici-
liano, em plano teórico, reservando-se para aplicar à
conduta o que tivesse aprendido ou mesmo fazendo da
Teoria a conduta que proporciona a plenitude. Ora, a
diversidade contraditória das respostas que havia formu­
lado ao longo de sua história provou que não conseguia
de modo algum escapar à paixão. Deveria, então, con­
tentar-se com um cálculo prudente e esforçar-se em es­
tabelecer as condições de uma existência tranqüila, sem
nada mais esperar das essências, nem possibilidade de
transformação do dado nem fruição? A filosofia moral,

123
tal como foi definida por Kant, esforça-se em retornar
à própria fonte da vocação filosófica (que traduz a aspi­
ração do hom em ): a vontade não tem que procurar
num além existente o que poderá satisfazê-la; a deter­
minação da conduta conveniente não é uma conseqüên­
cia do Saber; ou então a aspiração do Saber não pode
ser integralmente satisfeita. É nela mesma que pode
encontrar realização e plenitude, enquanto se conhece
como vontade universal capaz de ser pura atividade de
criação de si, autodeterminação, além de todo dado e,
especialmente, além do eu patológico. Não se sai da
paixão criando seres de razão, mas agindo contra a pai­
xão, em geral, querendo-se como ser moral. Assim, o
êxito da filosofia — que será também êxito do homem
— está nas mãos de cada indivíduo, que sozinho con­
sigo mesmo, deve provar a cada momento a derrota da
paixão ao existir como ser livre.
Dissipou a filosofia da reflexão todas as dificulda­
des? Estabeleceu definitivamente os princípios de “ toda
metafísica futura” ? Permanece o fato de que se expri­
me, como todas as demais doutrinas filosóficas, em um
discurso; resta igualmente que não apresenta provas
irrecusáveis de seu valor. Explica, sem dúvida, porque o
ry •or>'Hf'ionado não é da ordem do Saber: nem por isso
deixa de sabê-lo. Em outros termos, demonstra por uma
crítica do Saber e da Ação que o conhecimento é rela­
tivo e que só o ato moral é portador de caráter absoluto.
Mas, com que direito faz essa crítica? Em nome do que
a empreende e a considera concluída? Mais precisamen­
te: que justificação há da validade de seus preceitos
morais? À essas questões, a reflexão não pode respon­
der; se quisesse fazê-lo, precisaria ainda refletir sobre si
mesma: a crítica seria obrigada a criticar-se a si mesma
e não haveria razão alguma para que se detivesse nessa
constante indagação. Finalmente, querendo superar o
“ dogmatismo” do saber metafísico e o “ empirismo” dos
técnicos da existência, a filosofia da reflexão acaba por
negligenciar completamente o problema da prova da va­
lidade de seu próprio procedimento e de seu conteúdo.

124
Ainda melhor: na esfera moral que é, para ela, deci­
siva, interdita-se qualquer tentativa de justificação, pois
nada do que aparece pode atestar a moralidade dè um
ato, nem mesmo a consciência que o sujeito tem de si
próprio.
Que resta, então, da esperança filosófica do discur­
so totalmente coerente e legitimado (quer dizer, verda­
deiro e probante)? Que resta mesmo dessa admirável
corrente de pensamento que, de Platão a Kant, tentou
proporcionar ao homem a satisfação, revelando-lhe o
que é verdadeiramente? Dever-se-á retornar à prudência
dos técnicos da existência quotidiana? Dever-se-á decla­
rar secundária a vontade filosófica e considerá-la um
empobrecimento de alguma empresa mais bela e mais
eficaz, a do Artista, por exemplo, que experimenta o
Absoluto de modo afetivo?

O metafísico pretendia revelar o que é verdadeira­


mente a fim de desqualificar a doxa e mostrar a inani-
dade da aparência. Ora, finalmente, não consegue asse­
gurar nem a existência desse além do dado fenomênico
nem a apresentação que faz do ser-em-si. A realidade
metafísica, longe de manifestar-se como o existente es­
sencial e como o fundamento da aparência, logo se mos­
tra, por sua vez, como realidade “ aparente” ; o recurso
a esse milagre natural em todas suas diversas formas, a
multiplicidade proposta dos métodos de acesso ao ser: a
diversidade dos universos metafísicos revelados leva a
considerar ilegítima a ambição metafísica. De fato, cada
doutrina, para desfazer a inquietação que a suscitou,
inventa um mundo ideal, em cuja estabilidade e ordem
imagina encontrar a satisfação, mas que é, na verdade,
um produto da imaginação. As substâncias imutáveis e
eternas são pensamentos realizados e não realidades
desveladas e enfim pensadas: pela mediação da lingua­
gem, o metafísico construiu um mundo ideal ao qual

125
conferiu existência, por uma decisão arbitrária que não
pode justificar. Queria encher o vazio do Pensamento,
desembaraçado das crenças comuns, pela plenitude do
Ser; não fez senão substituir às crenças oriundas da
paixão, crenças essas nascidas de sua vontade de ven­
cer a violência e a incoerência. Levarão essas observa­
ções necessariamente ao retorno à doxa ou a desarticular
fundamentalmente o Ser e o Saber?
Semelhantes observações, uma vez que se evitem a
exaltação romântica e a falência positivista, abrem novo
e grandioso caminho. O que os apologistas da vida quo­
tidiana, o que os pensadores críticos puseram em ques­
tão, é, afinal de contas, o exercício da metafísica: sua
operação, no entanto, não teve um caráter suficiente­
mente radical; não fiseram incidir a interrogação no
axioma mais profundo que domina o pensamento meta­
físico e explica seu desenvolvimento e seu fracasso. É a
esse último estágio que se deve chegar ao querer abar­
car o conjunto do movimento que conduz das afirma­
ções platônicas às renúncias sublimes de Kant e tornar-
se capaz de ir além das dificuldades dirimentes encon­
tradas. De fato, uma idéia decisiva encontra-se cons­
tantemente de Platão a Kant, embora só se manifeste
na época moderna e seja nos Antigos corrigida por in-
tuições de outra ordem, a idéia segundo a qual existe
uma cisão essencial entre o objeto do discurso e o dis­
curso, entre o Ser e o Pensamento, entre a verdade e a
certeza. A própria maneira como nasceu a vontade filo­
sófica, o modo pelo qual foi ulteriormente levada a cons­
truir-se, contribuíram para desenvolver essa perspecti­
va. O metafísico é aquele que supõe que, devendo dizer
a verdade, deve encontrar o meio pelo qual o Ser e a
ordem do Ser se refletem em seu pensamento subjetivo
e pelo qual sua certeza individual se transforma em ver­
dade absoluta; concebe o discurso como linguagem se­
parada do Ser que deve encontrar o Ser por meio de
uma técnica adequada. É exatamente isso que exprime
a fórmula escolástica segundo a qual a verdade é
adaeqwatio rei et intellectus: por mais justa e incontes-

126
tável que seja, tal fórmula implica uma separação pré­
via e não legítima da coisa e do intelecto. Ora, essa
ótica conduz às conseqüências que conhecemos: na me­
dida em que o intellectus jamais pode sair de si mesmo
para confrontar a adequação efetiva da idéia que ele
forma e da res, ou bem devemos supor certos caracteres
intrínsecos da idéia, arbitrariamente escolhidos para
provar sua validade, ou recorrer a outra garantia que
escapa, por natureza, à prova, sendo assim sempre sus­
cetível de contestação, ou bem, mais banalmente e mais
gravemente, admitir que não há verdade ou que há so­
mente sucedâneos da verdade ou que a verdade não é
humana.
Essas últimas soluções são perfeitamente aceitáveis:
a melhor prova está em que são aceitas, seja na vida
quotidiana, seja pelos filósofos decepcionados. Todavia,
são o epitáfio da filosofia. O caminho qus permanece
absrto consiste em renunciar a esse axioma inicial da
metafísica e adotar como ponto de partida o axioma
contraditório, mesmo que apenas para experimentar seu
valor e sua fecundidade. Admitiremos então que o dis­
curso, fundamentalmente e por essência, já exprime o
Ser, de modo talvez limitado e parcial; que a subjetivi­
dade não está cortada do dado mas é, em todo caso, seu
reflexo ou sua reflexão; que a certeza não é o oposto da
verdade, mas o modo pelo qual a verdade pode mani­
festar-se. Admitindo essa perspectiva, não se procederá
gratuitamente: não se fará senão tomar consciência da
profunda preocupação que animava os metafísicos; cada
um pretendia harmonizar seu pensamento com o Ser e
dele fazer o Pensamento; cada um conferia pois ao dis­
curso a propriedade de representar, quando bem suce­
dido (ou verdadeiro), a realidade tal qual é; mas, ao
mesmo tempo, cada um se tornava incapaz de ter êxito
em seu discurso, a não ser subjetivamente, uma vez que
supunha, na origem, que o Ser era outro que não o dis­
curso, outro que não o pensamento humano. E, assim,
conduzia inevitavelmente ao criticismo que, no fundo,
equivale a verificar essa alteridade fundamental e dela

127
tirar todas as conseqüências. Importa, para salvar a fi­
losofia e com ela a racionalidade, compreender que o Ser
não é o outro em relação ao discurso, mas antes seu
medium imposto, que todo discurso é, dssde logo, dis­
curso do e sobre o Ser e que é finalmente o ser enquanto
se exprime (parcialmente ou totalm ente). Assim tam­
bém, o pensamento subjetivo, o do indivíduo que vive
seu desejo ou que, a seu modo, experimenta o mundo,
nem por isso é relegado à esfera da pura contingência:
reflete, ainda, a seu modo, a realidade; por falsa que
possa ser sua “representação” ainda é representação do
dado5.
Mas, conceber assim as relações do Ser e do discur­
so, não é retornar aos caminhos que conduzem ao rela-
tivismo, ao ceticismo e à ruína da filosofia. Não se frag­
menta o Ser em tantas modalidades quantas são as de
discursos possíveis, e a verdade não desaparece a partir
do momento em que se reduz a uma coleção disparatada
de certezas diferentes? Já mostramos que, apesar de sua
vontade de constituir-se contra a diversidade e as con­
tradições das doxoi, o discurso metafísico era incapaz
de provar que é outra coisa além de uma doxa mais
elaborada e mais sistemática. Todavia evita-se realmen­
te a dificuldade declarando que a doxa diz qualquer coisa
do Ser e perde assim essa gratuidade, essa contingência
que lhe atribuía a metafísica? Para responder a essa
questão, é preciso insistir ainda uma vez na vontade do
metafísico e na natureza de seu discurso. Este pretende
refletir o que é tal como é; tenta tornar-se outro pas­
sando de um conteúdo subjetivo a um conteúdo obje­
tivo; tem êxito, mas apenas para-si; o Ser que reflete e
que acredita ser-em-si absolutamente e, afinal de con­
tas, ser-em-si apenas para si; traduz a experiência de um
indivíduo (ou de uma coletividade) e o que descobre
como Substância, é aquilo em que o pensamento (indi­
vidual ou coletivo) se reconhece e aquilo por meio do

5 Em relação a todo este tópico, J. Hyppolite, Lógica e existência e,


em particular, Introdução.

128
que se compreende; a realidade essencial revelada por
ele é efetivamente pensada de tal maneira que nela de­
vem desaparecer as dificuldades, desfazerem-se as con­
tradições, resolverem-se os problemas implícitos na ex­
periência do sujeito ou do grupo: assim, o ser-real do
metafísico é a verdade do fato vivido na medida em que
aquele traduz e exprime este, elevando-o à clareza do
conceito. Mas, inversamente, o fato aceito é a verdade
do ser-real pois constitui sua matéria e seu conteúdo
vivo. O metafísico era sensível apenas ao primeiro as­
pecto; é do segundo que o filósofo, passando pela prova
crítica e preocupado em reconciliar o Absoluto e o Saber,
deve tirar as conseqüências.
De fato, o discurso é, em geral, a unidade do Pensa­
mento e do Ser; tal discurso é a verdade de tal experiên­
cia. Nessa ótica, abre-se um novo caminho: o discurso
verdadeiro seria o que formasse um sistema de todos os
discursos possíveis, que mostrasse como esses últimos
se organizam e se encadeiam; o ser-real manifestado
nesse discurso total seria, ao mesmo tempo, o sistema das
diversas realidades subtanciais reconhecidas pelos meta­
físicos; e a experiência correspondente seria a totalidade
das experiências possíveis e englobaria assim o conjun­
to das perspectivas oferecidas à existência humana. O
objeto da verdade filosófica não seria um outro exterior
ao Pensamento, mas o próprio Pensamento enquanto é
sempre pensamento do Ser. À substância morta, e ina­
cessível por definição, substituir-se-ia a vida do sujeito.
O fato de tomar consciência da unidade primordial do
Ser e do Pensamento no seio do discurso traria a pos­
sibilidade de realizar efetivamente essa unidade, em um
discurso que incidisse precisamente, não sobre o Ser dos
metafísicos, mas sobre essa unidade ou os diversos es­
forços de unificação. E, se cada discurso define indisso­
luvelmente uma figura do ser e a figura do pensamento
que a reflete, então o discurso que reflete todos esses
discursos traduzirá, não somente o Pensamento em seu
conjunto sistemático — o que seria o sonho de uma his­
tória racional — , mas exprimiria o Ser na totalidade de

129
suas determinações e integraria toda a riqueza da expe­
riência .
Tal possibilidade, no entanto, não será singularmen­
te abstrata? Ela o seria se o desenvolvimento do pensa­
mento metafísico em sua forma e em seu conteúdo não
indicasse o caminho a seguir. De fato, cada experiên­
cia do homem, quer se exprima na linguagem inacabada
da opinião, da arte ou da religião, quer se eleve ao con­
ceito no discurso metafísico, encontra na substanciali-
dade ao mesmo tempo seu fundamento e sua limitação.
A consciência, apreendendo o que julga ser o ser-real,
encontra inicialmente a satisfação e frui a plenitude que
ele lhe oferece; seu contentamento, porém, não poderia
durar. Quando procura desenvolver sua intuição e fazer
prevalecer sua perspectiva junto de outrem, quer dizer,
a exprimi-la como ponto de vista universal e mostrar as
experiências quotidianas que a confirmariam, percebe
que seu esforço está condenado ao fracasso e que deve
contentar-se em afirmar sua posição; ao conhecer essa
situação de fato, fica indignada e sofre; é presa entre o
desejo de desvendar o ser-outro que lhe traria a satis­
fação e a obrigação em que se encontra de reconhecer
seu ser-aí que põe em dúvida aquilo no sentido do que ela
tende; imobiliza-se, então, no sofrimento e perde-se no
vaivém que a leva de sua esperança à sua situação trá­
gica ou, então, corajosamente, define alguma substân­
cia que melhor corresponda à sua ansiosa procura, nega
o que havia aceito como ser-real e se supera, afirmando
uma realidade mais rica que integra o conteúdo de sua
experiência renovada. Esse caminho do “ negativo” é o
próprio caminho que conduz ao Espírito, considerado
nesse estágio último no qual a consciência, tendo-se per­
dido no ser-outro e, encontrando-se solitária e entregue a
si-mesma, descobre o lugar em que é indissoluvelmente
ela-mesma e o outro, onde a unidade do Ser e do Pensa­
mento, do objeto do discurso e do discurso se realiza.
Em outros termos, a possibilidade de uma realização da
vontade metafísica é dada na própria inquietação do
metafísico que, ao mesmo tempo que postula seu êxito,

130
percebe sua fraqueza, sofre, a oposição de outrem e, es­
forçando-se em dominá-la, vai além de si-mesmo. O
meio que permite realizar o discurso absolutamente ver­
dadeiro e superar a renúncia crítica e o golpe de força
romântico não é exterior ao ato filosófico: está presente
nele e consiste simplesmente no conhecimento do que
esse ato pretendia realizar, conhecimento que ele não
podia ter antes que o Espírito houvesse percorrido as
etapas necessárias à sua formação. A via do Saber abso­
luto já está no movimento que conduz de saberes par­
ciais a saberes parciais: o Saber absoluto não passa do
difícil encaminhamento que leva de uns aos outros e
que conhece a razão dessa progressão.
Ü3 tal modo que a questão proposta, referente à pos­
sibilidade de um discurso que fosse o sistema de todos
os discursos possíveis, não pode receber uma resposta que
não seja ao mesmo tempo um saber efetivo satisfazendo
a questão apresentada. Se fosse de outra maneira, per­
manecer-se-ia na atmosfera crítica, indagando sobre o
direito de dizer antes mesmo de dizer o que quer que
seja. O que é necessário, a partir do momento em que
compreendeu o sentido da empresa filosófica, é realizá-
la percorrendo as diversas etapas que assinalam o per­
curso paciente e doloroso da consciência no encalço de
um conteúdo em que a completa igualdade se estabeleça
entre o Ser e o Pensamento. Ora, esse caminho existe;
basta segui-lo para perceber sua verdade. Mostra ele
como a consciência, alienando-se em um objeto no qual
acredita reconhecer-se e atingir a plenitude, perde-se
nesse objeto, retorna a si descobrindo que é ela-própria
que se havia hipostasiado e prossegue, de conquista em
fracasso, sua formação. Não há critério exterior que
possa provar a verdade do que então se diz: é a vida do
conteúdo, em sua necessidade, que se impõe e consti­
tui a prova. O erro do dogmatismo metafísico era o de
imobilizar-se em uma figura mantida como ponto de
vista universal; o erro do relativismo é o de reconhecer
a verdade parcial de cada figura; a experiência efetiva
do desenvolvimento da metafísica — que resume e ex­

131
prime o movimento da existência humana à procura da
satisfação — torna manifesto o caráter profundamente
sistemático do curso real do pensamento. Essa experiên­
cia pode ser seguida historicamente, compreendendo que
cada atitude do homem em face do real que ele vive à
sua maneira, que cada doutrina filosófica, cada obra —
no sentido amplo — esforça-se em ir além da atitude,
da obra, da doutria que a precederam; sem dúvida, cada
uma, em seu movimento por ultrapassar o que é dado,
imagina atingir o Absoluto; mas, nós que vimos depois
e temos diante dos olhos o conjunto do processo, com­
preendemos sua limitação e aprendemos com clareza que
é simplesmente a negação, a superação, e a inclusão do
momento anterior. O Espírito, desde então, não é senão
a história racional da consciência que se forma e se faz
precisamente Espírito; não há que provar que é real­
mente o Espírito pois tudo lhe é interior, sendo o sistema
de todas as verdades e de todos os erros possíveis (pos­
síveis significando aqui, ao mesmo tempo, reais).
Essa formação histórica só adquire plena significa­
ção no momento em que, tendo-se concluído, desemboca
na vida imanente do próprio Espírito que desenvolve sua
necessidade. Aqui, ainda, é irrisório pedir qualquer le­
gitimação da ordem e do conteúdo propostos: nada po­
deria julgar esses logos que constitui o juiz supremo na
medida em que integra em sua racionalidade toda espé­
cie de intuição, de critério ou de idéia que se queira.
A única contestação que se poderia fazer seria construir
um discurso do mesmo tipo, diferente em certo modo.
Qualquer outra contestação, incidindo sobre o método ou
sobre a legitimação, torna-se antecipadamente absurda
pelo ponto de vista adotado. Sem dúvida, o indivíduo
pode ainda protestar que não se acha nessa ordem que
lhe é apresentada, sem dúvida pode afirmar que ele
ainda existe, com seu sofrimento e sua inquietação, fora
dessa serena arquitetura. Seu protesto é normal: o
logos não pretende ser o pensamento de todo homem;
não pretende, principalmente, ser o pensamento do in­
divíduo. Visa precisamente ao contrário; quer ser a ex­

132
pressão do pensar ele próprio enquanto é pensamento do
Ser ou ainda enquanto é o Ser que se exprime e conhece
sua racionalidade. A subjetividade dirá que essa solução
não lhe convém: mas, dizendo-o, insere-se ela própria no
sistema, ou porque reitera em sua reivindicação uma
atitude histórica compreendida e superada, ou, mais ge­
ralmente, por que se inclui na categoria da subjetividade
a propósito da qual o Espírito mostra precisamente que
é o momento parcial e abstrato do pensamento que se
compraz na insatisfação.
O drama da metafísica parece pois resolvido: o que
queria está, doravante, realizado. Procurava a unidade
do Ser è do Pensamento: esta se realiza a partir do mo­
mento em que se compreende que o pensamento é semprfl
pensamento do Ser e que não há entre os dois termos
relação de alteridade. Mais precisamente, a alteridade
é ainda tim fato pensado. Quando se apreende essa di­
mensão fundamental, então desaparecem as dificulda­
des que levam ao criticismo, ao romantismo ou à antifi-
losofia. Não cabe perguntar que representação do pen­
samento corresponde à natureza do Ser: o discurso verí­
dico é aquele que integra todas as representações, as
organiza e elabora, assim, as categorias que são as do
Pensamento e do Ser. Tal discurso, contanto que o rea­
lizem — . Hegel o fez e não houve pensador algum para
contestar que o tenha feito — escapa, desde então, a
qualquer tentativa de contestação do tipo daquela que
metafísica e filosofia da reflexão costumavam suscitar.
O caminho que Platão havia definido encontrou, ao que
parece, o homem que soube segui-lo sem titubear: as
contradições da doxa são dissipadas, o pensamento al­
cança a satisfação na clara limpidez do conceito e a tota­
lidade da experiência humana é integrada, tanto quanto
é razoável esperá-lo, no Saber do filósofo.

6
A vontade que suscitou a empresa filosófica é von­
tade de provar absolutamente; transmitiu-se e realizou-

133
se diferentemente de acordo com as épocas e os pensa­
dores. Mas, tratava-se sempre de elaborar um discurso
tal que nele e por ele os problemas apresentados pela
existência quotidiana fossem resolvidos ou dissipados
como falsos problemas; tratava-se, também, porque a
existência quotidiana o exigia, de que esse discurso fosse
capaz de legitimar sua ambição junto de outrem e de
trazer uma satisfação real (ou a eventualidade de uma
satisfação que seria o resultado de alguma ação indica­
da pelo discurso), mostrando o que é tal qual é. Nesse
sentido, o antimarxismo tem razão de queixar-se da de­
senvoltura do materialismo dialético em relação ao pro­
blema da legitimação, à problemática do fundamento e
da prova. O marxismo-leninismo não se submete a essa
exigência; chega mesmo a considerá-la uma frivolidade,
quando não a despreza pura e simplesmente. O verda­
deiro problema, no entanto, — aquele em função do qual
se organiza todo o presente trabalho — é o de saber o
que acontece com essa idéia da prova que está efetiva­
mente no centro do pensamento filosófico, de Sócrates-
Platão a Hegel. A filosofia reclama uma prova, uma le­
gitimação definitiva, quer dizer, plena e universalmente
convincente, daquilo que é dito: mas, ela mesma, que
traz? Sócrates foi condenado porque não conseguiu
convencer seus juizes; Platão fracassou porque não pôde
convencer Dionísio de Siracusa e sua Calípolis admirável
provoca a ironia dos conservadores e dos revolucionários;
desde então, desde Aristóteles, as metafísicas sucederam
às metafísicas, em construções grandiosas e profundas
mas nenhuma chegou a suscitar a adesão de todos e
para sempre. Deveremos, pois, admitir com Kant que a
prova não é da ordem do discurso, ou com o romantis­
mo, que a prova se encontra no sentimento do Absoluto
que experimento neste instante? Nos dois casos, a filo­
sofia confessa sua impotência e se reporta, para vencer
suas dificuldades, a tipo de atividade extrafilosóficos.
Sem dúvida, há a Fenomenologia do Espírito e a
Ciência da Lógica. Não estará, nesse nível, resolvida a
questão? Está resolvida; mas, observando bem, não será

134
porque deixou de ser formulada? De fato, abolindo a
alteridade do Ser e do Pensamento e fazendo do discurso
sua unidade efetiva, Hegel recusa e supera a problemá­
tica tradicional da prova: todo discurso é legítimo, por
definição, porque exprime certo modo de apreender a
realidade (sempre admitimos que se tratasse de um dis­
curso dado). E quando Hegel apresenta seu próprio dis­
curso como absolutamente verdadeiro, não é porque sou­
besse encontrar um instrumento capaz de medir a con­
formidade de sua obra com o Ser, mas porque esss dis­
curso constitui a razão de todas as doutrinas, de todas
as atitudes possíveis, porque mostra sua parcialidade
tornando-a inteligível e porque nenhum dicurso — admi­
tindo que o trabalho de Hegel tenha sido bem sucedido
— pode constituir efetivamente sua limitação e sua refu­
tação. O filósofo não está obrigado a provar: deve se­
guir a ordem do processo que conduz dos saberes parciais
ao Saber absoluto, deve desenvolver a necessidade do
logos. O simples fato de elaborar um discurso tal que
toda expressão do Ser, que todo conceito seja nele in­
cluído e nele encontre seu lugar, é prova de verdade.
Nada mais há a que procurar porque aqui a integrali-
dade do Ser se pensa e se reflete.
Isso significa, claramente, ao que parece, que o fi­
lósofo deve afastar-se definitivamente da procura estéril
de um critério ou de um index da verdade; que é mesmo
irrisório perguntar por que sinais se reconhece uma
idéia verdadeira e querer determinar a que estrutura
ontológica correspondem esses sinais. Tudo se passa co­
mo se o pensamento metafísico supusesse uma espécie
de defeito ou falha original do pensamento subjetivo e
do discurso que o exprime e, desde então, se atribuísse
por tarefa descobrir o caminho da purificação e da ver­
dade. Esse caminho já se encontra no próprio exerci sio
do discurso; não há um pecado essencial, mas uma in­
suficiência que se corrige por si mesma. O problema não
é nem o da possibilidade do erro, como julga a metafí­
sica, nem o da possibilidade da verdade, como compreen­
deu o criticismo, mas o do efetivamente verdadeiro; e

135
esse problema se resolve na realidade do discurso que,
como tal, é capaz de convencer, porque consegue cons­
tituir um sistema de todos os discursos. Não será retor­
nar por um atalho às perspectivas do intuicionismo me­
tafísico? Não nos encontraremos, novamente, diante do
fato consumado de uma revelação que nos limitamos a
oferecer? Seria assim se o discurso filosófico hegeliano
se contentasse em opor sua própria concepção às con­
cepções que considera errôneas: esforça-se — pouco im­
porta que a empresa tenha ou não tido êxito — não só
em integrar em si as demais posições, mas ainda em
mostrar como a verificação dessas posições deve levar a
essa atitude lógico-ontológica de acordo com a qual não
poderia haver outra solução para o problema da verdade
senão a Ciência. Podem multiplicar os discursos filosó­
ficos não-hegelianos: é difícil fazê-lo com perfeita legi­
timidade se, inicialmente, não se prova, de certo modo,
que se superam as atitudes e as categorias compreen­
didas pelo hegelianismo; se, em seguida, não se mostra
que há uma doutrina da prova diferente daquela que é
proposta pelo filósofo hegeliano; se, enfim — e não é a
condição menos difícil de realizar — não se consegue
convencer do fato de que não ocorre o abandono a algu­
ma emoção da subjetividade, ansiosa de liberdade, e que,
sob o nome de filosofia, propõe uma angústia, bem
“ fundamentada” uma vez que existe, mas sem relação
com os problemas universais definidos pelos filósofos.
Semelhante ótica, a do hegelianismo, chega pois, ao
que parece, a certificar-se desse fato de que constitui
toda solução, que toda doutrina que a ela se opõe é in­
definidamente reiterável, mas é por ela incluída e que
a única maneira de refutá-la seria deixar de falar nela.
O círculo está desde então percorrido: vinte e três sé­
culos permitiram que o problema proposto por Platão
fosse resolvido. Resta ser filósofo e hegeliano ou re­
nunciar ao hegelianismo, renunciando, porém, ao mes­
mo tempo à filosofia e desprezando sem direito toda a
grave problemática que ela suscitou.

136
III
O Êxito da Filosofia
e a Exigência de Superação

E s s e ê x i t o da filosofia — com os traços caracterís­


ticos que implica — significa, pois, aos olhos do filósofo,
o próprio êxito do homem; no e pelo Saber absoluto, o
Pensamento, descobrindo sua essência e “ realizando-a”
efetivamente, atinge a plenitude e possui a liberdade;
no e pelo Estado racional 1, quer dizer, no nível da Razão
objetiva, a satisfação é dada ao homem; está presente
— ou, em todo caso, é “ apresentável” — na vida quoti­
diana; a verdadeira liberdade humana encontra sua
realização na medida em que o indivíduo pode racional­
mente querer seu interesse e, ao mesmo tempo, o que é
universalmente bom e racional. Sem dúvida, como já se
observou, a subjetividade pode continuar a opor a essa
perspectiva seus protestos e suas zombarias; pode pre­
tender que não se considera, nem superada, nem redu-

1 Cf. neste trabalho, cap. IV , seção 2.

137
zida, nem situada em seu verdadeiro lugar; e, diante da
realidade desse protesto, o filósofo não pode fazer outra
coisa senão reconhecer sua possibilidade; pouco lhe im­
porta, aliás: o que conta, para ele, é o fato de que, se
acontece à subjetividade — ávida em manifestar sua li­
berdade abstrata — pretender contestar a ordem racio­
nal, é fácil doravante demonstrar que, assim agindo, re­
vela-se insensata ou criminosa. A filosofia não tem a
ambição de tornar os homens racionais; não supõe que,
pela magia do logos, seja capaz de suprimir a confusão
e a tendenciosidade do pensamento; sabe que a oposição
da subjetividade é indefinidamente reiterável. Sua mis­
são é demonstrar o que é a Razão, de fazer aparecer o
que querem realmente os homens e de revelar de modo
claro o que é legítimo, em dado momento do devenir
humano, querer e esperar. A antifilosofia — inspiran­
do-se sempre, em graus diversos, no estilo de Cálicles —
conservará sempre o recurso de assinalar, com ironia ou
amargura, a decalagem subsistente entre a realidade re­
velada pelo filósofo e a existência empírica; esquecerá,
se pretende fazer prevalecer a seriedade da vida contra
a vaidade do conceito, que essa diferença entre o exis­
tente e o real é precisamente uma diferença que o filó­
sofo conhece, que soube elevar ao conceito e a propósito
da qual mostrou que pode ser causa de irritação para o
indivíduo, mas não fonte de insatisfação para o homem
que se compreendeu a si mesmo.
Poderá, semelhante saber, receber uma qualificação
análoga às que se costuma atribuir às doutrinas filosó­
ficas? Estaremos em presença de uma “ ontologia” ma­
terialista ou espiritualista, de uma “ gnosiologia” empi-
rista ou racionalista, de uma “ metafísica” realista ou
idealista? Será necessário forjar algum termo original
que convenha melhor à definição dessa nova perspecti­
va? Na verdade, parece que o sistema hegeliano, na me­
dida em que pretende ser o êxito da filosofia, sustenta
também estar além de semelhantes qualificações. Estas,
com efeito, designam e não designam senão óticas par­
ciais e, conseqüentemente, falsas, que o saber total nega,

138
supera e engloba e das quais dá razão enquanto resu­
mem atitudes “ existenciais” limitadas ou constituem ca­
tegorias fragmentárias do Pensamento. Mas, dir-se-á, a
filosofia hegeliana não é racionalista, idealista, espiri­
tualista? Não afirma que “ o que é racional é real e o
que é real é racional” -, que “ só a Idéia Absoluta é o Ser,
somente ela a Vida imperecível, a Verdade que se sabe
tal, toda a Verdade” \ que o Saber absoluto é idêntico
ao “ Espírito que se sabe a si mesmo como Espírito” 4?
Formular semelhantes julgamentos sobre o hegelianis-
mo, é situá-lo precisamente em um nível que ele supe­
rou, o da discussão e das disciplinas parciais (o proble­
ma voltará a apresentar-se, de saber se essa superação é
efetiva, se essas qualificações, finalmente, aplicam-se ou
n ã o ): o que o sistema revela, é que a teoria do conhe­
cimento tradicional do racionalismo — para tomar ape­
nas esse exemplo — só tem sentido e verdade porque se
opõe a uma teoria do conhecimento empirista que por
si mesma extrai sentido e verdade dessa oposição. Na
realidade, o Saber absoluto, se é realmente tal, suprime
as diferenças e as contradições entre as “ escolas” filo­
sóficas, reconduzidas ao seu estatuto de opiniões provi­
sórias e necessárias, adotada pelo Espírito ao longo de
sua formação dolorosa e paciente.
Assim sendo, não será frívolo o debate que constitui
o objeto do presente trabalho? Não pertencerá precisa­
mente a essa esfera da discussão que opõe “ pontos de
vista” , opiniões, preferências, mas que não poderia fazer
surgir um saber verdadeiro? Mais precisamente, a ques­
tão essencial, em torno da qual se desenvolve o debate,
a da precedência efetiva da materialidade em relação à
consciência, ao Espírito, terá acaso sentido filosófico?

2 Princípios da filosofia do direito. Prefácio, p. 30 (trad, francesa,


G a llim a rd ).
3 Ciências da lógica, livro III , 3? seção, cap. I l l , a Idéia absoluta,
t. II, p. 549 (trad, francesa, A u b ie r).
4 Fenomenologia do Espírito, t. II, p. 312 (trad, francesa, A u b ie r).

139
Parece que agora conhecemos a razão desse vaivém ob­
servado no começo desta análise, que remete das res­
postas do materialista às objeções de seus adversários,
sem que seja possível deter-se em um conceito defini­
tivo: trata-se de uma discussão por natureza estéril, pois
cada uma das posições encontra ao mesmo tempo seu
conceito e seu limite na posição oposta. O materialista
apresenta provas cuja legitimidade é, a jvisto título, con­
testada pelo antimaterialista; essa contestação, no en­
tanto, opera-se sobre um fundo real, o da ciência, da
vida política que é da alçada da análise materialista.
Na verdade, as duas posições, ao que parece, são abstra­
tas. Marx, aliás, escrevia em 1843: “ O espiritualismo
abstrato é o materialismo abstrato; o materialismo
abstrato é o espiritualismo abstrato da matéria” 8. O
antimaterialismo criticava a teoria marxista por ser
pré-crítica: não será preciso rejeitar ambas as atitudes
como pré-hegelianas? O problema decisivo, segundo o
marxista, tal como o apresentamos no começo deste tra­
balho, o da precedência da matéria, tem uma significa^
ção propriamente científica ao ver do filósofo hegeliano,
e é às ciências especializadas que convém pedir a res­
posta; mas, que essa resposta seja favorável ao materia­
lismo não prova de modo algum que tenhamos o direito
filosófico de resolver do mesmo modo a questão das rela­
ções do Pensamento e do Ser. Nesse sentido, a crítica
antimaterialista é, para ele, em parte justificada. A vali­
dade dessa crítica não implica, de modo algum, no en­
tanto, que se possa desde logo, com toda tranqüilidade,
desenvolver doutrinas da subjetividade empírica ou
transcendental: o filósofo hegeliano estará então de
acordo, ao que parece, com o marxista em observar que
essas doutrinas esquecem seu fundamento histórico e as
condições reais de que procedem.
Parece, pois, que, com a solução desse problema da

5 Crítica da filosofia do Estado de Hegel, Obras filosóficas, t. IV ,


p. 183 (trad. francesa, A . Costes).

140
prova, trazida pelo hegelianismo, problema que o con­
flito atual do materialismo e do antimaterialismo tinha
levado a formular, aparece ao mesmo tempo a resposta
à questão que estava na origem deste trabalho, respos­
ta ao mesmo tempo desorientadora e plenamente satis­
fatória pois suprime a própria pergunta. O materialismo
e as doutrinas da subjetividade que a ele se opõem cons­
tituem atitudes sempre reiteráveis e sempre insuficien­
tes. Adotá-las e defendê-las atualmente, agora que sua
limitação se tomou manifesta, corresponde a revelar,
aquém da pesquisa filosófica, apenas uma preferência.
Tal preferência, principalmente quando se trata da
“preferência” materialista, ligada que se acha a movi­
mentos sociais tão importantes, está sujeita a uma aná­
lise histórica visando a determinar sua origem e signifi­
cação; mas, não poderia pretender constituir, tanto
quanto a doutrina oposta, uma nova teoria filosófica.

Pela posse do Saber absoluto, 6 homem se conhece


como liberdade; no Estado racional, do qual o saber de­
termina a Idéia, alcança a satisfação porque sua von­
tade, reconhecida por todos, corresponde objetiva e es­
sencialmente à vontade dos outros. Nesse estágio, certo
tipo de história se encerra: não porque — de acordo com
um esquema de interpretação tomado à teleologia cristã
— tenhamos chegado ao fim dos tempos, e não haja
mais “ acontecimentos” . Mas, assim como nada mais há
de essencial a saber — quaisquer que possam ser os pro­
gressos das ciências — assim também o devenir não mais
pode trazer mudanças importantes à estrutura do Esta­
do: podem ocorrer conflitos, nascer Estados e expan­
dir-se, outros poderão desaparecer; essas perturbações
históricas não poderiam modificar o que é o Estado real,
no sentido em que o acabamos de definir. E até é ra­
zoável pensar que os novos tempos que engendraram

141
essas modernas formas de Estado — dados graças aos
quais uma correta determinação da essência objetiva do
Estado tornou-se possível — verão aparecer formações
históricas cuja existência empírica irá aproximar-se cada
vez mais do Estado real, até se confundirem com e le 0.
O que torna legítima essa esperança, é o fato de que a
realização do Saber absoluto não é vim acidente, um
êxito devido ao gênio de um homem, mas o produto de
uma época, dessa época que começa com a construção do
Império napoleônico7 e que é “ propícia à elevação da
filosofia à ciência” — propícia, em todos os domínios,
à passagem da opinião ao conceito8.
Todavia, que acontece empiricamente com os ho­
mens — queremos dizer: que acontece no devenir cole­
tivo dos Estados modernos? E não podemos evitar esta
questão ingênua: a filosofia esforçava-se em trazer a
satisfação ao homem (àquele que é digno do nome de
homem; ora, doravante, graças à análise hegeliana,
àquele que sabe o que é ser um hom em ); o êxito da filo­
sofia deve ser também, a satisfação efetiva do homem
ou, ao menos, levando em conta a decalagem — expli­
cado pela filosofia — entre a existência empírica e a rea­
lidade, esboçar as condições ou as possibilidades da sa­
tisfação. Ora, (e trata-se de um fato histórico, de um
“ acontecimento” , tão importante para o destino da von­
tade filosófica quanto a condenação de Sócrates ou o
malogro siciliano de Platão) a evolução dos Estados
modernos, e essencialmente, para esse período, da Prús­
sia, da Inglaterra e da França, não “ confirma” de modo
algum a descrição filosófica. Esse divórcio entre o em­
pírico e o real manifesta-se em vários domínios: antes

6 C f. W eil, Hegel e o estado e, em particular, o cap. V , O Caráter do


estado moderno.
7 J. H yppolite, A significação da Revolução Francesa na “Fenomeno -
logia” de Hegel, in Estudos sobre M arx e Hegel e, especialmente, as
pp. 77-81.
8 Fenomenologia do espírito, Prefácio, t. I, p. 8.

142
de mais nada, acontece que, na realidade, apesar da di­
fusão e do êxito da Ciência, a filosofia não ensarilhou
as armas. O presente trabalho é uma prova indireta
disso: seria mesmo concebível, se efetivamente a argu­
mentação absolutamente convincente tivesse sido for­
mulada, de que o debate entre materialismo e antima-
terialismo fosse abstrato; de modo geral, é claro que,
depois da morte de Hegel e embora tenham tido suas
obras considerável audiência, pensadores cuja seriedade
é impossível contestar continuaram a escrever, desenvol­
vendo perspectivas que contrariam ou não levam em
conta a teoria hegeliana. Essa contestação ou esse des­
prezo não provam sem dúvida sua legitimidade; podem
ser o fruto da subjetividade descontente ou da opinião
empenhada em afirmar sua força; mas, sua própria rea­
lidade manifesta a limitação do Saber absoluto, mesmo
que fosse absoluto. É possível que Husserl, porque o
ponto de partida de sua obra era epistemológico, tenha
sido levado a negligenciar, no início, os trabalhos hege-
lianos, por motivos contingentes; é possível que Bergson,
(porque na França; nos fins do século X IX , Hegel era
pouco conhecido e a situação na qual se encontrava a
isso o predispunha), tenha sido levado a adotar como
objeto de sua reflexão problemas psicológicos. Mas, a
realidade é que a epistemologia, a psicologia (mesmo
que revelassem sua insuficiência) puderam desenvolver-
se fora do hegelianismo; e é um fato que filósofos de
importância considerável e de erudição e honestidade
insuspeitáveis — não se trata de limitar a lista a Berg­
son e a Husserl — situaram-se (com ou sem razão) numa
ótica diferente da de Hegel (diferente não significa, no
caso, — talvez seja esse o aspecto grave? — contraditó­
ria ou oposta). Mesmo que se tratasse, nessas obras,
— o que é dificilmente sustentável — de manifestações
da ignorância, da parcialidade do poder da empiria,
nem por isso sua existência deixaria de por em questão
o poder de persuasão do Saber absoluto. O hegelianismo,

143
portanto, se não é compreendido, deveria também poder
justificar essa não-compreensão.
Essa objeção é, na verdade, excepcionalmente gra­
ve: em primeiro lugar o filósofo hegeliano deveria po­
der mostrar que toda contestação do Saber absoluto, ou
negligência em relação a ele, — levando-se em conta as
deficiências devidas a Hegel e ao mundo histórico no
qual viveu — leva ou a assumir uma atitude não-filosó-
fica, sempre possível, mas cujo caráter inumano foi pro­
vado pelo sistema, ou a adotar uma perspectiva da qual
o sistema mostrou a insuficiência. Mas, mesmo que che­
gasse a proporcionar essas provas, deveria ainda mostrar
a necessidade e a legitimidade (histórica) dessas con­
testações e dessas negligências: seria assim compelido a
revelar as razões pelas quais o Absoluto não pode, final­
mente, ser compreendido e deve ser ultrapassado em
alguma empresa posterior. E, se satisfaz a essa segunda
exigência, deve reconhecer que o hegelianismo não era
suficiente, não havia tudo “ previsto” e desenhava ape­
nas uma imagem imperfeita da Ciência. Mas, se chegar­
mos a esse ponto extremo, não ficará reduzido a essa
alternativa que, como filósofo hegeliano, lhe é difícil
enfrentar: ou bem cada doutrina filosófica exprime seu
tempo; a de Hegel, nesse sentido, conseguiu pleno êxito,
e convém agora — de acordo com a perspectiva defini­
da por Hegel, mas que não é uma perspectiva hegeliana
(pois Hegel pretende o Saber absoluto) — elaborar o
“ absoluto-desse-tempo” ; ou então, chegou a ocasião para
que o Absoluto se revele; Hegel acreditou que a França
de Napoleão ou a Prússia de Frederico Guilherme in
eram “ propícias à elevação da filosofia ao conceito” ;
precipitou-se na apreciação; é agora que surge essa épo­
ca privilegiada; mas, neste caso, que prova, do caráter
definitivo de sua revelação, poderá dar tal pensador?
Sem dúvida, não poderá dar essa prova. Assim, aquém
das exigências definidas por Hegel para que a filosofia
se realize e apesar dessas exigências, mostrar-se-á uma
oposição tradicional: ou bem o filósofo postula que che­
gou ao Saber absoluto e espera que essa postulação seja

144
legítima ou bem reconhece que todo saber só tem como
prova a época da qual é o saber, que ele enuncia o rela­
tivo, que é uma simples teoria da existência quotidiana
historicamente compreendida e, portanto, que o desejo
de uma satisfação universal e duradoura é frívolo.
A essa contestação do poder do logos pelo desenvol­
vimento original do pensamento filosófico, acrescenta-se
outra mais grave. De fato, nada anuncia, na história
do último terço do século X IX , a passagem dos Estados
existentes a uma forma de organização mais adequada
à Razão. Ao contrário, a situação se desintegra continua­
mente, na Alemanha, em particular, embora o hegelia-
nismo seja amplamente difundido e considerado, ao
menos por certos círculos dirigentes, como doutrina ofi­
cial, e as esperanças de liberalização do regime tornam-
se cada vez mais ilusórias. Frederico Guilherme m não
toma providência alguma provando que pretende man­
ter sua promessa de 1815 e de 1819; ainda mais, o pro­
cesso de Hambach mostra claramente sua oposição ao
movimento democrático. Após a morte de Hegel e até o
advento de Frederico Guilherme IV, o rei e o governo,
apesar da permanência de alguns liberais no ministério,
reforça o caráter autoritário do regime prussiano: o pro­
jeto hegeliano de uma hierarquia de Estados que asse­
gurasse a mediação entre o poder e as diversas camadas
de cidadãos não encontra nem mesmo esboço de reali­
zação. A situação agrava-se ainda depois de 1840: ao
passo que Frederico Guilherme m havia podido, depois
da vitória sobre o império napoleônico, alimentar a es­
perança da outorga de uma constituição, seu sucessor,
quase imediatamente após sua ascensão ao poder, adota
uma posição francamente “ reacionária” ; demite os ad­
ministradores liberais, esforça-se em eliminar das facul­
dades os professores que não sustentam a estrita orto­
doxia cristã, submete a imprensa a uma vigilância rigo­
rosa, dá à censura poderes exorbitantes e estimula a
propaganda religiosa e antiliberal. Assim, o Estado real
cuja estrutura Hegel via surgir no movimento que havia
levado os Estados existentes à sua forma moderna, re­

145
vela-se Estado ideal, como esperança da Razão. A de-
calagem entre a realidade do Estado e a experiência que
os homens dele têm, longe de atenuar-se, cresce a tal
ponto que, para o pensador liberal, o Estado dos Princí­
pios da Filosofia do Direito, situa-se, no reino da Uto­
pia, com a Calípolis platônica.
Em face da contestação do conceito pela empiria,
quer se trate da discussão do Saber absoluto por dou­
trinas que pretendem, com ou sem razão, escapar ao
seu império, ou da oposição manifesta no devenir dos
Estados ao devenir do Estado, é possível adotar várias
atitudes. Pode, o filósofo, em primeiro lugar, ver nisso
a prova da vaidade e da inanidade de uma empresa co­
mo a de Hegel — e de toda outra empresa do mesmo ti­
po — que pretenda conter toda a riqueza e toda a di­
versidade do real nos limites estreitos demais do con­
ceito; em tal ótica, o erro de Hegel teria sido o de es­
quecer que o conceito se alimenta nas fontes vivas da
subjetividade, termo de referência fundamental, irredu­
tível às construções lógicas; o que convém, não é que­
rer conceder-lhe, no e pelo saber, uma libertação que
a subjetividade recusa, mas deixá-la enquanto tal, es­
forçar-se pela liberdade — se lhe for dada — de acordo
com sua exigência própria; o que convém, em todo caso,,
é renunciar a essa visão utópica segundo a qual a satis­
fação pode ser proporcionada pelo logos: se há uma sa­
tisfação, não poderia ser conferida nem universalmen­
te nem no universal; e, em particular, é vão esperar que
o reconhecimento seja dado no Estado, formação histó­
rica sujeita às flutuações do acontecimento.
É possível, ao contrário, sustentar firmemente o di­
reito do conceito e defender a perspectiva hegeliana.
Essa atitude implica, no entanto, duas posições muito
diferentes. De um lado, com efeito, é possível — como
acabamos de indicar — admitir como irrefutáveis os
princípios que presidiram à elaboração do pensamento
hegeliano e verificar, ao mesmo tempo, que, por moti­
vos ou causas a determinar, a obra de Hegel deve ser
retomada à luz dos novos acontecimentos que ele não

146
soube ou não pôde prever. Nessa eventualidade, de
acordo com a maior ou menor “ fidelidade” a Hegel, o
pensador se esforçará em reinterpretar Hegel pondo em
evidência os aspectos de sua concepção confirmados pe­
lo devenir do pensamento e da sociedade e atribuindo à
situação histórica de Hegel ou à sua personalidade as
idéias errôneas que desenvolveu; ou então se empenhará
em reconstruir um sistema de tipo hegeliano integrando
os novos elementos surgidos e mostrando também em
que e porque a obra hegeliana deve ser superada; nes­
se caso, observemos ainda uma vez, pois o assunto é,
importante, encontrar-se-á em face da eventualidade se­
ja de reconhecer o caráter historicamente relativo do
saber filosófico (o filósofo é capaz de saber o que é e o
que é possível para seu tempo e em seu tempo), seja de
afirmar, tentando demonstrá-lo — mas, o exemplo da
obra hegeliana não seria então uma grave hipoteca —
que soube desvelar integralmente o Absoluto. Assim,
paradoxalmente, o hegelianismo, que deveria encerrar
a era da filosofia, lhe abriria um novo caminho, dando-
lhe novas forças. Devemos notar, desde logo, que seme­
lhante defesa do conceito não pode deixar de suscitar
a ironia antifilosófica que verá nessa floração de siste­
mas reinterpretando ou descobrindo o Absoluto uma
prova da incapacidade do logos de apreender o real e de
sua ingênua pretensão. E não devemos reconhecer que
essa ironia tem procedência?
Há, no entanto, outra maneira de defender e de
fazer valer o hegelianismo e, com ele, o logos. A defasa-
gem existente entre aquilo que o conceito revela como
real e a empiria, suscita, não uma reação de descon­
fiança em relação aos conceitos ou a preocupação de
forjar outros mais adequados, mas uma vontade, a de
realizar o conceito aqui e agora, no seio mesmo da em­
piria, por meio de uma ação. Essa resolução é de capi­
tal importância e teve historicamente conseqüências
decisivas. Reconheceu-se aqui a posição adotada, depois
que se desvaneceram as esperanças liberais na Alema­
nha, em face da atitude de Frederico Guilherme III, por

147
esse movimento confuso e diversificado dos “ Jovens-he-
gelianos” . Não se trata, neste trabalho, que não é his­
tórico, de analisar precisamente as múltiplas posições
assumidas e as diversas motivações políticas e filosófi­
cas que estavam em sua origem. Queríamos simples­
mente tentar discernir a significação que pode ter se­
melhante atitude para nós que procuramos ver com
clareza o debate entre materialismo e antimaterialis-
mo. É claro, desde logo, que implica uma confiança to­
tal na teoria hegelina, em geral, e, uma vez que o pro­
blema político estava no centro do hegelianismo de es­
querda, à do Estado racional em particular. Os Jovens-
hegelianos, como Hegel, e contra a filosofia romântica
utilizada contra eles, julgam que o Estado é o “ divino
na terra” e que é somente nele que o homem pode al­
cançar a satisfação; como Hegel também, pensam que
importa criar um regime no qual — de acordo com as
noções desenvolvidas pelos teóricos do século X V III — o
interesse de todos coincide com o interesse de cada um,
no qual a vontade individual queira o que é objetivamen­
te racional razoável. E aderem, ao que parece, nem
sempre aceitando seus pormenores, a essa organização
sutil do Estado graças à qual a unidade necessária do
poder se concilia harmoniosamente com a diversidade
dos elementos que compõem a nação.
Mais precisamente, em face do caráter reacionário
cada vez mais acentuado do Estado prussiano, parece-
lhes que o sistema político definido por Hegel, como
correspondendo à essência do Estado, constitui o tema
cm torno do qual devem travar a batalha liberal. Con­
tra o regime de opressão e de autoridade instaurado
pelo governo, defendem o liberalismo de Hegel e en­
contram em sua obra provas e sólidos argumentos. É
um fato, aliás, se considerarmos a situação criada de­
pois de 1840, que o projeto hegeliano parece extrema­
mente “ progressista” . A confiança dos Jovens-nege-
lianos na análise política do mestre harmoniza-se mui­
to bem com a estratégia política que convém à epoca.
Todavia, a essa aceitação dos resultados adquiridos

148
pelos Princípios da Filosofia do Direito acrescenta-se
grave restrição: a insuficiência do hegelianismo — que
é, senão uma insuficiência de Hegel, ao menos um er­
ro de seus discípulos que se contentam em ensinar o
sistema — é de propor e de descrever o Estado racio­
nal sem nada fazer para que ele exista. A satisfação
proporcionada pela compreensão do que é permanece
uma satisfação ideal, vima falsa satisfação; o saber
absoluto é absoluto, sem dúvida, mas continua sendo
Saber. O divórcio observado e compreendido pela ciên­
cia entre o conceito e a existência empírica não desa­
parece pelo fato de ser compreendido; importa ainda
suprimi-lo empiricamente. Para consegui-lo, é preciso
agir e denunciar a baixeza, a injustiça e o absurdo do
regime autocrático que contradiz o que está realmen­
te contido na Idéia do Estado®.
Em suma, o erro do hegelianismo foi supor que,
demonstrando que o real é racional e conhecendo a
diferença entre o real e a existência empírica, que a sa­
tisfação deveria nascer apenas da determinação do que
é o Estado em sua essência objetiva. A satisfação deve
ser também empírica; é preciso, pois, realizar na em-
piria o Estado racional. Importa, doravante, usar o
conceito, não só para compreender o que é, mas para
fazer existir o que deve ser. A tarefa teorética da filo­
sofia acrescenta-se, assim, uma missão crítica; o con­
ceito que reflete a realidade deve ser também uma
arma para aqueles que querem que o real se torne ra­
cional. Essa definição do papel da filosofia pela crítica
implica uma dupla dimensão: supõe, não só que a obra

9 “ Penetrados pela doutrina hegeliana e não duvidando da onipotên­


cia do Espírito em transformar o mundo, os jovens-hegelianos, inca­
pazes de travar o combate no plano político e social, permaneciam, em
sua luta no plano conceituai, pensando que pelo fato de o desenvolvi­
mento das idéias determinar o da realidade, bastava eliminar em teoria os.
elementos irracionais incluídos no real para conferir à marcha da
História um caráter racional” . A . Cornu, K arl M arx e Friedrich En -
Seis, t. I p. 141.

149
teorética tenha sido suficientemente realizada e que
convenha, doravante, utilizar seus resultados, deven­
do-se, portanto, passar, de certo modo, da ciência à apli­
cação dessa ciência10, mas também — e esse é um ponto
ao qual deveremos voltar — que a ciência como tal é
incapaz de trazer a satisfação e que somente sua rea­
lização pode permitir o êxito de suas finalidades últi­
mas. Preocupado em desenvolver polemicamente sua
perspectiva, o movimento jovem-hegeliano despreza, além
disso, suas implicações filosóficas e se esforça em apli­
car o “ liberalismo” hegeliano à crítica do Estado atual:
utiliza, em particular, o racionalismo, desenvolvendo-o
em direções precisas contra as concepções românticas e
religiosas defendidas pelos partidários da autocracia:
tenta mostrar a que escandalosas falsificações se entre­
gam aqueles que fizeram de Hegel um pensador que
teria desejado a confusão da autoridade política e da
autoridade religiosa; chega a exaltar o papel libertador
dos filósofos da Aufklärung que precisamente utilizaram
o conceito como arma para denunciar a irracionalida­
de de sua época11.
Elabora-se, assim, uma “ filosofia da praxis”1'- vi­
sando eliminar os elementos irracionais da existência
empírica. Na medida em que é precisamente no nível do
que deveria ser a Razão objetivada, no nivel do Estado,
que esses elementos se manifestam, essa filosofia assu-

10 “ Segundo H egel, a vontade c apenas um m odo de ser particular


do pensamento, o que é falso; é o pensamento, ao contrário, que cons­
titui um momento da vontade, pois o pensamento que quer realizar-se
assume a form a de vontade e de ação” . A . von Cieszkowski, Prolego­
mena zur historiosophie, p. 120, citado por A . Cornu, ibid., p. 142.
11 C f. D . F . Strausz, Das leben Jesu e a análise dessa obra que é
feita, em particular, por A . Cornu, ibidem , pp. 137-140.

12 Cf., por exemplo, A . von Cieszkowski, op. cit., p 129: “ Tornar-


•se um filósofo prático ou, m elhor dizendo, da atividade prática, da
Praxis exercendo influência direta na vida social, desenvolver a ver­
dade no dom ínio da atividade concreta, tal é a função que deverá de­
sempenhar, no futuro, a filo s o fia ” . Cf. A . Cornu, ibid., t. I, cap. I II.

150
me um caráter diretamente político: “ Nossa época só é
compreendida pela filosofia, nossa tarefa é ajudar nos­
so tempo a fazer de tal modo que não só compreenda a
filosofia, mas que a realize... A filosofia transforma-se
em convicção política, a convicção política em força de
caráter, a força de caráter em ação” 13. A tarefa que o
movimento assume, de acordo com a fórmula enérgica
do jovem Marx, é chegar a um “ devenir-filosofia do
mundo” 14. A empresa não deixa de envolver ambigüida­
des filosóficas sobre as quais deveremos insistir. A praxis,
iluminada pela razão, propõe-se acelerar o movimento
do devenir, revelar a racionalidade nele contida e ven­
cer a má vontade dos governantes que se recusam a
compreender a necessidade e o valor do Estado racional.
Aceitando o valor da teoria, nega-lhe, como tal, eficácia;
é pela ação crítica que a teoria “ passará para os fatos” .
A ciência deixa de ser um resultado para tornar-se um
programa, e sua realização repousa doravante na
acuidade crítica e na coragem cívica dos filósofos que
saibam denunciar o que está morto e saibam fazer pre­
valecer o ponto de vista da Razão. Precisam conquistar
aliados e tornar-se propagandistas, militantes da racio­
nalidade.
Satisfazer o homem real, aplicando os princípios
elaborados pela Ciência, acelerar o movimento da his­
tória, usar o conceito para dar à luz a racionalidade
contida no devenir, tal é o programa corajoso da crítica.
É lícito perguntar, no entanto, se tal coragem não sig­
nifica uma espécie de regressão em relação às desco­
bertas do pensamento kantiano e do hegelianismo. Não
implicará, essa atitude, em graves confusões, que con-

13 Anais de Halle, novem bro de 1840, A . Ruge, Freiherr von F io -


rencourt und die kategorien der politisclien praxis, 24 de nevembro,
pp. 2250 e 2254, citado por A . Cornu, ibid., pp. 172-173.

14 Fragmentos acrescentados à Dissertação sobre a diferença da F ilo ­


sofia da Natureza em Dem ócrito e Epicuro, trad. M olito r, Obras F ilo­
sóficas, t. I, p. 76.

151
denarão o movimento jovem-hegeliano a travar uma po­
lêmica inútil, da qual sairá vencido e definitivamente
esterilizado? Não levará, de fato, a pretexto de preten­
der tornar reais as conquistas hegelianas renunciar a
elas? Verifica-se, com efeito, em primeiro lugar, que a
idéia de uma aplicação prática da ciência compromete
gravemente sua noção tal como a definiu Hegel15. Se é
preciso tornar o real racional, utilizando os conceitos
elaborados pela ciência filosófica, é evidentemente por­
que esta última, saber do racional, não é saber do real;
seu objeto não é, pois, como dizia Hegel, o Ser na tota^
lidade de suas determinações, mas apenas um aspecto
do real — no sentido mais banal e mais geral — , o as­
pecto racional. Se importa lutar pelo “ devenir-filosofia
do mundo” , é porque subsiste uma separação entre a fi­
losofia e o mundo, uma cisão entre o logos e o Ser. A
teoria não pode mais ser considerada visão fiel — refle­
xo ou reflexão — da integralidade do dado: torna-se
apreensão de uma parte do dado, aquela que precisamen­
te não é dada imediatamente e que se esconde sob a di­
versidade, a confusão e a irracionalidade do existente.
Sem dúvida, o hegelianismo de esquerda retém a for­
mulação célebre do Prefácio dos Princípios da\ Filosofia
do Direito: “O real é racional (ou razoável)” ; mas, sua
interpretação dessa tese destrói, ao que parece, seu al­
cance e sua significação. Enquanto a realidade é, para
Hegel, a unidade dialética da essência e da existência,
nessa perspectiva, fraciona-se novamente em duas de­
terminações estranhas uma à outra: de um lado, o nú­

15 C f. Anais de Halle, A . Ruge, E . M . Arndt: Erinnerungen aus


dem ausseren leben, 8 outubro 1840, p. 1931: “É verdade que Hegel
não permaneceu fiel ao princípio de desenvolvimento, ao verdadeiro
idealism o e à dialética que anima sua filosofia do espírito, nem no
dom ínio da religião, nem no da política nem, do modo mais geral, no
da história, e que sua polêm ica contra o “ Dever-ser” , dirigida não
contra o dogmatismo, mas contra a crítica, que é o elemento determi­
nante do processo histórico, assim com o sua sabedoria especulativa e
contem plativa de brâmane, constituem a renegação de todo idealismo
prático” , citado p or A . Cornu, ibid., p. 164.

152
cleo da realidade, racional e conhecido pela filosofia e,
de outro, o existente cuja irracionalidade é revelada pe­
la crítica que o considera suscetível de racionalização.
Na verdade, essa relação estabelecida entre a essência
e a existência, revela-se ambígua: por um lado, os dois
termos diferem absolutamente — como o racional do ir­
racional — , mas, de outro, em certa medida, o existen­
te, uma vez que é efetivamente “ racionalizado” , guar­
da alguma coisa das determinações da essência. Trata-
se, em todo caso, de uma ruptura total com a perspecti­
va hegeliana e de um retorno às concepções tradicionais
da metafísica: a filosofia, graças aos processos que lhe
são próprios, descobre o ser oculto e importante; e o fi­
lósofo, homem que sabe o valor da Razão, esforça-se em
transformar o mundo em função de sua descoberta.
Todavia, o que distingue a crítica do pensamento
pré-hegeliano, é que ela se consagra integralmente à
sua tarefa de transformação, admitindo que, em rela­
ção ao mais importante, a tarefa da filosofia está cum­
prida de modo satisfatório10. Salienta, pois, o caráter es­
sencial da existência empírica, a satisfação dos indiví­
duos em sua vida quotidiana. Embora mantenha o “ va­
lor” do logos, insiste na necessidade de uma praxis que
torne o dado “ lógico” ; esforça-se, pois, contrariamente
a Hegel (que mostrava a ligação dialética dos dois ter-

16 É assim que E. W eil interpreta todo o pensamento de M arx:


“ Quanto ao essencial (para M a r x ), trata-se de tirar de uma filosofia
uma ciência e lima técnica, de optar pela realização daquilo que a f i­
losofia enuncia com o pura necessidade hipotética, e de procurar para
isso os meios conceituais c políticos disponíveis e indispensáveis, de
traduzir o idealismo da filosofia (e de toda a ciência teorética) em
materialism o histórico e político” . Hegel e o estado, p. 114. Essa in­
terpretação corresponde, ao que parece, ao pensamento de M arx “ jo-
vem -hegeliano” (que se manifesta — já com certas aberturas para o
futuro — na Contribuição à crítica da Filosofia do Direito de Hegel);
tentaremos, nas páginas seguintes, mostrar de que m odo M arx tentou
sair dos impasses a que o levava semelhante atitude, e de que modo,
respondendo às perguntas que se propõe precisamente E. W eil, ( op.
cit., pp. 114-115) descobriu o caminho da verdadeira Aufhebung (su­
peração) da filo s o fi»

153
mos) em preservar inicialmente sua diferença a fim de,
em seguida, igualar o dado empírico e o ser-refletido.
Ao mesmo tempo, designa esse termo como ideal. O que
a ciência demonstra como sendo o racional é também
aquilo que é preciso fazer existir e que, portanto, ao mes­
mo tempo, determina uma missão e estabelece suas mo­
dalidades. Assim, o ser-racional afasta-se ainda um pou­
co mais da empiria; opondo-se a ela como a essência à
existência — conforme a condição — , dela difere como
o ideal do real, o objeto da vontade do dado da percep­
ção. A vocação filosófica, agora que a ciência está com­
pleta e que revelou, ao mesmo tempo, sua perfeição e
empiricamente sua insuficiência fundamental, reduz-se
a querer o racional. Esboça-se, assim, como foi muitas
vezes salientado, um retorno a Kant e a Fichte. A teoria,
a visão, requer a prática. Ainda aí, a oposição a Hegel
é manifesta; este sempre insistiu, precisamente porque
se propunha mostrar as falhas da filosofia da reflexão
e do voluntarismo fichtiano dela decorrente, no absur­
do que representa para o filósofo, preocupado com a
ciência, indicar o que deve ser: “A filosofia é o fundamen­
to do racional, é a inteligência do presente e do real e
não a construção de um além que se encontraria sabe
Deus onde, ou antes, sabemos bem onde se encontra: no
erro, nos raciocínios parciais e vazios” 17; ao que, acres­
centa: “ Para dizer ainda uma palavra sobre a preten­
são de ensinar como deve ser o mundo, observaremos
que, de qualquer maneira, a filosofia chega sempre tar­
de demais” 18. Ciência do Ser, a filosofia hegeliana con­
sidera a moral, na significação habitual do termo, como
um fato do qual importa descobrir a realidade: “ que
querem os homens?” e não como um conjunto de.pres­
crições individuais e coletivas: “ que deveriam querer?
que devo querer?” Para o filósofo, é absurda a ambi-

17 Princípios da Filosofia do Direito, Prefácio, p. 29.

18 Ibid., p. 32.
154
ção de impor um dever, porque nada pode justificar o
conteúdo desse dever senão aquilo que é, aquilo que já é
desejado pelos homens: “ O que o conceito ensina, a his­
tória o mostra com a mesma necessidade” 19. A missão da
ciência filosófica é elevar ao conceito o que é (e, por is­
so mesmo, o que é possível). Contra essa atitude, ao
mesmo tempo modesta e altiva, a crítica desenvolve efe­
tivamente, nas polêmicas que trava, uma doutrina que
somos obrigados a qualificar de moralizante: e, para­
doxalmente, essa doutrina resulta, para encurtar pala­
vras, da superestimação e da incompreensão do hegelia-
nismo. De um lado, a filosofia política de Hegel, corri­
gida no sentido exigido pela época, parece-lhe conter o
alfa e o ômega de todo pensamento político; de outro
lado, é considerada abstrata, descrição de uma racio­
nalidade que não é real. Aos olhos dos jovens-hegelianos,
Hegel diz o que é verdade, mas que não é; adotam então
uma solução que repugna à estrutura do hegelianismo:
o autor dos Princípios da Filosofia do Direito descreve o
ideal.
E, ao mesmo tempo, com certa ingenuidade, a crí­
tica se prepara para “ atravessar o Ródano” 20. Retorna às
perspectivas tantas vezes denunciadas por Hegel como
inaceitáveis, características dos pensadores da Idade das
Luzes.21 O filósofo recupera seu estatuto e seu privilé­
gio de indivíduo que tem a ocasião de possuir a Razão

19 ibid.
20 Empregamos, por comodidade, essa expressão já habitual em lín­
gua francesa embora interprete de maneira errônea a fórm ula antiga
“ saltar o Rubicon” .

21 Sobre a influência da Aufklärung na esquerda hegeliana, cf., por


exemplo, Koppen, Friedrich der grosse, p. 35: “ A Aufklärung fo i o
Prometeu que trouxe para a terra a luz celeste a fim de iluminar os
cegos, o povo, e libertá-los de seus preconceitos e de seus erros. Que
os filósofos que pregam um novo caminho de salvação e com tão boa
vontade declaram guerra ao Racionalismo abstrato do século xviii ,
queiram pensar sobre isso e que assim procedendo prejudicam-se a si
mesmos” , citado por A Cornu, ibid., p. 174.

155
e que, como tal, tem o doloroso e exaltante encargo de
ensiná-la. Tudo se passa como se o fato de mostrar que
a empiria está desprovida de racionalidade levasse a iso­
lar a Razão, a promovê-la juiz e a conferir àqueles que
a possuem a obrigação de fazê-la triunfar. A consciên­
cia do jovem-hegeliano é, ao mesmo tempo, infeliz e
confiante: infeliz porque experimenta o divórcio entre
o que sabe ser bom e racional e o que existe; confiante
porque conhece a solução para os males da humanidade
— solução que lhe traz Hegel “ reinterpretado” — e por­
que esse conhecimento lhe dá a “ convicção prática” . Se­
rá necessário, para o presente trabalho, determinar o
sentido dessa situação contraditória do hegelianismo de
esquerda e verificar sua validade filosófica. É importan­
te, agora, observar a oposição profunda existente entre
a Ciência hegeliana e a decisão daqueles que querem
realizá-la. Trata-se de uma posição que, por mais con­
fusa que seja historicamente, traz uma contestação de­
cisiva ao próprio exercício da filosofia, por mais bem su­
cedido e científico que seja.
O rejuvenescimento do hegelianismo implica, por­
tanto, na realidade, uma discussão dos princípios e dos
resultados da obra hegeliana. Seria muito fácil atribuir
essa contestação à ininteligência è à paixão partidária:
se desprezou certos aspectos do sistema que nos parece­
ram decisivos, foi, sem dúvida, porque a crítica não
pôde chegar, apesar de suas afirmações, a uma perspec­
tiva radical; mas, a dúvida que suscitou, a propósito do
valor do sistema e de suas ambições, tem como origem
a situação da Alemanha e, talvez, da Europa no segun­
do terço do século X IX : situação tal que não é mais pos­
sível pretender que apenas o logos, por mais bem suce­
dido, por mais incontestável que se possa mostrar em
seu desenvolvimento e em seus resultados, proporcione
a satisfação. De fato, no sistema completo, idêntico ao
próprio Ser que se compreendeu, a alteridade desapare­
ceu e o Pensamento experimenta sua livre plenitude.
Nem por isso, no entanto, o homem empírico está satis­
feito: continua infeliz e submetido à opressão. Livre co­

156
mo logos não está liberto como indivíduo e não tem
nem mesmo o poder de fazer conhecer aquilo que o lo­
gos revela como racional e possível. A ciência havia pre­
visto e compreendido, devemos repetir, essa decalagem
entre a realidade e a empiria: mas, previsão e compre­
ensão não significam supressão empírica, a única que
conta para o indivíduo na empiria. E a filosofia, na me­
dida em que alcança pleno êxito, revela sua fundamental
insuficiência.
Revela, também, desde que consideremos a obra he-
geliana satisfatória, que a adequação do real e do ra­
cional é sempre provisória, que há um saber efetivo do
presente e do passado, mas que nenhum logos é capaz
de enclausurar o futuro em determinações conceituais,
por mais genéricas que sejam. Hegel, sem dúvida, havia
insistido em que a filosofia, assim como o indivíduo “ é
filho de seu tempo” , “ resume seu tempo no pensamen­
to”2-. Mas, declarava, também, que seu tempo lhe per­
mitia apreender o Absoluto e, em particular, descobrin­
do a essência do Estado, determinar em que sentido os
Estados empíricos evoluiriam. Ora, a concepção hegelia-
na não é de modo algum confirmada pelo desenvolvimen­
to do Estado prussiano: o que Hegel previa como em­
piricamente possível não se realiza na existência. As­
sim sendo, é preciso reconhecer que o logos é incapaz
de “ prever” e que é preciso agir para realizar o que ele
designa como devendo ser. Importa, pois, inverter a
perspectiva hegeliana: esta, em vista de que conferia
um poder exorbitante ao logos, confundia o Ser e o de-
ver-ser; convém, ao contrário, tomar consciência da in­
capacidade essencial da Razão em transformar efetiva­
mente o mundo e de agir praticamente para que seja
transposto o Ródano. O hegelianismo, afinal de contas,
revela o vício inerente ao exercício da filosofia: a pre­
tensão absurda de fazer alguma coisa, de exercer um
poder empiricamente efetivo. É evidente que se as idéias

22 ldem, p. 3.

157
dos filósofos franceses da Idade das Luzes puderam
transferir-se para a realidade, foi pela ação revolucio­
nária e não em virtude de sua autoridade ideal; o re­
gime alemão só se transformará se for executada uma
ação crítica destinada a mudá-lo: à revolução filosófica
hegeliana deve acrescentar-se uma revolução histórica23.
Essa crítica do hegelianismo, que é também uma
crítica da filosofia e que resume, afinal, as objeções tra­
dicionais do Bom Senso e do pensamento técnico contra
a ambição do filósofo, não será alvo, por sua vez, de ar­
gumentos já desenvolvidos pela filosofia e perfeitamen­
te elucidados por Hegel? Não estaremos novamente em
face de um debate no qual cada um dos participantes
pode, com todo direito, manter suas posições? A filoso­
fia hegeliana tem, com efeito, o direito de censurar a
crítica por privar o Saber de seu sentido, atribuindo-lhe
por missão refletir (ou “ meditar” ), não o Ser no con­
junto de suas manifestações, mas o Ser oculto; se as­
sim é, que prova de sua verdade pode apresentar seme­
lhante saber? Que legitimidade poderá reivindicar? Es­
tabelecendo novamente um corte entre o essencial e o
existencial, não condenará novamente a filosofia a ape­
lar para o privilégio de uma revelação excepcional? O
retorno a uma ótica análoga, em conjunto, à da Idade
das Luzes, reitera os erros do racionalismo abstrato.
Mais precisamente e na esfera política, a posição de uma
ordem racional, elaborada conceitualmente e dotada
apenas de realidade ideal, não leva a supor a realidade
de um direito natural ou ideal? Ora, Hegel mostrou a
falta de seriedade de tal suposição que trata o problema
do Estado como se o direito positivo e o direito natural
fossem opostos por natureza, como se não houvesse “ ain­
da existido Estado algum, nenhuma constituição polí­

23 K . M arx, Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel,


Obras filosóficas, t. I, p. 87: “ Em luta contra esse estado social, a críti­
ca não é uma paixão da cabeça mas a cabeça da paixão. N ã o é um
bisturi, mas uma arma. Seu objeto, é seu inim igo, que ela quer, não
refutar, mas destruir” .

158
tica sobre a terra, (como se) não existissem atualmen­
te” 24.
Esse retorno aos aspectos mais superficiais do ra-
cionalismo abstrato é acompanhado, na medida em que
semelhante raciocinação sente sua falta, de uma exorta­
ção romântica que apela para a boa vontade dos gover­
nantes, para a coragem subjetiva do filósofo, para sua
firmeza política. E esse movimento jovem-hegeliano que
exalta a praxis não utrapassa finalmente, porque sua
contestação do hegelianismo é filosoficamente insufi­
ciente, as perspectivas políticas empíricas que eram as
de Hegel. A crítica, com efeito, em sua ação política, não
vai além da polêmica; esforça-se em influenciar a opi­
nião pública cultivada, convencer os governantes; mas
não organiza, a bem dizer, uma ação histórica efetiva.
Hegel dirigia-se, na medida em que pretendia desem­
penhar um papel político, aos cidadãos, às autoridades
políticas e administrativas para ensinar como o Estado
deve ser conhecido, abrindo-lhes, de certo modo, um cré­
dito de confiança; a crítica argumenta contra as deci­
sões governamentais; mas apela, também, para a Ra­
zão dos dirigentes e admite como evidente o poder per­
suasivo dos discursos. A contradição entre as duas ati­
tudes é apenas aparente: somente a época mudou e não
a concepção da ação política do filósofo. A crítica con­
tenta-se assim em opor, numa polêmica, as idéias “ justas”
às idéias “ errôneas” . O racional concebido ao irracional
existente. Contra este, quer lutar com a arma dos con­
ceitos; isso porque, no fundo, julga que o predomínio
das falsas doutrinas — as do absolutismo e do direito
divino fundadas na ortodoxia cristã — é responsável pe­
la “ desordem” do Estado e da Sociedade. A Razão tri­
unfará no dia em que os governantes e a opinião públi­
ca forem convencidos da falsidade das idéias que estão
na origem do mau regime atual.
A atitude do hegelianismo de esquerda, apesar de

24 Idem, p. 24.

159
sua ambição de ser simples e simplesmente “ ativa” , é
pois de grande ambigüidade. De um lado, a crítica sali­
enta com razão a ineficácia empírica do logos ; insiste
legitimamente na necessidade de satisfazer o indivíduo,
de proporcionar-lhe uma liberdade que não seja apenas
uma liberdade do logos no logos; manifesta-se como ve­
rificação do malogro do hegelianismo; e, na medida em
que considera o sistema hegeliano completo e bem su­
cedido, discute, com justa razão, ao que parece, o “ valor
empírico” da filosofia e sua possibilidade de realizar, ca­
so permaneça teorética, a vontade de promover univer­
salmente a satisfação. Todavia, essa decisão de realizar
a filosofia, isto é, de agir para que a preocupação filosó­
fica seja empiricamente efetivada, por mais justa que
possa ser, opera-se em tal perspectiva que conduz tanto
à ingenuidade teórica quanto à ineficácia prática. Teo­
ricamente, o hegelianismo de esquerda mostra-se inca­
paz de sair dos dilemas e das dificuldades que condena­
vam a metafísica às discussões intermináveis; na medi­
da em que a ciência não é ciência do real enquanto se
manifesta, mas saber da essência ou do ideal, torna-se
incapaz de justificar sua ótica; fica reduzida a apre­
sentar o alvo de sua ação como objeto da vontade de ho­
mens resolutos e que sabem. Praticamente, o hegelia­
nismo de esquerda erra ao considerar suficiente uma
polêmica que, em atmosfera de completa desconfiança,
confia nos poderes e acredita na conversão intelectual
graças à qual os indivíduos e, em particular, os gover­
nantes começariam a raciocinar corretamente.
Rigidamente inscrita nos quadros do hegelianismo
porque considera pacíficos os resultados da política he-
geliana, pouco preocupada com a significação filosófica
revolucionária da obra, a crítica não vê que sua idéia
de realizar a filosofia é uma “ idéia do entendimento” ,
abstrata, parcial e vazia. Se o Saber absoluto exige uma
realização, é porque não é absoluto; se não descreve a
situação dos homens que desesperam do regime de Fre­
derico Guilherme IV e não encontram na Europa espe­
rança alguma de transformação, não é porque tenha si­

160
do traído pela falta de sorte ou a má vontade dos indiví­
duos: é porque não refletia exatamente a realidade. O
malogro, que, empiricamente, é claro, deve ser também
uma fraqueza da ciência. Ora, a ciência filosófica, com
Hegel, chegou a tal grau de acabamento que é sua pró­
pria idéia que se deve contestar. De fato, segundo o pró­
prio Hegel, uma atitude ou categoria só exige e logra
sua realização quando é, ao mesmo tempo, negada e su­
perada. A realização corajosa da racionalidade, deseja­
da pelo movimento hegeliano, só pode assumir signifi­
cação se o pensamento compreender que é compelido,
ao mesmo tempo, a suprimir e a “sublimar” até a no­
ção de racionalidade tal como é definida pela filosofia,
submetendo a rigorosa investigação o exercício da pró­
pria filosofia.

O “ malogro histórico” do heçelianismo, as falências


do movimento crítico mostram, ao que parece, que é inú­
til pretender realizar teórica e praticamente a filosofia
sem, ao mesmo tempo, tentar súprimi-la e superá-la. O
“ vir-a-ser mundo da filosofia” , que dizer, o esforço para
estabelecer uma ordem humana que traga ao homem
uma satisfação também empírica, implica o “ vir-a-ser
mundo da filosofia” , isto é, o emprego de um modo de
pensar e de agir radicalmente novo que, de fato, impli­
que a negação do exercício da filosofia e sua elevação
a um nível superior-5. Todavia, para obter êxito, essa
operação difícil de “ sublimação” ( Aufhebung ) deve ser

25 Essa idéia aparece em M arx em um momento no qual a ótica


“ jovem -hegeliana” ainda é, em muitos aspectos, dominante. C f., entre
outros, a Contribuição à crítica da filosofia do direito de H egel : “ N a
luta atual, esse partido, o partido político teórico viu apenas a luta
crítica da filosofia contra o mundo alemão; não percebeu que a própria
filosofia faz parte desse mundo do qual é o complemento ideal. Crítico

161
unitária: é capital, para ela, manter a unidade dialéti­
ca dos três momentos que a constituem e, em particular,
não favorecer a realização com referência à negação ou
inversamente. Todo desenvolvimento unilateral de um
momento ameaça falsear o conjunto do movimento para
levar, não além, mas aquém da filosofia. O' exemplo que
acabamos de evocar resumidamente, do hegelianismo
de esquerda, prova bem que dificuldades implica a deci­
são de somente realizar a filosofia. Sem dúvida, trata-se
de fazer existir empiricamente essa racionalidade que
o filósofo procura e atinge no nível do logos; trata-se de
trazer a satisfação ao homem em seu ser empírico por
uma organização do mundo humano em que cada um,
desejando seu interesse particular, chegue à plenitude
duradoura e seja, ao mesmo tempo, livremente reconhe­
cido por todos, como homem que procura e atinge le­
gitimamente a plenitude. Tal posição, no entanto,
acumula as obscuridades e é, a justo título, contestada
pela reflexão filosófica: assim como já foi observado, o
Saber torna-se incapaz de provar sua validade uma vez
que tem por objeto não o ser-manifesto, mas o ser-oculto
que, além disso, nessa perspectiva, assume a figura do
ideal; e, a própria realização desse ideal cai na esfera
da contingência, pois é entregue à convicção e à cora-

em relação a seu adversário, não fo i em relação a si mesm o: tomou,


com efeito, com o ponto de partida, as hipóteses da filosofia; mas, ou se
ateve aos resultados por ela proporcionados ou fo i procurar alhures
exigências e resultados para apresentá-los com o exigências e resultados
imediatos da filosofia, em bora não se possa — suposta sua legitim ida­
de — obtê-los, senão pela negação da filo s o fia tal qual fo i até hoje,
quer dizer, da filo s o fia enquanto filo s o fia . . . Seu principal equívoco
pode ser assim resum ido: im aginava poder realizar a filosofia sem su-
prim i-la” . Obras filosóficas, t. I, pp. 94-95. A partir da Ideologia alemã,
a superação d o hegelianismo de esquerda está consumada: “ Os mais
jovens dentre eles (os ideólogos jovem -hegelianos) encontraram a
expressão exata para sua atividade quando declararam que combatem
apenas contra frases. Esquecem simplesmente que, a essas frases, não
opõem eles próprios, senão frases e que não combatem de m odo algum
o mundo existente realmente, ao combater somente as frases desse mun­
do” . Idem , t. I V pp. 152-153.

162
gem individuais. Não há mais diferença alguma entre
essa atitude e a atitude platônica.
Esse esquema que concede todo o privilégio à reali­
zação encontra-se nessas concepções que denunciamos no
capítulo primeiro como interpretações errôneas do pen­
samento marxista. O objetivismo cientista, com efeito,
adota exatamente a mesma ótica: admite, de uma
parte, que a verdade é dada no nível de um conhecimen­
to científico admitido como isento, por natureza, de con­
testação; esforça-se, por outro lado, em descobrir a co­
ragem individual e coletiva que será capaz de a-plicar a
ciência, de denunciar a covardia ou a ignorância inte­
ressada; de um lado, será dogmático e terá dificuldade
em responder às objeções tradicionais da filosofia; de
outro, será compelido à moralização e será posto em
questão por doutrinas que têm o mesmo direito de rei­
vindicar o “ Valor” autêntico. Nessa ótica, a aridez dog­
mática tem, por assim dizer, como complemento obriga­
tório, o lirismo da exortação moralizante. Assim, o que
a insuficiência do hegelianismo de esquerda permite sa­
lientar, é a vaidade de todo esforço de qualquer saber,
seja qual for, — quer se apóie em uma revelação de or­
dem metafísica, em uma estrutura formal perfeitamen­
te ajustada, nas lições das disciplinas experimentais ou
mesmo na posse de um instrumento de inteligibilidade
privilegiado, a dialética, por exemplo20, — em pretender
ir além do que é dado e indicar o que deve ser. A filo­
sofia, como tal, não pode “ atravessar o Ródano” : é ab-

26 N a obra de H . L efeb vre (e, principalmente, em O materialismo dia­


lético e Para conhecer o pensamento de M a rx) cuja im portância e
originalidade convém salientar, que soube m obilizar contra o dogm a­
tismo das “ filosofias gerais marxistas" todos os recursos da sutilzca e
da cultura e opor ao “ subjetivismo de classe” a exigência científica de
objetividade, é freqüentemente admitido, com o ponto pacífico, que o
materialismo está “ fundamentado” porque possui o instrumento da
verdade. O “ objetivism o” , a esse respeito, em bora represente uma
compreensão mais profunda da tarefa teórica do marxismo, revela-se
tão pouco justificado quanto o “ subjetivismo de classe” e o “ messianis­
mo do proletariado” .

163
surdo querer “ mover a roda da história” em nome de
um fim que seria descoberto pela Ciência ou pelas ciên­
cias: “ a única lição da história é que a história não tem
lições”27. Também não é necessário salientar novamen­
te a carência das concepções, segundo as quais o mar­
xismo consistiria em efetuar a promessa que está con­
tida na existência do proletariado, classe por essência
privilegiada, possuidora da virtude de saber e de agir
como convém; embora essa interpretação se tenha re­
velado historicamente em oposição à do objetivismo (fi­
losófico ou cientista), essa interpretação se reduz a um
esquema análogo. Há, de um lado, um conhecimento
exato por natureza, que é dado, desta vez, não por um
modo de conhecer, mas em um modo de ser que espera,
além disso, as boas vontades capazes de atualizá-la. A
diferença existente entre uma e outra interpretações li­
mita-se à natureza desse saber: o objetivismo admite o
valor incondicionado do conceito ou das ciências — con­
forme se inspire no hegelianismo de esquerda ou no po­
sitivismo — , o “ subjetivismo de classe” recebendo, por
seu turno, o absoluto do sentimento da existência. Em
ambos os casos, trata-se de aplicar uma revelação, de
propor um ideal, confiando ao homem ciente, informa­
do ou de boa vontade, o cuidado de completar a tarefa
inconclusa do demiurgo.
É impossível realizar efetivamente a filosofia sem
suprimi-la, isto é, sem fazer incidir, em primeiro lugar,
uma dúvida radical sobre o próprio alcance do saber tal
como é definido pelo filósofo e tal como se degrada na
perspectiva positivista. Todavia, a idéia de supressão ou
de negação da filosofia não deixa de envolver, por sua
vez, ambigüidades. Facilmente se passa da recusa de sua
solução filosófica à invalidação dos problemas propos­
tos pela filosofia. Se for verificado que a satisfação pro­
curada pelo filósofo só é alcançada em idéias, é porque,
talvez, o projeto de propiciar a satisfação é absurdo.

27 Lições sobre a filosofia da História, p. 21.

164
Assim sendo, a supressão da filosofia significaria que,
no “ êxito” da filosofia — a obra hegelina — e em seu
malogro histórico — salientado pelo movimento crítico
— revela-se racionalmente, para o homem, a inviabilida­
de do direito à satisfação; a história da filosofia teria
mostrado que é frívolo e ingênuo reivindicar o conten­
tamento empírico, mesmo quando aquilo que demonstra
sua capacidade de satisfazer não contenta efetivamen­
te e deixa o homem na mesma situação de infelicidade
e de alienação. Além da dúvida sobre a vontade filosó­
fica, seria posta em questão a preocupação com a satis­
fação, desejo ingênuo da humanidade presa da aliena­
ção que não compreende que esse é o seu destino e que
deve viver na infelicidade que lhe foi reservada. A am­
bição de suprimir a alteridade, de assegurar a plenitu­
de do pensar só se efetua no discurso, nas frases e pelas
frases: aquém (e além), há o indivíduo esmagado pela
finitude: a história seria, nessa perspectiva, a história de
uma grandiosa aberração. Não é esta a oportunidade de
salientar a incerteza de semelhante atitude que, aliás,
já encontramos em suas linhas gerais no capítulo ante­
rior. Trata-se, no caso, seguramente, de uma negação
não-dialética do exercício da filosofia que, verificando o
malogro desse exercício, afirma o absurdo da problemá­
tica que está na sua origem. A crítica é radical, mas
abstrata, pois não explica a existência da filosofia, a não
ser apontando-a como resultado de um erro.
Essa decisão de suprimir a filosofia pode também
consistir na retomada e no aprofundamento das atitu­
des tradicionais da antifilosofia. Não se negará, então,
que a satisfação possa ser alcançada pelo indivíduo:
mas, no “ malogro” do hegelianismo ver-se-á a prova de
que a satisfação não poderia ter os caracteres que lhe
eram atribuídos pela filosofia. Para esta, só é efetiva a
satisfação universal, calcada no reconhecimento de ca­
da um por todos; ora, a ordem humana que permitiria
semelhante reconhecimento é apenas ideal; constitui uma
espécie de voto piedoso. Assim sendo, é preciso resolver-
se a compreender a satisfação como o produto da sor-

165
te, do trabalho ou da vontade individual: alguns indiví­
duos a alcançam, outros não o conseguem, tal é a “ li­
ção da história” . A reflexão, no que lhe diz respeito, tem
como única tarefa determinar em que condições e por
que processos os interesses de tal indivíduo poderão “ ter
êxito” e dar ao “ interessado” o contestamento que, sin­
gularmente, ele procura. A discussão sobre os fins da hu­
manidade é absurda, porque vã e estéril; é mantida por
aqueles cujos medíocres interesses e débeis paixões in­
timidam; o único problema que se apresenta — e não
está provado que se apresente necessariamente pois, nes­
se domínio, é admissível que a espontaneidade apaixona­
da seja melhor juiz — é o da escolha dos meios de obter
os valores presentes nos próprios indivíduos e que variam
de acordo com cada um. Suprimir a filosofia é perceber
não a impossibilidade da satisfação, mas a inanidade
da ambição de definir e proporcionar a satisfação uni­
versal. Essa “ refutação” da filosofia situa-se, também,
na perspectiva de uma negação abstrata que, como tal,
é suscetível, em tese, de ser retomada a propósito de ca­
da sistema filosófico, mas que, por outro lado, é incapaz
de provar que constitui a superação real da filosofia.
Tal superação — para ser uma verdadeira Aufhe-
bung — deve atender a uma série de exigências aparen­
temente opostas. Se a operação que consiste em superar
a filosofia tem sentido e pode promover um modo de
pensar e de agir absolutamente original, deve, antes de
mais nada, ser capaz de trazer efetivamente — deven­
do ser determinada a natureza dessa efetividade — uma
satisfação empírica (poderemos dizer doravante: real,
pois fica excluído o risco de confusão com a “realidade” ,
tal como Hegel a definia) e universal; em outros termos,
deve assinalar e promover — o sentido da conjunção de­
vendo também ser determinado — uma ordem humana
na qual o indivíduo, em seu ser-empírico, possa ser sa­
tisfeito de modo duradouro, na qual se instaure um li­
vre reconhecimento de cada um por todos, no nível da
própria empiria. Trata-se, realmente, como o desejava
o movimento crítico, de fazer existir hic et nunc a ra­

166
cionalidade e de manter, na perspectiva tradicional da
filosofia, a idéia de vima satisfação universal. Todavia,
contrariamente à ótica jovem-hegeliana e com a preo­
cupação, recebida de Hegel, de banir toda metafísica e
todo moralismo, importa apresentar a teoria científica,
não como apreennsão de um ideal, mas como inspeção
fiel do real, e, a prática que lhe corresponde, não como
decisão subjetiva da vontade, mas como força objetiva
agindo concretamente. Convém pois recusar duplamen­
te o idealismo: contestando que uma satisfação reduzi­
da ao contentamento do Pensamento, que apreende no
Saber absoluto seu infinito poder, seja suficiente, e re­
jeitando a concepção segundo a qual a missão da ciên­
cia seria determinar um dever-ser, entregue, aliás, pela
sua realização, à contingência: coragem dos indivíduos
ou acaso do vir-a^ser. A superação efetiva da filosofia
reduz-se assim a elaborar, com o hegelianismo de esquer­
da, uma filosofia da prática e, contra ele, a compreen­
der essa “ teoria da ação” como visão racional de uma
ação já existente.
É necessário insistir, desde já, no duplo aspecto des­
sa luta contra o idealismo: este, tomado em sua gene­
ralidade, deve ser considerado como êxito da filosofia.
Mais precisamente, se mantivermos a problemática que
está na origem da decisão de filosofar e o modo pelo
qual o filósofo quer resolver essa problemática, o idea­
lismo, — quer dizer, a doutrina segundo a qual o Ser
(essencial ou considerado na totalidade de suas deter­
minações) se reduz (imediata ou finalmente) ao Pen­
samento (ou ao pensar) — constitui a única maneira
conveniente de responder. Todavia, e os parênteses que
fomos obrigados a abrir são disso um sinal, é claro, à luz
das análises precedentes, que essa redução se efetua em
duas direções diferentes: é possível, de um lado, mostrar
que o dado empírico é apenas um falso-ser, que o Ser ver­
dadeiro está alhures e já possui todas as dimensões do
Pensamento; é o idealismo de estilo platônico que, no en­
tanto, é compelido a propor a si mesmo o problema da
satisfação aqui neste mundo, porque essa questão se

167
acha implícita na própria vontade filosófica e que se
contenta em opor à confusão da existência quotidiana
a pura imagem de uma Cidade onde triunfa a ordem e
onde reina a satisfação. Combater semelhante perspec­
tiva, é mostrar a insuficiência dessas descrições do Esta­
do ideal que simulam esquecer que este foi elaborado e
construído a partir do dado empírico e contam para mo­
dificar a empiria com as convicções que podem nascer
da apresentação do que deveria ser; é, com Hegel, er­
guer-se contra a pretensão da filosofia a ensinar. Mas,
por outro lado, o idealismo, aprofundando sua ótica e
empenhando-se em superar essa dificuldade, pode recu­
sar o divórcio do Ser (empírico) e do ideal, e conceber-
o logos como expressão daquilo que é ou como Ser sa­
bendo-se a si mesmo. O que importará, então, denunciar,
é o caráter ilusório da satisfação proporcionada pelo
exercício da filosofia, a insuficiência dessa atitude que,
para chegar a pensar a vida, chega a reduzir a vida ao
pensamento da vida, e, ao mesmo tempo, à vida do pen­
samento. Condenar a utopia sem absolver o presente,
exigir a realização de um mundo racional sem apoiar-
se em um ser ideal, tal é a dupla, tarefa que deve ser si­
multaneamente assumida por uma verdadeira supera­
ção da filosofia.
Isso significa que esse modo original do pensar deve
ser capaz, teórica e praticamente, na esfera da demons­
tração e na da construção real, de assinalar nos fatos
empíricos, de acordo com as circunstâncias próprias, isto
é, nos acontecimentos, como a satisfação empírica é em­
piricamente possível e realizável, de mostrar que o re­
conhecimento de cada um por todos não é nem um voto
legítimo e inacessível (uma “ tarefa infinita” ), nem uma
realidade que para existir precisa de uma chance ou
da convicção de alguns, mas um problema efetivo que o
homem se propõe e propõe, além disso, de modo claro
no momento em que as forças reais são dadas para que
sua solução advenha. Em outros termos, trata-se de con­
jurar o idealismo utópico apoiando-se — no estilo he-
geliano — na descrição daquilo que é; e de conjurar o

168
racionalismo por demais satisfeito, compreendendo a sa­
tisfação como satisfação empírica. É claro, além disso,
que tal maneira de conceber a tarefa do pensar exige
que se possa mostrar também não só porque a antifilo-
sofia tradicional não pode ser aceita — a esse respeito,
a filosofia acumulou argumentos importantes — , mas
também porque pôde nascer a exigência da filosofia. De­
verá mostrar por que razão (talvez se trate de mostrar
como?) a problemática filosófica apareceu, por que ra­
zão se revelou decisiva e por que razão a filosofia foi in­
capaz de resolvê-la. Somente realizando essa tarefa é
que provará — ao ver do próprio filósofo — que não é
negação abstrata, mas “ sublimação” . E essa obrigação,
cuja importância histórica é, ao que parece, hoje em dia,
considerável, não é a mais fácil de realizar.
Todavia, apresentando assim a operação de supera­
ção, como realização, supressão e “sublimação” da filo­
sofia, quer dizer, do idealismo, corre-se constantemente
o risco de retornar às perspectivas de conjunto daquilo
que se pretende superar. Trata-se, para que a operação
tenha alcance, de encontrar o conteúdo graças ao qual
essa exigência, expressa até agora de maneira formal,
possa tornar-se vontade efetiva. De fato, a descoberta
desse conteúdo constitui a “refutação” real do exercício
da filosofia. A libertação trazida pela filosofia é inicial­
mente a do logos; é, ao mesmo tempo, libertação pelo
logos; tentamos mostrar que era libertação no logos.
Ora, o filósofo julga que, quando sua empresa é bem su­
cedida, isto é, quando consegue elaborar o discurso que
faz desaparecer, no próprio discurso, o outro, diferente
do discurso e do Pensamento, o homem alcança a sa­
tisfação. Que a satisfação consista na supressão da al-
teridade, que o homem pleno seja aquele que venceu a
alienação e que experimenta sua liberdade no fato de
existir como ser não-limitado, parece que a filosofia
acumulou a esse respeito argumentos decisivos; que o
fim do homem seja a satisfação e, precisamente, essa
satisfação, isso também parece incontestável. Em outros
termos, o problema proposto pela filosofia e a solução

169
que procura são, na realidade, o problema proposto e a
solução procurada pelo homem. Todavia, o filósofo dá
uma resposta que não convém ao homem. É preciso,
pois, que o filósofo, que reconheceu a satisfação como
problemática essencial da humanidade, engane-se em re­
lação ao próprio ser do homem. Nunca deixou, por cau­
sas e razões que será preciso esclarecer, de considerar
o homem como 'pensamento, como logos. Nesse sentido,
e na medida em que admite essa postulação, seu êxito
está no sistema hegeliano e nas doutrinas que retomam
o hegelianismo, embora, em certos pontos, e por moti­
vos técnicos, o modifiquem. Não se trata de acusar um
filósofo, nem mesmo a decisão filosófica originária: é
preciso por em questão essa redução arbitrária do ho­
mem ao pensamento, à forma elaborada do pensamento,
ao logos. Essa contestação é por si mesma uma supera­
ção: se a filosofia teve êxito sem por isso constituir o
êxito efetivo do homem, é porque é êxito do homem fi­
losófico, e não do indivíduo humano tal como existe em­
piricamente. Assim como a ciência econômica cria o
furnio-oeconomicos que é uma abstração do homem
real, assim também a filosofia engendra um homo-
philosophicus, que representa apenas um aspecto da
realidade humana, o aspecto mais elevado, o mais “ hu­
mano” talvez, mas que permanece parcial. Que o ho­
mem seja pensamento, que procure ser, enquanto pen­
samento, satisfeito, isso é muito claro. Mas, será ape­
nas isso? Não mostra, sua existência histórica, que o
contentamento que é capaz de alcançar, enquanto pre­
tende ser apenas pensamento, não poderia ser dura­
douro e universalizável? Compreendendo o homem co­
mo o ser capaz de falar racionalmente e que se esfor­
ça em fazê-lo, o filósofo diz, sem dúvida, o que distin­
gue o ser-humano do ser-animal: mas essa definição
diferencial não revela tudo o que é o homem: pela
preocupação em bem delimitar a diferença específica —
a forma — , silencia sobre o gênero — a matéria.
A constituição do homo-philosophicus, que surgiu
como tentamos mostrar no capítulo precedente, em

170
determinada época, correspondia a certas exigências, e
pesou consideravelmente no desenvolvimento do pensa­
mento filosófico, dando-lhe por assim dizer seu estilo,
quaisquer que tenham sido as solicitações para sair desse
quadro por demais estreito, oriundas do vir-a-ser-real ou
de outras “ disciplinas” . Os sociólogos falariam em um
fenômeno de sobrevivência; será preciso indagar sobre
sua possibilidade histórica. Por enquanto, deve-se ten­
tar, aquém das causas, descobrir as razões dessa “ natu­
reza” da realidade humana tal como a filosofia a apreen­
de. Parece que a situação grega permite compreender
o processo dessa constituição. A diversidade das doxas,
como vimos, é o sinal dos antagonismos humanos indi­
viduais e coletivos, a oposição dos conteúdos dessas doxas
é a expressão da contradição dos interesses. O discurso
de opinião — por sua confusão e disparidade — revela,
sobre a Ágora e o Senado (Boule), a existência de um
conflito permanente que se resolve, como se verifica pela
história da Cidade, mediante a violência, uma violência
que destrói o vínculo social e impede de querer uma sa­
tisfação universal. O filósofo esforça-se em salvar a Ci­
dade, apresentando o quadro estável de uma vida huma­
na feliz: elabora o discurso que seja razão e superação
das doxoi; considera-se satisfeito desde o momento em
que realiza semelhante discurso, que vença os argumen­
tos da opinião e, vencido, seja ainda triunfante como
discurso. A empresa, pois o problema que visa resolver
se apresenta no nível da linguagem, situa-se toda na
linguagem: o que é oculto, ou revelado pela linguagem,
é logo esquecido. Pois, na realidade de fato, trata-se de
interesses reais, o fundo da doxa é a paixão: a de Alei*
bíades que queria dominar, a de Crítias procurando con­
fusamente a grandeza dos tempos arcaicos e a de Anitos
que, discípulo ingênuo de Aristófanes, sonha com os “ bons
tempos” e com as virtudes cívicas e religiosas de seus
avós. Nenhuma solução situada na esfera dos interes­
ses é, no entanto, capaz de triunfar; então, o filósofo,
que pôde pensar o universal, que soube superar a pai­
xão e avaliar os interesses, define a única resposta con-

171
cebível nessa perspectiva histórica limitada: a que conta
com o poder do discurso lógico coerente para reconciliar
os indivíduos e os grupos mutuamente. Muito cedo, sem
dúvida, essa coerência “ lógica” revela insuficiência: o fi­
lósofo esforça-se em dai*-lhe todo o peso do Ser, tenta
fundá-lo. Mas, no momento mesmo em que sua deter­
minação parece mais próxima dos “ fatos” , conserva a
pressuposição original, a de uma solução que, revelada
na esfera do logos, apresenta, ao mesmo tempo, implí­
cita e efetivamente, o homem como ser lógico, como
realidade cuja essência é o pensar (ou o falar — o que
dá na m esm a). Se há uma revolução hegeliana — e
esperamos ter mostrado nas páginas anteriores a impor­
tância que lhe atribuímos — é menos porque o sistema
pretenda atingir a sofia do que, visto pretendê-lo, revela
a essência do exercício da filosofia.
A verdadeira superação — exigida pelo propósito de
realizar a aspiração da filosofia e que é também a preo­
cupação profunda do homem — consiste inicialmente em
retornar a essa origem e em compreendê-la à luz preci­
samente da interpretação que dela Hegel nos apresenta.
Trata-se, com efeito, de reencontrar a problemática pro­
funda a partir da qual se ergue a vontade filosófica .ie
apreender o conflito dos interesses como o horizonte no
seio do qual se desenha necessariamente o problema da
satisfação: trata-se de retornar ao homem-empírico2S.
O logos filosófico só abstratamente superava a doxa:
substituiu o homem-apaixonado pelo homem-racionai; e
isso mesmo em Hegel e embora o autor da Fenomeno-

28 “ Essa maneira de considerar não está isenta de pressupostos. Par­


te de pressupostos reais e não os abandona um só instante. Os pres­
supostos são os homens, não os homens acabados e fixados de m odo
im aginário qualquer, mas os homens em seu real processo de desen­
volvim ento, fazendo-se cm condições determinadas, e empiricamente
o b serváveis.. . A í onde cessa a especulação, na vida real, começa pois
a ciência real, positiva, a representação da atividade prática, do proces­
so de desenvolvimento prático do h o m e m ... Pela representação da
realidade, a filosofia independente perde seu m eio de existência” . Itleo-
iogia Alemã, idem, pp. 158-159.

172
logia do Espírito tenha feito da paixão o material da
Razão. Importa superar efetivamente a doxa situan­
do-se em seu terreno, compreendendo o indivíduo como
paixão, reconhecendo-o, fundamentalmente, como ele­
mento da natureza, substituindo à visão do homem ló­
gico, a do homem “ antropológico” , o caráter pleonástico
da expressão indicando um retorno ao terreno da expe­
riência não-falsificada. A operação Aufhebung só pode
ganhar sentido nessa perspectiva: esse sentido, aliás, é
a filosofia, em seu malogro, que o revela. Essa desco­
berta não teria sido possível — fora das causas histó­
ricas que a explicam — , se, na “ ordem das razões” , as
múltiplas implicações da filosofia não tivessem sido de­
senvolvidas, se não tivesse sido levada ao extremo limi­
te a procura da satisfação no e pelo logos. Porque, por
mais fundamental que seja a realidade empírica, resta
que o homem é pensamento, fala com outros homens e
que é isso que o distingue.
O hegelianismo de esquerda, aliás, havia percebido
esse aspecto do problema quando se empenhava em cri­
ticar a religião e em marcar sua oposição à filosofia.
Seu propósito, fora dos objetivos políticos precisos que
buscava, era denunciar a ilusão de uma satisfação hu­
mana universal que negligenciasse o ser-empírico do ho­
mem e combater a substituição ilegítima da existência
real pela comunidade espiritual. Aprofundando a aná­
lise, Feuerbach (que rompia com os hábitos de simples
polêmica do movimento) havia mostrado que o homem
da religião, o homem reduzido à espiritualidade, ao pen­
samento puro, é, no conteúdo mesmo que lhe conferem,
a transposição idealizada do homem existente e que os
temas religiosos são, em seu pormenor, caricaturas do
dado empírico que se pode então “ esquecer” de consi­
derar. Tratava-se, em suma, de mostrar que o “ homem
verdadeiro” da religião é não só um ser imaginário, mas
também o resultado de uma projeção reveladora daquilo
do que é projeção. Mas, ao que parece, em Bauer e
Riige, como em Feuerbach, a filosofia era oposta à reli­
gião como órgão da verdade ao instrumento do erro.

173
De fato, parece que a religião limita-se a exprimir inge­
nuamente aquilo que a filosofia pressupõe em seu estilo
tradicional29: a essencialidade do homem como pensa­
mento, apenas. Ao denunciar-se o malogro da religião,
deve ser denunciada a insuficiência da filosofia que se
contenta em substituir a satisfação “ real” , no além, por
uma satisfação aqui, mas em pensamento.
Foi, portanto, ao preço de uma revolução — mais
radical do que a operada por Hegel, pois recusa o pres­
suposto constante da filosofia — a retomada do proble­
ma que se encontrava na origem da vontade filosófica
e que ela não soube e não pôde resolver. Expresso sim­
plesmente, o conteúdo dessa revolução pode parecer
exíguo. Na realidade, de que se trata? De retornar ao
homem empírico, às questões apresentadas pela passi­
vidade humana, pelo conflito dos interesses, pela vio­
lência. Não será uma regressão às atitudes defendidas
pelos chamados técnicos da existência quotidiana? Sim,
se esse modo original do pensar — de que Marx e Engels
foram os iniciadores — se achasse situado simplesmente
na perspectiva da antropologia: o que quer ser, é uma
Aufhebung da filosofia que leva em conta os resultados
adquiridos pelos filósofos e, em particular, os trazidos
pela doutrina mais bem sucedida: as descobertas hege-
lianas. E, mais precisamente, vima dimensão que deve­
rá ser integrada nessa nova ciência: a do homem consi­
derado em suá universalidade como ser histórico e so­
cial, da existência humana compreendida como produto
e como fonte do devenir, da satisfação para o homem en­
tendida como satisfação procurada, conquistada ou man­
tida no seio de uma comunidade humana. Será preciso,
depois, esforçar-se em justificar semelhante dimensão:
nós a evocamos simplesmente para mostrar o que deve
ser a “ sublimação” efetiva da filosofia: consiste em uma

29 C f. Ideologia Alemã, idem, pp. 150-151.

174
reposição geral do “ sistema” da filosofia “ sobre seus
pés” — de acordo com uma fórmula célebre que foi in­
terpretada tantas vezes de modo infeliz como retorno a
qualquer “ ingenuidade materialista” .
Vemos aqui o que significa inicialmente o materia­
lismo: constitui-se como tal, em 'primeiro lugar, como
recusa de toda solução ideal (hegeliana) ao problema da
satisfação. Apóia-se, a princípio, no fato de que os dis­
cursos filosóficos, por mais importantes e admiráveis
que sejam, não conseguiram, embora tenham consegui­
do converter indivíduos e sabido exprimir sua época,
proporcionar o que, por vocação, por assim dizer, pre­
tendiam, a satisfação universal real: esses discursos de­
finiram a satisfação e seus requisitos, mas sempre se
encontraram, finalmente, em uma situação de inferiori­
dade em relação aos seus adversários que mostravam que
a satisfação ou é uma palavra sem conteúdo efetivo ou
bem o produto do acaso ou da habilidade individual. A
satisfação para permanecer verdadeiramente satisfação,
deve ser universal e empírica ou, se preferirem, mate­
rial: não é apenas o homem reduzido ao pensamento —
à sua essência — , é também o homem considerado em
seu ser fundamental, como passividade, como produto
natural e social, como necessidade, homem na sua ma­
terialidade, que deve ser satisfeito. O problema apre­
sentado ao materialismo é de grande dificuldade: deve,
por um lado, manter a idéia capital do filósofo, a satis­
fação possível, a qual só é possível na medida em que é
universal (ou universalizável), em que implica o reco­
nhecimento de cada um por todos; deve, por outro lado,
recusar como fuga da empiria toda solução ilusória fun­
dada na idéia de que a satisfação em pensamento é di­
ferente de uma satisfação pensada. Trata-se, para ele,
em suma, de reconciliar, superando-as, as atitudes opos­
tas do Bom Senso e da filosofia.
Cálicles tem razão: Sócrates foi vencido e morto,

175
anunciando por sua morte o fim da formação política
na qual confiava. Cálicles está errado: o tirano que
apresenta como exemplo do êxito é infeliz. O materia­
lismo — aquele de que Marx e Engels abriram os cami­
nhos — deve partir dessa contradição e delinear a face
autêntica da felicidade concreta humana.

176
IV

O Caminho da Superação:
A Apreensão do Homem
em sua Realidade Empírica

T alvez sejanecessário fazer o inventário dos re­


sultados adquiridos, mesmo que seja apenas para veri­
ficar se temos o direito de falar em resultados. Pergun­
távamos qual deles, se o materialismo marxista ou o
antimaterialismo contemporâneo, em sua formulação
mais geral, podia reivindicar a verdade. O antimateria­
lismo, em sua crítica, invocava a impossibilidade em que
se encontra o marxismo de provar filosoficamente sua
legitimidade; a atitude assumida pelo materialismo em
face desse argumento havia obrigado — na medida em
que se havia suposto a seriedade de ambas as posições
— a examinar mais precisamente a idéia da prova.
Percebemos, em primeiro lugar, que essa idéia é carac­
terística do exercício da filosofia e que a vontade do
filósofo visa elaborar um discurso tão completamente

177
justificado que nenhuma contestação possa comportar,
e no qual cada um possa reconhecer o discurso verda­
deiro, aquele que, trazendo a propósito do real e do ho­
mem vima visão sensata e coerente, indique a maneira
de ser, de conduzir-se, de pensar (relações de disjunção,
de implicação ou de conjunção sendo estabelecidas entre
esses diversos termos de acordo com as doutrinas) que
permita ao homem ficar satisfeito ou contente. Tenta­
mos mostrar, em seguida, que essa questão da prova só
pode ser resolvida no momento em que é superada e
que convém, sem preocupação pela “ adequação do Pen­
samento e do Ser” , ou pelo método para evitar o erro e
descobrir a verdade, construir o discurso que, sendo em
seu conteúdo, e em sua ordem imanente, o sistema de
todos os discursos, seja, por definição, irrefutável. Ve­
rificamos que o hegelianismo, mesmo que, no pormenor,
pudesse conter incertezas, havia definido as condições
filosóficas de semelhante discurso, o qual, desde então,
devia poder proporcionar essa satisfação universal cuja
procura está na origem da decisão de filosofar. Ora, o
êxito da filosofia não parecia ser o êxito do homem. Foi
preciso, porque nos havíamos convencido, pela filosofia,
contra a antifilosofia tradicional, da importância dessa
noção de satisfação universal, por em questão o modo
pelo qual a compreendia a vontade filosófica: percebe­
mos que o filósofo, embora tenha tido inicialmente a
preocupação de fazer desaparecer o infortúnio da huma­
nidade empírica, jamais deixara de conceber o homem
como pensamento e que, preso pela lógica de sua von­
tade, (lógica cujas causas deveremos tentar definir) não
havia desejado finalmente senão promover a satisfação
do Pensamento. Seu êxito era o êxito do homem en­
quanto pensamento. Pareceu, pois, indispensável, para
melhor compreender a posição do marxismo, entendê-lo
como esforço para superar essa concepção limitada do
homem, para chegar ao homem empírico e definir as
condições teóricas e práticas de uma satisfação univer­
sal e empírica (ou r e a l).

178
É evidente que, nesse nível da análise, muitos pon­
tos permanecem obscuros. Devemos perguntar o que
acontece com essa noção da prova da qual reconhece­
mos toda a importância. Mesmo admitindo que a ên­
fase deva ser posta no que se chamou de homem-empí-
rico, resta que o homem fala e que o que diz a respeito
de si próprio deve ser justificado. Em outros termos,
nessa nova perspectiva, o problema da prova subsiste.
A própria idéia do homem empírico não é clara: nas pá­
ginas precedentes, nós a definimos negativamente, como
supressão dialética do homo-philosophicus; mas, perma­
nece constante o risco de que se trate de uma supressão
abstrata: importa precisar o que contém semelhante no­
ção. Será necessário, também, a esse propósito, voltar ao
conceito da satisfação até agora utilizado sem que sua
significação tenha sido bem determinada.
Esses diversos problemas são de extrema dificulda­
de: para poder enfocá-los em condições que permitam
apontar sua solução, pretendemos — pedindo que nos
perdoem essa facilidade — examinar de modo mais pre­
ciso o conteúdo da Aufhebung da filosofia numa esfera
determinada e particularmente favorável, a esfera po­
lítica. Esta, desempenhou papel histórico decisivo: e, a
seu propósito, Marx compreendeu a amplitude e a novi­
dade da tarefa que doravante se apresentava ao pensa­
mento . Sem pretender esgotar essa questão histórica das
relações entre a política hegeliana e a política marxista
— questão a propósito da qual numerosos e belos livros
foram escritos1 — , nós a tomaremos como ponto de
apoio para indicar o alcance e o sentido da passagem,

1 C f., em particular, as obras já citadas, de K . Lõw ith, A realização


da filosofia clássica por Hegel e sua dissolução em M arx e Kierkegaard ,
in Recherches philosophiques, 1934-1935, pp. 232-267; E. W e il, Hegel e
o estado; J. H yppolite, Marxismo e filosofia e A Concepção hegeliana
do estado e sua crítica por Marx, in Estudos sobre M arx e Hegel, pp.
107 ss. e G. Gurvitch, A sociologia do jovem M arx, Cahiers interna-
tionaux de Socciologie, vol IV , 1948, pp. 3 ss.

179
de concepção filosófica do homem, àquela da qual Marx
e Engels elaboraram os princípios.

A determinação da relação existente entre a ciência


filosófica, considerada em sua generalidade, e o pensa­
mento político, suscita difíceis problemas. É claro que a
filosofia política tem um objeto particular: o homem
enquanto age (ou deve agir) como elemento de uma so­
ciedade histórica e que, como tal, é uma “ parte” ou uma
aplicação do saber filosófico; parece, no entanto, que se
considerarmos a maior parte das grandes doutrinas,
constitui, de fato, não uma “ parte” que, a rigor, poderia
ser negligenciada, um acréscimo exterior e por assim di­
zer contingente, mas uma peça essencial, e muitas vezes
o coroamento, o desfecho do trabalho filosófico. Parece
mesmo que são necessárias circunstâncias excepcionais,
as que encontrou Descartes, por exemplo, para que o filó­
sofo possa legitimamente afastar-se do problema político.
A razão profunda de tal implicação é que — sem preten­
der esgotar semelhante questão cujas,modalidades histó­
ricas deveriam ser estudadas minuciosamente — o filósofo
visa trazer a satisfação universal e que esta, na maioria
dos casos, exige também, no mínimo, a solução dos proble­
mas apresentados pela organização da sociedade huma­
na. Hegel insistia no fato de que a Calípolis platônica
não era uma utopia, mas a solução (ideal, sem dúvida)
das dificuldades da Cidade grega no começo do século
IV; tentamos, em outro trabalho, mostrar até que ponto
essa preocupação histórica do platonismo influi no con­
junto da doutrina2. Estabelecendo que não se poderia
ser justo na cidade injusta e ligando, além disso, a idéia

2 O nascimento da História, Ensaio sobre a formação do pensamcn


to histórico na Grécia; cf., cm particular, o Cap. III.

180
de justiça à idéia de justeza do pensamento e da ação,
Platão colocava no centro da problemática filosófica a
questão “ particular” da ordem política. Desde então, os
filósofos não mais puderam negligenciar a reflexão sobre
a sociedade e o Estado; e foi preciso, devemos repetir,
que ocorressem as circunstâncias excepcionais do século
X V II francês para que um pensador importante tives­
se com razão a oportunidade de não enveredar nessa re­
flexão .
Na realidade, parece que o sistema hegeliano ilu­
mina de modo definitivo as relações da Ciência e da re­
flexão política. Salientando o vínculo necessário, exis­
tente entre a satisfação e o reconhecimento de cada um
por todos, mostra que a racionalidade só encontra sua
realização na comunidade humana refletida. No capí­
tulo precedente, consideramos, para simplificar, esse vín­
culo como ponto pacífico, julgando equivalentes a libe­
ração do homem no e pelo logos e a realização do Estado
racional. Na realidade, as coisas são mais complicadas:
o que o Saber demonstra — e é necessário para que essa
demonstração tenha um sentido que a realidade a ela
corresponda — , é que o homem só pode ser livre e satis­
feito se todos o forem ao mesmo tempo e se cada um
reconhecer a liberdade e a satisfação do outro como li­
berdade — isso é tranqüilo — e como satisfação — isso
não é tranqüilo — humanas. Em outros termos, a filo­
sofia só tem êxito quando a ordem racional da sociedade
é real. E trata-se ainda de saber em que consiste essa
ordem, sendo conveniente definir a idéia do Estado. O
Saber como tal é completo, mas exige, precisamente por­
que é completo, a determinação do que o homem quer
objetivamente. Em outras palavras, ainda, a ciência
mostra, sem possibilidade de contestação, que o “ objeto”
da vontade humana é o Estado racional e desvenda o
que visa o indivíduo ao querer semelhante objeto. A ta­
refa da reflexão política é elucidar a natureza desse
objeto, determinar a essência desse Estado objetivamente

181
desejado pelo homem (o que não significa: subjetiva­
mente procurado pelo indivíduo)3.
Não se trataria de acompanhar, no pormenor, a
descrição hegeliana do Estado racional-real, quer dizer,
da Idéia do Estado. Queríamos apenas discernir aqui o
tema geral da demonstração, apoiando-nos em estudos
relativos ao assunto. Se nos limitarmos ao problema
propriamente político — pondo entre parênteses, de mo­
do um tanto arbitrário a análise moral que o precede— ,
parece que o ponto de partida do pensamento político de
Hegel é o fato empírico do conflito (que já se encon­
trava na origem da reflexão platônica). A Sociedade
Civil, definida em primeiro lugar como “ sistema das ne­
cessidades” 4 na qual os indivíduos são pessoas privadas
que têm por fim seu interesse próprio, será, ao mesmo
tempo, o domínio da oposição, das contradições entre os
interesses dos indivíduos. Sem dúvida, na medida em
que cada um determina sua vontade e seu saber, em
função do sistema das necessidades de todos os indiví­
duos, visa a universalidade e procura uma ordem que
supera a particularidade de seu desejo e de seu poder.
Foi exatamente isso o que demonstraram os economis­
tas aos quais Hegel se refere de modo explícito: Smith,
Say e Ricardo5. “O objetivo da necessidade é a satisfa­
ção da particularidade subjetiva, mas o universal nela
se afirma na relação com a necessidade e com a vontade
dos outros” 0. E não só, essa universalidade de fato ma-

3 “ Assim, nosso tratado, apresentando a ciência do Estado, nada quer


apresentar senão um ensaio para conceber o Estado com o algo de
racional em si. É um escrito filosófico e nada está mais longe de suas
intenções do que construir um ideal de Estado tal com o deve ser. Se con­
tém uma lição, essa lição não se dirige ao Estado, ensina antes com o o
Estado, que é o universo moral, deve ser conhecido” . Princípios da fi­
losofia do direito, Prefácio, pp. 30-31.

4 Idem, § 189, p 157.

5 Idem.

6 Idem.

182
nifesta-se no nível da reflexão, na jurisdição que esta­
belece entre os indivíduos definindo a propriedade e a
“ relação recíproca das necessidades e do trabalho” 7 e
mostra a necessidade na lei conhecida e reconhecida por
todos. Assim também, a administração — a que Hegel
conhece e que existe como estrutura dos Estados adian­
tados da Europa — tem por missão ordenar, de acordo
com as circunstâncias, esse sistema de necessidades e as
corporações têm por encargo zelar pela honestidade
dessa organização.
Todavia, a Sociedade civil, se é livre engendra ne­
cessariamente “ caso se encontre conflito num estado de
atividade sem entraves” 8, o que ocorre quando a consi­
deramos como o todo da organização social, quando per­
manecemos nesse estágio analisado pela ciência econô­
mica liberal como sendo o fato irredutível do Estado.
Acentuando a divisão do trabalho, impede os indivíduos
de fruir da plenitude das habilidades humanas; desen­
volve “ a miséria e a dependência da classe presa ao tra­
balho (particular)” ; de outro lado, permite que “ o
acúmulo das riquezas aumente” 9. Cria-se, assim, uma
plebe que “ perde o sentimento do direito, da legitimi­
dade e da honra de existir por sua própria atividade e
seu próprio trabalho” 10; e, ao mesmo tempo, manifes­
ta-se “ maior facilidade de concentrar em poucas mãos
riquezas desproporcionadas” . É inútil supor que se pos­
sa exigir dessas “ riquezas” que mantenham “ a classe na
miséria” : isso seria “ contrário ao princípio da Sociedade
civil e ao sentimento individual da independência e da
honra” 11. Assim sendo, a Sociedade se acha impelida
“ para fora de si mesma” . E isso, em duplo sentido: de
um lado, enquanto permanece Sociedade civil, é levada

7 Idem, § 199, p. 161


8 Idem § 243, p. 183.
9 Idem.
10 Idem, § 244.
11 Idem, § 245, p. 184.

183
a procurar no exterior “ consumidores e meios de sub­
sistir em outros povos” 12; procura “ um novo mercado
para seu trabalho” 13 na colonização; mas, por outro
lado, tende a ultrapassar-se a si mesma num tipo de
organização mais profundamente refletido, capaz de re­
mediar esses conflitos e impedir que o. bem social se rea­
lize em detrimento dos indivíduos14.
E difícil não admirar a profundidade e a justeza
de tal reflexão que, embora datando de 1821, apresenta
em surpreendente resumo a essência do regime capita­
lista. O problema da sociedade burguesa é claramente
formulado e em termos de conflito: todavia, o Estado
tem por fim fazer desaparecer esse conflito, instituir
mediações tais que os erros da Sociedade Civil, defeitos
que é incapaz por si mesma de suprimir, deixem de cons­
tituir um perigo para os cidadãos. Trata-se, em suma e
esquematizando, de demonstrar que o Estado é a essên­
cia da sociedade humana e não como pensava a econo­
mia liberal, a Sociedade Civil, que não passa de mani­
festação, de maneira de aparecer do Estado15. E é essa
obrigação de remediar os vícios da ordem econômica que
explica, ao que parece, a complicação da ordem política
de que Hegel se faz o defensor. Trata-se de determinar
o Estado como “ necessidade externa e . . . poder mais
alto, à natureza do qual serão subordinadas as leis da
família (do direito privado) e os interesses da Sociedade
Civil” ; mas, também é conveniente que seja respeitada
a liberdade concreta e que “ a individualidade pessoal e
seus interesses particulares recebam pleno desenvolvi­
mento e o reconhecimento de seus direitos” 10. Tal é o
princípio dos Estados modernos, que têm “ esse poder e

12 Jdem, § 246.
13 Idem, § 248, p. 185.
14 Idem , § 249, p. 186.
15 “ O fim da corporação, que c limitado c finito, tem sua verdade
no fim universal em-si e por-si e em sua realidade a b s o lu ta ... a esfe­
ra da Sociedade civil conduz portanto ao Estado” . Idem, § 256, p. 189.
16 Idem, § 260, p. 195.

184
essa profundidade extremos de deixar o princípio da
subjetividade realizar-se até o extremo da particularida­
de pessoal autônoma e, ao mesmo tempo, de reduzi-lo à
unidade substancial e assim manter essa unidade nesse
mesmo princípio” 17. Percebe-se como a terceira seção
da terceira parte dos Princípios de Filosofia do Direito
esforça-se em fixar tecnicamente uma ordenação consti­
tucional que atenda a esses princípios: prevê, entre o
poder do príncipe, no qual se encarna o poder do Estado,
e as vontades particulares, uma hierarquia orgânica de
“ estados” em que são representados os interesses parciais
das coletividades: essas “ assembléias de ordem” , man­
tendo-se entre “ o governo em geral, e o povo disperso
em esferas e em indivíduos diferentes” 18, “ têm por mis­
são promover a existência do interesse geral não apenas
em si mas também por si, quer dizer, dar existência ao
elemento de liberdade subjetiva formal, a consciência
pública como universalidade empírica das opiniões e dos
pensamentos da massa” 19. Por sua mediação, “ o poder
do príncipe não aparece como vim extremo isolado nem,
conseqüentemente, como simples dominação nem como
bei prazer” ; do mesmo modo, os “ interesses particulares
das comunas, das corporações e dos indivíduos também
não se isolam” 20. Formam, por assim dizer, o movimento
ascendente que aproxima a Sociedade Civil do poder so­
berano, assim como a administração constitui o movi­
mento descendente graças ao qual a autoridade se ma­
nifesta na esfera das necessidades e dos interesses par­
ticulares .
De tal sorte, e atribuindo importância considerável
à “ classe universal” 21, a dos funcionários, Hegel pensa
poder afastar o perigo de conflito, implícito na própria

17 ldem.
18 Jdem, § 302, p. 234.
19 ldem, § 301, p. 233.
20 ldem, § 302, pp. 234-235.
21 ldem, § 303, p. 235.

185
Sociedade Civil. Deveremos insistir no sentido dessa so­
lução que visa manter a ordem interna da comunidade
humana refletida. Mas, mesmo admitindo que essa or­
ganização seja realmente a que convém, isso não signi­
fica que se estabeleça um reconhecimento universal e,
conseqüentemente, uma completa satisfação da huma­
nidade. Outro tipo de conflito subsiste: o que opõe os
Estados uns aos outros, conflito esse que, de certo modo,
já se acha indicado no nível da Sociedade Civil, quando
Hegel observa a exigência que se apresenta ao sistema
interno das necessidades, de conquistar mercados es­
trangeiros pela guerra ou pela colonização. Na oposi­
ção dos Estados uns aos outros, embora cada um deles
reconheça o outro como soberano, nenhum poder su­
perior é concebível que possa resolver as questões e de­
cidir da legitimidade desta ou daquela vontade, pois é
da essência do Estado, de cada Estado, ser soberana­
mente autônomo. Ora, “ em suas relações uns com os
outros, os Estados se comportam como particulares. Em
conseqüência, é o jogo mais móvel da particularidade
interna, dos interesses, dos fins, dos talentos, das vir­
tudes, da violência, da injustiça e do vício, da contin­
gência exterior elevada à mais alta potência que possa
assumir esse fenômeno. É um jogo em que o próprio or­
ganismo moral, a independência do Estado, estão expos­
tos ao acaso” 22. Em tal jogo, que se assemelha a essa
partida cruel em que se defrontam os interesses indivi­
duais no seio da Sociedade Civil, a única solução é a
guerra: “ o fim da conduta em relação aos outros Estados
e o princípio da justiça das guerras e dos tratados não
é um pensamento universal (filantrópico), mas a rea­
lidade do bem-estar diminuído ou ameaçado em sua par­
ticularidade definida” 23.
O conflito interior dos Estados, que só pode ser re­
gulado por uma constituição adequada, repercute, pois,

22 Idem, § 340, p. 255.


23 Idem, § 337, p. 254.

186
por assim dizer, na escala da humanidade inteira, atra­
vés do conflito entre os Estados. A oposição subsiste e
isso mostra que, segundo Hegel, a humanidade ainda
não está, de modo algum, reconciliada consigo mesma -*.
A Ciência mostrou que essa reconciliação, por meio da
qual foi possível estabelecer a essência do Estado real e
a relação que entretém essencialmente com o ser político
do homem, é doravante conhecida; e, se é absurdo fazer
conjecturas sobre a natureza dos sentimentos do indi­
víduo pertencente ao Estado racional-real, este, no en­
tanto, é claramente concebido. A história promoverá sua
realização empírica, mas nada acrescentará ao seu con­
ceito. Essa frase que acabamos de escrever, no futuro,
deixa entender — e é esse, ao que parece — o pensa­
mento de Hegel — que o devenir deve dar à luz essa épo­
ca em que a satisfação não seja apenas universalmente
concebida, mas se apresente também como efetiva. Os
Princípios da Filosofia do Direito concluem com um re­
torno à Filosofia da história e não é por acaso que o
parágrafo 314, que resume os princípios da Filosofia da
história, vem logo em seguida a um parágrafo que sa­
lienta a “ contingência” — dir-se-ia atualmente: o absur­
do — dos conflitos históricos entre os Estados. Verifi­
ca-se, de fato, que Hegel supõe, e não se trata de mera
hipótese, mas da maneira filosófica de conceber o real,
que a concepção, apenas, da natureza profunda do con­
flito existente entre os homens e pelos homens é o sinal
e a prova de que esse conflito já está superado, a ca­
minho de solução histórica; parece, na perspectiva do
que se poderia chamar de modéstia hegeliana, ser ne­
cessário que o devenir já tenha esboçado suficientemente
o processo que deve levar à satisfação, o reconhecimento
de cada um por todos, para que um pensador tenha a
possibilidade de desenvolver de modo racional estas no­

24 Retomamos, aqui, a tese admiravelmente defendida por E . W e il


op. cit., que pode ser resumida nesta última frase do cap. IV , p. 71:
“ A teoria hegeliana do Estado é correta porque analisa corretamente
o Estado real de sua época e da nossa” .

187
ções: “ o pensamento do mundo. . . só aparece quando a
realidade realizou e concluiu seu processo de forma­
ção” 25.
Parece, como estamos vendo, que as discussões sobre
o caráter “ reacionário” ou “ progressista” da política he-
geliana, sobre o “ empirismo” (de direita) ou sobre o
“ utopismo” (de direita ou de esquerda) de Hegel, são,
enquanto discussões de história da filosofia, estranhas.
É claro que o autor da Filosofia do Direito não visa jus­
tificar, pura e simplesmente, o regimen de Frederico-
Guilherme tal como se apresenta em 1821 (e muito me­
nos o de Frederico-Guilherme IV a partir de 1840, ao
qual se faz referência a maior parte das vezes): por que,
se o quisesse, apresentaria, com abundância de porme­
nores técnicos, uma “ constituição” sensivelmente dife­
rente da que vigorava na Prússia, nessa época? A apo­
logia que faz, precisamente para esse tempo, da monar­
quia constitucional é uma tomada de posição liberal. A
própria defesa da idéia de Constituição, à qual se dedica,
é o sinal de que desaprova a noção de um direito divino
do soberano. Hegel esforça-se em conceber o sistema
político que julga convir à sua época: tenta pensar a
realidade política de seu tempo e levá-la à racionalidade
de que é capaz. Isso equivale a dizer que sua posição
não é revolucionária, no sentido tradicional do termo;
vê que os Estados empíricos de sua época, a França na-
poleônica inicialmente, e a Prússia em seguida, consti­
tuem a realidade a partir da qual se assinala a idéia do
Estado. A Prússia não é o Estado racional: nela se obser­
va, no entanto, o que é o Estado moderno, ao que tende
e o que não pode deixar, com exclusão da Prússia pre­
cisamente, de realizar o vir-a-ser: o Estado universal no
qual a oposição desaparece e onde a satisfação no reco­
nhecimento de cada um por todos é possível.
Ê nesse nível que a “ refutação” do hegelianismo tem
sentido. A crítica que se tem o direito de fazer ao siste-

25 Princípios da filosofia do direito, Prefácio, p. 32.

188
ma, não é por encarar o problema político em determi­
nada ótica que teria sido escolhida pelo autor sob a in­
fluência de alguma paixão, mas de apresentar o proble­
ma em termos tais que só pode receber uma solução
ideal, uma solução do pensamento e para o pensamento.
Na verdade, a saída proposta por Hegel, uma ordem de
Estado na qual o conflito essencial à Sociedade Civil
não envolve mais oposições no interior da comunidade
refletida e uma ordem da história pela qual se constitui
o Estado universal, é realmente a desejada pelo indiví­
duo desde o momento em que sabe o que quer realmen­
te . Mas, isso equivale a supor que o fato de saber o que
se quer é “ livre” , que esse fato é o resultado de uma
orientação adequada do pensamento ou de uma boa edu­
cação (pela filosofia ou pelo rei que se tornou filósofo);
é supor que o homem, que o indivíduo, é pensamento
livre em potência e que deve simplesmente transformar-
se no que já é sem o saber. Em suma, Hegel afasta efi­
cazmente o utopismo platônico, substituindo à análise
do conteúdo ideal do querer a do seu conteúdo real: re­
velou o que o indivíduo efetivamente procura desde o
momento em que visa uma satisfação humana. Admi­
tiu, porém, como ponto pacífico, o fato de que a satis­
fação deve surgir dessa revelação: supôs que o homem
encontrava-se sempre em condições de querer uma cons­
tituição racional — e desde o instante em que lhe mos­
trarem o que é essa constituição — e o Estado univer­
sal — na medida em que é apresentado como “ sentido da
história” . Levando em conta a paixão no modo de for­
mular o problema, de certo modo a esqueceu na solução.
E por isso, com certa razão, seus discípulos “ de esquer­
da” pretenderam utilizar a paixão, a “ convicção políti­
ca” , a “ coragem” para realizar a Razão.
Para tornar mais clara essa “ insuficiência” do hege-
lianismo, devemos perguntar o que mostra a experiência
histórica, “ tribunal do mundo” . Devemos insistir no fa­
to — recentemente salientado, com razão — que o

26 E. W eil, op. cit., e a análise proposta na Filosofia política.

189
vir-a-ser do Estado moderno de modo algum invalida as
perspectivas estritamente políticas de Hegel: é evidente
que o poder sobsrano racional, quer dizer previdente,
interfere constantemente no governo das nações evoluí­
das a fim de dirimir os conflitos da Sociedade Civil; é
claro também que, na idéia refletida do Estado, está im­
plícita a idéia de equilíbrio dos interesses das diversas
coletividades, que organismos múltiplos delas represen­
tativos são convocados em testemunho pelo governo, que
a administração desempenha papel considerável na or­
ganização da comunidade; que a noção de um Estado
universal ou, ao menos, de uma jurisdição mundial capaz
de resolver as pendências entre os Estados considerados
em sua particularidade, está presente no espírito de to­
dos os políticos contemporâneos. Nesse sentido, a des­
crição hegeliana é “ bem sucedida” : apreendeu correta­
mente a essência do Estado moderno. Mas, — e esse é
o fato decisivo — , nem por isso a satisfação universal é
empiricamente real; no interior dos Estados, a alienação
não desapareceu e a “ previdência” do soberano não su­
primiu o conflito de classes (da “ plebe” e da “ riqueza” ) ;
a colonização, permitindo, em certos casos, “ o retorno ao
princípio familiar” -7 para o povo colonizador, provocou
graves atentados a esse mesmo princípio nos povos colo­
nizados; a conquista dos mercados estrangeiros, dese­
jada pela Sociedade Civil, continua a fazer-se pelas guer­
ras qúe ameaçam a vida e a dignidade das nações sem
que nenhum tribunal possa mostrar-se realmente eficaz.
Em outros termos, embora o programa político de Hegel
esteja, em parte, realizado, o programa filosófico do qual
a política é a objetivação, permanece sem efetivação. O
Estado racional não passa da supressão ideal dos con­
flitos que perturbam as comunidades e alienam o indi­
víduo; ele existe, levando em conta o descompasso entre
a realidade e a empiria e contrariamente ao que pensava

27 Princípios de filosofia do direito , § 248, p. 185.

190
o movimento crítico, mas só parcialmente cumpre sua
missão libertadora.
Assim, o Estado real definido por Hegel e realizado
em ampla medida no mundo contemporâneo é conside­
rado pelo filósofo como o Aufhebung do conflito dos in­
teresses: a superação das contradições econômicas se faz
pelo seu reflexo na esfera política. Essas contradições
não desaparecem; perdem sua poderosa periculosidade e
são reduzidas a simples diferenças; são consideradas por
Hegel como pertencentes necessariamente à Sociedade
Civil; assim sendo, a solução só pode consistir em uma
elevação da essência da comunidade a um nível supe­
rior no qual se introduzem as mediações indispensáveis.
Tal perspectiva implica duas dimensões: supõe, inicial­
mente, assim como acabamos de observar sumariamente,
que o indivíduo enquanto indivíduo é constantemente
capaz de conhecer e de querer o Estado como soberania
mediadora; não secusa sua previdência e que, em parti­
cular, não se insinuam na “ ciasse universal” dos fun­
cionários os representantes dos interesses privados, em­
penhados em favorecer esta ou aquela coletividade; se­
ria, pois, necessário que os indivíduos compreendessem
que suas decisões particulares só têm ensejo de realiza­
ção durável pelo medium do Estado, considerado como
essência objetiva da comunidade. Essa perspectiva su­
põe também que a reflexão da Sociedade Civil no Estado
é eficaz, que a Sociedade Civil se mostra simples mani­
festação do Estado e que as desordens que poderiam ser
observadas na Sociedade Civil apresentam-se como con­
tingências normais que não atingem o tranqüilo orde­
namento do Estado. Esclareçamos novamente: não se
trata de condições necessárias à existência do Estado
racional, mas de condições para que o Estado racional
promova a satisfação.
Ora, a realização do Estado racional não implica a
sátisfação real. É preciso, pois, que a análise hegeliana
peque de algum modo. Não, como já vimos, por ser utó­
pica; nem porque uma falta de oportunidade histórica
a impeça de provar sua capacidade; nem, enfim, por­

191
que o Estado descrito, só na aparência, seja racional.
A falha deve situar-se em outra parte. De acordo com o
que acabamos de observar, parece que a questão impor­
tante é a seguinte: como pode o indivíduo não querer o
que quer o soberano? Como subsiste o conflito não só
na Sociedade Civil, mas repercuta também na própria
esfera do Estado? Por que a paixão e o interesse con­
tinuam a suscitar contradições que acarretam a insa­
tisfação e a alienação dos homens no próprio seio da
ordem política moderna? A esses problemas, parece que
Marx, embora em texto apressado e incompleto, dá uma
resposta decisiva. A Crítica da Filosofia do Estado de
H egel 28 — redigida em 1841-42 — comenta, parágrafo
por parágrafo, os textos dedicados por Hegel à estrutura
da Constituição racional. O espírito que animava o he-
gelianismo de esquerda nela se encontra, com seu ardor
polêmico e suas insuficiências. Marx, nessa obra, ainda
não se revela de posse dos elementos fundamentais que
lhe permitirão elaborar sua perspectiva de conjunto.
Dedica, além disso, a pontos que hoje parecem muito
especiais, certos desenvolvimentos: assim, esforça-se em
mostrar o caráter arbitrário e, por assim dizer, passio­
nal do alcance que Hegel atribui à monarquia consti­
tucional hereditária na qual a soberania do Estado se
encarna em um indivíduo determinado pelas circuns­
tâncias e lugar de seu nascimento -9. Permitam-nos que
ponhamos entre parênteses muitos aspectos dessa crí­
tica, embora tenham importância na história da forma­
ção do pensamento marxista, para reter apenas, desses
textos, os elementos que já assinalam, nessa esfera par­
ticular e capital da política, a superação da maneira do
estilo filosófico.
Essa falha da análise hegeliana que se pretende pro­
curar, Marx a descobre na falsa relação estabelecida
pelos Princípios da filosofia do direito entre o Estado e a

28 Obras filosóficas , t. IV.


29 C f. o comentário do § 279, pp. 52 ss.

192
Sociedade Civil. A Critica — sem dúvida porque nessa
época Marx pensava poder refutar Hegel aplicando-se
apenas ao domínio político — incide apenas na Consti­
tuição e no Estado interno; visa revelar as obscuridades,
as contradições, o “ misticismo” do sistema político des­
crito por Hegel em uma série de anotaçõss também,
muitas vezes, obscuras e disparatadas. O sentido da re­
futação marxista parece, no entanto, muito claro: He­
gel, arrastado pelo seu “ panlogismo” n0, transformou o
sujeito real — ao mesmo tempo: o homem empírico, o
indivíduo, a Sociedade Civil e a família — em simples
manifestação do Estado, que erigiu em sujeito real, quer
dizer, em realidade substancial e em fim último da von­
tade humana; de tal sorte, falseou a relação efetiva exis­
tente entre os indivíduos, as “ coletividades” , de um la­
do, e a realidade constitucional, de outro. Não têm assim,
na perspectiva hegeliana, a Sociedade Civil e a Família,
nenhuma existência por e para elas mesmas: são ape­
nas o aspecto finito dessa realidade infinita: o Estado,
distribuindo seu “ material” , seu conteúdo de acordo com
a necessidade que lhe é própria: “ o fim de sua existên­
cia não é a própria existência” 31 mas alguma razão que
lhes é exterior; “ o fato empírico, em sua existência em-

30 “ N ã o é a filosofia do direito, mas a lógica que constitui o ver­


dadeiro interesse. O que constitui o trabalho filosófico, não é que
o pensamento se encarne em determinações políticas, mas que as
determinações políticas existentes sejam volatizadas em pensamentos
abstratos. O que constitui o elemento filosófico, não é a lógica da
coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não serve para provar o Esta­
do, é, ao contrário, o Estado que serve para provar a lógica” . Idem,
p. 42.

31 “ O fim de sua existência não é a própria existência, mas a idéia


senarada de si, essas pressuposições “ para sair de sua idealidade como
um espírito real infinito por si” , quer dizer, o Estado político não po­
de existir sem a base natural da fam ília e sem a base artificial da
Sociedade civil; são para ele uma condição sitie Qua non; mas a con*
dição é posta como o condicionado, o determinante com o o determi­
nado, o producente com o o produto de seu produto” , pp. 24-25.

193
pírica, tem uma significação diferente dele próprio” 32.
“ Hegel sempre faz, da idéia, o sujeito, e, do sujeito
r e a l... o predicado” 33: o ser-empírico — enquanto tal —
é por ele considerado desprovido de razão, de sentido,
enquanto não encontra no Estado essa necessidade que
lhe fa lta . Isso equivale a dizer que não existe ou só exis­
te como manifestação daquilo que não é e le 34.
Ora, na determinação do papel político dos Estados,
Hegel não pôde deixar de assinalar a oposição existente
entre o Estado e a Sociedade Civil. A Sociedade Civil,
por sua própria contingência, está referida ao Estado;
mas, como tal, deve estar presente (ou representada) no
Estado (caso contrário, não seria manifestação do Esta­
do) . Não é possível, porém, que, entre os representantes
da Sociedade Civil — os delegados das corporações —
e os do Estado — os funcionários — não se manifeste
uma oposição: “ assim como os burocratas são os dele­
gados do Estado junto à Sociedade Civil, os estados são
os delegados da Sociedade Civil junto ao Estado. São,
pois, sempre transações entre duas vontades opostas” 33.
Ora, é aí que aparece a insuficiência da conciliação que
Hegel se propunha efetuar: pelo fato de que a Sociedade
Civil só encontra sua verdade fora de si mesma, não tem
— como Sociedade Civil — estatuto político30; seus re­
presentantes só na aparência têm função política; de

32 Idem, p. 26.
33 “ O importante é que H egel faz sempre da idéia o sujeito, e do sujei­
to real, propriam ente dito, tal com o a disposição “ política” , o predi­
cado” , Idem, p. 29.
34 . .essa relação real, do Eslado com a Sociedade civil, com o
indivíduo, é anunciada pela especulação com o uma manifestação, um
fenômeno . . . A realidade não c expressa enquanto si mesma, mas en­
quanto uma realidade outra” , p. 22.
35 Idem, p. 139.
36 “ O elemento constituinte é a significação política do Estado privado,
do Estado não político, uma contradiclio in a d je cto ... O Estado pri­
vado fa z parte do ser da política desse Estado. C onfere a ele, conse­
qüentemente, uma significação política, quer dizer, uma significação di­
ferente de sua significação real” , p. 148.

194
fato, toda a administração da comunidade está reser­
vada aos funcionários, únicos que possuem, por defini­
ção, o poder universal37. Assim sendo, a supressão dos
conflitos da Sociedade Civil que se faz no e pelo Estado
sempre se opera, finalmente, em detrimento da Sociedade
Civil. O Estado não consegue suprimir as contradições
do interesse privado senão fazendo desaparecer o homem
privado, o homem-empírico38. As alienações oriundas das
múltiplas oposições dos desejos e das vontades indivi­
duais somente são superadas pela instauração de uma
alienação mais profunda, mais grave e mais geral: a do
homem que, por ser cidadão, encontra-se paradoxalmen­
te despojado de seu ser privado e submetido à onipo­
tência da “ classe universal” dos funcionários. Porque o
ser concreto do homem está separado de si “ como um
ser puramente exterior, material” , o “ conteúdo do ho­
mem não é mais sua verdadeira realidade” 38. Essa re­
flexão da Sociedade Civil no Estado só podia ter sentido
quando “ a Sociedade Civil era ainda política e o Estado
político a Sociedade Civil” : na Idade-Média40. A idade
moderna, pelo fato de ter separado os dois termos, tor­
nou impossível a união do ser privado e do “ ser-político” ,
a não ser pe’ o subterfúgio da cidadania, pura determi-

37 “ A burocracia tem em sua posse o ser do Estado, o ser espiritual


da sociedade, é sua propriedade privada. O espírito geral da burocra­
cia é o segredo, o mistério, guardado em seu seio pela hieíarquia, e
exteriormente pelo seu caráter de corporação fechada” , p. 102.

38 “ Para comportar-se, pois, como cidadão real do Estado, adquirir


significação e atividade política, c obrigado a sair de sua realidade cí­
vica, a dela fazer abstração, a retirar-se de toda essa organ;zação em
sua individualidade; pois a única existência que encontra para sua qua­
lidade de cidadão do Estado, é sua individualidade pura e simples, pois
a existência do Estado enquanto governo é completa sem ele, e sua
existência na sociedade civil é completa sem o Estado” , p. 162.

39 Idem, p. 170.

40 Idem, p. 151.

195
nação formal e prolongamento passivo de um querer uni­
versal exterior ao indivíduo empírico.
Na Crítica da Filosofia do Estado de Hegél, Marx
não aprofunda essa dialética. Em obras ulteriores e já
na “ Introdução” dessa Crítica, publicada em 184441, leva
sua análise mais adiante e se desprende da ótica feuer-
bachiana, que adotara em 1841-1842. No texto cujos
temas acabamos de evocar sumariamente, Marx deixava
quase completamente na sombra o problema apresenta­
do pela estrutura real do Estado e o conteúdo efetivo da
vontade soberana; embora a propósito do morgadio4-,
tenha feito observações sobre o alcance político da pro­
priedade privada, admite, em suma, a noção hegeliana
do Estado considerado em seu puro ser político. O que
critica é a apropriação do Estado pela “ classe univer­
sal” , recrutada, de fato, por simples cooptação. É o des-
pojamento do indivíduo de si-mesmo; mas, não indaga
ainda sobre a significação econômica da onipotência ad­
ministrativa ™. A pesquisa histórica à qual pôde entre­
gar-se, a partir do momento em que operou essa revolu­
ção da qual traçamos o esquema no final do capítulo
anterior, permitirá que aprofunde e torne mais concreta
ainda sua crítica. O Estado domina à Sociedade Civil e
priva o indivíduo de sua realidade empírica, nele reco­
nhecendo apenas seu ser-formal: a cidadania. Mas, in­
versamente, a Sociedade Civil — esfera econômica —
determina a esfera política41. O soberano, o governo, a

41 Obras filosóficas, t. I. pp. 83 ss.


42 C f. o comentário do § 306 dos Princípios de filosofia do direito,
pp. 199 ss.
43 A não ser assinalando o caráter supérfluo ou suspeito da vontade
dos Estados e declarando que “ os estados provêm do ponto de vista
privado e dos interesses privados. N a realidade, 6 o interesse privado
que constitui seu negócio geral e não o negócio geral que constitui
seu interesse privado” , p. 134.
44 “ Trata-se de desenhar o quadro da surda pressão que todas as
esferas sociais fazem pesar reciprocamente umas sobre as outras, de
üm desacordo geral e precário, de uma estreiteza de espírito tão pre­
tensiosa quanto mal informada, o todo colocado no quadro de um
sistema de governo que vive da conservação de todas as insuficiências
e não passa da insuficiência no governo” , op. cit., t. I, p. 88.

196
administração pretendem, com efeito, querer o univer­
sal: mas, se considerarmos seu poder efetivo, percebs-
remos que suas decisões favorecem não ao “ interesse
geral” , mas visam assegurar, ampliar e reforçar o poder
da classe que, no conflito econômico, mostrou-se a mais
fo rte45. O vir-a-ser dos Estados modernos mostra clara­
mente, ao que parece, que, sob a aparência da universa­
lidade da Constituição, da lei, das decisões governamen­
tais, esconde-se o mais sórdido particularismo40. Se, em
vez de fazer do Estado, como Hegel, um objeto místico
nós o considerarmos em seu ser histórico verdadeiro, ve­
remos que se tornou o apanágio da “ riqueza” e que
constitui um aparelho destinado a manter a predomi­
nância econômica daqueles que possuem e a prevenir
toda tentativa de rebelião da “ plebe” . A “ classe univer­
sal” — funcionalismo, polícia e exército permanente —
é um instrumento de coação graças ao qual vontades
particulares aumentam seu poder e se esforçam em dis­
simular seu particularismo invocando a universalidade
vazia da Constituição (é importante observar, a pro­
pósito, que as circunstâncias históricas podem fazer que,
em certas épocas, haja coincidência entre o “ interesse
geral” e a vontade da classe no poder e que, em outras
épocas, os proprietários sejam incapazes, compelidos a
respeitar a lei que estabeleceram e só se mantendo na
medida em que violam essa própria l e i ) . Assim, no ou
pelo Estado (burguês, aquele que melhor realiza a idéia
do Estado correspondente a uma Sociedade Civil domi­
nada pela realidade do conflito), a opressão econômica
afivela a máscara da legalidade e a Constituição tem
como conteúdo efetivo o domínio mantido e ampliado da
“ riqueza” sobre a “ plebe” . O Estado “ hegeliano” não
suprime as contradições econômicas profundas senão em
idéia; empiricamente, as reduplica, elevando ao plano do

45 ldem, p. 101.

46 . .um belo dia nossos cavaleiros do algodão c nossos heróis do


ferro se viram transformados em patriotas” , p. 91.

197
direito a violência exercida de fato pelos proprietárias
sobre os não proprietários.
Caberia insistir na profundidade e nas riquezas his­
tóricas da crítica desenvolvida pelos fundadores do mar­
xismo contra a doutrina hegeliana do Estado. Importa
limitar-se aqui aos dois aspectos que tornarão mais cla­
ro o significado dessa superação da filosofia (idealista)
pelo materialismo. Voltamos a encontrar aqui, de um
modo talvez mais preciso, no entanto, um tema evo­
cado, em sua generalidade, ao longo do capítulo ante­
rior. Considerando a Sociedade Civil como um momento
do movimento que leva ao Estado, o ser privado simples
manifestação do ser político, ele próprio reduzido à forma
da cidadania, contentando-se em dirimir os conflitos da
comunidade e os que surgem entre as comunidades pela
simples elevação ao conceito: vontade universal do “ po­
vo” e sentido da história, Hegel particulariza em deter­
minada esfera o princípio que se acha na raiz de todo
seu sistema: o homem reduzido em sua essência objetiva
ao pensamento. Para apreender devidamente o que
Marx condena na política hegeliana, o que o materialis­
mo critica na ótica filosófica tradicional, é preciso, antes
de mais nada, compreender tudo o que lhe concede.
Hegel, em primeiro lugar, de acordo com Marx, descreve
corretamente o Estado de seu tempo (que ainda é, em
parte, o Estado do nosso tem po); apreende, em seguida,
de maneira suficiente, embora muito geral, a natureza
profunda da Sociedade Civil; finalmente, define de ma­
neira adequada o que se espera do Estado quando se
quer o Estado47. A pesquisa hegeliana, no entanto, é
falseada na medida em que o que deve ser posto em pri­
meiro lugar é posto apenas em segundo, tornando-se,
assim, de certo modo contingente. A lógica se antepõe

47 C f., por exemplo, este texto: “ A crítica da filosofia do direito e


da filo s o fia política alemã, à qual Hegel deu a fórm ula mais lógica,
mais rica, mas mais absoluta, é ao mesmo tempo a análise crítica do
Estado moderno e da realidade que a ele se acha l i g ada. . p. 195.

198
ao estudo político efetivo. O fato da insatisfação, por
nós experimentado ainda hoje, embora o Estado hege-
liano se tenha realizado, com os descompassos normais
da empiria, e do qual Marx e Engels descobriram a raiz
científica, prova a natureza do “ erro” de Hegel; a idéia
de que o homem, em vista de se reconhecer no Estado
e ser reconhecido como cidadão, encontra a satisfação
ou está em “ situação” de encontrá-la (o que permitiria
condenar o insatisfeito como criminoso ou como lou co).
O homem moderno é cidadão e é infeliz: o pensamento
liberal — o dos economistas — acalentava a ilusão de
que arranjos técnicos poderiam trazer um paliativo (no
duplo sentido de velar e de remediar) a essa infelici­
dade; Hegel, mais realista, compreende a Sociedade Ci­
vil, ou burguesa, como domínio do conflito; introduz,
porém, uma nova ilusão, a de uma satisfação que seria
outra, que seria propriamente política e dissiparia, no
ordenamento do conceito, as contradições dos interesses,
da paixão.
Ora, esse ordenamento apenas reflete a desordem
da paixão; o Estado moderno, longe de ser a supressão
(efetiva) do conflito, é somente sua sublimação ideal; a
contradição só idealmente é abolida e a reconciliação é
do domínio exclusivo do pensamento (o que representa
— é importante salientar — considerável progresso em
relação às doutrinas que, ou negam a importância da
contradição, ou a consideram estatuto próprio da “ exis­
tência terrestre” ) . A ordem descrita endossa uma irra­
cionalidade fundamental: o homem alienado, e, ao mes­
mo tempo, a legalização dessa alienação48. O homem
não é reconhecido em seu ser empírico no Estado que
corresponde à Sociedade Civil burguesa: para que um
reconhecimento se torne empiricamente possível, é pre­
ciso superar a Sociedade Civil burguesa operando uma

48 "Q ue o racional seja real, eis o que está precisamente em con­


tradição com a realidade irracional que é sempre o contrário do que
ela exprime e exprim e o contrário do que ela é” . Crítica da Filosofia
do Estado de Hegel. Obras Filosóficas, t. IV , p. 314.

199
Aufhebung que não seja ideal — no Estado racional-real
— mas empírica — na própria Sociedade Civil. Seme­
lhante Aufhebung, no entanto, supõe a apreensão da
estrutura profunda desse homem que a simples cidada­
nia não satisfaz, aquele homem que vimos chamando,
sem maior rigor, de homem empírico.

Porque se trata, realmente, de uma noção vaga. É


muito simples, sem dúvida, apelar para a experiência a
fim de explicar o ser empírico do homem e defini-lo.
O mal é que a noção de experiência oferece tamanha
diversidade de conteúdos que é inútil dela esperar o me­
nor rigor: não pretendeu, cada doutrina, na história do
pensamento filosófico, referir-se a alguma prova, a seus
olhos essencial, que considerava como experiência deci­
siva? Convém, assim, evitar um primeiro perigo, o que
consistiria, para alcançar a realidade humana em sua
verdade empírica, em escolher arbitrária e sub-repticia-
mente um significado privilegiado da experiência que se
qualificaria de científica ou de efetiva. Se assim fosse,
o alcance da revolução materialista seria bem reduzido:
limitar-se-ia a opor ao abuso do desenvolvimento con­
ceituai um dogmatismo do provado (subjetivamente:
“ eu sinto quotidianamente a exterioridade e a prece­
dência da matéria” , por exemplo) ou do experimentado
(objetivamente: “ as ciências provam com a maior evi­
dência que. . . ” ) e, sob a capa de um retomo aos fatos,
reiterar as mais obscuras doutrinas da intuição. Já in­
sistimos suficientemente nesse ponto, no começo deste
trabalho, para que seja necessário a ele voltar. Deve­
mos observar desde logo, porém, que o ser empírico do
qual pretendemos, na senda dos fundadores do marxis­
mo, delimitar os contornos, já possui, como noção, um
estatuto conceituai: apresenta-se como superação do ser
ideal que a filosofia estava acostumada a considerar.

200
Desde então, um fio condutor é oferecido e a análise de
Marx sobre as insuficiências da política hegeliana é ca­
paz, apesar de seu caráter muitas vezes pré-marxista, de
prevenir contra as tentações do dogmatismo.
Há outro perigo. Na tentativa de fixar os traços
principais do homem real, ameaça surgir constantemen­
te, em forma levemente modificada, outro dogmatismo:
o que se apóia em uma noção da natureza humana que
Kant e Hegel tão energicamente denunciaram. Uma das
lições mais importantes da Fenomenologia do Espírito
é, sem dúvida, a de que o Absoluto não pode ser consi­
derado, na plenitude, como substância: a fórmula deve
ser entendida não só como refutação de duas doutrinas
opostas: a filosofia teológica e o materialismo natura­
lista do século X V III, mas também como crítica de todo
substancialismo que, interpretando o homem, seja como
matéria, seja como espiritualidade, o imobiliza numa de­
terminação ontológica eterna e menospreza sua consti­
tuição fundamentalmente histórica. Não se trataria —
depois de Kant, depois de Hegel, e depois também que
a ciência histórica e as chamadas ciências humanas pu­
seram em evidência o devenir como traço fundamental
da realidade — pretender circunscrever de maneira
exaustiva (conceitualmente) e definitiva (historicamen­
te) os predicados que pertenceriam onitemporalmente ao
homem. Seria opor ao que Marx chama o “ misticismo
lógico” de Hegel outro misticismo de feição positivista.
Ainda a esse respeito é importante, a fim de que as idéias
estabelecidas pelo filósofo sejam efetivamente superadas,
que sejam também mantidas. E o que devemos ter cons­
tantemente presente no espírito — empregamos essa ex­
pressão vaga para bem salientar que não se trata de mo­
do algum de uma prescrição metodológica abstrata, quer
dizer, exterior à coisa estudada — é que nenhuma “ re­
velação” , mesmo “ científica” , permite negligenciar o
traço fundamental da realidade humana: a historici­
dade.
Traduz-se, essa exigência, em particular, no fato de
que nenhuma determinação descoberta como constitutiva

201
do ser-empirico do homem pode ser considerada em sua
essência e em suas manifestações como a-histórica. É
certo que a análise operada pelos pensadores marxistas
de que nos propomos aqui apresentar alguns aspectos,
reterá certas dimensões como características do homem
em seu “ ser-genérico” . Importa, no entanto, lembrar
que o pensamento marxista quando assim procede tra­
balha por “ abstração modal” — para falar como Descar­
tes — e não pretende de modo algum descobrir os pre­
dicados que, de toda eternidade e de toda necessidade,
estão inscritos no sujeito. Mais precisamente, aprendeu
a distinguir entre o que é fundamental (duradouro e
que se manifesta com nitidez em circunstâncias deter­
minadas) e o que é histórico (e que aparece de acordo
com a necessidade própria da história humana). É fun­
damental, por exemplo, que o homem é (e não seja, pois
não se trata de uma condição, mas de um fato) neces­
sidade; mas, essencialmente, a necessidade assume esta
ou aquela determinação segundo a ordem histórica e é
abstrato falar de necessidade em geral se não se sabe
ao mesmo tempo o que é imperiosamente necessário
disto ou daquilo. A dialética hegeliana da essência (o
fundamental, a esse i-espeito) e da manifestação (o his­
tórico, nesse caso) deve ser levada às últimas conse­
qüências para que sejam afastados os erros do substan-
cialismo naturalista.
Isto quer dizer que toda análise geral — do tipo pre­
cisamente daquela à qual a exigência do presente tra­
balho deve conduzir — é perigosa, porque abstrata. Não
poderia haver, para o marxismo (a não ser quando se
esforça em prevenir-se em relação à tradição ou quando
se limita a uma tarefa pedagógica) exposição de con­
junto do “sistema” . Não há análise marxista da “ me­
mória” ou da “ vontade” ; não há concepção marxista do
Verdadeiro, do Belo, do Bem4í'. Como e por que o ho­

49 Entendamos bem: não deveria haver, em loJa compreensão da


revolução teórica realizada por M arx e pelo marxismo.

202
mem — realidade histórica — pôde chegar a considerar
historicamente o passado como seu passado, a compre­
ender-se como sujeito de seus atos e como responsável,
tais são as questões do psicólogo marxista (mas, como é
ainda possível empregar o termo ‘psicologia’? Como e
por que pôde indagar o que significava a adequatio rei
et intellectus ou o que impelia os homens a quererem
fazer obras capazes de “ agradar” a outros homens, tais
são os problemas que se propõe a filosofia marxista (mas,
não haverá certa facilidade em utilizar esse termo ‘filo­
sofia’ do qual a história do pensamento acabou por fa­
zer um uso tão rigoroso?). Com mais razão, o pensador
marxista deverá recusar-se a responder à pergunta: que
é o homem? Deveria poder perguntar, porque só o con­
teúdo lhe interessa: sobre que homem interrogam: o de
Cromagnon ou o que participa do Estado moderno?
Aprendeu, no entanto, que, refugiando-se em tal pru­
dência, expunha-se a todos os que desprezam o concei­
to e querem abolir o conhecimento e dissolvê-lo numa
multiplicidade de conhecimentos diversos. Desde então,
aceita o risco de falar do homem em geral, embora sai­
ba que a totalidade humana é histórico-dialética, que
tal determinação em uma época limitada, apesar de ma­
nifestar-se como dimensão essencial, é o resultado efe­
tivo de um devenir anterior e não deve sua essenciali-
dade à ligação com outros traços humanos que o tempo
tornou menos importantes.
Tudo isso equivale a dizer que, na discussão com o
filósofo, o materialista encontra-se em posição difícil,
pelo menos formalmente. Sua resolução constante em
definir a realidade empírica do homem, de constituir
uma nova “ antropologia” rompendo não só com o espi­
ritualismo (o homem como alma, quer esse termo signi­
fique pneuma, psykhe ou nous), mas também com o
idealismo (o homem como logos), o levam freqüente­
mente a adotar, em seu vocabulário e sua sintaxe — que
não poderia, no estado atual, tomar à tradição — o es­
tilo do naturalismo. Contra o perigo de que essa forma
venha a determinar o conteúdo do pensamento materia-

203
lista, nenhuma prescrição metodológica, insistimos, po­
deria ser eficaz. Somente a atenção, sustentada pelá
idéia de que se trata de elaborar uma perspectiva radi­
calmente nova, refletindo a “seriedade da vida” em seu
conteúdo empírico e superando — na significação dialé­
tica do termo — as descobertas da filosofia, pode permi­
tir afastar esse risco. É preciso, pois, chegar a esse con­
teúdo, por mais esquemática que possa ser a análise à
qual aqui nos dediquemos. . . Observemos, aliás, que nas
páginas seguintes tratar-se-á menos de “ definir” o ho­
mem empírico que de oferecer os elementos capazes de
contribuir para a solução do problema limitado que nos
propusemos.
O primeiro e único pressuposto de que deve partir
a concepção materialista do homem é um fato: a exis­
tência de indivíduos humanos™. Na verdade, trata-se
inicialmente de definir o que significa essencialmente
esse fato da vida humana em sua dimensão empírica tal
como nos é dada: trata-se de descrevê-la tal como se
mostra, deixando ao prosseguimento da análise a in­
cumbência de mostrar porque semelhante descrição é
exata e suficiente e como é capaz de legitimar-se a si
mesma. A propósito, pedimos ainda permissão para pro­
ceder a uma rápida ordenação dos temas sobre os quais
repousa a revolução teórica operada pelo marxismo, de­
sejando que o leitor concorde em considerar as separa­
ções que seremos levados a fazer como simples “ abstra­
ções modais” e não como cortes concretos e que espere
as páginas seguintes para apreender a justificação efeti-

50 “ Os pressupostos pelos quais começamos não são arbitrários, não


são dogmas. São pressupostos reais dos quais só se pode fazer abstra­
ção na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições
de existência material, quer já existentes, quer produzidas pela sua
própria ação. Ésses pressupostos são observáveis por via puramente em ­
pírica. O primeiro pressuposto de toda a história dos homens, é natu­
ralmente a existência de indivíduos humanos vivos. O prim eiro er.tado
de coisas a constatar, é, pois, a organização corpórea desses indivíduos
e a relação em que isso os coloca com o resto da natureza” , hieolo *
gia alemã, Obras filosóficas, l. V I, p. 154.

204
va que delas pode dar o marxismo. Apresentar a vida
humana empírica, é antes de mais nada reconhecê-la
como vida que se mantém no elemento da natureza que
lhe é indicado pela sua própria origem: é considerá-la
inicialmente como materialidade51. É certo que toda fi­
losofia concederá o fato dessa existência sensível do ho­
mem : mas, voltará logo à carga, empenhando-se em des­
cobrir a essência desse estatuto sensível: perceberá, por
exemplo, que é preciso concebê-lo como aparência ou
como inessencialidade ou como resultado de uma cons­
tituição que tem origem na atividade perceptiva ou
constituinte do próprio sujeito. Berkeley, por exemplo,
não nega que haja um ser-sensível do homem: mas, lo­
go o reduz ao fato de que o corpo humano, do mesmo
modo que o dado corpóreo em geral, é percebido e que,
como tal, supõe um espírito percipiente que o faz “ exis­
tir” tal qual é. O que o materialismo marxista afirma, é
que o desenvolvimento de semelhantes análises já su­
põe a existência empírica da humanidade — em sua
própria contingência — , que as elaborações teóricas de­
vem admitir o fato da vida humana como um dado irre­
dutível.
E é isso que exige, inicialmente, a superação da fi­
losofia: a simples verificação de que toda operação do
pensamento, por mais admirável que seja, implica, co­
mo condição real, a existência natural da humanidade
à qual se oferecerá então, e somente então, a possibili­
dade de refletir sobre sua própria condição. Se há uma
questão que pode apresentar-se a propósito do homem
e de seu destino, é sem dúvida porque o homem é pensa­
mento. Mas, o próprio pensamento, como fato que in­

51 A tarefa que consistiria em fazer figurar, em relação às frases que


vamos propor, uma citação de M arx, de Feuerbach, de Engels, é fasti­
diosa. Essas referências existem; mas é possível achar, nas obras dos
fundadores do marxismo, fórmulas que indicam outro caminho. O
importante não é colocar-se à sombra de M arx, mas tentar compreen­
der o mundo contemporâneo, e a tarefa que atualmente incumbe à
teoria, à luz das descobertas feitas por ele.

205
terroga, pressupõe, por sua vez, a vida humana enquan­
to vida e enquanto humana. Não se trata, pois, para o
materialista, de modo algum, de negar que o pensamen­
to, — como abertura e reflexão sobre o que é — consti­
tua aquilo em que e por que os traços mais distintivos
da humanidade se manifestem: a “Alma” , a linguagem,
a “ Razão” , quer dizer, a interrogação sobre si mesmo, a
exposição de si mesmo face a outrem e a aspiração à
universalidade do discurso e da conduta. Mas, esse ser-
diferencial pressupõe como sua condição real um ser fun­
damental a partir do qual a diferença, precisamente,
possa aparecer e manifestar-se. O fato de chegar, final­
mente, ao que condiciona todo pensamento, ao que per­
mite que o pensamento seja, de encontrar a “ seriedade
da vida” , não enquanto tragédia refletida, mas enquan­
to tragédia real em que se joga a possibilidade mesma
de que se fale de tragédia e que se queira ir além, rumo
à felicidade, tal é a significação da revolução teórica ope­
rada pelo marxismo.
Ora, a vida humana tomada em sua realidade em­
pírica, aparece inicialmente — insistimos em que será
preciso, em seguida, legitimar essa concepção — como
vida natural desenvolvendo-se nesse domínio imposto e
único que é a natureza. A referência a conceitos tão
elaborados como o de “ natureza” poderá surpreender em
um trabalho no qual se pretende dispensar todo pres­
suposto. De fato, por esse termo entendemos apenas o
lugar de habitação do homem ou horizonte empírico no
qual é dado existir. Dizer que o homem vive aí, é dizer
que daí retira sua vida. Toda carência objetiva elemen­
tar, a deterioração fisiológica, a diminuição vital que re­
sulta da privação de alimento, por exemplo, toda satis­
fação objetiva elementar — a recrudescência de vitali­
dade, o desenvolvimento e o crescimento — são falta de
algum “ fragmento” da natureza que lhe conviria, posse
e utilização desse “ fragmento” . Em outros termos, a re­
lação imediata do homem com seu domínio — que não
é nem jardim de Éden, nem habitação de Tântalo — é
a determinada pela constituição corpórea da humani­

206
dade. Por isso, devemos entender, não que todas as di­
mensões passadas e presentes do homem estejam conti­
das na estrutura do corpo e do sistema nervoso, mas que
a manutenção e o desenvolvimento da vida empírica
constituem a relação originária do homem e da fisis.
A presença verdadeira da humanidade em seu meio con­
siste não na representação — que constitui um estágio
elaborado e ulterior — , nem mesmo na apresentação —
que é imediatamente, mas não fundamental — , mas na
presença efetiva, quer dizer, na falta ou na posse real
traduzindo-se por uma diminuição ou um desenvolvi­
mento da vida natural52.
O homem é passividade; encontra-se no estatuto da
dependência. O que conquista e cria, o obtém a partir
de uma sujeição natural que está ligada à sua situação
de fato como ser-empírico, submetido a determinações
que não dependem nem de sua opinião nem de sua de­
cisão. Que um homem queira morrer de fome para ma­
nifestar sua “ independência” em relação às exigências
corpóreas, o simples fato de que saiba que morrerá e
que decida adotar essa conduta precisamente por essa
razão, prova sobejamente o caráter fundamental dessa
sujeição. Seja qual for a vontade do indivíduo, seja qual
for a referência extranatural que o grupo possa esco­
lher, resta que o homem está mergulhado no ser-natu-
ral como em seu meio obrigatório. Querer abolir a coer­
ção da necessidade é exaltar o ser que vive a si concre-
tamente como necessidade e que, por motivos culturais,
sofre com isso e aspira a outro lugar que lhe é
recusado. Essa sujeição manifesta-se inicialmente no
fato, muitas vezes considerado simples, de que o homem
depende das mesmas leis que regem qualquer outro cor­

52 É justo referir-se aqui à obra muito importante de Dionísio Mas-


colo, O Comunismo, que, em bora tenha acrescentado elementos con­
tingentes à análise, salientou com um rigor, uma clareza e uma inten­
sidade de estilo notáveis, o fato de que a necessidade, com o realidade e
com o noção, é o elem ento decisivo graças ao qual uma com preensio
da teoria e da prática marxista se torna possível.

207
po e qus também pertence ao registro implacável do
objectum. Importa dar-se conta disso e dizê-lo antes.
Nenhuma prática, por mais inventiva que seja, permi­
te sair diretamente dessa determinação, a não ser em
pensamento, supondo algum médium espiritual em que
o pensamento é livre de querer abstratamente a insatis­
fação, a incoerência vital e a morte. Mais geralmente, é
dada a dependência do homem enquanto corpo sofredor,
enquanto pertence, ele também, à physis e se acha, des­
de então, ligado a processos irreversíveis e impostos, de
manutenção e de devenir. É inútil interpretar o ‘dever-
ser’ de modo lírico, pois é imediatamente ‘dever-ser’ vivo
que se manifesta.
É importante esclarecer que essa definição do esta­
tuto fundamentalmente natural do homem não impli­
ca, de modo algum uma redução da existência humana
a qualquer ordem fisiológica substancial da qual o com­
portamento seria a manifestação. Quando se indica a
necessidade como relação primordial do homem com sua
situação, designa-se uma relação originária a partir da
qual o devenir humano se elabora e não algum termo
no qual tudo estaria contido como os predicados em sua
substância. A interpretação ontológica da concepção
marxista comprometeu freqüentemente a revolução teó­
rica operada por Marx como puro e simples retorno a
uma doutrina psicofisiológica, segundo a qual a história
é a simples concretização de uma natureza dada previa­
mente . Por fundamental que seja, a necessidade só pode
ser compreendida, para o materialismo marxista, como
necessidade em determinado estágio da evolução: se de­
vemos concebê-la, inicialmente, como necessidade pro­
priamente corpórea que tivesse, em última instância, e
por fim, a satisfação elementar do homem em seu ‘ser-
natural’, é importante também verificar que o conteúdo
da necessidade está ligado, historicamente, à evolução
das capacidades e dos desejos efetivos da humanidade53.

53 “ Cada uma dessas relações humanas com o mundo: ver, ouvir,


farejar, degustar, tocar, pensar, sentir, querer, agir, amar, em suma,

208
Em outros termos, é preciso partir desse estatuto origi­
nário se quisermos dar conta das estruturas profundas
da existência humana; não é suficiente fazê-lo54, pois o
devenir próprio da civilização cria, em circunstâncias
determinadas, que podjem ser empiricamente estuda­
das, novas necessidades que excedem amplamente as ne­
cessidades elementares, mas nunca poderiam suprimi-
las.
Assim também, devemos notar, contra as tentações
e as falsas clarezas do materialismo abstrato, que pre­
tende encontrar na estrutura corpórea a causa de to­
dos os aspectos da atividade do homem, que na noção
da necessidade humana, por mais elementar que seja,
está imediatamente implícito o próprio fato da cons­
ciência. Como foi salientado pela maior parte dos psicó­
logos contemporâneos, é abstrato separar inicialmente
comportamento e consciência e procurar saber, em se­
guida, como se reúnem os dois termos. Quando se trata
do homem, precisamente, a verificação empírica nos
mostra que o lugar de habitação é não só o domínio de
onde vêm os estímulos e onde se efetuam as reações,
mas também horizonte presente. A propósito das obje-
ções formuladas contra o ateísmo, incapaz, segundo seus
adversários, de explicar o aparecimento do mundo, Marx
observava com ironia: “se perguntam a respeito da na­
tureza e do homem, fazem abstração do homem e da

todos os órgãos de sua individualidade, que são imediatos em sua for-


ma de órgãos comuns, são, em sua relação objetiva, ou em seu com ­
portamento face ao objeto, a apropriação da realidade humana; o m o­
do pelo qual se comportam em face do objeto é a manifestação da
realidade humana. Essa manifestação é tão múltipla quanto as deter­
minações e as atividades humanas, a atividade humana e o sofrimento
humano.. Obras filosóficas , t. V I, p. 29.

54 É o m otivo pelo qual uma análise econômica que, não levando


em conta transferências históricas de necessidades, utilizando, por
exemplo, pontos de referência (com o o consumo do vinho e da car­
n e ), a título de critério absoluto da pauperização, situa-se, não na
ótica marxista, mas na ótica, tão criticada, do “ m aterialismo mecani-
cista” .

209
natureza. Depois de admiti-los como não existentes
querem, no entanto, que eu os demonstre como existen­
tes”K. Parafraseando Marx, poderíamos dizer que é de­
balde — admitindo o homem na totalidade de suas de­
terminações corpóreas, mas desprovido de consciência
— pedir em seguida que o demonstrem consciente. O
comportamento humano vital é imediatamente e como
tal comportamento, tendo presente a si mesmo o lugar
em que se desenvolve. Tal “ presença” é, sem dúvida,
muito diferente do que se costuma chamar Espírito e
cultura, que resultam de uma elaboração histórica cujas
etapas constitutivas devem ser reveladas por uma ciên­
cia do devenir humano. O homem se torna memória, por
exemplo, em função de circunstâncias “ existenciais”
que podem ser objetivamente estudadas; não se torna
consciência; é dado como ser natural consciente ao mes­
mo título que é dado como se mantendo de pé e capaz
de supinação e de propinação. Como acontece isso? Cabe
às ciências objetivas — fisiologia, etno’ ogia, biologia, ge­
nética — determiná-lo. A concepção materialista como
superação da filosofia deve, no entanto, partir desse fa­
lo como dado, se não quiser defrontar-se novamente
com os problemas teoricamente insolúveis do dualismo
da alma e do corpo. Descartes, aliás, não nos dá uma
indicação preciosa quando mostra a união de fato da
consciência e do corpo como um mistério a propósito do
qual insinuou esperar que a “ medicina” o resolvesse?
Ser natural, tendo presente a si mesmo o domínio
que habita, consciente aqui e agora do lugar ein que exis­
te, e submetido à exigência empírica da satisfação vital,
o homem, agindo, revela-se ‘ser-trabalhador’. Mais pre­
cisamente, o fato da necessidade está ligado a um tipo
de atividade que visa assegurar a manutenção e o desen­
volvimento da vida que distingue radicalmente o homem
do animal: “ É possível distinguir os homens dos animais
pela consciência, pela religião, pelo que quiserem. Come-

55 Economia política c filosofia , p. 39.

210
çam os homens a se distinguirem dos animais a partir
do momento em que começam a produzir seus meios de
subsistência, operação que é condicionada por sua or­
ganização corpórea. Produzindo seus meios de subsis­
tência, os homens produzem indiretamente sua própria
vida material” 60. O comportamento animal, considerado
em sua generalidade, caracteriza-se pela repetição, pela
estagnação no nível natural ou ainda pelo fato de que
o ser-genérico permanece o que é, e que as modificações
supervenientes se produzem no seio do gênero natural.
A conduta humana, ao contrário, é capaz de construir:
ao domínio que lhe é imposto, substitui, por sua paciên­
cia e seu engenho, um domínio que ele constrói progres­
sivamente e que se torna assim seu domínio. Essa no*
ção do trabalho suscitou, ao longo dos últimos anos, nu­
merosos desenvolvimentos lírico-existenciais de caráter
pseudodialético; permitirão, a fim de evitar semelhantes
excessos, que nos limitemos a algumas anotações espar­
sas, pois os únicos informes sérios de que nos utilizaría­
mos seriam os resultantes de um estudo histórico ob­
jetivo das modalidades do trabalho e das concepções que
suscitam em tal época e em tal civilização. Digamos,
simplesmente, na senda dos fundadores do marxismo,
que, enquanto ‘ser-trabalhador’, o indivíduo humano
manifesta-se como poder efetivo de libertação de si mes­
mo e da humanidade; revela-se agente da transforma­
ção de seu lugar de existência e criador das novas con­
dições de vida. No e pelo trabalho, a “ coisa natural”
transforma-se em “objeto humano;” as leis que a go­
vernam se encontram dominadas, pelo simples fato de
sua utilização. A alteridade real, a do dado que se dá em
sua ameaçadora estranheza, mostrando-se às vezes co­
mo fonte inacessível da satisfação, é parcialmente redu­
zida e se torna alteridade que convém ao homem: a
oposição do homem e da natureza transforma-se em re­
lação de complementaridade. Domínio da habitação e

56 Ideologia alemã, Ob. Filos. t. y i , pp. 154-155.

211
do desejo, o meio aparece como meio do trabalho, como
lugar da obra, do construir e da satisfação renovada. A
“coisa”, recolhida pela atividade humana e por ela mo­
delada, transforma-sp em “valor de uso”. A “natureza”
se transforma no setor submetido ao trabalho, em natu­
reza para o homem.
Se não receássemos abusar das exposições dialéti­
cas, diríamos que o mundo forjado pelo trabalho é a
Aufhebung do dado natural: é sua realização na medi­
da em que a satisfação da necessidade nele se torna efe­
tiva e onde o desejável deixa de ser objeto de procura
indefinida e fonte do sofrimento para tornar-se convite
à obra; é também sua negação, pois o universo artificial
se opõe à realidade natural — que nos é tão difícil de
conceber, a menos que, como dizia Marx, imaginemos
algum arquipéJago polinésico recentemente surgido57 —
como o dominado ao não dominado, o humano ao inu­
mano; constitui, finalmente, sua sublimação porque o
resultado do trabalho, a obra, participa dos dois regis­
tros e se apresenta, ao mesmo tempo, como produto da
vontade do homem, de seu desejo e de sua coragem e
como fato submetido ao devenir próprio e inumano do
dado. É, em suma, o lugar em que se defrontam e se or­
ganizam efetivamente, e não apenas no pensamento, a
negatividade humana e a pura positividade natural. A
propósito, seria talvez necessário salientar o papel de­
cisivo desempenhado pela realidade do utensílio em que
se reúnem as diversas mediações contidas na atividade
do trabalho. Mas, essa realidade é tão rica e tão comple­
xa que nos perdoarão por não analisá-la em seus múl­
tiplos aspectos e remeter, não somente às preciosas ano­
tações fornecidas, a respeito, por Marx e Engels, mas
ainda às pesquisas da etnografia, da sociologia e da psi­
cologia contemporâneas.
O trabalho, atividade de transformação da nature­
za, é também processo de formação do homem. No ní­

57 Cf. a crítica de Feuerbach, nas Teses e na Ideologia alemã, em


particular, pp. 161 ss.

212
vel da “pura necessidade” :— aquele que se pode apre­
ender no comportamento animal — o ser se acha sub­
metido à repetição: está condenado a procurar a “coi­
sa”, sempre a mesma, que aplaca seu desejo e, se tem
história, ela consiste numa evolução que lhe é imposta
e o determina do exterior. Pelo trabalho, o círculo natu­
ral da necessidade é rompido. Hegel mostrou, admira­
velmente, de que modo a consciência se cultiva e se cons­
trói, por sua reflexão, em uma exterioridade que inicial­
mente não sabe ter criado, mas que descobre em segui­
da como obra sua. Desenvolvia-se, essa dialética, no pla­
no da consciência-de-si e o caráter algo misterioso de
certas passagens da Fenomenologia do Espírito, posto
em evidência, em particular, nos Manuscritos de 1844,
revelava o a priori conceituai que freqüentemente a do­
mina. A formação do homem real — materialidade, ne­
cessidade e consciência — opera-se, de fato, no próprio
nível da atividade sensível. No objeto fabricado, o ho­
mem encontra a marca de seu poder: descobre-se como
produtor de novas realidades. No ato do trabalho, enri­
quece sua “natureza” dada; cada gesto é como uma pro­
va que o afirma, reforça sua eficácia, leva-o a maior per­
feição e também a superar-se em algum gesto mais bem
sucedido; sua sensibilidade se afina e aprende a desco­
brir na realidade uma infinita diversidade de objetos e
de significações. De fato, a humanização da natureza —
sempre nessa perspectiva parcial e abstrata freqüente­
mente adotada neste trabalho e que será preciso corri­
gir — é acompanhada de uma real humanização do ho­
mem que lhe permite subtrair-se cada vez mais ao seu
estatuto animal.
‘Ser-trabalhador’, o homem, considerado em sua
existência genérica, é também e fundamentalmente ‘ser-
social’. Dizer que o homem é fundamentalmente ser-so-
cial, é recusar-se a considerar qualquer dimensão de sua
“natureza” ou de sua cultura como produto de sua “in­
dividualidade pura”; é compreender inicialmente sua
existência como ligada à de uma coletividade; tampou­
co quanto a necessidade (e a consciência da necessida­

213
de), tampouco quanto o trabalho (e a consciência do
ser-trabalhador), a socialidade não pode ser um predi­
cado acrescentado do exterior à realidade humana. A
vida social, como a vida “sofredora” ou a vida trabalha­
dora, é o pressuposto obrigatório de toda existência hu­
mana. Não só é irrisória a pretensão de deduzir a socia­
lidade, mas também é absurdo o esforço em determinar
o que essa socialidade traz ao homem. Essas idéias, aliás,
achavam-se implícitas no próprio exercício da filosofia
e, a seu respeito, o pensamento tradicional acumulou,
devemos repeti-lo, conhecimentos muito importantes.
A contribuição do marxismo é de outra ordem: con­
siste no vínculo estabelecido entre essa dimensão e as
demais dimensões fundamentais do homem. A esse res­
peito, a revolução que realizou é capital: o fato social
não é mais considerado simplesmente como relação de
homens que falam — como em Platão — ou de homens
que querem (ou podem saber o que querem) — como
em Hegel —. A relação humana é apreendida em seu
conteúdo profundo como relação material de indivíduos
submetidos à necessidade, produtores de seus meios de
existência e que, como tais, colaboram em sua luta
contra a natureza ou se opõem na posse dos bens de con­
sumo e dos utensílios. Que essa relação também se ex­
prima na linguagem, que é, para o homem, um fato
tão “natural” quanto a consciência-^, que possa não ser
compreendido tal qual é, não impede que seja funda­
mentalmente relação material. E, é nesse nível, talvez,
que se revela mais nitidamente a oposição do materia­
lismo e do modo de pensar filosófico: este jamais ne­
gou que a realidade humana seja social, a não ser talvez
no período chamado metafísico de sua história no qual
esse fato, sem ser negado, era posto em segundo plano;

58 “A linguagem é tão velha quanto a consciência — a linguagem é


a consciência prática, existindo igualmente para outros homens, logo
existindo também para mim mesmo, real, e a linguagem só nasce, como
a consciência, na necessidade, da necessidade do comércio com outros
homens*’. Ideologia alemã, pp. 168-169.

214
concebia, porém, o vínculo social (ou político) como re­
lação ds consciência a consciência, de vontade a vonta­
de; esquecia que o homem é, antes de mais nada, pai­
xão e desejo., e situava-se em uma esfera ideal ds univer­
salidade na qual a comunicação se faz tranqüilamente.
E porque negligenciava o fato de que o domínio primor­
dial das trocas entre os indivíduos e o das trocàs de bens
materiais, que a relação humana supõe uma relação
com a natureza, que não poderia ser “pura relação hu­
mana” e, conseqüentemente, que remete ao que permi­
te uma atividade natural eficaz: a conservação dos ins­
trumentos de produção. Desde então, a vida social apa­
rece numa perspectiva inteiramente nova: deixa de mos­
trar-se como coletividade, cujo equilíbrio é difícil de es­
tabelecer, porque é feita de indivíduos que sabem e
de indivíduos que não sabem, de “insensatos” e de
“razoáveis”. É reduzida ao seu conteúdo empírico: a
oposição entre aqueles que se acham em situa­
ção que lhes permite satisfazer seu “desejo vital” e
os que precisam, para conseguir tal satisfação, submeter-
se aos outros. Isso não significa que a oposição entre
“razão” e “sem-razão” não seja essencial: apesar disso,
não é fundamental e encontra fundamento na materia­
lidade humana.
Essas dimensões fundamentais da existência hu­
mana considerada empiricamente — a necessidade, o
trabalho e a sociabilidade — permitem definir com mais
rigor o que se deve entender por praxis. Esse termo pre­
tende designar a vida do homem na totalidade de suas
determinações reais: veremos, na seção seguinte, que o
laço efetivo graças ao qual essa exigência de totalidade
pode ser respeitada é o próprio fato da historicidade. A
consideração, constante e constantemente lembrada, do
vir-a-ser evita o risco de atribuir arbitrariamente a uma
dessas dimensões um privilégio exorbitante, e garante,
de certo modo, contra o dogmatismo que decorreria ne­
cessariamente desse arbítrio. A história do pensamento
contemporâneo permite, aliás, perceber os desvios re­
sultantes dessas interpretações unilaterais da praxis.

215
Já mostramos a que abusos conduzia inevitavelmen­
te o fato de considerar como unicamente determinan­
te a estrutura corpórea e pretender deduzir, em cada
etapa da história humana, quer dizer, para qualquer
momento do vir-a-ser, logo onitemporalmente, o conjun­
to das manifestações reais da atividade do homem.
Uma coisa é dizer que, em última análise, “quando a
maré está baixa”, a necessidade empírica constitui a re­
ferência real e última, a partir da qual se opera, em sua
generalidade, a escolha humana, e outra coisa afirmar
um determinismo fisiológico que reduziria o conteúdo
da consciência aos fenômenos nervosos engendrados por
uma “prática”, ela própria considerada abstratamente
como atividade em geral™. Assim também, quando o
marxismo salienta o caráter decisivo do trabalho, con­
siderado objetivamente como manuseio de determinado
tipo de utensílio, não julga, de modo algum, que a his­
tória humana possa compreender-se mecanicamente,
como manifestação de uma essência tecnológica que de­
senrolasse, de acordo com uma ordem clara e inuma­
na, seu devenir autônomo. Quer dizer que o prob:ema da
humanidade, em cada etapa de sua evolução, enquanto
problema da manutenção e do desenvolvimento da vicia,
supõe realmente certo nível das forças produtivas, cer­
to tipo de relação do dado e é resolvido em função des­
sa situação imposta. O pensamento grego clássico, por
exemplo, não é o simples produto de uma civilização de­
finida por determinados caracteres tecnológicos: desen­
volve-se, originalmente, no seio de um horizonte no qual
a relação do homem com a natureza é função de um es­
tado, que pode ser objetivamente estudado, dos meios
de apropriação. A defesa que certos sofistas fazem da
teenè, o descrédito em que Platão tenta lançá-la, não se
acham ligados apenas à idéia de Georgias e Platão a seu
respeito: compreendem-se a partir do nível dessa pró­

59 O que parece ser, freqüentemente, a ética adotada pelas filosofias


gerais marxistas analisadas neste trabalho, no capítulo I.

216
pria técnica e da função que, como tal, desempenhava
na Cidade. A referência à estrutura social não signifi­
ca, enfim, que se possa considerar, à maneira da socio­
logia de inspiração durkheimiana, a organização da so­
ciedade como a chave da história humana. Se é verda­
de que a relação fundamental entre os homens é deter­
minada pela sua situação na produção dos meios de
existência, essa mesma situação deve ser considerada em
sua base histórica e geográfica: o fato, por exemplo, de
que os “pequenos brancos” dos países coloniais sejam
explorados do mesmo modo que o povo colonial, não con­
funde objetivamente sua situação com a dos autócto­
nes encontram-se, por motivos históricos, separados da­
queles que exercem na produção a mesma função que
eles; não se trata apenas de suas opiniões, de seus pen­
samentos, mas também de sua situação real: participam
em grau irrisório, talvez, porque vêm de outro país e
pertencem, de fato ou legalmente, à nação dos conquis­
tadores, da exploração do colonizado pelo colonizador.
Desejamos, com essas anotações fragmentárias e
esses breves retoques, mostrar que não pretendemos, de
modo algum, ao salientar esses traços fundamentais da
existência humana empírica, reduzir o homem a uma
natureza antecipadamente dada. A humanidade, consi­
derada em sua prática sensível, não pode ser oposta,
termo a termo, ao homem tal como o define o filósofo.
A revolução teórica marxista nos convoca a retornar,
finalmente, à vida banal e grandiosa, a essa luta inces­
sante e engenhosa que a humanidade trava para alcan­
çar a satisfação, para deixar de ter medo e de ter fome,
para distinguir-se do animal, não só em sua atividade,
mas em sua satisfação. Essa revolução implica que se
deixe de ver o homem tal como o pensam aqueles aos
quais é dada a possibilidade de pensar, quer dizer que
se o considere tal como é; um ser natural que sofre, ao
qual é dado modificar suas condições de existência, um
ser dependente ao qual se revela, no próprio seio de sua
dependência, a possibilidade efetiva de construir uma
Cidade, sua obra empírica real, na qual o desejo será a

217
promessa da satisfação e a presença do outro homem a
eventualidade de uma amizade.

A fidelidade à empiria exige, como já salientamos,


o reconhecimento da historicidade como traço funda­
mental da realidade humana *°. De fato, há poucas
doutrinas, atualmente, que não admitem como evidên­
cia o caráter essencialmente histórico do homem e não
compreendem o devenir como o lugar em que o existen­
te humano indica, manifesta ou forma seu ser profun­
do. Todavia, essa assunção do ser histórico se faz, fre­
qüentemente, contra a vontade: admite-se o devenir
para melhor negá-lo em seguida, seja mostrando sua
inconsistência ontológica em relação a algum termo
atemporal ou onitemporal, seja dissolvendo suas deter­
minações reais em dimensões da subjetividade empírica
ou transcendental. Nas páginas seguintes, procurare­
mos voltar a esses diversos pontos. No momento, gos­
taríamos de esclarecer que a consideração da histori­
cidade, entendida como historicidade real, quer dizer,
como encadeamento dos res gestae, aquela com a qual
a ciência histórica se preocupa para dela constituir um
saber, não pode, em caso algum, ser uma cláusula de
estilo ou o protocolo de uma pesquisa constantemente
adiada. O vir-a-ser não se acrescenta de fora à reali­
dade humana: a prática — a não ser que nos situe­
mos no nível dessa abstração limite que é a vida hu­
mana natural — é imediatamente histórica, no duplo
sentido de que é situada historicamente e de que é ela
própria o vis-a-ser fazendo-se. Eis por que foi preciso
ser tão breve no parágrafo anterior a respeito da defi-

60 “Não conhecemos senão uma ciência, a ciência da história”, ldem,


p. 153.

218
nição do trabalho, da sociedade e mesmo da necessida­
de. Qualquer esforço para determinar mais precisa­
mente esses fatos é impossível: o único aprofundamen­
to sério consistiria em analisar o vir-a-ser do trabalho
(e da consciência que tal sociedade ou tal grupo hu­
mano tem de seu trabalho e também do trabalho), da
necessidade (e da consciência sofredora), do vínculo
social (e da maneira como os indivíduos o vivem nessa
época e nesse país) . Eis por que as gêneses que se pro­
cura determinar, de tal conceito, de tal sentimento ou
de tal instituição, a partir do fato geral da prática, pa­
recem tão abstratas e tão irrisórias. O pensamento efe­
tivo é histórico: não se realiza em alguma zona neutra,
não situada e não datada. A construção da axiomática
geométrica euclidiana, a decisão de elaborar um relato
histórico, a própria vontade de filosofar, não resultam
da prática em geral, nem apenas da necessidade ou de
qualquer exigência do Espírito, mas constituem fatos
de cultura que surgem em determinada época e civili­
zação e só podem ser compreendidos em suas relações
com elas.
Essa referência, na medida em que é pesquisa his­
tórica precisa, é mesmo o único meio de penetrar no
conteúdo real da vida humana empírica. As anotações
gerais, como as que acabamos de fazer a respeito das
dimensões e dos aspectos da realidade humana, úteis
no caso presente, uma vez que se trata de indicar em
que perspectiva de conjunto o marxismo se opõe à filo­
sofia, não constituem, de fato, senão o índice de estudos
que só poderão tornar-se rigorosos, não pela excelência
do método, mas pela fidelidade aos acontecimentos es­
tudados. Nesse sentido, é dificilmente concebível que
possa ser construído, a não ser na ótica simplificada de
uma pedagogia, um manual de filosofia geral marxista:
semelhante manual seria levado, não só a isolar aspec­
tos que só têm sentido por sua ligação dialética com o
conjunto, mas também a substituir, ao devenir efetivo
do conteúdo, gêneses abstratas às quais a tradição filo­
sófica facilmente poderá contrapor os argumentos clás­

219
sicos dirigidos contra as diversas formas de empirismo
e de naturalismo.
A historicidade de fato manifesta-se, pois, como o
lugar em que se articulam as determinações essenciais
da realidade humana. Importa, no entanto, precisar
sua noção. Já indicamos que, por historicidade, não
pretendíamos entender outra coisa além do devenir tal
como a ciência histórica moderna o estuda. Todavia,
ao longo do século XX, introduziram-se tantos proble­
mas e obscuridades na idéia do tempo histórico, que é
necessário talvez voltar a algumas observações simples,
apoiando-se precisamente na técnica histórica. Essa
técnica, ponto decisivo no qual devemos insistir desde
logo, só alcançou seu estatuto científico ao longo do
século X IX 61. Por mais notáveis e belas que sejam as
obras dos historiadores gregos e latinos, por mais enge­
nhosos que tenham sido os processos elaborados pela
erudição italiana do Renascimento, seja qual for a be­
leza e a elevação que contenham os trabalhos da histo­
riografia oficial, só a partir de Leopold von Ranke e
Niebuhr é que ss pode falar de ciência histórica. É o
motivo pelo qual as críticas dirigidas ao que se costu­
ma chamar as “filosofias da história” — de Bossuet,
de Vico, de Herder e mesmo de Hegel — segundo as
quais esses autores teriam traído a verdade histórica,
são anacrônicas: supõem que a noção de verdade his­
tórica tinha para eles a significação que possui atual­
mente, o que não nos parece legítimo. Na verdade —
e sem voltar aos difíceis problemas suscitados pelos re­
latos dos escritores da Antigüidade e pelos clássicos da
Idade Média e do Renascimento —, a leitura de Bos­
suet (e a referência à fonte agostiniana), de Vico, de
Herder, e, em sentido diferente, a leitura de Voltaire,

61 Para o que se segue, permitimo-nos remeter o leitor a nosso ensaio*


O nascimento da História, Introdução, e ao artigo do Jornal dc Psico­
logia, julho-setembro de 1956, O Tempo da História e a Evolução da
Função histórica, pp. 355-378 e às referências dadas nesses dois textos.

220
de Condorcet, e, ainda em outro sentido, de Hegel, mos­
tra que é leviano censurar esses pensadores por falsifi­
carem, com pleno conhecimento de causa, o próprio
vir-a-ser. Seria preciso, para que essa imputação tives­
se sentido, que a noção de uma ciência histórica tives­
se, para eles, um alcance preciso. Ora, é bastante claro
que essa eventualidade, a menos que se lhes atribua
uma frivolidade dè que suas obras não dão testemunho,
deve ser rejeitada. Para esses escritores, o passado hu­
mano não é concebido como objeto de um saber exato
e controlado, e permanece o pretexto para desenvolvi­
mentos em relação aos quais basta que se justifiquem
filosoficamente (ou “teologicamente”) .
Para o pensamento cristão em geral — pensamen­
to que encontramos na origem de toda filosofia da his­
tória — o vir-a-ser humano, embora concebido como
devenir, como lugar efetivo de originalidades e domí­
nio da formação, não constitui no entanto objeto de
uma ciência. O que revela, de acordo com uma ordem
que lhe é própria, é, finalmente, a organização de uma
Providência: a esse respeito, o pensamento agostinia-
no, com sua profundidade e suas ressonâncias, apresen­
ta-se como um modelo. Para esse pensamento e para a
teologia cristã em seu conjunto, o esquema do destino
histórico do homem é proporcionado, de um lado, pelo
Antigo Testamento que narra o nascimento do Tempo,
a origem da infelicidade humana e as etapas sucessi­
vas percorridas pelo Povo que recebeu o privilégio e a
desgraça de reunir em sua história a sorte do homem
e, de outro lado, pelo Novo Testamento que oferece, no
surpreendente destino do Cristo e na fundação da Igre­
ja, o meio para cada um de dominar o devenir, de orde­
ná-lo na medida de sua vida de modo favorável e de
ajudar, na escala da humanidade toda, a realização do
propósito previsto e pretendido por Deus. Finalmente,
a inteligibilidade da história profana não está em si
mesma, mas fora dela, na Revelação. O tempo histórico,
assim concebido, possui, em relação às perspectivas
dos historiadores da Antigüidade, o privilégio de conter

221
originalidade e ser o lugar no qual o indivíduo, senhor
de seus atos, constrói seu destino e participa de uma
tarefa; continua, no entanto, sendo a manifestação do
Querer que o criou e que o suprimirá quando for che­
gada a hora. Não se mostra como dimensão natural do
homem; é aquilo em que Deus quis que a alma se ex­
perimente e se tempere, Deus que, também, decidiu
que o devenir seja ao mesmo tempo o domínio do Pe­
cado e do abandono e o da Redenção e da recuperação.
Em semelhante perspectiva, não se trata de ocupar-
se com o pormenor da história profana: contam ape­
nas os acontecimentos que manifestam a Providência
divina; trata-se de confirmar um sentido do tempo a
respeito do qual nenhuma dúvida é possível, sentido
que o mistério dos caminhos de Deus pode provisoria­
mente obscurecer aos olhos de um espírito ignorante. O
devenir real — na significação moderna da palavra
real — é finalmente um pretexto (sem que se deva
atribuir a esse termo um sentido pejorativo) à demons­
tração que se sabe dever apresentar. A evolução dos co­
nhecimentos, a novidade dos objetivos políticos pòdem
levar os pensadores de inspiração cristã a grandes com­
plicações: Bossuet não pôde tratar com tanta facilidade
quanto Santo Agostinho a história romana. Vico desco­
briu na “filologia” provas suplementares que o obriga­
vam a complicar o conjunto do sistema, e a diversidade
dos elementos conservados colocava a paixão herderiana'
diante de tuna tarefa da qual só se desincumbe graças a
sucessivos golpes de força, confusos e emocionantes.
Mas, em todos os casos, a prova da verdade histórica é
secundária: basta, para falar como Tucídides, “que seja
provável que tenha sido assim” .
A esse respeito, o pensamento hegeliano — na me­
dida em que tem como ponto de partida, não só a dou­
trina cristã, mas também a reflexão sobre a Cidade gre­
ga e os acontecimentos decisivos que foram a Revolução
Francesa e o aparecimento do Estado moderno02 — re-

62 Cf. J. Hyppolite, "Introdução à Filosofia da História de Hegel,

222
presenta um progresso considerável no sentido de uma
concepção mais científica da história humana. Não que
Hegel tenha atribuído importância maior aos documen­
tos históricos: mas, na medida em que os conhecia, es-
forçava^se em compreendê-los sem referir-se a qualquer
revelação não histórica que assegurasse sua inteligibili­
dade; e, por insuficiente que possa ser o conhecimento
histórico do autor das Lições sobre a filosofia da história,
resta que o princípio graças ao qual o devenir adquire
sua racionalidade é imanente a esse próprio devenir. Se
existe uma teleologia no sistema hegeliano, encontra
fundamento no que Hegel julga ser o movimento próprio
da cultura humana. O Espírito não é historicamente
anterior à sua formação: nela manifesta a necessidade
de seu aparecimento, jamais, porém, a precede nem a
excede. A revelação que se efetua na história constitui
uma revelação da história antes de ser uma revelação
pela história. A temporalidade não é mais concebida co­
mo o domínio no qual se desenha uma essência já feita;
a originalidade que faz aparecer não se deixa reduzir a
qualquer modelo, seja qual for: é originalidade real,
inesperada, fruto da vontade humana à procura de uma
satisfação que se esforça em conquistar contra a alteri-
dade. O homem se realiza na história, não na medida
em que simplesmente nela se mostraria, mas porque
nela se constrói e se completa. O fim da história não é
considerado como fim do Tempo, momento em que a
essência humana a-histórica e liberada se manifestaria,
mas como momento em que, no e pelo Tempo, o homem
consegue ser o que jamais deixou de querer ser: um
ser temporal e satisfeito.
Resta que a Filosofia da história, em seu conteúdo
histórico preciso, embora contenha resumos admiráveis,
visões surpreendentes, não pode de modo algum ser qua­
lificada de científica, no sentido moderno do termo, pois

e o artigo “A significação da Revolução Francesa na “Fenomenologia”


de Hegel, incluído nos Estudos sobre Marx e Hegel, pp. 45 ss.

223
a exata determinação dos acontecimentos e de seu enca­
deamento, o estudo histórico justificado, não interessam
a Hegel. E não porque, como se disse muitas vezes, des­
preze semelhante técnica, mas porque essa técnica, em
sua época, ainda não se achava constituída. Constitui-
se, nessa primeira metade do século XIX, por motivos e
razões múltiplas, entre as quais devemos também incluir
os caminhos abertos pelo hegelianismo. Essa negligên­
cia em relação aos fatos está ligada, mais profundamen­
te, à estrutura de conjunto do sistema: na medida em
qus o homem é considerado em seu ser essencial como
logos, o que se considera importante no vir-a-ser é a
sucessão dialética dos princípios ideais em que a huma­
nidade procura reconhecer-se. Assim, quando a Fenome-
nologia do espírito se refere aos acontecimentos da his­
tória real ou a atitudes existenciais, é menos para co­
nhecê-los em si mesmos do que para neles descobrir a
manifestação da passagem necessária da Consciência ao
Espírito. Assim também, as Lições sobre a filosofia da
história utilizam o dado histórico para por em evidência
o movimento interno que, através do gênio e as ações dos
diversos povos, levou a conhecer e querer o Estado ra­
cional cuja realização se esboça no presente do Império
germânico: “que a história universal seja o curso desse
desenvolvimento e o devenir real do Espírito no espetá­
culo mutável de suas histórias — essa é a verdadeira
Teodicéia, a justificação de Deus na história. Somente
essa luz pode reconciliar o Espírito com a história uni­
versal e a realidade, mostrando que o que aconteceu e
acontece quotidianamente não só não está fora de Deus
mas é ainda essencialmente sua própria obra” 0:1. Essa
fórmula final das Lições define bem o que opõe e o que
une a filosofia cristã da história e a de Hegel. Para a
primeira, o devenir efetivo é a ocasião de fazer apare­
cer o princípio a-histórico da história; para a segunda,
é a manifestação de uma ordem histórica, sem dúvida,

63 P. 409.

224
mas que permanece ordem “ideal” . O Espirito se fsz
história; esta, porém, ainda não adquiriu esse estatuto
de realidade “exterior” a reclamar um estudo objetivo.
A passagem ao homem empírico, tornada necessária pelo
“malogro” da filosofia, se faz acompanhar nesse domínio
pela promoção de uma história puramente profana. Se­
ria esquemático pensar que Marx e Engels foram os úni­
cos autores dessa revolução; já salientamos suficiente­
mente a importância do hegelianismo a esse respeito e
julgamos desnecessário insistir novamente em seu cará­
ter decisivo. Deveríamos, também, insistir no papel da
tradição da erudição histórica que, depois da escola de
Blondus, desenvolveu-se lentamente e de modo oculto e
só eclodiu no século X IX . Marx, aliás, mostrou muito
bem tudo o que devia à técnica histórica propriamente
dita04. Esta — cujos métodos atualmente progridem
sem cessar e cujos resultados se tornam cada vez mais
importantes — recusa-se a formular questões filosóficas
prévias: como toda ciência, considera o saber que pre­
tende elaborar como conhecimento de um objeto em si,
com um modo de existência próprio, implicando um mo­
do original de apresentação. Nessa ótica, a história
rerum gestarum nada poderia revelar senão os res gestae
e os princípios — se é que existem — que governam sua
sucessão; além do acontecimento limitado, podem ape­
nas projetar-ss outros acontecimentos mais amplos ou
mais importantes. Em outros termos, a ciência históri­
ca, por decisão, por assim dizer, considera a atividade
humana como essencialmente profana e histórica; tem,
pois, imediatamente como objeto o homem empírico.
Talvez se explique, assim, porque, na superação da filo­
sofia, desempenhou o desenvolvimento da história papel
tão considerável.
Sem dúvida, a constituição de tal disciplina suscita
questões metodológicas de extrema dificuldade; sem dú­

64 Cf. sobre esse ponto, em particular, as observações de G . Plékha-


nov, Augustin Thierry e a Concepção materialista da história, em Ques-
tõcs fundamentais cio marxismo, pp. 179-195.

225
vida, obriga a enfrentar problemas que a filosofia costu­
ma formular. O que exige, no entanto, a ciência histó­
rica, é que essas interrogações, por mais justificadas que
sejam, não levem a trair seu estatuto próprio e sua prá­
tica efetiva. Nesse sentido, é lícito, atualmente, que re­
pila como destituídas de seriedade histórica as filosofias
da história, que a maioria das vezes são filosofias sobre a
história, que emita dúvidas sobre o valor das explica­
ções gerais que substituem o estudo do conteúdo por
esquemas de inteligibilidade pressupostos. Não se per­
mite explicar um acontecimento a não ser por outro
acontecimento também situado historicamente e susce­
tível, por isso mesmo, de explicação histórica. Que tal
programa apresente dificuldades técnicas consideráveis,
não há dúvida; que a prática histórica veja sua tarefa
complicada ainda pelo fato de que o conhecimento que
visa é indireto, que a própria situação histórica do pes­
quisador interfira e contribua para falsear as perspecti­
vas, isso é evidente. Mas, seria uma leviandade exigir
do historiador, como fazem freqüentemente os filósofos,
que alcance desde logo a determinação integral, enquan­
to é perfeitamente admissível, aliás, que as ciências da
natureza apresentem de seu objeto um conhecimento
exato e aproximativo. O que é importante e o que reivin­
dica a história moderna em suas próprias produções,
além das preocupações metodológicas legítimas e dos es­
crúpulos excessivos suscitados por reflexões filosóficas
por demais preocupadas com a eternidade, é que seu
objeto, o passado humano em sua efetividade, seja con­
cebido como um dado existente independentemente da­
quele que o estuda, uma reatidade-passada e não pre­
texto para moralizar, ocasião de “provar” princípios
preestabelecidos ou construção de um sujeito historizan-
te. Uma coisa é considerar o devenir como o domínio no
qual se forma a humanidade e que me esclarece sobre
meu próprio destino, outra é acreditar que fabrico o
passado humano em função de meus desejos e de minha
situação atual.

226
Esse reconhecimento da realidade do passado como
passado real e inteligível (suficiente e aproximativamen-
te) constitui elemento importante na elaboração do con­
ceito do ‘homem-empírico’. Um dos aspectos da “repo­
sição nos pés” da dialética hegeliana“5 — que provocou
tantas interpretações formalistas — consiste, ao que pa­
rece, em substituir à noção metafísica de uma essência
humana onitemporal, ou à idéia hegeliana de uma evo­
lução ideal da consciência fazendo-se Espírito, a pers­
pectiva de um devenir ao longo do qual o homem, em
sua atividade sensível, forja sua própria realidade. Assim
como a historicidade confere conteúdo ao conceito da
materialidade, assim também a consideração da mate­
rialidade, da dialética do trabalho e da necessidade, per­
mite apreender a evolução da humanidade em seu mo­
vimento efetivo. O materialismo histórico em seu prin­
cípio não diz outra coisa: compreende-se, antes de mais
nada, como oposição e superação do idealismo histórico
de tipo hegeliano que interpreta a história como deve­
nir do logos: o agente histórico não é o homem que pensa
e fala, mas aquele que produz e reproduz as condições
de sua existência sensível, que maneja o arado, o chicote
ou a espada, que troca os produtos de sua atividade ou
que vende a força de seu trabalho e, isso, apesar da
opinião que pode ter sobre a sua própria situação, sua
ação ou seu ser. O móvel fundamental da mudança nas
modalidades da existência humana é, pois, o homem em
seu ser diferencial: como pensamento, mas o homem em
seu ser fundamental; como necessidade e como trabalho,
como necessidade social e como trabalho social. A rela­
ção decisiva é a da atividade humana sensível com a
“natureza”: entre os dois termos, o devenir vai forjar
uma série de mediações reais ou ideais, mas o fundo da
relação permanece o problema da satisfação empírica e
de sua reflexão pela consciência. Finalmente, quer di­
zer, em última análise, a prática humana, tal como a

65 O Capital, Posfácio da 2? edição alemã, t. I, p. 29.

227
tentamos definir em suas modalidades históricas, é o
acontecimento pelo qual o processo de formação do ho­
mem empírico — quer dizer, o próprio homem — tor­
na-se inteligível em suas determinações reais00.
A prática humana, porém, é prática social: desde
que atinge certo estágio de desenvolvimento técnico, re­
quer a divisão das atividades humanas. Ora, essa divisão
do trabalho, permite a certos homens, os mais fortes, os
mais hábeis, os mais bem situados pelo acaso, utilizar o
trabalho dos outros para obter a satisfação; frustram
aqueles que trabalham — pela violência ou por um di­
reito que seu poder lhes permite impor como ordem
“natural” — de uma parte dos produtos de sua ativi­
dade; porque conseguiram apoderar-se dos instrumentos
de produção: terras, gado e, de modo geral, utensílios,
compelem os outros a trocar toda sua força de trabalho
por uma satisfação reduzida à estrita manutenção da
vida. Criam-se, assim, duas classes de homens: a dos
proprietários — na medida do progresso técnico as mo­
dalidades da posse se complicam e se diversificam — qus
se esforçam, desde que o Estado se constitui como reali­
dade refletida, em ocupar os postos de governo, as fun­
ções religiosas e que utilizam as forças coercitivas: o
exército e a polícia, para assentar seu domínio, e o dos
trabalhadores que dispõe de um único recurso para as­
segurar sua simples sobrevivência, a locação de sua força
de trabalho. De um lado, uma classe que, no ritmo do
acréscimo do poder humano sobre a natureza, multiplica
os objetos de sua satisfação, de outro, uma classe redu­
zida a estagnar na triste dialética quotidiana da neces­
sidade e do trabalho; de um lado, os “Filhos do Céu”,
que neles podem realizar a humanidade, que podem
pensar; de outro, os “Filhos da Terra”, reduzidos à ani­
malidade e privados de um futuro propriamente huma­
no. A sociedade escravista grega e Esparta, em parti-

66 Para tudo o que se segue, cf., em particular, o Manifesto Comu­


nista.

228
cular, cuja história é uma espécie de resumo dessa cisão
de mundo humano em dois grupos absolutamente dis­
tintos, constitui o exemplo mais claro dessa situação.
Sem dúvida, entre as diversas camadas de proprietários,
podem surgir conflitos, e ambições pessoais podem per­
turbar provisoriamente essa ordem: mas, em caso de
perigo, a solidariedade dos exploradores rapidamente se
recompõe e não tem dificuldade em triunfar.
A sociedade grega, no entanto, — e as sociedades
orientais que a precederam — representam uma espécie
de limite. As circunstâncias históricas e o baixo nível
das forças produtivas impediram que, nessas sociedades,
a classe explorada se erguesse contra os proprietários a
não ser em revoltas de pequeno alcance. De fato, o es­
tudo histórico, confirmando a análise do homem como
materialidade ativa, mostra que o desenvolvimento das
técnicas, a acentuação da divisão do trabalho, a inten­
sificação das relações entre os homens, ligado ao pro­
gresso das trocas comerciais e à multiplicação das guer­
ras de conquista, o aumento dos bens embora continue
a beneficiar principalmente os proprietários, repercutem,
de fato, na totalidade da sociedade e das relações so­
ciais. Por uma série de causas, cuja natureza deve ser
estudada em cada caso histórico em especial, os explo­
rados tomam uma consciência confusa de sua situação
comum; grupam-se espontaneamente em torno de temas
ideológicos que exprimem freqüentemente, de maneira
bem obscura, suas reivindicações reais na luta contra a
opressão, para disputar com os proprietários o poder po­
lítico e retomar a posse dos produtos de seu trabalho.
As “jacqueries”, as revoltas camponesas e burguesas, os
“regicídios”, as revoluções, manifestam o fato de que
toda a história é “história da luta de classes” . Mais pro­
fundamente, e excluindo esses episódios de violência,
cuja interpretação adequada, repetimos, supõe uma aná­
lise rigorosa das circunstâncias em que se produziram, o
movimento do devenir humano em seu conjunto, expli­
ca-se pela oposição entre a classe daqueles que detêm a

229
propriedade dos meios de produção e a classe daqueles
que possuem apenas sua força de trabalho.
Para o homem, o meio de libertar-se da alienação
natural é a atividade trabalhadora; ora, a constituição
histórica da sociedade em classes engendra outro tipo de
alienação, histórica, artificial, por assim dizer, que con­
dena a maior parte da humanidade à estagnação ani­
mal e a impede de aproveitar plenamente a multiplica­
ção dos objetos da satisfação resultante do progresso das
técnicas de trabalho, que retarda também esse progresso
e, assim, freia o desenvolvimento e o enriquecimento da
natureza humana: o meio de libertação que então se
apresenta é a luta política contra a classe dominante.
Entendamos bem: assim como o trabalho, a luta de clas­
ses é um fato fundamental revelado pelo estudo da his­
tória. Não é um instrumento forjado pelo filósofo ou pe­
la política com o propósito de suprimir a alienação:
existe como móvel efetivo da história desde d momen­
to em que a elevação do nível das forças produtivas per­
mite ao homem tomar consciência mais exata da estru­
tura da vida social. Esse último ponto mereceria ser es­
clarecido e aprofundado: embora não se trate aqui, de
analisar a natureza das “ideologias” e o papel desempe­
nhado pelo “pensamento” no desenvolvimento da his­
tória humana, é importante, no entanto, notar — para
definir a relação do materialismo com o idealismo histó­
rico — que o fato da tomada de consciência é considera­
do decisivo pela concepção marxista. Todavia, o momen­
to da tomada de consciência e o conteúdo próprio da
consciência são também determinados historicamente pe­
las condições de existência: era, sem dúvida, pela “fal­
ta de compreensão” das estruturas sociais reais que os
escravos não se revoltavam na Grécia; era também por
deficiência científica que Aristófanes propunha como
remédio para os males da Cidade “o retorno aos bons
tempos”, que Tucídides esperava o advento de um che­
fe da envergadura de Péricles, que Platão edificava
uma Calípolis ideal: mas, essa passividade da classe ser­
vil, esse “idealismo” do pensamento helénico compre-

230
endem-se pelo nível das forças produtivas da época, pela
base política e econômica da Cidade grega. A decisão
tomada por Tucídides de fazer história, a de Platão de
filosofar — como a de Lutero de travar a luta contra
certas estruturas feudais — só se tornam inteligíveis em
relação com a problemática efetiva que se apresentava
a esses pensadores no quadro de sua sociedade, proble­
mática essa determinada pela situação concreta dessa
sociedade.
Entre as condições de existência, cujo conteúdo é
muito complexo, e a decisão ideológica e política, as me­
diações são numerosas. Variam no conteúdo e na orga­
nização de acordo com as épocas e nenhum esquema das
mediações necessárias pode ser estabelecido de uma vez
por todas67. O que o materialismo histórico afirma, quan­
do apresenta a consciência como determinada pelas con­
dições de existência, é o fato de que o conteúdo da cons­
ciência encontra sua origem e explicação no conteúdo
da situação histórica. Mas, o segundo pode ser determi­
nado pelo primeiro de diferentes maneiras: assinalemos,
por exemplo, que uma doutrina como a platônica cons­
titui a expressão exata de uma situação, a da Grécia
após a Guerra do Peloponeso e a condenação de Sócra­
tes, situação na qual nenhuma solução efetiva para o
problema humano da satisfação e da violência pode ser
concebida e aplicada: a fuga no imaginário é imposta
por um estado econômico e político tal que força algu­
ma é capaz de promover a organização conveniente; nes­
se sentido, a perspectiva platônica, que tão leviana e
anacronicamente se qualificou de reacionária, é univer-
salista. Opõe-se, nesse sentido, à de Aristófanes que ado­
ta o ponto de vista particular dos proprietários rurais
arruinados pela Guerra do Peloponeso e que só vê como
remédio para as desordens da Cidade a exaltação, ain­
da mais abstrata, da vida simples e alegre dos ancestrais.

67 Para a justificação dos exemplos aqui apresentados e a explicação


do conceito de “decisão”, cf. O nasemento da História, Conclusão.

231
Platão só atinge a universalidade refugiando-se na uto­
pia; Aristófanes adota uma posição de classe (também
irrealizável aliás) na medida em que sustenta os inte­
resses daqueles que são arruinados pela guerra da de­
mocracia ateniense contra a oligarquia espartana, fun­
dada economicamente no desenvolvimento do artesana­
to, da “indústria”, do comércio, da colonização. Teria
sido necessário, para que uma solução satisfatória fos­
se dada ao problema da Cidade e, mais geralmente, ao
da violência, que um pensador pudesse conceber a sig­
nificação da escravatura; ora, tal concepção, precisa­
mente, não poderia nascer numa época em que a clas­
se servil não estava constituída como classe, em que o
baixo nível das forças produtivas não permitia compre­
ender a função da atividade trabalhadora.
Esses dois simples exemplos talvez bastem para
mostrar a que grau de complexidade é preciso levar a
teoria da determinação a fim de atribuir-lhe alcance ex­
plicativo. Poderíamos mostrar como, nos tempos moder­
nos, uma situação histórica e econômica permita apre­
ender a verdade das relações humanas e o papel deter­
minante da luta de classes, mas também como a pres­
são da classe dominante, o mundo das “idéias” e dos “va­
lores” de que se envolve, contribuem — sem que se trate
sempre da parcialidade dos pensadores — para promo­
ver ideologias que deformam a realidade, a interpretam
parcialmente ou obscuramente e assim a falseiam. Deve­
ríamos, também, salientar o fato de que os acontecimen­
tos reais — políticos, econômicos, descobertas científicas
— interferem para introduzir nessas ideologias parciais
elementos positivos e provocam sua evolução no senti­
do de interpretações mais exatas da situação. Resta que,
por mais numerosas que sejam as mediações que devam
interferir, por maior que seja a ductilidade que conve­
nha adotar, e a importância que se deva atribuir à to­
mada de consciência, à decisão histórica e ideológica,
que o termo último da explicação, visto que constitui o
fundamento da vida humana empírica, é a produção e
a reprodução dos meios de existência e, por isso mesmo,
a luta de classes (ou de camadas sociais, caso em que a

232
classe trabalhadora não participa diretamente do deve-
nir histórico) que a propósito se estabelece.
Assim, o homem, em sua realidade fundamental, re­
vela-se como materialidade ativa em luta contra a na­
tureza, como ‘ser-histórico’, quer dizer, a um tempo co­
mo agente da história e como nela se forjando, que pro­
cura a satisfação — termo geral que não indica apenas,
mas em todo caso, antes, a satisfação empírica (cujo
próprio conteúdo evolui historicamente em função do en­
riquecimento da “natureza” humana devido ao progres­
so da técnica) —, que se acha logo empenhado numa
luta social e que exprime em seus atos históricos, em
suas produções ideológicas, seja direta, seja indireta­
mente, os problemas reais implícitos na luta contra a
natureza e na sociedade. É à luz dessa concepção que de­
vem ser repensadas as perguntas capitais da filosofia;
retomada em sua formulação e em seu conteúdo e não
afastadas — como julga o positivismo —, não apenas
resolvidas — o que seria abstrato e representaria grave
empobrecimento da revolução operada pelo marxismo
—, nem simplesmente realizadas — como pretendia o
hegelianismo de esquerda.

Não teria cabimento, na perspectiva que procura­


mos definir, pedir ao materialismo histórico que deter­
minasse o fundamento no qual se apóia para desenvol­
ver e defender a sua concepção da realidade. O único
fundamento, a única legitimação que pode pretender
reivindicar, é o próprio conteúdo da concepção que pro­
põe, na medida em que essa concepção é capaz de tor­
nar inteligível o passado e o presente do homem e defi­
nir a ação correta correspondente às forças sociais reais
em luta contra a alienação e a insatisfação. O marxis­
mo compreende, nesse sentido, o problema da legitima­
ção e do fundamento como o compreendia Hegel: não po­
de interessar ao marxismo, procurar algum fato último,

233
ou alguma zona neutra e prévia, a partir dos quais todo
problema, tornando-se claro, se acharia proposto e re­
solvido, nem recorrer a qualquer espécie de intuição.
Já salientamos o fato de que a referência a uma in­
tuição moral, interpretada como apreensão do “valor”,
deve ser considerada estranha ao pensamento materia­
lista: tal referência faria toda a doutrina resvalar para
a contingência e a exporia a responder somente por
afirmações arbitrárias às afirmações gratuitas daque­
les que escolheram recorrer a outra “transcendência”
ou a outro “valor”. A vontade lúcida e resoluta de su­
primir a sociedade de classes, sociedade que está na ori­
gem da alienação, não poderia justificar-se apenas pelo
fato do sofrimento histórico, da insatisfação empírica,
do não reconhecimento e pelo caráter moralmente es­
candaloso desse fato; e também não basta dizer que tem
sua raiz na luta efetivamente travada pelas forças so­
ciais empenhadas em suprimir a exploração do homem
pelo homem; na verdade, já é essa luta enquanto sua
expressão lúcida. A propósito, é importante distinguir
várias perspectivas: é sempre lícito perguntar a um pen­
sador marxista por que preferiu adotar uma posição ma­
terialista e revolucionária; as respostas serão múltiplas
e é concebível que, entre essas respostas, algumas façam
referência à noção de um “valor” humano (a justiça, a
solidariedade, o humanismo); nesse ponto.' porém, a
reflexão só pode apresentar formulações inconsistentes e
vagas. Na ótica da reflexão séria, com efeito, o pensa­
mento materialista revolucionário não pode conceber-se
como o resultado de uma opção exterior ao devenir que,
livremente, optaria entre as forças históricas, pela que
convém à sua preferência moral. O marxismo é, como
tal, um elemento objetivo, historicamente situado, da lu­
ta real travada pela humanidade contra o fato históri­
co da alienação e da insatisfação. Assim como, para o
hegelianismo, o fundamento do sistema se encontra no
devenir do Espírito cujo êxito é o Sabsr absoluto, assim
também, para o materialismo marxista, a legitimação é
constituída pelo combate do homem-empírico que, a par­

234
tir de certa época, é capaz de elevar ao conceito o que
procurava confusamente e de determinar claramente a
teoria e a prática capazes de realizar sua vontade.
É evidente que o recurso a um dado “gnosiológico”,
ao qual se atribuiria o valor de uma prova, é também
excluído pela estrutura da teoria marxista. Ocorre fre­
qüentemente a pensadores marxistas, absorvidos pela
tarefa pedagógica ou compelidos pela exigência polêmi­
ca, simplificar sua perspectiva e apresentá-la como ten­
do fundamento no fato perceptivo, que teria assim o
privilégio de mostrar tanto a materialidade do mundo
quanto o estatuto sensível do homem. Já insistimos nes­
se ponto: por mais justa que seja, essa interpretação da
percepção não pode de modo algum constituir um argu­
mento suficiente para fundamentar o marxismo; ela o
reduz ao nível mesmo das doutrinas metafísicas que se
esforça em combater e superar na medida em que chega
a opor abstratamente a um tipo de intuição — a que o
sujeito tem de si mesmo e de sua própria atividade —
outro tipo de intuição, a intuição sensível. Deve-se con­
fessar que, mesmo situando-se nesse terreno, o materia­
lismo se coloca em posição difícil e deve logo entregar
as armas às filosofias da subjetividade. Já se demons­
trou, com excessiva clareza, de Descartes a Husserl, que
a atividade perceptiva permanece incompreensível se
não for fundamentada num “eu penso” que lhe confira
alcance e significação para que se tenha o direito de
apoiar-se, simplesmente e como se não houvesse proble­
ma, sobre a “evidência sensível” em estado bruto. Tam­
bém mostramos, no começo deste trabalho, as reservas
que convém fazer a propósito da referência às ciências
positivas; essa referência, plenamente compreensível na
ótica da revolução operada por Marx, não poderia repre­
sentar justificação filosoficamente aceitável. A intuição
epistemológica é tão pouco probante quanto a intuição
sensível e a intuição moral: ao mesmo título que estas
últimas, no propósito de uma justificação definitiva, in­
clina o conjunto da doutrina no sentido do injustificado
e reduz sub-repticiamente o saber à opinião.

235
Numa perspectiva desenvolvida por Hegel e da qual
ele próprio havia demonstrado a justeza, a única legiti­
mação exigível consiste na legitimidade do conteúdo. O
problema do fundamento, como procura de um fato que
fosse anterior e exterior à exposição e à realização da
ciência, deve ser rejeitado como desprovido de sentido.
Quer isso dizer que a verificação da concepção marxista
seja idêntica à que se emprega, de acordo com o posi­
tivismo, nas ciências particulares? Essas ciências apre­
sentam, como prova da validade de seus enunciados, as
possibilidades de previsão e de ação correta que propor­
cionam: não há, para eles, problema do fundamento
porque consideram essa questão fora do âmbito de sua
competência. Seria tentador interpretar o marxismo na
mesma ótica: o que o justificaria, no nível da teoria, se­
ria o fato de que assegura a inteligibilidade do devenir
humano e, no nível decisivo da prática, o seu êxito efe­
tivo. Assim, é comum apresentar-se como 'prova da jus­
teza das idéias de Marx o desenvolvimento histórico após
a publicação do Manifesto comunista, salientando acon­
tecimentos como as lutas operárias, a Revolução de Ou­
tubro, a construção do socialismo na União Soviética e
os progressos do regime da propriedade coletiva dos meios
de produção no mundo. A concepção marxista constitui­
ria uma hipótese de trabalho que os fatos confirmam e
da qual se poderia dizer agora, mais ainda do que no
tempo de Marx, que é verdadeira, dessa verdade que o
positivismo atribui às ciências experimentais.
Há certa ambigüidade nessa maneira de apresen­
tar o “fundamento” do materialismo. Afirmar que a le­
gitimação é dada no próprio conteúdo, é dizer que a
justificação última se encontra nos fatos que o conteú­
do reflete; e é verdade que os acontecimentos evocados
confirmam a justeza da análise marxista. O problema,
no entanto, permanece: como se explica que o marxis­
mo tenha conseguido tornar sua época inteligível, que
tenha descoberto conceitos capazes de assegurar a cla­
reza da história, que tenha proporcionado às forças so­
ciais revolucionárias perspectivas e palavras de ordem

236
que tenham permitido alcançar vitórias? A solução de
tal problema é importante: constitui a resposta às
imputações que se fazem freqüentemente ao marxismo
de ser apenas a expressão de certa vontade de poder, a
de determinado grupo histórico, que, tendo encontrado
hábil e maquiavelicamente fórmulas “explosivas”, obte­
ve êxito dos quais se prevalece para apresentar-se como
verdade absoluta. Em outros termos, é capital desfazer
o equívoco implícito na noção de confirmação ou de jus­
tificação da teoria pela prática: é claro que tal noção
pode ser facilmente interpretada numa ótica pragmáti­
ca ou cínica e tornar-se, então, a oportunidade de um
edulcoramento do marxismo e de uma possibilidade cons­
tante para seus adversários de refutá-lo vitoriosamente.
Tudo se esclarece a partir do momento em que se com­
preende o marxismo, a um só tempo, como conhecimen­
to da sociedade moderna altamente industrializada e
como produto objetivo do desenvolvimento dessa socie­
dade. De fato, é na existência desse regime capitalista
que ela combate com tanto vigor que a concepção ma­
terialista encontra sua justificação histórica. A socieda­
de industrial moderna possui estruturas tais que mani­
festa, no nível da existência quotidiana, o homem em
sua realidade efetiva. O enorme desenvolvimento das
forças produtivas, a partir do século XIX, especialmente,
o crescimento concomitante do domínio do homem so­
bre a natureza, a socialização do trabalho, a constitui­
ção de um mercado mundial, a transformação contínua
que o capitalismo, para sobreviver, deve introduzir nas
relações de produção, todos esses fatores fazem apare­
cer objetivamente, no seio da atividade sensível, os ele­
mentos que desempenham e, de certo modo, revelam a
humanidade a si mesma. A sociedade industrial, desde
o momento em que atinge suficiente estágio de desen­
volvimento suficiente, suscita condições novas que evi­
denciam, por si mesmas, o estatuto humano concreto:
suscita, pelo mundo que cria, a possibilidade de conhe­
cer a verdade e de determinar conceitos gerais válidos
para o conjunto da história.

237
É possível que alguém se surpreenda com semelhan­
te privilégio. As formações econômicas e sociais anterio­
res não eram assim geradoras de lucidez: a sociedade
antiga e a sociedade medieval, que repousam sobre tipos
determinados de relações do homem com a natureza e
com a sociedade, são acompanhadas, ao contrário, de
ideologias que mascaram os traços fundamentais da rea­
lidade humana, seja porque representem um ponto de
vista particular, seja porque constituem uma fuga para
o universo abstrato. Se a grande indústria possui a pos­
sibilidade de sua compreensão objetiva (e, veremos, de
sua plena realização) é, na realidade, porque é um re-
svltado. Seu desenvolvimento, em determinadà época,
está ligado a causas históricas rigorosas, que a análise
descobre a propósito da cada nação moderna: mas, se
considerarmos o conjunto do movimento, é fácil perce­
ber que a sociedade industrial representa o desfecho e o
êxito de séculos de esforços confusos e de lutas encar­
niçadas visando assegurar o domínio da natureza pelo
homem, de desprender o indivíduo da submissão às ne­
cessidades empíricas pela sua satisfação, fazer do mun­
do, não o lugar ameaçador no seio do qual o homem está
simplesmente presente, mas o domínio da habitação
onde ele se torna construtor e conquistador. Esse com­
bate pela satisfação empírica manifesta-se, em todas as
épocas e em todos os níveis, pela procura corajosa dos
descobridores, dos técnicos, dos construtores que ten­
tam tornar mais poderosa a atividade humana e mais
amplo o setor que ela domina. A fraqueza relativa dos
resultados obtidos e sua dispersão não permitem que se
perceba toda sua importância. Todavia, esse movimen­
to amplo e confuso que acumulou os progressos técni­
cos, que suscitou o aparecimento de uma classe intei­
ramente voltada para a fabricação e utilização dos bens
sensíveis, encontra bruscamente sua realização: essas
aquisições penetram o conjunto da sociedade, materiali­
zam-se, de certo modo, na sociedade industrial. É sem­
pre lícito deplorar que semelhante mudança tenha ocor­
rido e lamentar que o homem não se tenha contentado

238
com a vida simples e natural, com a “presença”: deve­
mos crer que essa presença não o satisfazia pois quis
outra coisa e escolheu, para atingir a satisfação, não o
elemento da natureza, mas a vida histórica.
Assim, o mundo moderno, enquanto é o mundo no
qual o poder do homem sobre a natureza assume am­
plitude suficiente, reúne as condições do êxito desse es­
forço tendente à satisfação universal que a filosofia, com
as possibilidades de que dispunha, tentava definir e pro­
porcionar. O homem liberto da servidão da necessidade
e que, no entanto, nada suprime de sua riqueza natu­
ral e que é capaz de abolir efetivamente a alteridade
transformando a coisa em objeto humanizado, não é o
homem religioso que só alcança a plenitude no momen­
to em que deixa precisamente de ser homem; não é tam­
pouco o filósofo que pensa a satisfação mas não conse­
gue vivê-la e deve constantemente escolher entre o com­
promisso e a morte. O domínio das forças naturais e o
aumento considerável dos meios técnicos postos à sua
disposição, devem tornar possível a realização desse
homem. E na medida em que lhe é possível, satisfazen­
do-o, distanciar-se de seu ser sensível, descobre seu ca­
ráter fundamental; na medida igualmente em que se
torna agente de sua história, percebe seu estatuto his­
tórico. A sociedade industrial possui portanto um pri­
vilégio: o de trazer os meios de tornar efetivo o que o
homem jamais deixou de querer no sofrimento histó­
rico: a constituição de um mundo humano08.

68 “A sociedade burguesa é a organização da produção mais desen­


volvida e mais complexa da história. As categorias que exprimem suas
condições, a compreensão de sua estrutura, lhe permitem, ao mesmo
tempo, compreender a estrutura e as condições de produção de todas
as formas anteriores da sociedade, sobre cujos elementos e ruínas ela
própria se edificou, da qual continua a arrastar algumas relíquias, da
qual alguns elementos embrionários atingiram agora seu pleno desen­
volvimento, etc... A anatomia do homem dá a chave da anatomia do
macaco”. Contribuição à Crítica da Economia Política, apêndice III, p.
295.

239
E esse privilégio repercute na concepção que o re­
flete corretamente. A obra essencial de Marx é O Capital;
uma obra importante de Lênin é O Imperialismo, está­
gio supremo do Capitalismo. O conteúdo desses dois li­
vros é a analise de uma situação de fato, característica
da sociedade industrial em dois estágios determinados
de sua evolução. Ambas se esforçam em descrever exa­
tamente o estatuto da humanidade revelando suas es­
truturas profundas: cumprem, de certo modo, o progra­
ma que se propunha Hegel ao afirmar que a única ta­
refa deixada ao pensamento era descrever o que é —
tarefa que não pôde levar a bom termo porque se dete­
ve no biombo da vida política e não determinou suas
raízes empíricas. Essa descrição exata, no entanto, per­
mite forjar conceitos que — como fio diretor do estudo
e somente assim — constituem princípios de alcance
■universal e podem ser aplicados a outras sociedades além
da sociedade industrial em sua fase capitalista. A análi­
se do regime capitalista enquanto representa — em cer­
ta medida — o êxito da sociedade industrial e enquanto
também faz surgir em toda clareza as crises profundas
que podem atingi-lo, proporciona os elementos capazes
de assegurar a inteligibilidade do pâssado humano. A
utilização desses elementos exige as maiores precauções:
é evidente que jamais podem autorizar a desconhecer os
próprios fatos ou a desqualificá-los como desprovidos de
importância. São numerosíssimos os exemplos de pensa­
dores que, inspirando-se nos textos dos fundadores do
marxismo, imaginaram ser suficiente, para dissipar os
enigmas da história, aplicar, por exemplo, o conceito da
luta de classes, substituindo assim à vida concreta da
humanidade esquemas rígidos e sem verdade. Essas con­
trafações, no entanto, não permitem rejeitar princípios
gerais de inteligibilidade propostos pelo marxismo —
não como axioma, não como hipótese de trabalho — mas
antes como princípios reguladores da pesquisa, funda­
dos no fato de que o mundo moderno, fazendo existir
realmente e trazendo à luz o que até então era e perma­
necia simplesmente oculto, suscita também uma con­

240
cepção de conjunto que vale para ele e para o devenir
histórico em sua generalidade.
Elevando ao conceito as determinações da sociedade
industrial, “sociedade universal”, o materialismo histó­
rico apresenta a possibilidade de uma concepção univer-
salista do passado. A autoridade que assim adquire não
se limita, porém, às considerações técnicas: não funda
somente uma economia política e uma doutrina da his­
toricidade humana objetivas; afirma também nelas des­
cobrir uma política. Uma contradição que já havíamos
encontrado a propósito do hegelianismo de esquerda pa­
rece ressurgir aqui: como é possível conciliar a preocu­
pação de dizer unicamente o que é e a vontade de pro­
mover um dever-ser? Como é possível pretender manter-
se na objetividade definindo um fim e um ideal? O po­
sitivismo imaginou livrar-se dessa dificuldade afirman­
do que o conhecimento do presente permite descobrir
aquilo a que tende, revelando o ideal que está contido no
real. Assim apresentado, o argumento é bem pouco con­
vincente : com efeito, como provar que não se supõe um
fim arbitrariamente escolhido uma vez que, por defini­
ção, nada se pode mostrar que a ela corresponda? Na
verdade, a determinação teórica de um fim é sempre pe­
rigosa: é impossível “atravessar o Ródano” no e pelo
conhecimento. O que o estudo de uma sociedade pode
proporcionar nunca vai além do que ela é agora e do que
atualmente quer.
Ora, a análise objetiva da sociedade industrial, em
seu estágio capitalista, proporciona elementos decisivos
para resolver a contradição que parece encerrar o pen­
samento marxista. O regime capitalista, em virtude de
sua estrutura econômica, vive em estado de crise cons­
tante; a obrigação em que se encontram os proprietá­
rios dos meios de produção de triunfar no seio da con­
corrência nacional e internacional leva-os a tentar dimi­
nuir continuamente os preços de custo, a aumentar as
margens de lucro a fim de obterem condições de fazer
os reinvestimentos necessários à sua luta, ao aumento
da produtividade que exige dos operários trabalhos mais

241
intensivos, a revolucionar constantemente as forças pro­
dutivas, a conquistar novos mercados pela guerra e pela
colonização. Em suma, o capitalismo é levado, para so­
breviver, a transformar continuamente as relações de
produção. E só resolve as crises que seu mecanismo sus­
cita recorrendo à violência; sem dúvida, esses dados da
ciência econômica sobre os quais nos permitimos não
insistir, já descobertos pelos mais audaciosos liberais,
apresentam-se atualmente com aspecto diverso. Uma
organização científica do regime permitiu resolver al­
gumas dessas contradições internas e atenuar os efeitos
de algumas outras: a noção de crise econômica, em par­
ticular, deve ser estudada de um novo ponto de vista em
função do planejamento na cúpula, instituído pelos pro­
prietários dos principais meios de produção; a conquis­
ta dos recursos e dos mercados dos países subdesenvolvi­
dos não é mais acompanhada necessariamente pela vio­
lência militar. Deveríamos insistir também nas trans­
formações trazidas não apenas pela intervenção do ca­
pitalismo bancário, o papel cada vez mais importante
desempenhado não só pela intervenção do Estado nos
países capitalistas, mas ainda pela utilização de novas
fontes de energia, o aperfeiçoamento de processos de
produção; deveríamos insistir, outrossim, no fato de que
o desenvolvimento das lutas operárias provocou impor­
tantes modificações nas leis que, no tempo de Marx, go­
vernavam o mercado de trabalho. Mais profundamente,
é claro, ao que parece, que os progressos consideráveis
realizados pelas forças, produtivas, a partir do começo
deste século, tiveram efeitos assinaláveis no âmbito do
próprio capitalismo, na organização de conjunto do re­
gime.
Resta que, sejam quais forem as acomodações que
tenham sido feitas e que são concebíveis, sejam quais
forem as modificações introduzidas na gestão capitalis­
ta, uma violência permanece, uma violência essencial. O
capitalismo, precisamente porque se faz acompanhar de
enorme crescimento das forças produtivas, porque so­
cializa o trabalho, porque mundializa as trocas, aumen-

242
ta ainda mais a opressão que a propriedade dos meios
de produção faz pesar sobre os trabalhadores. As relações
de produção revelam-se em sua verdade e a exploração
é decuplicada, estendendo-se doravante ao conjunto da
sociedade humana. Pela sua situação na produção os
próprios produtores são parcialmente excluídos da frui­
ção dos bens de produção. As vitórias que sua coragem
lhes permite conquistar são capazes de limitar a explo­
ração; esta, porém, só poderá desaparecer com a su­
pressão completa e efetiva da sociedade de classes. A ma­
nutenção do capitalismo não se traduz necessariamen­
te por uma intensificação absoluta e linear da condição
operária (perspectiva que corresponde ao esquema in­
gênuo e mecanicista segundo o qual a condição humana
melhora constantemente, linearmente e sem problemas
em regime socialista); mas implica que os que fabricam
objetos, os que trabalham e estão na origem do desen­
volvimento técnico, são necessariamente frustrados da
satisfação que lhes poderia ser proporcionada. A socie­
dade industrial, que permanece sociedade de classes —
enquanto sociedade industrial — reúne as condições
reais da satisfação empírica universal e, no entanto,
impede sua realização enquanto sociedade de classes.
Nesse estágio, a humanização da natureza não conduz
a essa humanização dos homens empíricos que seria no
entanto possível: e a causa profunda é a permanência
da propriedade dos meios de produção que desempe­
nhou importante papel histórico na construção da so­
ciedade industrial, mas que, atualmente, freia seu de­
senvolvimento e impede a humanidade de beneficiar-se
efetivamente de seu trabalho09.
O capitalismo é o tipo da sociedade de classes, em
que mais claramente se manifesta a violência constan-

69 Isso não significa, de modo algum, que a abolição da propriedade


privada dos meios de produção, condição necessária, seja a condição
suficiente da sociedade desalienada. A experiência histórica contempo­
rânea mostra que nos Estados em que foi instaurada a propriedade
coletiva dos meios de produção, outras formas de exploração, e por-

243
te exercida por aqueles cuja situação econômica põe na
posse dos instrumentos de produção contra os que não
possuem senão sua força de trabalho. Esse fato se apre­
senta ao economista que está, de certo modo, alertado
pelo historiador (se é que essa separação conserva al­
gum sentido para o pensamento marxista). A análise
dos acontecimentos qus balizam a construção do capi­
talismo industrial, o surto do imperialismo, mostram
que a opressão imposta aos trabalhadores suscita uma
força social antagônica, a dos oprimidos, cada vez mais
conscientes das raízes econômicas da exploração. A épo­
ca da constituição do que Marx chama “a grande usi­
na” é também a época em qus a resistência operária se
desenvolve em larga escala; essa resistência apenas cres­
ce e se organiza constantemente. Assim também, e para
tomar apenas esse exemplo, a colonização provoca o des­
pertar dos povos explorados e engendra, por processos
complexos e diversos, de acordo com os países, o adven­
to de consciências nacionais. A história do desenvolvi­
mento capitalista é também a história das lutas operá­
rias; pois o movimento de resistência à exploração assu­
me rapidamente conteúdo determinado; na medida em
que o regime capitalista penetrou a sociedade toda, em
que o Estado está nas mãos da classe economicamente
dominante, a luta dos trabalhadores visa suprimir a es­
trutura economico-social capitalista inteiramente, a que­
brar o aparelho de Estado burguês; o objetivo é, pela
supressão do capitalismo, fazer desaparecer a sociedade
de classes, suprimir a propriedade privada dos meios de
produção; de recolocar a posse e a gestão dos meios de
produção nas mãos dos produtores e restituir à socieda­
de industrial a possibilidade indefinida de satisfação que
oferece à humanidade.
Tal objetivo não se manifesta em estado de tendên-

tanto, outras formas de alienação surgem; em particular, as que en­


gendram o autoritarismo burocrático e a constituição de uma classe
ou camada social de managers que detem os poderes políticos e eco­
nômicos.

.244
cia ou de ideal no conhecimento da sociedade capitalis­
ta por parte do economista; não constitui somente uma
extrapolação do historiador que prolonga, por variação
imaginária, um movimento apenas esboçado. Existe co­
mo objetivo, atualmente presente, na consciência deci­
dida dos trabalhadores em luta. É a existência de sua
vontade que representa, em suma, a prova da validade
prática do marxismo. Trata-se, para este, graças à ciên­
cia econômica e aos conhecimentos históricos que o de-
venir real e a evolução simultânea da cultura permiti­
ram elaborar, de tornar lúcida essa vontade a fim de au­
mentar sua eficácia, facilitar sua vitória nos menores
prazos e com a menor violência possível. A política mar­
xista não está fundamentada nem numa axiologia, nem
numa filosofia messiânica da história: apóia-se num
fato observável, a luta da classe operária e, de modo mais
geral, dos explorados contra os regimens econômicos que,
por sua essência, mantém o fato da não-satisfação uni­
versal. O fim visado por essa política não é de ordem
ideal; a supressão da sociedade de classes foi efetivamen­
te desejada por organizações operárias antes mesmo que
se pudesse supor uma penetração suficientemente im­
portante dos princípios econômicos de Marx nas mas­
sas; essa reivindicação, no entanto, adquire novo peso,
encontra perspectivas de ação mais justas e mais efica­
zes na medida em que a análise econômica e a história
lhe fornecem elementos de informação mais exatos e
mais sólidos. “O marxismo é a fusão do socialismo cien­
tífico e do movimento operário”70. A fórmula é de grande
importância. Mostra claramente-que a perspectiva mar­
xista não se compreende nem como Teoria que, de fora
e porque se apresentaria como justa, imporia algum fim
ao devenir, nem como simples “reflexo” da consciência
oprimida. A economia política histórica marxista trans­
forma-se imediatamente em política, quer dizer, em teo­
ria da prática da luta operária; ao mesmo tempo, em

70 Cf., neste trabalho, cap. I, p. 51, nota 116.

245
prática ligada à análise teórica do combate proletário;
quanto a essa unidade, realiza-se no seio do partido ou
dos partidos revolucionários.
Poderão objetar, sem dúvida, que o fato, para o pen­
sador, de aliar-se aos que, procurando o fim da explora­
ção, lutam pela satisfação empírica universal, implica
uma opção moral. Já esboçamos a resposta a essa obje­
ção: insistamos que não compete à reflexão descobrir
porque tal indivíduo prefere esta atitude àquela: não é
da sua competência e não é seu propósito fazer psicolo­
gia ou moralizar. A escolha é problema de cada um e é
tarefa da propaganda, e não da reflexão sobre o que é,
inclinar em favor disto e não daquilo. O único problema
que, nesse domínio, pode reter a atenção, é o seguinte:
por que procura o homem a satisfação empírica univer­
sal? A solução encontra-se no próprio enunciado da
questão. A prova de que o homem quer a satisfação empí­
rica, é toda sua história real, a história de sua luta con­
tra a morte, a fome, a doença. É possível, sem dúvida,
devemos também repetir, considerar essa história uma
perda e deplorar que o homem tenha preferido a satis­
fação à “presença”, fosse ela “insatisfeita”; o fato do
devenir real e de seu progresso não é nem suprimido
nem desqualificado porque nós o designamos como “his­
tória superficial” ou decadência. Se o homem quer que
essa satisfação seja universal, é porque verificou que a
existência de um indivíduo, ou de um grupo, cuja insa­
tisfação é devida à ordem social, é geradora de violên­
cias e de desgraça para toda essa sociedade. Tais fatos
só recentemente se tornaram claros — se excetuarmos
as numerosas intuições filosóficas que anunciavam sua
compreensão — : nem por isso deixam de ser fatos a res­
peito dos quais é difícil duvidar.
Objetarão, também, que acabamos de desenhar um
círculo vicioso: não utilizamos referências a fatos para
legitimar, a seu modo, o marxismo; a sociedade indus­
trial, o capitalismo, a luta operária, qualificados de his­
tóricos ao mesmo tempo em que os analisávamos e os
definíamos em função da perspectiva cuja validade de-

246
veríamos provar? Como acontece em microfísica, como
é freqüente no exercício da ciência histórica, não há
uma ação do observador (e de sua situação) sobre o sis­
tema observado que, assim sendo, corre o risco de trazer
uma confirmação ilusória? Os economistas que adotaram
o ponto de vista dos proprietários dos meios de produção
não apresentaram também uma análise do regime que o
propunha, como único meio de atingir a satisfação uni­
versal empírica? O problema não pode ser evitado; uma
resposta completa implicaria a plena elucidação da di­
fícil noção de objetividade, que será considerada no ca­
pítulo seguinte. Desde já, no entanto, é possível indicar
os elementos de uma solução. Deve-se reconhecer, em
primeiro lugar, a existência de um círculo vicioso: é
verdade que o marxismo justifica sua concepção de con­
junto, tanto teórica quanto prática, pela referência a
acontecimentos analisados graças a essa própria con­
cepção. Esse método que utiliza, não lhe parece, no en­
tanto, constituir uma dificuldade de direito que o inva­
lidasse; envolve apenas, para ele, dificuldades de fato,
cu, mais precisamente, dificuldades referentes ao con­
teúdo científico de sua análise. Em outros termos, o pro­
blema, a esse respeito, é unicamente o do rigor cientí­
fico da descrição que apresenta da situação capitalis­
ta, da justeza das perspectivas que define no combate
pela edificação de uma sociedade sem classes. É claro que
se mostrarem que os acontecimentos da história econô­
mica do século X IX não correspondem de modo algum
à analise marxista, que o conceito de imperialismo, no
começo do século XX, não corresponde de modo algum
à realidade do imperialismo (ou remete a uma realida­
de imaginária), o sistema em sua generalidade estaria
caduco. Voltamos, pois, à formulação inicial desta seção:
é o conteúdo que prova e o aprofundamento do conteú­
do implica freqüentemente “círculos”, que a metodolo­
gia formalista apontará como dirimentes. O problema
reduz-se, assim, à seguinte banalidade que, nem por is­
so, deixa de ser importante: o estudo histórico e econô­
mico ao qual se consagraram os fundadores do marxis-

247
mo torna inteligíveis os acontecimentos tais quais uma
história, uma história “dos acontecimentos”, pode esta­
belecê-los? Parece difícil, se observarmos os resultados
da ciência histórica atual, responder negativamente a
essa interrogação, sejam quais forem os complementos,
os aprofundamentos, os matizes trazidos pela pesquisa
contemporânea. Se este estudo é correto em sua genera­
lidade, então os princípios que acabamos de definir as­
sumem seu devido alcance.
A verdade da concepção de conjunto do marxismo
está “fundamentada” na verdade das análises principais
realizadas por Marx e Engels. Isso não significa, de mo­
do algum, que todo estudo ulterior deva repetir, “adap­
tando-os”, os resultados obtidos pelo O Capital. O úni­
co critério continua a ser o respeito pelo acontecimento.
Nesse sentido, o materialismo, em seu conteúdo jamais
é definitivamente “fundamentado”. Que Marx tenha fi­
xado corretamente os traços da sociedade capitalista e
caracterizado, ao mesmo tempo, com exatidão, em sua
generalidade, os traços de toda sociedade de classes, isso
não quer dizer que os conceitos que elaborou sejam au­
tomaticamente aplicáveis a todo estágio ulterior da luta
de classes e que o devenir dos regimes de exploração se­
ja a repetição da situação histórica em que se encontra­
va Marx por ocasião de sua morte. A evolução faz nas­
cer conjunturas originais; na medida em que o capita­
lismo que Marx tinha diante de si salientava os traços
marcantes do regime, é justo referir-se como a um guia
às categorias estabelecidas; esse guia, porém, não pode­
ria ser considerado uma luz que, doravante, trouxesse a
inteligibilidade. O marxismo converte-se em dogmatis­
mo precisamente a partir do momento em que substi­
tui ao estudo objetivo dos acontecimentos a vontade de
neles encontrar a confirmação dos princípios nos quais
“acredita”. Já observamos: nenhuma prescrição meto­
dológica pode ser válida a esse respeito. A prova é dada,
e só pode ser dada, por uma pesquisa científica aprofun­
dada, à qual as análises principais do marxismo pro­

248
porcionam, por motivos compreensíveis, uma perspecti­
va correta, mas nunca soluções prontas.
O risco que corre assim toda empresa marxista — e
esse risco se aplica tanto à determinação da linha polí­
tica em circunstâncias dadas quanto à pesquisa teórica
— nada tem em comum com qualquer espécie de desa­
fio. A idéia de que a escolha do marxismo, como método
científico e como perspectiva moral, constitui, em úl­
tima análise, uma opção arbitrária em favor da racio­
nalidade e da felicidade, foi desenvolvida recentemente
com muito brilho71. Não parece corresponder nem à óti­
ca de conjunto do materialismo nem à técnica política
definidas pelos chefes revolucionários marxistas. É ver­
dade que toda ação, toda obra implica uma aposta, su­
põe um êxito que não está dado, visa um objetivo qu3
lógica alguma poderá dizer se será ou não alcançado. A
idéia, aliás, de uma previsão a longo prazo é estranha
à análise marxista concreta. Mas, trata-se precisamen­
te, para o pensador ou o político, de reduzir tanto quan­
to possível essa zona de indeterminação por meio de um
conhecimento exato e completo do que é dado, conheci­
mento que se tornou possível pelo elevado estágio de de­
senvolvimento alcançado pela prática da sociedade in­

71 E a idéia desenvolvida por L. Goldmann em seu trabalho teórico


Ciências humanas e filsóficas em um estudo histórico preciso. O
Deus oculto. Não parece que tal idéia corresponda à compreensão
efetiva da revolução teórica operada por Marx e que o marxismo pos­
sa ser interpretado como uma solução corajosa da “trágica” problemá­
tica do homem, apreendida por Pascal, Racine e Kant. Importa, no
entanto, salientar que os resultados obtidos por L. Goldmann, na edi­
ficação de uma interpretação marxista da cultura, são de importância
considerável. Contra as aproximações, os esquemas, contra as críticas
exteriores e dogmáticas, o autor do Deus oculto, soube desenvolver
uma análise que leva em conta a complexidade da situação histórica
considerada, mostra as mediações e faz aparecer o elemento: a deci­
são do pensador que, face a determinada problemática, deve “optar”
por uma solução que envolva a sorte da humanidade. Ao contrário —
mas não é o contraditório — das “filosofias gerais marxistas”, L. Gold­
mann preocupa-se com o conteúdo: nesse sentido, sua obra assume, na
atual conjuntura ideológica, alcance considerável.

249
dustrial. Sem dúvida, a ação singular que for empreen­
dida, nesta ou naquela conjuntura histórica, pode ma­
lograr, porque a informação a respeito do poder das for­
ças sociais foi insuficiente, porque a análise não foi le­
vada até onde era necessário. Engels confessa erro se­
melhante em seu Prefácio aos artigos de Marx dedica­
dos à luta de classes na França entre 1848 e 187072. Sem
dúvida, e ainda aí Marx assinala claramente essa even­
tualidade: a realização da sociedade plenamente satis­
feita empiricamente poderá ser constantemente adiada
e a oposição subsistir, em diversas formas, na comuni­
dade humana? Mas, não se trata de modo algum de
apostar, no sentido em que Pascal convida a apostar na
vida eterna. Trata-se, apenas, de conhecer e de agir em
uma situação de fato a fim de realizar aquilo que o ho­
mem jamais deixou de desejar, o que quer com mais
violência ainda desde que o acréscimo das forças produ­
tivas consolidou seu poder e desenvolveu a consciência
de seu ser-fundamental.
O “fundamento” do marxismo, de sua concepção
do homem e da ação, é pois a existência de uma forma­
ção econômica produzida pelo devenir real: a sociedade
industrial em seu estágio capitalista. Esta revela o ho­
mem em sua verdade e desvenda o fim da atividade hu­
mana. Sem dúvida, a história permanece o lugar obs­
curo onde se defrontam a coragem e a paixão indivi­
duais, onde o gênio luta com a fraqueza e o interesse
com a generosidade; mas, além desse caos, desenha-se
a procura audaciosa e constante na qual o homem se
empenha, a de um mundo em que a satisfação empíri­
ca se torne possível, em que a humanidade possa, do­
minando a natureza e a sua natureza, libertar-se da
alienação e abrir as perspectivas grandiosas de uma his­
tória da liberdade. Essa preocupação da plenitude e da

72 Cf. a Introdução de Engels à série de artigos de Marx, publicados


na Nova Gazeta Renana, a partir de março de 1850 c reunidos sob o
título A luta de classes na França (1848-1850).

250
liberdade — essa paixão que o homem tem por si mes­
mo — já opera no trabalho que muda a coisa em objeto,
no esforço para descobrir as técnicas que façam desa­
parecer a ignorância e a impotência humana; manifes-
ta-se, mediatamente, nas tentativas feitas para instau­
rar um pacto entre os indivíduos e as comunidades,
pacto que expulse a violência política e militar e im­
plante uma ordem em que cada um seja reconhecido por
todos; esse propósito encontra sua mais alta expressão
na especulação filosófica que tenta, pela Teoria, abolir
a alteridade e substituir as incoerências da aparência
pela ordem do pensamento. O marxismo é, antes de mais
nada, o conhecimento lúcido do “sentido” da história
humana; compreendè-se como o elemento objetivo gra­
ças ao qual esse sentido se torna claro a si mesmo e des­
cobre as condições reais de sua efetuação.
Participa, ao mesmo tempo, da luta contra os en­
traves à realização de uma sociedade universal empiri­
camente satisfeita; não escolhe estar ao lado das forças
sociais revolucionárias: já está aí, como expressão, atu­
almente a mais alta e mais completa, da preocupação
do homem e de sua luta para sair da pré-história, para
conquistar a verdadeira .liberdade e abrir o mundo aos
recursos indefinidos do indivíduo liberado da servidão
natural e da alienação social.

251
V

O Caminho da Superação:
As Tarefas do Pensamento
Teórico Atual

E p o s s í v e l , agora, voltar ao problema proposto no


começo deste trabalho: o do sentido e do alcance, para
o pensamento contemporâneo, da oposição entre o ma­
terialismo marxista e o que chamamos, por convenção
pessoal, a crítica do estilo filosófico. Desde o primeiro
capítulo, e a continuação confirmou esse fato, ficou cla­
ro que essa oposição permanece estéril se compreendida
apenas como contradição de duas doutrinas que se de­
frontam no seio de um domínio comum e participando
do mesmo estilo de pensar. Se o materialismo se opõe
ao não-materialismo como um sistema filosófico a outro
sistema filosófico, o confronto permanecerá confuso e,
finalmente, sem sentido; chegaremos a respostas ambí­
guas, cada perspectiva empenhando-se em mostrar que
a outra não compreende as noções tais como devem ser
entendidas e, como já salientamos, logo chegaremos a

252
verificar a irredutibilidade das posições e o fato de que
cada uma encontra na outra, ao mesmo tempo, seu li­
mite, sua refutação e sua verdade. O antimaterialismo
— especialmente na forma de filosofia da subjetividade
— não terá dificuldade em mostrar o caráter arbitrário
e superficial da atitude materialista; esta, por sua vez,
ironizará a falsa profundidade de um pensamento que
finge esquecer suas preocupações e suas origens modes­
tamente materiais. A discussão, desenvolvida nesse pla­
no, contribuirá para tornar extremamente insípidas am­
bas as doutrinas e comprometer o desenvolvimento de
um autêntico materialismo. O ponto de oposição entre
o marxismo e a filosofia não se situa no interior da filo­
sofia: a teoria marxista não se opõe à de Hegel ou à de
Husserl como se opõe, por exemplo, a perspectiva car­
tesiana à de Gassendi ou a filosofia de Hegel à de Fichte.
O marxismo quer trazer, justificando sua pretensão de
modo absolutamente novo, uma concepção original das
tarefas do pensamento e da ação. Pode, sem dúvida, de­
senvolver seus temas na ótica e no vocabulário da filo­
sofia: mas., assim procedendo, corre constantemente o
risco de perder-se e de fazer desaparecer toda sua radi­
cal originalidade ou parte dela; provocará, então, a jus­
to título, uma total incompreensão e se entregará, sem
defesa, aos golpes do adversário.
Quererá isso dizer que a oposição da qual procura­
mos determinar o significado seja a oposição da antifi-
losofia tradicional à filosofia e que, finalmente, haja a
mesma relação entre Marx e Hegel que entre o Cálicles
e o Sócrates do Gorgias? Devemos confessar que certas
obras de propaganda do marxismo parecem justificar se­
melhante interpretação; devemos reconhecer que tais
obras são contrafações. Quando o marxismo protende
superar a filosofia, acusando-a de que chegou a esque­
cer o homem tal qual é, empiricamente, em sua vida
quotidiana, não o faz, de modo algum, com o propósito
de substituir à universalidade vazia do sistema os dados
múltiplos e mutáveis das experiências particulares to­
madas em sua imediatez. Sua decisão de aufheben a fi­

253
losofia implica também a vontade de assumir os proble­
mas humanos que o filósofo propôs mas não conseguiu
resolver. Não se trata, de modo algum, substituindo o
homo philoscrphicus pelo existente empírico, de dissol­
ver a problemática humana na multiplicidade de casos
singulares, mas de determinar e de realizar a ordem
universal na qual o indivíduo poderá alcançar a satis­
fação empírica e a plenitude. Cálicles está aquém da fi­
losofia; o marxismo procura estar além.
Não poderia, aliás, esse esforço, entender-se como
simples tentativa de realização científica e prática da­
quilo que a filosofia mais completa houvesse estabeleci­
do teoricamente. Tentamos mostrar, tomando como
exemplo o hegelianismo de esquerda, do qual Marx es­
teve muito próximo durante sua fase de formação, que
a superação da teoria não poderia ser compreendida ape­
nas nesse sentido. A exigência de realização, nos pró­
prios fatos empíricos, daquilo que o saber filosófico, na
acepção hegeliana, determinou conceitualmente, e, em
conseqüência, a necessidade de estudar cientificamente
a situação cuja estrutura foi elucidada por esse mesmo
saber, encontram-se na origem do marxismo. Todavia,
desde o momento em que a doutrina se desenvolve siste­
maticamente, suscita uma dúvida não somente sobre o
conteúdo da teoria, mas também sobre o fato mesmo de
que. o problema proposto — o de uma sociedade univer­
sal empiricamente satisfeita — o seja apenas de modo
teórico. Se a teoria não tem imediatamente conseqüên­
cias práticas, é porque é insuficiente teoricamente; e
também porque — enquanto saber filosófico — não é
teoria da prática efetiva. A exigência de realização do
saber transforma-se, por si mesma, em crítica desse sa­
ber, em contestação da pretensão de qualquer saber, co­
mo tal, de propor e resolver o problema da satisfação. O
marxismo é, sem dúvida, uma ciência, no sentido das
ciências positivas, e uma prática: todavia, afirma que
retoma, transformando-as, as questões e os temas até
agora considerados apanágio da filosofia.
Não querendo ser apenas doutrina filosófica entre

254
as demais, nem aplicação dos resultados do saber filo­
sófico, e ainda menos expressão de protesto do bom
senso, do apetite ou do sentimento contra o poder exor­
bitante do conceito, o pensamento marxista só se define
dialeticamente, como novo modo do pensar superando o
modo de pensar filosófico. Isso equivale a reconhecer que,
entre a filosofia e a teoria marxista, só existe, como zo­
na comum, precisamente a da passagem de uma a outra,
constituída pelos diversos momentos da superação. O
presente estudo — com suas dificuldades, obscuridades
terminológicas e as contradições que seria fácil apon­
tar — é uma exploração dessa zona onde ainda é lícito
falar de uma e outra atitude num duplo registro. O pon­
to de oposição procurado é, pois, um ponto de ruptura:
uma dedução linear que levasse do pensamento primiti­
vo ao pensamento científico de Marx, passando pelo pen­
samento filosófico é, ao que parece, estranha à ótica
marxista. Forçando um pouco as coisas, e supondo que
o modo de pensar filosófico nada tomou às ciências po­
sitivas, poderíamos dizer que há tanta diferença entre
o pensamento mítico e o pensamento filosófico quanto
entre este e a perspectiva marxista. É, sem dúvida, a
mesma problemática humana que se apresenta a umas
e outras: todavia, cada uma a propõe, a compreende e
a resolve do modo que lhe é próprio e que engloba, trans­
formando-o profundamente, o modo precedente. Talvez
fosse conveniente notar, a esse propósito que, assim
como o recurso ao mito é, para o pensamento filosófico,
uma regressão e uma confissão de impotência, assim
também o fato de querer tratar como materialista as
questões tradicionais da filosofia — as relações da alma
e do corpo, a existência do mundo exterior e muitas ou­
tras — constitui evidente sinal de fraqueza e abandono
de posições conquistadas.
A esterilidade e a confusão dos resultados a que che­
gamos no primeiro capítulo, compreendem-se agora
mais facilmente: a rigor, não poderia haver entre a fi­
losofia e o marxismo confronto propriamente filosófico
que fosse fecundo. Para o marxismo essa impossibilida­

255
de não representa uma derrota, pois espera ter demons­
trado, apoiando-se, em seguida a Kant, nos “dilemas da
metafísica” e referindo-se de modo especial à obra he-
geliana — que a legitimação filosófica, finalmente, sem­
pre se realiza, e na melhor hipótese, como legitimação
do discurso pelo discurso e no interior do discurso. Ssm
dúvida, não menospreza, de modo algum, a empresa que,
a seus olhos, constitui uma etapa decisiva na conquis­
ta da universidade; verifica, no entanto, que seu êxito
representa também um malogro uma vez que não propor­
ciona, e não pode proporcionar, aquilo que os filósofos,
desde Sócrates e Platão, dela esperavam. Assim, o mar­
xismo, porque isso se tornou historicamente possível para
ele, descobre sua justificação, não mais no fato de que
a teoria elaborada seja irrefutável,' mas na análise da
história real da humanidade. Descobre, ao mesmo tem­
po, a razão que impede o modo de pensar filosófico de
aceder a outra coisa que não seja a universalidade do
pensamento; torna inteligível a emocionante grandeza
da decisão filosófica a qual, contra o silêncio, a tradição
ou o cinismo, soube compreender a universalidade do
problema humano e lutar contra a violência e a bestia­
lidade, mas desvenda também sua fraqueza essencial.
As mesmas razões que apresenta para explicar as pos­
sibilidades que oferece ao conhecimento e à ação, as le­
va em conta para explicar a beleza e o malogro da fi­
losofia.
A decisão filosófica — por mais diversas que tenham
sido suas obras — desenvolve-se no seio de uma pro­
blemática de conjunto que teve na história relativa per­
manência. O horizonte no fundo do qual se ergue a von­
tade de filosofar — quer dizer, de elaborar um pensa­
mento comunicável, um discurso tal que, nele e por ele,
porque esse discurso diz o que é importante, o homem
de boa fé possa encontrar a satisfação e a liberdade —
é o horizonte da violência; mais precisamente, manifes­
ta-se como mundo em que o indivíduo permanece sub­
metido à sujeição natural, onde os deuses estão distan­
tes e a perda do divino cria um vazio em que se debate

256
a humanidade temerosa e frágil; aquém, a comunidade
estável dos primeiros tempos foi destruída e a lembran­
ça da tranqüilidade patriarcal subsiste; além, há a es­
perança de uma ordem em que o homem escaparia da
animalidade e de seus males; aqui, há a doença, o so­
frimento, a paixão, a morte, e, além disso — e essa é a
invenção capital da filosofia e graças à qual descobrirá
o caminho do universal — há o fato de que a infelicida­
de humana se apresenta como tendo também sua cau­
sa na própria ação do homem, nas desordens da socie­
dade, nas brutalidades da história, nas paixões do indi­
víduo. O que foi apresentado nos capítulos precedentes
como contradições da áoxa é, de fato, oposição feroz dos
interesses das camadas ou das classes sociais que dispu­
tam o bem-estar sensível e o poder. Já insistimos no ca­
ráter exemplar da guerra do Peloponeso que, no seio
da mesma civilização, socializa, por assim dizer, a vio­
lência e faz aparecer, em sua fria crueldade, a impor­
tância do interesse. A procura filosófica de um lugar on­
de triunfasse, aos olhos de todos, a universalidade, é a
procura de um mundo repousado onde a violência his­
tórica confessasse sua estupidez, a paixão sua mesqui­
nharia e, o interesse, sua parcialidade criminosa. A de­
cisão de filosofar nasce no mundo do conflito e se desen­
volve enquanto a tradição revela sua impotência e o ci­
nismo dos violentos prova, por seus repetidos malogros,
sua absurda pretensão.
O exercício da filosofia supõe, com efeito, não só o
conflito (revelando-se conflito resultante da ação huma­
na, conflito histórico), mas também o fato de que esse
conflito tem um caráter dramático aberto e que nenhu­
ma força real parece capaz de resolvê-lo. Em outros ter­
mos, a contradição entre os interesses dos indivíduos e
das comunidades deve ser tal que se manifeste ao mes­
mo tempo como devendo ser superada e como impossí­
vel de ser superada pelos “meios habituais”: arte de vi­
ver, técnica política, bom senso moral, violência histó­
rica. .. A esse respeito, parece que as análises do mate­
rialismo histórico consideraram freqüentemente, sim­

257
plificando-as em excesso, as relações existentes entre a
luta de classes e ou as camadas sociais e sua expressão
nas doutrinas filosóficas. É fácil dizer, ao que parece, que
essas doutrinas, em determinado momento, representam
ou refletem o ponto de vista da classe dominante ou da
classe em ascensão. É impossível, na perspectiva de um
estudo objetivo dos textos, considerar o sistema platô­
nico como “reflexo” dos interesses da aristocracia ate­
niense ou a obra hegeliana como a tradução fiel dos
propósitos da administração prussiana. De fato, a par­
tir do momento em que uma força social se torna sufi­
cientemente poderosa para impor realmente seu poder,
a procura filosófica se torna menos rica e menos pro­
funda; usurpa freqüentemente o vocabulário e a apre­
sentação filosófica, mas desce ao nível da técnica ou da
edificação, é um instrumento. Mas esse é o caso das filo­
sofias medíocres — sendo o critério de julgamento o da
tradição filosófica, ao qual não podemos deixar de recor­
rer — : limitam-se a um ponto de vista parcial, expri­
mem apenas as aspirações deste ou daquele grupo ou as
“manias” de um indivíduo. As filosofias importantes,
que constituem etapas decisivas na história do pensa­
mento, têm outro conteúdo e alcançam outro êxito. Ne­
las, exprime-se, universalmente, a problemática huma­
na, em seu conjunto, em determinada época; apreen­
dem, de maneira abstrata, sem dúvida, a essência dos
problemas que apresentam ao homem sua relação com
o objeto, suas relações com os outros homens, seu dese­
jo jamais satisfeito de plenitude e de liberdade. A Calí-
polis platônica é, de fato, a estrutura política que con­
viria ao cidadão grego: a ética spinozista determina con­
venientemente a conduta que permitiria viver na paixão
sem ser passivo; o Estado hegeliano constituiria a solu­
ção do problema político se o problema do Estado se li­
mitasse ao da Constituição.
A insuficiência filosófica é diferente e mais profun­
da: reside no fato de que a universalidade assim cons­
tituída só resolve os problemas em pensamento. A solu­
ção universal, proposta pelo filósofo, solução que domi­

258
na o conflito, o ilumina, o compreende, só conquista sua
universalidade deixando subsistir o conflito real. Opõe
à particularidade do infortúnio, da alienação, da servi­
dão, a representação de um apaziguamento universal
mas ideal. Poderíamos mostrar, a propósito, de que mo­
do os grandes momentos da evolução do pensamento fi­
losófico, tomados em seu conteúdo, resolvem em tese, e
aipenas em tese, os problemas que o processo histórico
de tal modo complicou que deixaram de ser problemas
deste ou daquele grupo para tornarem-se problemas de
toda a humanidade (ou daqueles que nessa época são
considerados parte da humanidade). A filosofia, portan­
to, como decisão e como obra, situa-se muito além do
que se costuma chamar de “ideologia”. Poderíamos di­
zer, esquematizando, que ela se coloca entre a obra em
que se exprime a particularidade dos interesses e dos
ideais de determinada comunidade e a concepção de
uma teoria e de uma prática que compreende universal­
mente a problemática humana e se constitui, ela pró­
pria, em solução efetiva e universal dessa problemática.
A filosofia recusa a parcialidade da doxa; só a supera,
no entanto, no nível do pensamento, na esfera límpida e
ideal do logos. Corresponde, de modo mais geral, a uma
fase da história humana em que o homem já está par­
cialmente liberto da servidão natural por certo desen­
volvimento de seu poder e pela organização política, em
que pode dispor de “lazeres”, para retomar a admirá­
vel análise aristotélica1, e desprender-se de seu ‘ser-sen-
sível’ e de sua inserção nas comunidades ditas naturais,
conceber-se em seu ‘ser-diferencial’, como pensamento,
mas em que a fraqueza de seu domínio sobre a nature­
za, a própria organização política e a inexistência de uma
força social efetiva que permitisse tornar prática a teo­
ria, lhe impedem de apreender o pensamento a não ser
como meio de elaborar uma especulação cuja realização

1 Metafísica, A, I, 981 b 20.

259
é, ou entregue ao acaso, à boa vontade dos indivíduos,
ou, mais lucidamente, posta entre parênteses.
A esse respeito, o platonismo e o hegelianismo re­
presentam momentos de importância capital para a com­
preensão da vontade filosófica. Tentamos mostrar como
o sistema platônico é uma espécie de começo absoluto
na evolução da cultura humana e como a história da
Grécia, no século V e no começo do século IV a.C., reuniu
os acontecimentos em um feixe tão compacto que nela
se acha, por assim dizer, resumido e estilizado o que
será durante muitos séculos a situação da humanidade
em face da questão fundamental da alienação, da insa­
tisfação e da violência. A utopia platônica, o fim do IX
livro da República, em que Sócrates convida o sábio, à
falta de coisa melhor, a “ocupar-se com seu próprio Es­
tado” 2, constituem prefigurações de toda solução filosó­
fica ulterior. Assim também, a constituição do Estado
moderno centralizado, cujo fim é tornar concreta a liber­
dade de cada um, harmonizando-a com a liberdade de
todos, oferece a Hegel um horizonte que lhe permite le­
var a cabo a vontade filosófica. Não se trata mais, para
ele, de fugir para o “Céu das Idéias” ou de preparar
uma ação: importa apenas saber ler o que está implí­
cito na realidade, pondo assim em evidência a raciona­
lidade do real. O hegelianismo, nesse sentido, é o fim da
filosofia pois suprime o desnível, que se verifica na m^ior
parte das outras doutrinas, entre o que é e o que é
pensado, entre o objeto e o discurso. E, o que torna pos­
sível semelhante êxito, é a equiparação de direito opera­
da pela vida moderna, em seus múltiplos aspectos, entre
o mundo criado pelo homem e a aspiração fundamental
da humanidade. Esse fim da filosofia, no entanto, é tam­
bém exigência de recomeço: na medida em que a igua­
lação permanece igualdade abstrata, ideal, requer o de­
senvolvimento de uma nova concepção atuando para que
a igualdade se torne fato empírico universal. O Estado

2 592 a.

260
moderno, tal como Hegel o vê, fruto de uma forma so­
cial que aumentou em proporções consideráveis o poder
humano e revelou ao homem o que ele é realmente, é o
quadro universal abstrato no interior do qual irá desen­
volver-se a sociedade industrial, em sua fase capitalista,
e aparecer a força social capaz de construir a sociedade
da satisfação empírica universal e, assim, de resolver o
problema que estava na origem da decisão filosófica.
É evidente que essa análise da constituição histórica
da filosofia peca por sua extrema generalidade, além de
comportar múltiplos matizes. Admitimos, em particular,,
que a vontade filosófica estava isenta de qualquer con­
tribuição de outras disciplinas; é freqüente, principal­
mente a partir do Renascimento, que à procura da uni­
versalidade no e pelo pensamento se acrescentem consi­
derações de ordem científica e técnica que interferem
com o projeto propriamente filosófico. A obra cartesiana
é um exemplo dessa dualidade: a prova da validade que
apresenta encontra-se nas Meditações metafísicas-, mas
também está na última parte do Discurso do método e
nos três opúsculos a ele acrescentados. Essa interferên­
cia — seremos levados a voltar a esse ponto — tem muita
importância: manifesta o vínculo que se estabelece con­
fusamente, entre o propósito filosófico do universal e a
procura prática da felicidade empírica. Falta também
um elemento a esse breve estudo do estatuto da filoso­
fia: não mencionamos o fato de que a decisão filosófica,
uma vez instituída, tornada hábito da cultura, subsiste
como tal, ao passo que a situação real não determina
necessariamente uma problemática que implique sua ma­
nutenção e seu desenvolvimento. Há uma tradição da
reflexão filosófica que se prolonga e sobrevive enquanto
estilo do pensamento. Eis por que, nem sempre, é lícito
querer descobrir, a propósito de qualquer doutrina, o ho­
rizonte econômico e social que explique seu nascimento:
esse horizonte pode ser de tal ordem que deixe ao pensa­
mento a possibilidade de desenvolver abstrata e “livre­
mente” seus conceitos sem referir-se a qualquer proble­
mática política, seja qual for. E isso, que parece ser a

261
característica do estilo filosófiso, aplica-se também ao
conteúdo das doutrinas: em uma estrutura política de
equilíbrio (de “ordem”, de estagnação ou de desenvolvi­
mento provisoriamente harmonioso), a problemática
ideal abstrata prevalece em relação à problemática do
homem empírico, desenvolve sua dialética interna e or­
ganiza, na independência, seus conceitos propriamente
especulativos. Essa independência que é, de fato, abstra-
tração, e ameaça levar a um formalismo nefasto, será
reinvindicada pela filosofia como êxito e como plenitu­
de: o marxismo pode mostrar, em cada caso específico,
o perigo que implica semelhante êxito. Mas, o que deve
evitar, ao que parece, é procurar, em uma ótica meca-
nicista, e a todo preço, no desenvolvimento especulativo o
reflexo da situação social e postular uma identidade entre
os dois termos; o conteúdo de toda grande doutrina cons­
titui um tipo original de solução que, considerando, em
determinado momento, o conjunto da situação huma­
na, procura definir, no estilo da filosofia, a concepção
que possa trazer a liberdade ao homem e, na medida
em que precisamente nos achamos diante de uma grande
doutrina, há uma transposição que não permite consi­
derar a obra um decalque da situação. Sem dúvida, pode
sempre ocorrer que encontremos nos temas utilizados
analogias com esta ou aquela situação de classe (a des­
coberta do Cogito e o aparecimento do indivíduo isola­
do da burguesia, por exemplo), mas quem pretenderá
fundamentar o trabalho histórico em analogias tão frí­
volas e nelas encontrar o pretexto para evitar a procura
de uma inteligibilidade mais profunda?
Conviria, pois, matizar a análise precedente; todavia,
por mais esquemática que seja, permite compreender
porque a instauração de um diálogo filosófico, de doutri­
na, entre a filosofia e o marxismo é, a rigor, impossível.
A filosofia constitui a expressão mais alta e mais lúcida
do mundo antigo, daquilo que Engels chama a “pré-his­
tória”, desse período em que a humanidade foi capaz de
conceber mas não de realizar a liberdade: os processos de
que se utiliza, os critérios aos quais se refere, os

262
conceitos que elabora, os problemas que suscita e as so­
luções que propõe estão ligados a uma situação em vias
de ser superada; o desenvolvimento da sociedade indus­
trial, o fato de que o homem se tenha tornado parcial e
confusamente consciente dos fins reais de sua procura
e de sua luta, e possua doravante os meios de triunfar,
a tornam, de certo ponto de vista, uma sobrevivência.
Mas, seria uma leviandade limitar-se a esse ponto de
vista. O mundo, atualmente, é, com efeito, o da transi­
ção. O antigo mundo subsiste; contra ele, o novo se
afirma, mas também se procura; em sua luta, mete-se
em becos sem saída, em caminhos difíceis; defende-se
mal contra as tentações do dogmatismo e do particula-
rismo; proporciona assim à filosofia a oportunidade de
apresentar-se como o refúgio do pensamento universal e
de readquirir vigor e orgulho. Mais profundamente, esse
momento da passagem histórica é o de um engajamento
doloroso que se faz acompanhar de violências mais gra­
ves e de inquietações multiplicadas. Essas constituem
outras tantas razões para a filosofia acreditar em sua
perenidade e menosprezar a mudança profunda que se
realizou a partir da segunda metade do século XIX,
e desconhecer a nova estrutura da sociedade e da prática
humana. Em face desses dramas contemporâneos, a ten­
tação de uma fuga no pensamento permanece constan­
te: nesse sentido, é falso qualificar, como muitas vezes
o ardor polêmico levou os marxistas a fazerem, as dou­
trinas não-materialistas de “reacionárias” . Além de o
epíteto ser obscuro, situa mal o problema ideológico atual
e esquece que a permanência da filosófica está ligada
ao próprio fato da dificuldade da passagem do antigo
ao novo.
A radical disparidade de perspectivas torna estéril
um confronto na ótica tradicional. O fato da transição,
no entanto, permite instituir outro tipo de comparação:
o que se pede ao marxismo é que mostre como retoma,
transforma ou elimina as questões habituais da filoso­
fia. À análise objetiva das circunstâncias e das ações po­
líticas que devem facilitar a instauração da nova socie­

263
dade, acrescenta-se um trabalho de elaboração teórica
que visa tornar claro, em cada momento da situação
ideológica, a posição do materialismo. Não se trata, pois,
de modo algum, de opor, às filosofias atuais, outra filo­
sofia, mas de manter, por uma atenção concentrada e em
ligação com o devenir histórico, a superação constante
da filosofia pelo marxismo.

É nessa perspectiva, e somente nessa perspectiva,


que é possível conceber a retomada dos problemas dei­
xados sem solução ao término do primeiro capítulo. De
um lado, o marxismo deve continuar a falar de filosofia
com os filósofos; fechar-se em seu sistema de referên­
cias, abrigar-se atrás de uma postulação, equivaleria a
desconhecer que existe uma passagem teórica concebível
da filosofia ao marxismo, que a oposição das duas con­
cepções é dialética e que, atualmente, na história real, o
conflito entre o antigo e o novo subsiste dramaticamen­
te, que a vida nova se constrói, mas não está desde já
construída. A esse respeito, o materialismo tem por ta­
refa reelaborar constantemente essas formulações, res­
ponder às objeçõas que, com razão, lhe são apresentadas
pelas doutrinas filosóficas, enfrentar, com seriedade e
sem limitar-se ao que seus adversários chamam, com todo
direito, suas “certezas”, às questões que os fatos susci­
tam continuamente, quer se trate de acontecimentos ou
de posições ideológicas diferentes. Mas, por outro lado,
seria cegueira de sua parte imaginar que, exprimindo-se
no estilo da filosofia, triunfaria das doutrinas não-mate-
rialistas, que as refutaria, no sentido habitual da expres­
são: a passagem da filosofia ao marxismo implica em
mudança na técnica da prova. O filósofo poderá conti­
nuar, com todo direito, a considerar insuficiente o “fun­
damento” invocado pelo materialismo: o que pode fazer
o teórico marxista, a esse respeito, é procurar atrair a

264
atenção do filósofo para o fato de que, recusando a pro­
blemática estabelecida por Marx, despreza aquilo que é,
para a maioria dos homens de hoje, o mais importante,
afasta-se da prática humana e do que ela visa efetiva­
mente e, afinal, do mundo em que vive. Mas, isso é ape­
nas um argumento: desde então, importa a esse novo
teórico, ao menos, não convencer — querendo conven­
cer, arriscar-se-ia, na melhor hipótese, a apenas persua­
dir —, mas expor e reexpor o processo da superação.
Para a crítica antimaterialista contemporânea, o
essencial das objeções incide, como já vimos, no caráter
ilegítimo das formulações fundamentais e das referên­
cias adotadas pelo marxismo. Funda-se o materialismo
ora em considerações do senso comum — “o pudim que
se come” —, ora em argumentos psicológicos — a ori­
gem da sensação encontra-se na realidade que impres­
siona os órgãos dos sentidos, ora em fatos tomados às
ciências positivas — geologia, paleontologia, fisiologia
genética e muitas outras — . Em todos os casos, a con­
fiança atribuída aos resultados experimentais é ilimita­
da: o teórico materialista não indaga se não é necessá­
rio, para explicar a validade das ciências, recorrer a uma
experiência mais profunda, mais autêntica ou mais deci­
siva que, validando as ciências, remetesse, por exemplo,
a um fato que pusesse em questão a “crença” materia­
lista. Muitas vezes para enfrentar essas objeções, o ma­
terialista recorre à dialética: mas, ainda assim, utili­
za-se de uma noção que não elucidou e que emprega a
todo propósito e que bem poderia ser um deus ex machina
destinado a introduzir nas situações inextricáveis a so­
lução de uma falsa inteligibilidade.
Parece que as respostas a essas críticas às quais nos
limitamos no começo deste estudo, formuladas, em par­
ticular, a propósito dos trabalhos materialistas destes
últimos trinta anos, carecem de clareza e reduzem a re­
volução operada por Marx a nível muito baixo. Assim,
no presente estudo, em face da confusão a que se havia
chegado, fomos obrigados a fazer uma digressão para
tentar retomar o problema em uma perspectiva mais

265
ampla. Será possível apreciar os resultados obtidos ao
longo do caminho? Talvez; em todo caso, será possível
determinar, em relação a esse ponto preciso, o que não
pode ser a atitude do marxismo? Verifica-se, em primei­
ro lugar, que, esforçando-se em constituir-se como con­
cepção geral do mundo, calcado no modelo das doutri­
nas filosóficas, o marxismo se reduz a ser apenas, no
domínio teórico, único que aqui nos interessa, uma
ontologia dogmática rudimentar e pobre que se apresen­
ta, sem defesa, aos argumentos bem elaborados da tra­
dição 3. Freqüentemente, movidos por uma preocupação
pedagógica de simplicação, tomamos ao pé da letra a ex­
pressão “materialismo dialético” . E, apesar das declara­
ções de princípio, contentamo-nos em aceitar, de um
lado, a definição da matéria proposta pelo materialismo
filosófico — considerado de modo elementar — para
tentar, em seguida, “ dialetizar” a concepção acrescen-
tando-lhe alguns caracteres. O materialismo “mecani-
cista” declara que existem somente seres materiais ou
corpóreos, o “marxista” se contentará em acrescentar
que esses seres corpóreos estão em movimento. O' pri­
meiro esforça-se em deduzir, de acordo com o princípio
linear da identidade, os fatos da consciência, o segundo
considera esclarecedor afirmar que a dedução, para ser
probante, deve ser interpretada como dialética; e que
aerora, além desses existentes materiais, em razão do
processo necessário de seu desenvolvimento, depois que
foi forjado, naturalmente, o cérebro humano, há outra
realidade cujo substrato continua a ser a matéria, mas
que a supera: a consciência, precisamente.
Tornar-se-ia, assim, possível desenhar um quadro
concordante do pensamento no interior do qual se distri­
buiriam automaticamente os traços característicos das
duas posições em confronto e isso, em virtude de uma
determinação: o idealismo colocaria em primeiro lugar

3 Em relação ao que segue, remetemos o leitor às referências apre


sentadas no capítulo I.

266
o Espírito, o materialismo, a matéria em devenir. E todo
o resto seria literatura. Situa-se, assim, evidentemente,
o pensamento não-materialista no nível dos mais insí­
pidos manuais “cousinianos” e, ao mesmo tempo, colo­
ca-se o materialismo nesse mesmo nível. E torna insí­
pido, até a falsificação, o sentido da transformação ope­
rada por Marx. Não se trata de opor aos enunciados de
uma ontologia espiritualista, expressão de uma crença,
os enunciados contraditórios de uma ontologia materia­
lista, expressão de outra crença, e de substituir as formu­
lações deste tipo: “ Deus (ou a Alma) existe antes da ma­
téria (ou mais do que ela)” , estas frases: “A matéria
existe antes do Espírito (e o produz)” , os termos sendo
empregados nos dois casos, no mesmo sentido. É lamen­
tável, a esse respeito, que pensadores como Engels e
Lênin tenham sido levados a empregar terminologia tão
simplista, que, invocada em exposições posteriores, apre­
senta do marxismo uma visão singularmente vazia e in­
conseqüente 4. É claro, por exemplo, que um texto como
este — extraído das obras de Stalin — : “ .. .o materia­
lismo filosófico marxista parte do princípio de que a
matéria, o ser, é uma realidade objetiva que existe fora
e independentemente da consciência; que a matéria é
um dado primeiro, pois é a fonte das sensações, das re­
presentações, da consciência, ao passo que a consciência
é um dado segundo, derivado, pois é o reflexo da ma­
téria, o reflexo do ser; que o pensamento é um produto
da matéria, quando esta atinge em seu desenvolvimento
alto grau de perfeição; mais precisamente, o pensamento
é o produto do cérebro e o cérebro o órgão do pensa­
mento; não é possível, conseqüentemente, separar o pen­
samento da matéria sob pena de incidir em erro gros­
seiro . . . ” 5, constitui uma contrafação e acumula os ab­
surdos, as postulações e as ingenuidades; provoca, com

4 Cf. o artigo publicado por Kostas Axelos cm Arguments, n? 4, ju-


nho-setembro de 1957, “ H á uma filosofia marxista?’ ’

5 Materialismo dialético e Materialismo histórico, p. 10.

2Ô7
toda razão, a recusa dos filósofos; deve provocar, por
parte do teórico marxista, uma recusa igualmente enér­
gica, embora motivada de outra maneira; pois, para
este, o que importa, não é opor ao materialismo o re­
torno a qualquer doutrina da consciência empírica ou
transcendental, mas desenvolver até suas últimas con­
seqüências o sentido da luta que a humanidade trava à
procura da liberdade efetiva.
Pois é disso que se trata: a “ apresentação ontoló­
gica” do marxismo, que pretends fazer dele uma filoso­
fia geral, implica o desconhecimento do caráter histó­
rico e prático do materialismo contemporâneo; inter­
preta de modo superficial as relações entre o que se
convencionou chamar de “ materialismo histórico” e “ ma­
terialismo dialético” . Já mostramos que nada autoriza­
va a separar os dois termos e que dificilmente se pode­
ria aceitar a validade do primeiro sem situar-se, ao mes­
mo tempo, na perspectiva do segundo. Mas, é freqüente
compreender-se mal sua relação. Em muitas exposições,
apresenta-se, inicialmente, o materialismo dialético como
generalização ou extenção do materialismo histórico; em
seguida, considera-se o materialismo dialético como o
fundamento filosófico do materialismo histórico; final­
mente, economizando uma etapa, faz-se do materialismo
histórico a aplicação de uma concepção geral da reali­
dade a um domínio limitado. Na verdade, se considerar­
mos a obra de Marx, dificilmente veremos em que mo­
mento nasce a idéia do materialismo dialético (diferente
da idéia do materialismo histórico); e não será fácil
classificar nesta ou naquela rubrica textos como Ludwig
Feuerbach, O estado e a revolução ou o Jovem Hegel. A
idéia de uma diferença real de objetos entre os dois ter­
mos parece estranha ao densamento marxista: não im­
plicaria, essa idéia, que se pudesse falar, de um lado (e
parcialmente) do devenir humano e, de outro, (e geral­
mente), do ser em geral? Nessa separação consiste pre­
cisamente a ontologia cujos perigos acabamos de salien­
tar: considerar que há uma doutrina do ser, implicando
uma “ gnosiologia” , que seria possível especificar poste­

268
riormente; haveria assim um materialismo histórico, um
materialismo psicológico e — a idéia de “ciência prole
tária” e de “realismo socialista” realizou essa possibi­
lidade — um materialismo físico e um materialismo ar­
tístico .
Inserindo-se, assim, nos quadros construídos pelo
pensamento pré-marxista, e sem refletir no fato de que
esses próprios quadros, especialmente quando se trata de
disciplinas referentes à realidade humana, são a expres
são do conteúdo desse pensamento, o marxismo se perde
na insipidez e na esclerose. O materialismo, esforçan­
do-se em tornar intelígivel o devenir humano, a partir
da dialética real da necessidade e do trabalho, já impli­
ca a determinação do homem como ser-natural, subme
tido a leis e engajado em um universo independente
dele, que age sobre ele e sobre o qual ele age. E o mate­
rialismo dialético é impensável se, na noção de dialética,
não estiver imediatamente implícita a de uma história
natural e humana. De tal sorte que, se a expressão ‘ma­
terialismo dialético’ tem sentido, quer dizer: tentativa,
constantemente retomada pelo teórico do materialismo,
de esclarecer e aprofundar, em determinada situação
histórica e ideológica, as perspectivas de conjunto do
marxismo e pela pesquisa objetiva, elucidar os pontos
obscuros ou ainda desconhecidos; em suma, tentativa
de definir, a cada momento, o marxismo, em seu aspecto
teórico, como elemento real da luta do homem pela
construção de uma sociedade empiricamente satisfeita.
A partir daí, a resposta que proporemos aos argu­
mentos da crítica antimaterialista não trará novidades;
limitar-se-á a retomar os temas já desenvolvidos nos doi"
capítulos anteriores. Não poderá constituir senão uma
análise da passagem, quer dizer, uma apresentação pou­
co diferente desse movimento que leva de Hegel a Marx.
Que significa o fato de definir-se o marxismo-leninista
como materialista? Que conteúdo convém dar a essa qua­
lificação? Tratar-se-á, desde logo, de afirmar uma crença
análoga, em sua forma, às crenças espiritualistas? Para­
doxalmente, é afastando-se da ontologia materialista que

269
Marx — em um texto difícil e ainda mal elaborado, e
quantas vezes comentado — permite responder a essas
questões: “ O principal defeito do materialismo de todos os
filósofos — inclusive o de Feuerbach — é que o objeto,
a realidade, o mundo sensível são por ele considerados
na forma de objeto, ou de intuição, mas não enquanto
atividade humana concreta, enquanto 'prática, de modo
subjetivo” 6. Não se trata de considerar essa fórmula o
resumo ou a prefiguração de tudo o que será desenvol­
vido pelo pensamento de Marx e de seus continuadores.
Permite, no entanto, rejeitar qualquer tentação de inter­
pretar o materialismo marxista em termos de ontologia
ou de teoria do conhecimento. A realidade — e, em lugar
dessa palavra, poderíamos dizer: tò fainómenon, o que
se mostra; ob-jectum, o que está posto na frente; ou
ainda: o dado — deve ser entendido inicialmente, não
como objeto de intuição, mas como o lugar em que se
efetua a prática humana, onde se desenvolve a dialética
da necessidade e do trabalho. Em outros termos, a
caracterização inicial “ do objeto, da realidade” deve ser
operada a partir do fato fundamental e objetivo da prá­
tica em seus diversos aspectos e em seus diferentes ní­
veis de complexidade: a intuição sensível dos filósofos
e dos psicólogos não pode ser concebida senão como mo­
mento dessa prática; e o objeto, enquanto objeto puro
da sensibilidade, também é apenas aspecto parcial que,
isolado de seu contexto, é um ser abstrato cujo estatu­
to real ou essência é falacioso procurar deduzir7.
O “ defeito” do materialismo tradicional é também
o defeito do idealismo subjetivo. Ambas as atitudes, na

6 Teses sobre Feuerbach, in Obras filosóficas, t. V I, p. 141.

7 “ Ele (Feu erbach) não vê que o mundo sensível que o cerca não é
uma coisa que lhe seja dada diretamente de toda eternidade, sempre
igual a si mesmo, mas o produto da indústria e do estado social, no
sentido de que é, em toda época histórica, o resultado, o produto da
atividade de toda uma sucessão de gerações, que se ergueram umas
sobre os ombros das outras, m odificando a ordem social de acordo
com as necessidades m odificadas” . Ideologia alemã, idem, p. 161.

270
medida em que se esforçam em determinar a natureza
da realidade (ou então, do que existe principalmente)
a partir do fato primordial da sensação, da relação teó­
rica com o objeto, são levadas inevitavelmente a favore­
cer o aspecto “objetivo” ou o aspecto “subjetivo” , sem
jamais conseguirem libertar-se completamente da falsa
dialética que remete indefinidamente de um ao outro.
Ora se fará da “representação” a cópia ou o reflexo in­
terior da realidade “objetiva” , ora, com a preocupação de
considerar apenas o que é experimentado, reter-se-á
apenas o dado imèdiato da consciência considerando-o
como fato primeiro e fundamental. Assim, o pensamen­
to será ora considerado decalque do “ mundo exterior” ,
ora o “mundo exterior” será considerado expressão to­
tal ou parcial do pensamento. Nesse intercâmbio, e ao
remeter-se constantemente de um termo a outro,
Kant mostrou claramente que não há razão alguma
para escolher esta atitude e não a outra. O desenvolvi­
mento unilateral de um momento abstrato da prática
leva a construir argumentos vãos, fundados no privilé­
gio excessivo concedido a uma parte apenas da expe­
riência, isto é a uma experiência falsificada.
O idealismo objetivo escapa a essas dificuldades
porque reconhece inicialmente o caráter decisivo da
atividade humana na constituição da objetividade, por­
que se recusa a formular o problema do estatuto do ob
jeto em termos de representação, e porque afasta como
insuficiente a oposição do interior e do exterior. Toda­
via, “ esse aspecto ativo foi desenvolvido pelo idealismo
em oposição ao materialismo, mas apenas abstratamen­
te, pois o idealismo não conhece naturalmente a ativi­
dade real, concreta como tal”8. O lugar em que o homem
manifesta seu poder criador é o domínio puro do pen­
samento, do Espírito: o resultado dessa atividade é uma
decisão ou um discurso, a ordem ou a inteligibilidade
introduzida deixando intata a empiria; o homem conce­
bido essencialmente como pensamento tem por tarefa

8 Teses sobre Feuerbach, ideni.

m
essencial pensar e seu trabalho ou sua realização con­
sistem em forjar um logos graças ao qual o inconcebível
se conceba, o inexplicável se explique. Era preciso que o
poder empírico do homem, pelos êxitos que obteve brus­
camente e pelos problemas práticos que suscitou — apa­
recesse no seio da existência humana para que a ativi­
dade pudesse descobrir-se em seu estatuto real. A ma­
nifestação primordial da relação com aquilo que não
é ele e existe diante dele é a necessidade (e seu corre­
lato, o desejo) e o trabalho (e sua implicação, desde que
o trabalho alcança determinado nível, a organização so­
cial e política).
Os problemas propostos pelo materialismo e pelo
idealismo revelam-se, assim, falsos problemas; e a supe­
ração realizada pelo idealismo objetivo, uma solução
ilusória. No domínio da necessidade e do trabalho, a rea­
lidade que aí está se mostra como existindo à parte da­
quele que dela tem necessidade e que trabalha para
obtê-la, como se obedecesse a processos independentes
do desejo humano, como sendo em-si, oara usar o voca­
bulário tradicional. O “realismo” naturalista do mar­
xismo, salientado pela crítica antimaterialista, encontra
raiz profunda no estatuto atribuído ao homem, como ser
que sofre e que trabalha : o que acontece com o homem
é encontrar-se em um meio cuja natureza é igual à sua,
o qual, de acordo com as leis que lhe são próprias, o
constrange, suscita seu desejo renovado e se oferece a
ele como objeto a transformar. A “ existência exterior”
da materialidade não tem outra justificação além do
fato, desde o momento em que o homem passa a consi­
derar-se em seu ser fundamental como trabalhador, da
inumanidade do meio em que existe. A exterioridade
deve ser assim compreendida, não como a diferença da­
da entre o ser e a representação que se elabora “ no” cé­
rebro — o aue é a rigor ininteligível — , mas como o cor­
te de fato existente entre o aue é imediatamente obie-
to do desejo e a realidade desenvolvendo suas determi­
nações fora da necessidade, entre a acão paciente, dolo­
rosa e ençenhosa do homem, modelando a realidade pa­
ra atingir a satisfação e a recusa (recusa interpretada

272
ora como oposição da contingência da hyle à ordem das
essências, ora como oposição da necessidade natural à
invenção e à liberdade) dessa realidade a deixar-se sub­
meter. A independência da matéria apresenta-se inicial­
mente no fato de que muito pouco é dado à humanida­
de, que só possui o que conquistou pelo seu esforço, que
há um registro do ob-jectum ao qual ela não está ime­
diatamente adaptada. A obrigação para o homem de ser
trabalhador atesta, de certo modo, a exterioridade e a
independência, em relação a ele, do domínio que habita.
Perguntarão, no entanto, com que direito o marxis­
mo compreende esse domínio como ser-material, admi­
tindo-se que esse termo designe a realidade corpórea ou
espacial cujos caracteres cabe às ciências positivas des­
cobrir experimentalmente. Não seria mais legítimo ater-
se às formulações habituais do pensamento contempo­
râneo não-materialista que reconhece ou propõe a trans­
cendência do em-si, mas não admite considerá-lo como
ser material? Não se estará aqui resvalando (como as­
sinalávamos no primeiro capítulo) do que é dado à ex­
periência humana, o trabalho entrando em lugar da per­
cepção, ao que constitui o resultado da pesquisa cientí­
fica? Nada prova, ao que parece, que o lugar da prática
seja idêntico a esse objeto estudado pelo físico, pelo geó­
logo e pelo biólogo. A physis, habitáculo do homem, po­
derá ser identificada com o mundo físico? Será justo
considerá-la como a verdade da physis e apresentar os
decretos da ciência positiva como únicos aceitáveis, úni­
cos capazes de trazer, no que se refere à realidade, de­
terminações corretas?
A resposta a essas perguntas é de grande importân­
cia na medida em que pode esclarecer a oposição do mar­
xismo às doutrinas contemporâneas que se incluem na
corrente que se convencionou chamar de “ filosofias da
existência”, e compreender em que ótica admite, como
decisivos, no que se refere ao dado natural, os resultados
experimentais. Por que o marxismo “ acredita” na ciên­
cia? Essa “crença” não pode, de modo algum, tornar-se
inteligível se permanecermos na problemática habitual

273
da teoria do conhecimento. Esta supõe que haja, de um
lado, um objeto a conhecer e, de outro, um sujeito que
possui a propriedade de conhecer; fixa inicialmente a
existência de uma representação subjetiva ou interna
que entretém certa relação com a realidade da qual é a
representação; e pergunta-se como, ou por que proces­
so (caso tenha pretensões normativas) a representação
é representação verdadeira dessa realidade. Ela se co­
loca, pois, na perspectiva em que a relação privilegiada
do homem e do dado é de ordem teórica, uma “ contem­
plação” — quer seja essa contemplação concebida como
sensação, visão intelectual, afeto ou qualquer combina­
ção desses diversos termos. Com outras palavras, a teo­
ria do conhecimento em geral, admitindo com ponto pa­
cífico o fato de que a relação importante com o objeto
é cognitiva e que o resto — a ação, por exemplo, — ou
é de outra ordem, ou constitui apenas uma preparação
ou aplicação dessa relação essencial. Esse é um pressu­
posto que Hegel criticou vivamente e no qual julgamos
necessário insistir.
Procuramos mostrar, no segundo capítulo, por vias
diferentes e suscitando outros problemas, que, se o pro­
blema da relação com o objeto é proposto em termos teó­
ricos, não pode receber solução teoricamente satisfató­
ria do conhecimento em geral, admitindo como ponto pa-
tirmos da separação entre a representação subjetiva do
objeto e o objeto, seremos levados ou ao dogmatismo ou
ao relativismo. A diferença entre essas duas atitudes
consistiria simplesmente em que a primeira acredita tér
encontrado um sinal adequado da representação objeti­
va, ao passo que a segunda procura em vão esse sinal e,
não o encontrando, é levada a admitir a relatividade do
conhecimento. Sem dúvida, o filósofo imaginou muitas
vezes sair do dilema e julgou ter demonstrado os vícios
dos dogmatismos que o precederam e as insuficiências
da crítica cética. Se continua, no entanto, a propor o
problema nesses termos está condenado a cair sob os
golpes de um novo ceticismo: que prova poderá jamais
apresentar de que a representação que julga verdadeira
o é efetivamente, que sua certeza é também verdade,

274
uma vez que se situa no nível de uma representação que,
como tal, permanece presa necessariamente ao sujeito?
Será necessário dar algum golpe de força, apelar para
o consensus, para Deus, ou para uma convergência de
pensamentos; precisará ascender ao transcendental, cons­
tituir-se ele próprio em intellectus archetypos o qual,
por graça ou habilidade, soube, ao mesmo tempo, per­
manecer representação e juiz da qualidade da repre­
sentação. Será sempre um cético ou um historiador que
mostrará, com todo direito, que o sujeito permaneceu
empírico e que suas evidências, longe de apreender o
Absoluto, ou as condições do Absoluto, dependem de
uma situação empírica: preocupações individuais, at­
mosfera ideológica, problemática de conjunto em deter­
minado momento...
De fato, a luta entre o dogmatismo e o ceticismo
leva a formular o problema transcendental, a perguntar
em que condições é possível um conhecimento efetivo.
Esse problema, no entanto, por maior profundidade que
o pensamento lhe atribua, permanece tributário da di­
ficuldade que o suscitou; trata-se sempre de perguntar
sobre o direito que tem um sujeito de conceber a reali­
dade tal como a concebe, de conhecê-la como a conhe­
ce. Cada um afirmará que apreende as coisas em si mes­
mas, que as vê “ em pessoa” , que realizou os aprofun­
damentos últimos: não poderá, diante dos céticos, dos
técnicos da vida quotidiana, senão apelar para o teste­
munho daqueles que partilham a mesma graça. Assim,
dois pensadores de grande profundidade esforçaram-se,
no século XX, em superar a problemática gnosiológica
tradicional. Bergson e Husserl, em óticas muito diferen­
tes, recusaram essa separação da representação subje­
tiva e do objeto. O primeiro negou que seja necessário
partir da noção de uma coisa exterior e estranha da qual
seria preciso forjar a representação adequada; o segun­
do afastou a idéia de que o sujeito seja a sede de repre­
sentações passivas que seriam cópias do objeto. Situam-
se, um e outro, em uma perspectiva mais elaborada em
que a dualidade do refletido e do refletor torna-se ab-

275
surda, em que o dado já é dado como apto a ser conhe­
cido tal qual é, contanto que se operem as reduções con­
cebíveis e que se apreenda o que é verdadeiramente
dado. No mundo das imagens de Matéria e Memória, na
Lebenswelt husserliana, o que se apresenta é mostrado
como se exibindo em sua verdade e não podendo mos­
trar-se senão assim. A oposição do subjetivo e do obje­
tivo, no nível do próprio conhecer, é abolida. A crítica
(cética, antifilosófica ou marxista) voltará à carga, e
com razão ao que parece: dirá que essa oposição já ha­
via sido superada por Hegel e de modo muito mais pro­
fundo e satisfatório; procurará mostrar, em todo caso,
que a supressão é operada precisamente porque se abo­
liu totalmente o estatuto da objetividade e o problema
de seu controle. Toda licença não é dada doravante ao
pensador de propor como dado autêntico o que ele pró­
prio experimenta como sendo autêntico? Essa problemá­
tica interna da história do pensamento filosófico, a da
adaequatio rei et intellectus, não é resolvida somente
porque se suprimiu da questão a coisa, reduzindo-a a es­
se vivido do qual cada um terá o direito de afirmar que
é o único efetivo. Restará como prova apenas o assenti­
mento dos homens de pensamento, convencidos de que
se trata, no caso, da “ esfera primordial” , do “ dado ime­
diato” : abrem-se, assim, as portas a todas as ironias de
Cálicles, e a preocupação de salvar o homem da aberra­
ção empírica o entrega sem defesa à contingência de
uma opinião que acredita encontrar, na própria pru­
dência e sutileza, o sinal de que é saber.
Não parece, pois, seja qual for o gênio dos pensado­
res, que uma solução ao problema da prova da verdade
e de um enunciado possa ser descoberta no nível da teo­
ria do conhecimento, e o marxismo, aceitando situar a
discussão nesse nível, coloca-se numa posição insustentá­
vel. O materialismo que ele adota o leva a situar-se nas
piores perspectivas da ontologia realista: precisará per­
guntar como o sujeito, situado materialmente, quer di­
zer, segundo o marxismo, biológica, histórica e indivi­
dualmente pode forjar uma representação objetiva de tal

276
realidade que aí está, e isso a partir do conteúdo inicial
da sensação. Deverá, acumulando os materiais de uma
enciclopédia, preencher o imenso vazio existente entre
a relação imediata com o objeto e o conhecimento ela­
borado, proporcionado pelas ciências experimentais. A
cada momento de sua tarefa, verá surgir o dilema do
dogmatismo e do relativismo. Se admite, com efeito, que
a relação fundamental com o objeto é de ordem subje­
tiva e sustenta, por outro lado, que todo sujeito se acha
situado materialmente num contexto histórico que de­
termina o conteúdo desse conhecimento, aproximar-se-á
de Protágoras e de todo humanismo cético. Só por um
golpe de força poderá defender sua opção pelos resul­
tados das disciplinas positivas, afirmando assim sua
crença; ao homem religioso, ao poeta, oporá pura e sim­
plesmente a opinião segundo a qual a physis, para ele,
é idêntica ao mundo físico. E não poderá apresentar ou­
tros argumentos além de sua convicção, a menos que
mascare a fragilidade de sua certeza colecionando ele­
mentos das ciências experimentais recolhidos aqui e ali.
Mais ainda, estará desarmado desde o momento em que
a questão do fundamento do que afirma lhe for pro­
posta: só pela fuga escapará do problema transcen­
dental.
A ruptura do marxismo com a filosofia situa-se em
nível mais profundo: não se trata apenas de opor
uma teoria do conhecimento materialista a uma gno-
siologia idealista, nem se trata de contradizer a onto­
logia espiritualista com uma ontologia da materialida­
de. Deter-se nesse ponto corresponderia a situar-se no
estágio de uma polêmica infrutífera. A revolução que
Marx operou no pensamento situa-se, devemos repetir,
no nível da concepção do homem e das tarefas do pen­
samento: ao homem abstrato da filosofia que, no en­
tanto, chegou à concepção mais profunda e mais elabo­
rada, importa substituir a consideração do homem em
sua realidade empírica, como ser prático e histórico. É
somente a partir dessa radical mudança de ótica que se
pode compreender o chamado “ cientismo” marxista. As­
sim como é vão, a menos que nos resignemos a defen-

277
der apenas uma opinião, fazsr propaganda, querer trans­
formar o materialismo em filosofia geral do Ser, assim
também é falacioso pretender fundar a assunção mar­
xista dos resultados das ciências positivas em uma teo­
ria geral do conhecimento.
Se o marxismo identifica a physis e o mundo físi­
co, se declara descobrir a verdade do mundo percebido
e vivido nos enunciados das disciplinas experimentais,
não é em virtude de uma postulação, mas porque veri­
fica um fato: a prática humana, atualmente, em seu
aspecto fundamental, enquanto produção e reprodução
dos meios de existência, não só pressupõe a materiali­
dade “ exterior” , no sentido em que acabamos de defi­
nir a exterioridade, mas considera fato incontestável que
esse dado possa justificar-se por uma análise objetiva,
proporcionada pelas ciências positivas. A atividade mais
importante do homem, aquelas graças à qual se man­
tém em vida, desenvolve sua humanidade aumentando
seu poder real e se liberta da alienação, realiza-se, na
sociedade industrial, considerando decisivos os enuncia­
dos pelas pesquisas experimentais. O reconhecimento da
validade da ciência é constante na prática: não exige,
portanto, demonstração alguma; impõe-se ao mesmo tí­
tulo que se impõe o fato da civilização industrial. A fá­
brica, onde os homens criam os bens e os instrumentos
graças aos quais aumenta o império da humanidade, on­
de se prepara, graças à invenção sempre renovada, a co­
lonização sempre mais ampla e mais profunda do dado,
está ligada — materialmente ligada — ao centro de es­
tudos e ao laboratório. A pesquisa científica manifesta-
se, atualmente, como aquilo por intermédio do que uma
inteligibilidade é dada, de tal ordem que orienta e ilu­
mina a ação sensível do homem à procura da satisfa­
ção. A verdadeira questão não é portanto por que o teó­
rico marxista “ acredita” na ciência e nos seus resulta­
dos? mas “ por que o homem foi levado a reconhecer, em
certo modo de considerar a natureza que, após ter-se
manifestado confusa e parcialmente em certas épocas
e em setores limitados, desenvolve-se a partir do Renas­
cimento e se atualiza plenamente no século X X aquela

278
que convém à realização de sua exigência fundamental:
a humanização do dado e a libertação satisfatória da
sujeição à natureza?” Trata-se, em suma, de compreen­
der por que uma ligação de fato se estabelece entre o de­
senvolvimento das ciências positivas e o crescimento do
poder prático do homem.
A resposta a essa questão não poderia situar-se em
uma perspectiva teórica: seria voltar, indiretamente, à
ótica da teoria do conhecimento perguntar, em virtude
de que natureza onitemporal do Espírito e do objeto,
o racionalismo científico é o modo geral de apreensão
correta e eficaz do dado geral. É a partir do estudo his­
tórico da prática do objeto e da situação social a ele li­
gada que pode tornar-se inteligível a conexão, de fato
existente, entre essa prática e a constituição de uma pes­
quisa experimental sistemática. O problema é de gran­
de dificuldade: sua solução implicaria que se conseguis­
se mostrar de que modo, a partir de um vagaroso cres­
cimento, lentamente preparado, das forças produtivas,
descobrem-se para o homem possibilidades práticas ra­
dicalmente novas, acarretando ao mesmo tempo a for­
mação de uma classe consciente pelo fato de que seu
transformar-se está ligado ao enriquecimento do poder
humano empírico, o aparecimento de uma técnica de
investigação de que Bacon e Galileu fixaram as normas
e o surgimento de uma concepção revolucionária da
natureza que é justo chamar, de acordo com a admi­
rável análise de HusserP, de gálileu-cartesiana. Devería­
mos mostrar, também, como o transformar-se das for­
ças produtivas e das relações sociais após o Renasci­
mento permitiu a atualização e a universalização dos
temas teóricos e práticos descobertos nos séculos XV
e XVI. Somente estudos históricos rigorosos são capa­
zes de tornar clara a ligação existente entre ciência e

9 A crise cias ciências européias e a fenomenologia transcendental,


uma introdução à filosofia fenomenológica; cf. as páginas traduzidas nos
Etudes piliilosophiques, n° 2 e n° 3-4, abril-junho e julho-dezembro de
1949 c as análises de J. W a h l, em seu c u rso sobre a Crise (CDU, 1957).

279
técnica científica, de um lado, e a prática do objeto,
de outro, em determinado momento da história da hu­
manidade. Não se trata de considerar aqui tal proble­
ma: trata-se apenas de compreender, nesse estágio da
presente pesquisa, por que razão o marxismo decide en­
campar a ciência experimental como portadora da mais
profunda inteligibilidade.
Essa razão encontra-se na conversão revolucioná­
ria operada por Marx: considerar o homem em sua prá­
tica real, em sua relação efetiva com o dado. Se é preci­
so privilegiar os enunciados científicos em relação às
lições do sentir, da consciência que o sujeito tem de si
mesmo, da impressão vivida, da reflexão transcenden­
tal, é porque a prática lhes confere esse privilégio. A su­
perioridade que apresentam decorre apenas do fato de
que a prática da sociedade industrial, da qual são o mo­
mento teórico, revela-se superior às práticas e às con­
cepções da relação com o objeto que até então surgiram
na história humana. Sua validade deriva de um fato
histórico: o fato de que, na civilização industrial, a hu­
manidade se encontra na posse dos instrumentos graças
aos quais é capaz de resolver um problema crucial que
a obcecava, o da sujeição à natureza. Nesse sentido, tal
validade pode ser considerada absoluta, na medida em
que é pouco concebível que um tipo de conhecimento di­
ferente do conhecimento experimental proporcione uma
inteligibilidade mais profunda; assim sendo, é pouco
provável que outro tipo de sociedade, além da sociedade
industrial, possa atualmente proporcionar ao homem a
satisfação empírica universal, levando-se em conta o fa­
to de que a sociedade industrial atualmente existe e es­
tá longe de ter resolvido os problemas de sua organiza­
ção.
Sem dúvida, é possível lamentar essa preeminência
da sociedade industrial e do reconhecimento da validade
das ciências que ela implica: pode-se desejar um retor­
no ao tempo — mítico ou real? — em que o homem vivia
na presença da physis e se entregava à simplicidade da
relação imediata com o dado; é sempre possível sonhar
com a ingenuidade da infância (ou da pseudo-infância)

280
e erigir esse sonho em saber ou esperança. Resta que a
sociedade industrial existe com seus problemas doloro­
sos, seu transformar-se, as possibilidades que oferece e
as lutas que provoca. Na verdade, privilegiar o vivido em
relação à ciência, é, atualmente, abolir, no pensamento
a problemática real proposta pela realidade contempo­
rânea ou, na melhor das hipóteses, apresentar para essa
problemática uma solução que apela para o acaso ou
para a boa vontade; é resolver-se, por preocupação de
conforto, a ignorar o que é ou preparar-se, mais corajo­
samente, para “ atravessar o Ródano” . Ao contrário, ad­
mitir o valor absoluto do racionalismo científico, no sen­
tido que acabamos de definir, é apenas reconhecer o fa­
to que está presente na existência quotidiana de cada
um, que a penetra inteiramente e que, aliás, é vivido
efetivamente pelo filósofo desde o momento em que apa­
nha sua caneta-tinteiro e liga o interruptor de sua lâm­
pada elétrica: a ciência positiva como momento da prá­
tica da civilização contemporânea.
Verifica-se, assim, que o problema da significação
que convém atribuir aos enunciados da geologia, da pa­
leontologia, da cosmologia científica, revela-se, ao mes­
mo tempo, secundário e resolvido. É importante, no en­
tanto, observar que a formulação desses enunciados é
relevante na medida em que implica ou não um retorno
às perspectivas caducas da ontologia. Já observamos que
enunciados como: “ a matéria existe antes do Espírito”
ou então: “ a materialidade é cronologicamente ante­
rior à consciência” encerram ciladas que levam direta­
mente ao dogmatismo. Se devemos levar a sério a ciên­
cia, importa fazê-lo seriamente e não generalizar seus
resultados por extrapolações terminológicas. Estabele­
ceram, a geologia, a paleontologia, a cosmologia cientí­
fica, que, anteriormente à existência do homem, houve
um devenir natural efetivo desenvolvendo-se de acor­
do com leis, que é possível observar regendo a natureza
atual e produzindo organizações materiais cada vez mais
elaboradas; que essa história natural não implica, de
modo algum, a aceitação de uma finalidade que a tenha
orientado em seu desenrolar, nem qualquer criação ex-

281
tranatural do homem cuja gênese, a partir das forma­
ções animais, é, senão conhecida, em suas minúcias, ao
menos claramente estabelecida; que se exige mesmo da­
queles que sustentam a necessidade, seja de uma cria­
ção ex nihilo da natureza, seja uma criação extranatu-
ral do homem, de provar cientificamente sua afirmação,
o que não é de modo algum exigível dos cientistas que
se apóiam em observações e experiências controladas.
Em outros termos e ainda mais banalmente, o que pro­
va experimentalmente a ciência, é que as perspectivas
de que nos permitiremos chamar de ontologia teológi­
ca fundam-se num tipo de experiência limitada e indi­
vidual ou em uma simples afirmação que contradiz e
destrói a técnica experimental. O absurdo, — a ausên­
cia de significação, atualmente ao nível da civilização
industrial — das afirmações segundo as quais existe
uma realidade espiritual transcendente ao dado e que o
engendrou, é apenas isso que provam a geologia, a pa­
leontologia e a cosmologia; essas disciplinas invertem o
problema tradicional: era de praxe reclamar do ateísmo
que provasse a não existência de Deus; com mais mode­
ração e liberalismo, essas disciplinas verificam que nada
manifesta tal exigência, que o fato de nela crer é uma
opinião, mas que seriam necessárias outras justificações,
além de sentimentos ou de simples afirmações, para eri­
gi-la em verdade.
Às múltiplas crenças que podem suscitar as incli­
nações de cada um, às infelicidades individuais, às so-
brevivências sociais, as ciências positivas substituem fa­
tos controláveis e pedem que nunca se vá além do que
pode ser controlado; ao irracionalismo das preferências,
opõem, não uma racionalidade abstrata e, como tal,
constantemente posta em questão pela vida quotidia­
na, mas um racionalismo aplicado10: continuam, em su­

10 N ã o é por acaso que nos ocorre uma expressão que é o título de


uma obra de G . Bachelard; a obra epistemológica de G. Bachelard
parece constituir uma análise objetiva da prática científica contem­
porânea além das oposições de escola entre “ materialismo” e “ idea­
lismo” .

282
ma, no que se refere aos diferentes tipos de objetos que
se apresentam, a superação efetiva das doxoi diversas
e contraditórias, capazes de desenvolver-se. O programa
da ontologia tradicional é realizado positivamente por
essas ciências, e não poderia haver outro conteúdo para
uma teoria de conjunto da natureza além do sistema dos
resultados confirmados que chegaram a estabelecer. Não
há pois outra prova da existência de um caráter atri­
buído à realidade em geral senão a que se pode extrair
dos resultados da experimentação científica, dentro dos
limites em que essa experimentação se impõe.
É nessa perspectiva que convém formular a famosa
questão: há uma dialética da natureza? Vimos, a esse
respeito, em que confusão se travava a polêmica do ma­
terialismo e do antimaterialismo. Este sustentava que
está implícita na noção de dialética a idéia de negativi-
dade a qual, por definição, é estranha à natureza, cujos
processos se efetuam no seio de uma plena positividade,
e concluía que a dialética é introduzida na natureza pelo
olhar humano; o materialismo, em resposta, multipli­
cava os exemplos dos fatos científicos que implicam con­
tradições, oposições, lutas internas. Nesse nível, é claro
que nenhuma solução é mais legítima do que a outra. A
ambigüidade decorre do fato de que as duas partes si­
tuam-se em óticas diferentes. O antimaterialismo colo­
ca-se na perspectiva de um Cogito, em que a experiên­
cia fundamental é a do vivido e onde o mundo físico
aparece como uma construção a partir desse vivido pré-
científico: é evidente, então, que todo fato científico re-
reconhecido como dialético deve receber esse caráter do
próprio olhar que o reconheceu, constituiu ou construiu.
O materialismo marxista, ao contrário, sustenta que não
se trata, de modo algum, de fundar a validade das ciên­
cias experimentais, que são legitimadas pela prática da
sociedade industrial: o que lhe permitiria afirmar que
há uma dialética dá natureza é o fato de que o mundo
físico, experimentalmente, manifesta-se como tal: é con­
veniente, para compreender a posição marxista, reali­
zar o desvio indispensável e tornar clara a necessidade

283
da passagem da filosofia ao racionalismo, tal como foi
definido por Marx.
Ainda assim, mesmo que se tenha aceito essa tran­
sição como legítima e se considere necessária a supera­
ção da filosofia, a noção de dialética da natureza é pou­
co clara. Constitui, com feito, uma determinação ge­
ral referente à realidade natural: a esse título, signi­
fica, em primeiro lugar, que há um devenir da natureza
considerada em seu conjunto, que há uma história na­
tural e que as leis universais que a governam fazem
surgir assim formações originais, mais ricas e mais ela­
boradas do que as formações anteriores. Opõe-se, por­
tanto, nesse sentido limitado, ao substancialismo dos fi­
lósofos criacionistas que consideram a natureza como
a soma de entidades separadas que repetem invariavel­
mente seus traços característicos. Além disso, na idéia
de uma dialética da natureza está implícito o fato de
que o devenir é dramático, que opera, não como progres­
so linear, mas como luta, que o novo resulta da supera­
ção do antigo e que a realidade deve ser apreendida como
sistema complexo e movediço de tensões, oposições, con­
flitos. Parece, a esse respeito, que os resultados da físi­
ca em geral, confirmam semelhante ótica: o que se sa­
be atualmente sobre a formação do sistema solar, a his­
tória da terra, a gênese vagarosa da animalidade, mos­
tra que devemos rejeitar tanto a perspectiva criacionis-
ta quanto a do progresso linear por acúmulo. Trata-se,
porém, de uma verificação que só é legítima porque se
apóia em enunciados experimentais confirmados; não é
de modo algum uma demonstração que deduzisse o fato
dialético do conceito da natureza. Orà, parece que pen­
sadores marxistas — caindo na cilada da ontologia —
pretenderam, a partir dessas observações, e das que se
fizeram no campo da história humana, fazer generaliza­
ções e submeter assim as pesquisas científicas a precei­
tos metodológicos que lhes seriam impostos pela nature­
za do ser. Essa extensão parece totalmente abusiva:
quando o teórico marxista pede ao historiador que volte
sua atenção para um fato que se mostra decisivo na es­
trutura da sociedade atual, o da luta de classes, propõe

284
sem dúvida uma concepção do devenir humano; mas,
de um lado, demonstra por que razões lhe parece lícito
considerar as revelações trazidas pela sociedade indus­
trial princípios de pesquisa válidos para formações his­
tóricas anteriores e, por outro lado, a proposição que
apresenta só pode ter validade se for confirmada pelo
acontecimento analisado cientificamente. No que se re­
fere ao mundo físico, uma demonstração desse tipo é ina­
ceitável. O que prova a prática da sociedade industrial
é apenas que, a propósito do dado natural, a inteligibi­
lidade mais profunda é a proporcionada pelo conjunto
das ciências experimentais. Por isso mesmo, o encargo
de determinar a estrutura do mundo físico é integral­
mente confiado a essas ciências: não há outra natureza
do ser além da que é descoberta pela experimentação.
Toda extrapolação é perigosa e conduz ao formalismo:
leva — e o desenvolvimento da ontologia materialista a
partir da Dialética da natureza de Engels o mostra —
a procurar, a todo preço, nos enunciados científicos, for­
mulações dialéticas, a atribuir arbitrariamente impor­
tância maior aos que se conformam com o esquema ló­
gico e, finalmente, a interpretar a própria dialética de
maneiras diversas e igualmente contingentes. A esse res­
peito, as críticas de pormenor do antimaterialismo es­
tão plenamente justificadas: vê-se mal, por exemplo, que
dialética encerra o simbolismo matemático enquanto
sistema axiomatizado e que relação existe entre a “ opo­
sição” do pólo positivo e do pólo negativo em eletricida­
de e a “contradição” do ácido e da bese nos aminoácidos.
Que seja necessário, contra o criacionismo, contra o pro-
videncialismo teológico ou naturalista, defender, fun­
dando-se constantemente nos resultados efetivos obti­
dos, a idéia de um devenir dramático da realidade na­
tural, isso parece pressuposto pelo novo racionalismo do
qual o marxismo se tornou o promotor; é cair na “ ilu­
são transcendental” pretender atribuir antecipadamen­
te às regiões objetivas que se oferecem à pesquisa cien­
tífica um caráter dialético do qual nenhuma definição
clara, aliás, foi até agora apresentada.
Assim, o materialismo dialético, contanto que re­

285
nuncie à ambigüidade, que se recuse a constituir-se, de
acordo com os hábitos do pensamento filosófico, em on­
tologia ou em teoria do conhecimento, que aceite a ta­
refa que lhe é atualmente atribuída, enquanto elemento
de luta pela instauração de uma prática visando a sa­
tisfação humana empiricamente universal: ser a teoria
da passagem do racionalismo filosófico abstrato ao ra-
cionalismo concreto, não passa, no conteúdo, da respos­
ta, a um tempo constante e renovada, aos argumentos
da paixão individual e do interesse de classe e às cons­
truções sérias daqueles que, empolgados pela beleza e
pela grandeza da tradição filosófica, desprezam a reve­
lação que, sobre a realidade humana, trouxeram a revo­
lução industrial e as transformações políticas que a
acompanharam. Como tal, a propósito do dado físico,
em particular, não está de modo algum obrigado a apre­
sentar uma concepção geral e sistemática da natureza:
sua missão consiste apenas em fazer valer os resultados
experimentais confirmados contra as elaborações abs­
tratas; em sua perspectiva, o físico não pode estar er­
rado contra o filósofo, porque precisamente o materia­
lismo significa, antes de mais nada, que os fatos cienti­
ficamente estabelecidos jamais estão errados. Quanto à
idéia de fazer da teoria marxista uma “ suma” dos resul­
tados experimentais, de defender a ciência vulgarizan­
do-a e pretendendo sistematizá-la tirando as conseqüên­
cias de tal sistematização, semelhante idéia perde-se na
insipidez e na ingenuidade. As ciências dispõem de su­
ficientes armas teóricas e práticas para revelar seus re­
sultados: o que resta estabelecer, é por que se tornou
atualmente necessário, pelas mesmas razões que deter­
minaram outrora a decisão de filosofar, considerar as
ciências e a pesquisa experimental únicas capazes de tra­
zer a verdadeira inteligibilidade.

Vemos, pois, o que significa o materialismo da con­


cepção marxista: não se trata, de modo algum, para es­

286
sa concepção, de construir uma nova ontologia, de apre­
sentar uma nova teoria do conhecimento, e, ainda me­
nos, de constituir-se como uma enciclopédia das ciên­
cias. O que visa, mostrando porque o visa, é mostrar
que a humanidade não pode realizar sua exigência fun­
damental: a da satisfação empírica universal, implican­
do o acréscimo do poder do homem sobre a natureza, ai
multiplicações das necessidades humanas, a possibilida­
de de satisfazê-las e a abolição definitiva da violência
histórica, senão reconhecendo-se ela própria, em seu
ser-fundamental, como materialidade ativa lutando con­
tra um mundo material cuja inteligibilidade é doravan­
te proporcionada pelas ciências experimentais. Essa
demonstração, renovada em função da situação ideoló­
gica e dos acontecimentos históricos, constitui a tarefa
histórica do marxismo. Com efeito, na atual fase histó­
rica, no momento em que a sociedade industrial procura
o caminho que lhe permitirá deixar de ser um regime de
exploração, multiplicam-se as vias oferecidas à paixão,
à ilusão, e ao fanatismo. Essa época vê crescer a violên­
cia. Alguns pregam a conversão moral; as filosofias abs­
tratas preconizam soluções ideais. O marxismo, como ele­
mento objetivo na luta pela satisfação, empenha-se, em
seu aspecto teórico, na análise científica dessa situação
dramática: tem por missão opor às doutrinas da paixão
e do interesse, às construções imaginárias, às contrafa­
ções dogmáticas, a própria realidade no conjunto de suas
determinações, tal como lhe é possível descobrir apoian­
do-se nos princípios de pesquisa que lhe forneceram Marx
e seus continuadores.
A esse respeito, parece que as construções ontoló­
gicas, os sistemas da natureza, as teorias do homem e de
sua consciência, são outras tantas maneiras de evitar
a questão essencial e desviar a pesquisa das verdadeiras
tarefas da atualidade. O teórico marxista deve resignar-
se; encontra-se no momento da transição e a teoria que
pode fazer é a da transição. É inútil querer imaginar o
que poderá ser a reflexão teórica quando for instaurada
a sociedade empiricamente satisfeita. Atualmente, im­
porta — com exclusão das tarefas de cultura e, em par­

287
ticular, dos trabalhos históricos graças aos quais a gê­
nese dos atuais modos de pensar e de agir pode tornar-se
inteligível — garantir à humanidade um conhecimento
tão claro e completo quanto possível de sua situação. A
obra essencial de Marx é O Capital, a de Lênin não é
Materialismo e empirocriticismo, que um dia deverá ser
considerada medíocre, mas o Estado e a revolução ou
Que fazer? Essa teoria da passagem pode ser desenvol­
vida em vários níveis: pode tratar-se de tentar tornar
clara a necessidade teórica da passagem do racionalis-
mo filosófico abstrato à concepção defendida pelo mar­
xismo; o presente trabalho não tinha outro objeto e sua
insuficiência, suas obscuridades, mostram à saciedade
que a empresa deve ser constantemente aprofundada e
ampliada; é possível, também, que se trate de análises
mais precisas a respeito das circunstâncias históricas da
passagem: tarefas de considerável amplitude apresen­
tam-se então ao teórico, tarefas essas que suscitam pro­
blemas universais concretos em substituição aos que o
filósofo costuma formular abstratamente. Qualquer enu­
meração seria irrisória: digamos, no entanto, que a pro­
blemática atual da humanidade revela como essenciais
— não a relação da alma e do corpo, a existência de Deus,
o fato da dialética no interior de tal setor da química ou
a realidade de um segundo sistema de sinalização — ,
mas questões como, por exemplo, a da função da teoria
revolucionária na transição para a sociedade industrial
corretamente organizada, da relação dessa teoria com
as diversas forças sociais em determinado país, das pos­
sibilidades apresentadas pela organização da Sociedade
civil que permita, no entanto, uma “ deterioração” do
Estado, da compreensão e da orientação das lutas em­
preendidas pelos povos das regiões subdesenvolvidas, do
sentido que convém atribuir, de um ponto de vista cien­
tífico, aos combates dos explorados de acordo com as si­
tuações particulares em que se encontram.
Nisso precisamente, e apenas nisso, pode consistir
a “ posição de partido” . Essa posição, em ultima análise,
reduz-se a salientar a importância de certos tipos de pro­
blemas, a afastar como vãs ou ilusórias as interrogações

288
abstratas, a recusar as soluções que não impliquem a
possibilidade de solução efetiva no nível da existência
quotidiana, e isso sem jamais prejulgar respostas que só
a análise objetiva pode impor. É claro que tal tomada
de posição diz respeito especialmente às ciências huma­
nas cujo estatuto de objetividade deve procurar estabe­
lecer. Parece, nesse sentido, que a revolução marxista
nesse domínio — revolução continuada não só pelos se­
guidores de Marx, mas também por cientistas não mar­
xistas, etnólogos, sociólogos, economistas, médicos, geó­
grafos, historiadores — pode ser comparada à que ope­
raram, no domínio das ciências da natureza, os filósofos,
os experimentadores e os matemáticos nos séculos XVI
e X V II. Esses fixaram as condições graças às quais tor­
nava-se possível atingir o dado natural em seus caracte­
res próprios, de tornar inteligível o sistema dos fenôme­
nos, de exprimi-lo por um conjunto organizado de leis
e de permitir o desenvolvimento das técnicas de apro­
priação. De maneira análoga, admitindo como necessá­
rio considerar o homem em sua realidade empírica, con­
siderar seu devenir como devenir da prática, o marxis­
mo fixa as condições de desenvolvimento das disciplinas
objetivas graças às quais pode tornar-se inteligível tan­
to quanto possível em determinada época, a situação, re­
solvendo realmente as questões vitais, por ela apresenta­
das. Trata-se, pois, de “ tomar partido” pela objetividade
não só admitindo como válidos apenas os fatos e os
acontecimentos estabelecidos e controlados pelas técni­
cas adequadas, mas ainda de esclarecer que tipos de
problemas e que maneira de considerá-los permitem es­
perar a descoberta das estruturas profundas.da reali­
dade humana.
Aquilo a que nos convida a concepção marxista —
tendo mostrado, aliás, por que razões culturais e causas
históricas: o malogro do racionalismo abstrato da filo­
sofia e a constituição da sociedade industrial — , é pon
a considerar como essencial certo estilo de problemáti­
ca teórica, o que exprime e reflete, no nível da elabora­
ção conceituai, a problemática real da humanidade. To­
mar partido significa, desde então, apreender o fato de

289
que a teoria, para constituir-se em teoria que responda
ao que é exigido da teoria, deve ser, antes de mais nada,
teoria da prática humana efetiva de produção e de re­
produção dos meios de existência.
Essa “prescrição legitimada” não poderia entrar em
mais minúcias metodológicas: pretende apenas fazer
valer — no estado atual da cultura — a necessidade da
passagem do homem-abstrato da filosofia (e também
da economia liberal, da sociologia positivista, da histó­
ria espiritualista) ao homem real, definido como, antes
de tudo, produtor e reprodutor de seus meios de exis­
tência no seio de uma sociedade humana. Deve entre­
gar — e é o simples bom senso que o aconselha — .ao gê­
nio de cada pensador e à particularidade de cada situa­
ção o cuidado da descoberta: não lhe cabe impor, entre
outros, um método do tipo daqueles freqüentemente de­
senvolvidos pelas pedagogias marxistas, métodos que de­
sembocam — a pretexto de dialética — em um forma­
lismo irrisório. Também não poderia antecipar os resul­
tados da pesquisa: a experiência da evolução do mar­
xismo teórico, nos últimos trinta anos, mostra a que er­
ros grosseiros conduzem semelhantes antecipações, subs­
tituindo ao estudo da realidade esquemas previamente
construídos, seja por analogia seja por decisão política
subjetiva. Em outros termos, o partidarismo não con­
cerne nem ao método — entendido como conjunto de
técnica de investigação — , nem aos resultados que de­
veriam ser interpretados desta e não daquela maneira
(as questões de método devem ser entregues aos técni­
cos e a idéia de uma interpretação dos resultados está
em contradição com a idéia de análise objetiva), mas à
concepção de conjunto que convém adotar quando se
pretende apreender a realidade em sua mais completa
e mais profunda inteligibilidade. Semelhante partidaris­
mo só é tomado porque, graças a ele, a teoria pode dei­
xar de ser a expressão hábil do interesse ou da paixão
ou construção harmoniosa mas ilusória; tal teoria é ca­
paz de alcançar o fim implícito na vontade que se acha
na origem da constituição da própria teoria: a organi­
zação de uma vida humana desalienada.

290
O fundamento real de tal concepção do exercício
teórico encontra-se, como já vimos, na situação históri­
ca do homem que pertence à civilização industrial, e é
essa mesma situação histórica que explica porque, to­
mando o partido da objetividade aprofundada, o “ teó­
rico” marxista coloca-se no ponto de vista do proletaria­
do. Essa expressão, como a de “posição partidária em
filosofia” é, na verdade, profundamente deplorável e in­
troduz confusões às quais voltaremos brevemente nas
linhas seguintes. Sua significação, no entanto, é menos
obscura quando consideramos o movimento de conjun­
to, cultural e histórico, que está na raiz da constituição
do marxismo. A necessidade para o teórico de situar a
problemática humana em seu nível empírico e a possi­
bilidade que lhe é oferecida de ajustar a aparelhagem
conceituai, graças à qual lhe é dado elaborar soluções a
um tempo efetivas e universais, tem por origem a mes­
ma situação de fato que confere à prática seu estatuto
verdadeiro e engendra uma classe social cujo interesse
a orienta no sentido da realização de uma sociedade
na qual o indivíduo seja liberto da sujeição natural e da
violência histórica. O teórico não adota o “ ponto de vis­
ta do proletariado” como se adota, após deliberação,
uma religião ou como se escolhe ir para a esquerda e não
para a direita: é sua vontade de alcançar a objetividade
mais profunda em relação à realidade humana que o le­
va a considerar particularmente importantes as posi­
ções adotadas por aqueles cujo lugar na sociedade indus­
trial predispõe a lutar contra todos os obstáculos histó­
ricos que se antepõem à realização da sociedade univer­
sal. Assim, de um lado, o teórico que reconheceu como
necessária a passagem à concepção do homem definida
por Marx e as organizações revolucionárias proletárias,
são aliados “naturais” (deveríamos dizer: históricos) e,
por outro lado, o teórico, em sua pesquisa, é levado a
dedicar especial atenção às lutas, às palavras de ordem
dessas organizações na medida mesma em que travam
o mesmo combate que ele.
Não é o momento de mostrar de que modo o conhe­
cimento dessa conjunção de fato acarretou a constitui­

291
ção de partidos revolucionários no seio dos quais o con-
ironto dos resultados adquiridos pela análise objetiva
dos fatos e a situação histórica, em determinado momen­
to das diversas forças sociais empenhadas na batalha
pela abolição da sociedade de classes tem por fim a fixa­
ção de uma linha estratégica e tática graças à qual a
passagem da sociedade industrial de seu nível capitalis­
ta a seu nível socialista poderia ser efetuada em condi­
ções mais humanas, em condições menos dolorosas para
os indivíduos. Também não é o momento de analisar os
processos históricos pelos quais as falsificações teóricas
do marxismo — de que demos alguns breves exemplos —
provocaram erros graves relativos à organização do par­
tido revolucionário e permitiram a determinação de li­
nhas políticas erradas que tornaram mais difícil ainda a
passagem ao socialismo e levaram a recorrer a violências
inúteis.
O que é importante assinalar, no entanto, porque
se trata de uma questão propriamente teórica, são as
interpretações falsas suscitadas pela noção de “posição
de partido”. Já no primeiro capítulo, indicamos que o
fundamento do materialismo não se pode encontrar nem
numa intuição moralizante, nem, tampouco, numa con­
fiança sem limites concedida ao exercício teórico como
tal. A digressão que fizemos permite compreender me­
lhor o erro freqüente que se acha na origem dessas duas
interpretações opostas. O “subjetivismo de classe” e o
objetivismo — que nos permitam assim designar provi­
soriamente a atitude de acordo com a qual somente a
reflexão teórica permite a introdução da verdade — su­
põem um e outro que há uma escolha a fazer; o primei­
ro escolhe o marxismo porque “ reflete” o “ponto de vis­
ta do proletariado” ; o segundo o adota porque é verda­
deiro. Nenhum dos dois, porém, prova, de modo algum,
porque se deve escolher o proletariado, nem porque o
marxismo é verdadeiro. Um admite, implicitamente, uma
mística do operário, o outro, e devemos salientar que
esse erro é infinitamente menos grave em suas conse­
qüências teóricas e práticas do que o precedente, que
há uma espécie de objetividade a-histórica que emana­

292
ria do emprego do conceito em si-mesmo. Aquele se des­
prende do relativismo histórico por um golpe de força
efetivo — a consciência operária enquanto tal é sábia
— este, liberta-se por uma referência ao poder a-histó-
rico do intelecto. Nos dois casos, é desconhecido o alcan­
ce propriamente científico de obras como o O Capital
e O Imperialismo, estágio supremo do Capitalismo : o
“objetivismo” esquece que a verdade desses textos resul­
ta não do emprego da dialética ou de qualquer concei­
to seja qual for, mas do fato de que repousa em uma
análise histórica objetiva de situações dadas; o “ subjeti-
vismo de classe” afirma — o que é mais perigoso — que
sua verdade resulta do fato de que Marx e Lênin dis­
seram o que a classe operária pensava. A concepção
marxista é verdadeira: não porque soube — por que mi­
lagre? — empregar conceitos adequados, mas porque a
prática da sociedade industrial lhe permitiu descobrir
a perspectiva de acordo com a qual é necessário, quan­
do se quer chegar a qualquer resultado teórico ou prá­
tico, considerar a realidade humana; é também revolu­
cionária porque, de acordo com a admirável expressão
de Gramsci, “ a verdade é revolucionária” e todo conhe­
cimento aprofundado da situação é uma arma nas mãos
dos que combatem pela liberdade efetiva.
Aparece, assim, claramente o sentido da ligação en­
tre a teoria e a prática. A teoria é o elemento objetivo
da luta prática da humanidade pela satisfação empírica
universal porque é a teoria dessa prática. Não há que
perguntar o que torna prática a teoria: se a teoria é
realmente análise objetiva da situação do homem lu­
tando para sair da sujeição natural e abolir a violência
histórica, já se constitui como fator objetivo dessa luta.
O que faz a verdade de O Capital, não é nem o desen­
volvimento do movimento operário a partir da morte de
Marx, nem as vitórias do proletariado mundial, nem a
formação de Estados que pretenderam ou pretendem
ter realizado (parcial ou totalmente) a sociedade sem
classes: é a exatidão da descrição que apresentou da
prática da sociedade industrial no nível do capitalismo
mais desenvolvido que conhecia. Porque essa descrição

293
era exata e porque, aliás, esse estágio do capitalismo é
particularmente revelador, as leis que descobriu pude­
ram fornecer princípios de pesquisa relativos aos dife­
rentes níveis da sociedade industrial e auxiliar as lutas
operárias. Em outros termos, as verdades que revelou
não esperavam confirmação alguma: porque eram ver­
dadeiras, foram confirmadas, levando-se em conta a
evolução da sociedade industrial, que Marx não podia
nem pretendia prever.
Em outros termos ainda, a prova da validade das
análises de O Capitai encontra-se não no século XX,
mas no século X IX . E, se os estudos relativos à socie­
dade contemporânea confirmam em grande parte os
de Marx sobre o mundo capitalista, é porque esse mun­
do constitui um momento privilegiado que salienta os
traços fundamentais da civilização industrial e mani­
festa, ao mesmo tempo, as contradições e as forças so­
ciais reais que provocarão seu pleno desenvolvimento.
A objurgatória dirigida aos filósofos: “de que serve o
que vocês fazem?", não é marxista. A única prescri­
ção que um teórico pode permitir-se formular, é pedir
que lhe digam a verdade e toda a verdade, sem deter-se
no caminho, sem limitar-se ao homem que pensa, mas
dizendo também e principalmente o que se refere ao
homem em luta contra a necessidade, contra a violên­
cia histórica, contra as estruturas econômicas, políticas
e sociais que o mantêm na alienação.
As observações que acabamos de fazer e as que
apresentamos no capítulo precedente tornam enfim
sem objeto, ao que parece, as discussões que se trava­
ram entre as filosofias da subjetividade e a interpre­
tação ontológica do marxismo. A crítica antimateria-
lista acusava o materialismo histórico de conceber o
devenir humano como submetido a um determinismo
mais complexo, análogo, no entanto, em sua essência,
ao determinismo físico, de considerar a relação da si­
tuação e do ato como uma relação de causa e efeito, em
suma, de negar a função da subjetividade e desconhe­
cer a liberdade humana. Insistia, além disso, numa

294
contradição flagrante que lhe parecia perceber: de um
lado, como teoria, o materialismo considera o ato ou a
representação como um produto das circunstâncias, e,
de outro, como política, não hesita em formular jul­
gamentos morais nem convocar os indivíduos para agir
desta ou daquela maneira; de um lado, postula uma
rigorosa determinação; de outro, supõe uma liberdade
de escolha e de decisão. Devemos dizer, desde logo, que
essas críticas são plenamente justificadas quando diri­
gidas a essa interpretação ontológica do marxismo da
qual já salientamos outras insuficiências. Se conside­
rarmos (no seio de uma caracterização geral e formal
da natureza humana) a relação das “ condições de exis­
tência” com a “consciência” como determinação causal
simples, somente subterfúgios podem permitir que se
reintroduza essa latitude, essa possibilidade de escolher,
implícita em todo esforço para convencer os outros. De
nada adianta, em particular, duplicar essa causalida­
de simples sustentando que a consciência reage em
seguida sobre as condições de existência (pois, ou há
mais na consciência determinada do que na situação
que a determina — e, nesse caso, não se pode mais
fazer do conteúdo da consciência nem um efeito sim­
ples, nem um reflexo — ou bem a consciência é puro
reflexo e a “ reação” sobre a situação é então comple­
tamente ilusória). De nada serve invocar a dialética de
um termo ao outro, se não se define com rigor o sen­
tido dessa palavra. De fato, trata-se, no caso, de formu­
lações que procedem de uma metafísica da natureza
humana estranha ao marxismo.
As análises objetivas, econômicas e históricas, dos
teóricos materialistas, permitem compreender o que
significam as expressões famosas segundo as quais “ as
condições de existência determinam a consciência” .
Não querem, evidentemente, dizer que em certo momen­
to os pensamentos e os atos de tal pessoa são determi­
nados — no sentido físico do termo — pela situação
objetiva na qual essa pessoa se encontra: pode-se sus­
tentar, sem dúvida, tal opinião; pode-se sustentar a
opinião oposta e invocar a irredutibilidade do livre ar­

295
bítrio. Após as demonstrações dadas por Hegel, após a
revolução teórica efetuada por Marx, verifica-se que esta
interrogação: “ o homem é ou não livre?” é desprovida
de significação, que não chega nem mesmo a ser uma
interrogação pois é possível responder a ela de uma ou
de outra maneira sem que nenhum partido seja capaz
de impor sua verdade. A afirmação de que as condições
de existência determinam a consciência significa, mais
concreta e universalmente, que o devenir da humani­
dade só pode encontrar sua inteligibilidade profunda
na consideração do homem em sua realidade empírica,
como ser material compelido a resolver — com os ins­
trumentos que lhe são dados, as estruturas sociais que
lhe são impostas, o grau de saber que lhe é transmi­
tido pelo seu passado, sua situação em relação ao obje­
to e aos demais homens, e o horizonte ativo que essa
situação implica — questões de ordem vital que dizem
respeito à manutenção, ao desenvolvimento e à perda
de seu ser-empírico. A solução que traz é uma decisão
que emana de si; é sua obra. A metafísica do livre
arbítrio diria que é livre. Mas, o que é em si mesmo,
a situação objetiva na qual se encontra, os meios à sua
disposição, e o grau de seu saber, lhe são dados. O
que faz “ livremente” , o faz para evitar a morte com
recursos que não dependem dele: a partir daí, sem dú­
vida, inventa ou não inventa. A experiência da histó­
ria prova que grupos humanos inventaram onde outros
simplesmente receberam, tateando ou repetindo, para
sobreviver, as lições aprendidas.
Esse fato da invenção — que aqui preferimos cha­
mar de decisão, para melhor salientar seu caráter deli­
berado e ativo — não pode, no entanto, erigir-se, como
tal, em traço característico do ser humano em geral,
traço a partir do qual o devenir se explicaria (ou antes
deixaria de ser explicável). O que é importante — sem
ignorar que se trata de uma invenção, de um ato —
é aplicar-se ao conteúdo das invenções humanas. A
ciência histórica parece mostrar — e seu estatuto de
disciplina científica digna de interesse está ligado à
possibilidade de fazê-lo — que esse conteúdo, embora

296
inventado, é função da situação objetiva em que sur­
giu: a solução que tal indivíduo, integrado em tal ca
mada ou classe social, propõe teoricamente ou realiza
praticamente, manifesta-se como inteligível em seu con­
teúdo quando a compreendemos como solução deste
indivíduo, desse grupamento social colocado em tal pro­
blemática e vendo seu futuro desenhar-se de tal modo.
Nesse sentido, a situação — e esse termo deveria ser
definido em cada caso, de acordo com o que significa:
situação particular fechada em si mesma, situação par­
ticular aberta à problemática de conjunto da sociedade
ou situação particular capaz de confundir-se com essa
problemática por um tempo limitado ou por um perío­
do mais amplo — determina o ato humano em seu
conteúdo. Já apresentamos, neste trabalho, alguns bre­
ves exemplos dessa perspectiva de estudos. O materia­
lismo histórico consiste, nesse sentido, em substituir a
inteligibilidade histórica radical, implícita na idéia de
uma liberdade tal que cada um decidiria fazer o que
lhe convém ou de pensar e de viver o dado como esco­
lheu, a experiência de uma inteligibilidade estabelecida
a partir dessa noção de que o ato, a solução inventada
e, conseqüentemente, o vivido, podem ser apreendidos
como ato como solução, como vivido implícito em tal
problemática vital que pode ser obietivamente estu­
dada nelas técnicas Drónrias das ciências humanas. A
referência à realidade humana empírica — como refe­
rência a determinado couteúdo da vida em dado mo­
mento — permite, desde então, compreender norque tal
solução é adotada, tal modo de viver a situação é esco
lhido. sem que seja necessário por isso negar que essa
escolha, cme evS.sa solução seiam invenções devidas à de­
cisão dos indivíduos ou dos grupos.
O que o materialismo histórico quer mostrar, é que
há uma inteligibilidade do passado humano, contanto
aue façamos referência ao homem como realidade empí­
rica e não apenas ao homem como pensamento (ou
f'omo criatura realizando seu destino de ser criado).
Não se trata, de modo algum, de negar a funcão do
sujeito histórico na história, mas, ao contrário, de con-

297
siderá-lo, finalmente, como sujeito histórico, compelido
a resolver problemas determinados, em situações e
perspectivas dadas. Verifica que a análise do complexo
histórico lhe permite compreender, por exemplo, por­
que, em determinada época, prevalecem soluções não-
inventivas, soluções que “ inventam” repetir o passado
e porque, em outras, decisões surgem que permitem,
seja a construção de soluções coerentes, mas imaginá­
rias, seja o preparo de uma ação revolucionária. E a
melhor prova que pode apresentar da justeza de sua
perspectiva, é o fato de seu próprio surgimento. Sabe
mostrar que esse aparecimento é devido à formação de
determinada estrutura econômica, social e política.
Essa estrutura engendra as condições históricas, as for­
ças sociais anunciando sua supressão e sua realização
e. também, a concepção que é a teoria dessa Aufhébuna.
Constantino fundou Bizâncio livremente ou não? O
imperador, se revivesse, deveria travar duras batalhas
filosóficas para dar a essa pergunta uma resposta séria
que convencesse a todos. O que é certo, é que realizou
um ato, e que, assim agindo, tomou uma decisão que
resolvia um problema dado, problema que descobria e
apreciava com os elementos de que lhe era dado dispor.

Muitas questões subsistem. Respondemos, muitas


vezes, aos problemas apresentados no primeiro capítu­
lo, de modo superficial e insuficiente. Cada uma das
teses propostas, para assumir todo seu valor, deveria
ser desenvolvida e justificada por uma análise precisa
das obras e dos acontecimentos aos quais só nos foi
possível fazer alusão. O que dissemos da lógica da pro­
va ou do fundamento no interior do pensamento espe­
culativo, da estrutura da sociedade industrial, dos des­
vios e das contrafações que comprometeram o signifi­
cado da revolução operada por Marx, todos esses pontos
deveriam ser retomados e esclarecidos por estudos his­

298
tóricos. Tais insuficiências e obscuridades são imputá­
veis ao autor: são também devidas ao fato que, apesar
da abundância das obras inspiradas pelo marxismo, o
problema essencial da realização e da supressão da fi­
losofia continua sendo até hoje um domínio inexplora­
do; é preciso decidir-se a apresentar esboços, mesmo
que apenas para suscitar as críticas graças às quais a
solução desses problemas poderá ser definida e apro­
fundada. O que desejaríamos, é ter mostrado que tal
problema é o problema teórico atualmente importante,
que deve ser tratado em seus diversos aspectos e que a
elaboração dessa nova concepção das tarefas do pensa­
mento pode ajudar muito a tornar menos dramático e
doloroso o acontecimento capital do mundo moderno:
a transição da sociedade industrial do estágio capita­
lista para o estágio socialista.
O que também desejaríamos, é ter mostrado que a
necessidade da superação da filosofia está fundada, não
no desprezo ou subestimação, mas no reconhecimento
da importância histórica e humana da decisão filosó­
fica; que o novo modo de pensar que o marxismo se
empenha em criar, não só considera essencial a filoso­
fia passada, mas também não poderia ter-se constituí­
do sem apoiar-se nos resultados decisivos por ela con­
quistados; que o “malogro” da filosofia tem como razão
profunda um fato: a situação histórica do homem du­
rante um longo período, que lhe permite conceber a
liberdade mas não realizá-la, perceber a função do pen­
samento universal, mas não torná-lo prático, propor as
soluções para os problemas da alienação natural e so­
cial. mas não agir para que essas soluções se tornem
efetivas; que, atualmente, a filosofia, se mantém gra­
ças à própria dificuldade da transição para a sociedade
industrial plenamente bem sucedida. Para o marxismo,
a filosofia, como estilo de pensar, repousa numa infe­
rência análoga, em sua forma, a que Kant denunciava
a propósito do argumento ontológico: que o pensamen­
to universal da satisfação ou que a satisfação universal
pensada implica a realidade da satisfação universal.
Contra o particularismo afirmado pelas paixões indivi-

299
duais, pelas crenças coletivas, pelos interesses dos gru­
pos, o filósofo reivindica legitimamente a exigência de
universalidade, mas considera suficiente ter provado em
que condições a universalidade pode ser concebida de
modo coerente. Entrega ao acaso, à boa vontade indi­
vidual, à graça, à ação divina, o cuidado de realizar um
mundo ou uma sociedade em que cada um — trata-se
de cada um, de todo homem — possa ser livre, quer
dizer, capaz de ser si mesmo, de não viver na estranheza
e na hostilidade do domínio que habita, de não mais
temer a violência histórica. Trata-se, pois, na época
histórica que torna pensável e realizável tal vontade,
de efetuar, nos fatos, o que essa época concebeu: uma
sociedade no seio da qual o indivíduo possa libertar-se
da sujeição natural pela satisfação das necessidades
imediatas, existir como homem e não como animal, em
que possa querer o que pretende fundamentalmente
sem constituir-se em adversário e concorrente dos de­
mais homens, querer sua própria realização e, simulta­
neamente, o reconhecimento dessa realização como hu­
mana, em que escape das alternativas perigosas e dolo­
rosas: dominar a outrem ou ser dominado (pois domi­
nar-se é uma ingenuidade orgulhosa ou uma saída fal­
sa), ser satisfeito provisoriamente oprimindo e conside­
rando constantemente o sobressalto do ser oprimido ou
ser oprimido sendo infeliz e temendo um acréscimo de
opressão.
A negação da filosofia é, assim, a realização de seu
objetivo mais profundo. Importa fazer existir na pró­
pria empiria a vida universal concebida pelo filósofo e.
para fazê-lo, manifestar inicialmente a insuficiência
da solução abstrata, não para recair no desespero, no
cinismo ou na habilidade, mas para levar o universal ao
seu maior desabrochamento, realizando-o. E essa pró­
pria negação só é possível por uma revolução na con­
cepção do homem a respeito de si mesmo, de sua pró­
pria história e de seu querer: trata-se, para permitir
a solução da problemática humana da satisfação, de
compreender o homem como sendo inicial e fundamen­
talmente realidade-material, de apreender o problema

300
da satisfação como primeiramente a da satisfação em­
pírica, de fazer aparecer a raiz da violência histórica,
não na natureza maligna da humanidade — subme­
tida à physis ou ao pecado original — não somente na
ignorância do verdadeiro Bem, devida à paixão ou ao
predomínio dos interesses individuais, mas na estru­
tura real da sociedade. A partir daí, um caminho se
abre a desenhar novos horizontes para a pesquisa teó­
rica: e esse caminho torna-se por si mesmo e nesta
condição, o caminho da solução prática das questões
vitais apresentadas ao homem pela sua existência quo­
tidiana. Mais precisamente, a teoria se transforma por
si mesma em prática pelo fato de ser a teoria da prá­
tica e considerar como questões essencias as que o ho­
mem encontra na sua vida empírica.
Nesse sentido, a concepção proposta pelo marxismo
é o momento teórico da revolução prática histórica que
se opera no mundo contemporâneo: é a teoria da luta
por uma sociedade empiricamente satisfeita e, conse­
qüentemente, luta, de fato e enquanto é fiel às suas
origens, com os meios científicos que são os seus, con­
tra toda concepção da realidade que desconhece o ser
fundamental do homem e contra a manutenção de
qualquer regime, seja qual for o nome com que o bati­
zem, que freie ou impeça a passagem da civilização
industrial para seu estágio de plena realização. Tem
diante dos olhos um mundo no qual se apresenta a pos­
sibilidade da libertação humana da sujeição natural,
em que a violência histórica se mostra claramente como
resultado de certa organização da sociedade, em que os
homens — e, singularmente, uma classe de homens,
aqueles que sofrem mais diretamente com essa organi­
zação — tomaram consciência desse fato e lutam para
que desapareça tal situação. Sabe a que a sociedade
empiricamente satisfeita é possível; sabe também que
nada é definitivamente conquistado, que são numero­
sos os riscos de erro, que a passagem pode ser constan­
temente adiada ou realizar-se com tamanhas violên­
cias que dela a humanidade sairia ferida; em face dessa
esperança e desses perigos, atribui-se como tarefa guiar

301
e organizar, pela análise das situações dadas, essa luta
dos homens pela liberdade efetiva, esse combate do
qual ela própria é um momento.
Encontramos aqui dificuldades, no entanto, que
não seria lícito deixar de mencionar. Parece, de mo­
do especial, que um aspecto decisivo não foi menciona­
do e que essa negligência pode constituir uma contes­
tação dirimente da tese defendida. O marxismo, como
dissemos, realizando a vontade dos filósofos, combate a
alienação e, conseqüentemente, luta pela instauração de
uma sociedade universal empiricamente satisfeita. Não
haverá, nessa dedução, uma postulação ilegítima? Não
supomos, aqui, implicitamente, porque nos fundamen­
tamos em obras filosóficas como as de Platão e de
Hegel, que a vitória sobre a natureza e a satisfação das
necessidades empíricas, que a abolição da violência his­
tórica, que o reconhecimento de cada um por todos que
disso deve resultar, bastam para realizar a liberdade
efetiva, para desalienar o indivíduo? Não haverá, para
o indivíduo, precisamente, uma alienação mais profun­
da e mais grave, a finitude em seus diversos aspectos?
Dar ao homem os meios para viver na plenitude empí­
rica, suprimir o sofrimento por todas as descobertas
técnicas que quiserem, abolir a possibilidade da violên­
cia, permitirá também tornar amado aquele que não o
é? Será, principalmente, por mais que se imagine pro­
longar a vida, suprimir a sujeição natural mais' apa­
vorante, a morte? Mesmo que se admita, com o mar­
xismo, que as limitações humanas tradicionalmente re­
conhecidas pela análise filosófica: o sofrimento físico,
o medo, a insegurança, a ignorância, a estupidez, o
tédio, a estagnação, o crime, possam desaparecer pela
organização da sociedade humana, pelo desenvolvimen­
to dos meios de apropriação da natureza, pelo enrique­
cimento do patrimônio cultural da humanidade, resta
um fato empírico cuja supressão é inconcebível’ e que
constitui a limitação absoluta: o homem é mortal e o
pensamento da morte lhe é presente. E é tanto mais
presente quanto mais consegue o homem eliminar suas
crenças num além, apreender a irrealidade das soluções

302
filosóficas, e descobrir-se como fundamentalmente ser-
empírico: se o homem é fundamentalmente empiria, a
morte é finitude radical e o pensamento da morte pro­
voca a incurável insatisfação11.
Assim, a descrição que tentamos fazer da realida­
de humana, como dialética da necessidade do trabalho
no seio de uma sociedade histórica, talvez seja insufi­
ciente: deveríamos acrescentar que o homem envelhe­
ce e morre. Ora, para esse fato, nenhum remédio uni­
versal empírico é concebível. Sem dúvida, posso lutar
contra a morte como acontecimento singular que pode
ocorrer, posso, sem dúvida prevenir-me contra o “ aci­
dente” e organizar uma sociedade humana em que as
doenças, os riscos seriam eficazmente combatidos, em
que a vida poderia ser prolongada e protegida. Tais
providências, no entanto, não permitem afastar o fato
da morte. A insuficiência do positivismo consiste, em
simular ignorá-lo, dele se afastando com uma falsa co­
ragem e exaltando como único positivo o fato da vida:
por entre parênteses a morte como dimensão do ser
empírico do homem, é, ao mesmo tempo, reduzir o al­
cance e a seriedade do retorno à empiria e, a pretexto
de “boa saúde” , escolher arbitrariamente, entre os da­
dos positivos, o que causa menos desprazer; é recusar
por um artifício — a simples omissão — o que as reli­
giões — admitindo como ponto pacífico a imortalidade
— se empenham também em negar: a finitude radical
dada. O problema é de importância capital: se é fato
que o ser mortal e, mais banalmente, o ser imperfeito
são características empíricas da existência humana real.
que despertam no indivíduo uma insatisfação que ne­
nhuma prática pode abolir e nenhuma disposição em­
pírica suprimir, não teria razão o filósofo em definir o
homem fundamentalmente como pensamento, uma vez

11 Evocando essas idéias, não pensamos apenas em Kierkegaard, mas


também e principalmente na obra de Heidegger, da qual salientamos &
importância no que se refere à noção de “ passagem” , em que nos apoia­
mos neste capítulo.

303
que, em relação ao pensamento, pode pretender-se que
possua a imortalidade ou, ao menos, a onitemporalida-
de? Não deveríamos, antes, orientar a reflexão no sen­
tido de uma meditação sobre a finitude humana e suas
conseqüências últimas, conceber o devenir histórico em
função desse destino profundo? Não deveremos, em to­
do caso, substituir aos esforços técnicos de organização
da vida, que se mostram irrisórios, uma investigação
“moral” visando a tornar possível no seio da limitação
radical, a posse de uma sabedoria, e trazer o esqueci­
mento ao homem perdido em face da finitude ou, mais
profundamente, dar-lhe a segurança e a coragem ver­
dadeiras? Um ressurgimento da religião e da filosofia,
da “moral” , nesse estágio último, revelar-se-ia necessá­
rio?12 A coisa é impensável, desde que consideremos
justos os resultados obtidos até aqui; tal renovação cons­
tituiria, de fato, uma crítica total da concepção mate­
rialista na medida em que admitisse que o homem é,
apesar de tudo, fundamentalmente, pensamento e que a
conservação da alma é, finalmente, mais importante
do que a organização da existência empírica. Quanto
à idéia de uma justaposição — o marxismo como teoria
da prática histórica e a filosofia da alma como medi­
tação sobre o homem individual — , permanece aquém
da seriedade exigível e só poderia ter surgido nessa
época da transição que, como já assinalamos, acumula
as ambigüidades e as confusões.
Seja como for, resta que o marxismo, hoje em dia.
não pode deixar de explicar-se sobre esse ponto. Qual
é sua atitude diante da finitude humana, não como
problema abstrato, mas como dimensão empírica do in­
divíduo, dimensão que é, no mínimo, tão decisiva quan­
to a necessidade e o trabalho? A essa questão, é impos­

12 Renovação de lima filosofia que renuncia, em particular, com o des­


pido de significação, ao conceito da satisfação universal, renovação
de uma reflexão que visa simplesmente valorizar o pensamento indi­
vidual, lúcido e corajoso, a Razão, contra as a.berrações dos grupos,
contra a paixão e contra a estupidez.

304
sível responder aqui de modo suficiente: uma resposta
completa exigiria um estudo aprofundado das doutri­
nas que, depois de Kierkegaard e Nietzsche, puseram a
ênfase no fato da finitude e em sua significação, no seio
desse mundo da passagem em que nos encontramos.
Tal estudo não caberia no quadro limitado e programá­
tico que atribuímos ao presente trabalho. Que nos per­
mitam, ainda nesse nível, fazer apenas algumas obser­
vações. Devemos salientar, inicialmente, a tal ponto a
hipoteca do positivismo e do praticismo e, mais geral­
mente, da propaganda política de vistas curtas, trans­
posta em sistema e em visão do mundo, pesou sobre o
desenvolvimento do pensamento marxista ao longo
destes últimos trinta anos, que nenhuma solução de
tipo moralizante pode ser aceita por uma análise obje­
tiva. A idéia da felicidade ulterior dos homens, a no­
ção do indivíduo que se transcenderia em um ser-gené-
rico ou geral — conjunto dos descendentes, classe, par­
tido — não poderiam ser aceitos como “ consolações”
que permitissem a esse homem esquecer que é mortal e
que nada, para ele, subsistirá de seu projeto e de sua
ação: essas são idéias religiosas que só se compreendem
no quadro da religião. Se há alguma mediação que per­
mita transpor tais dificuldades que atualmente nos de­
têm, só pode provir da lucidez e não de qualquer trans­
posição das místicas antigas.
Na verdade, a consideração da empiria exige que
seja reconhecida essa dimensão trágica da existência
humana. Descobrindo-se como existente singular, cujo
ser, inteiro, limita-se à vida prática sensível, apreen­
dendo-se finalmente tal qual é, como individualidade
entregue a si mesma, o homem contemporâneo, que vive
o período da passagem e o compreendeu, encontra-se
preso numa contradição: de um lado, concebe-se como
ativo, como ser cujas condutas são levadas em conta:
pensa-se como ligado a essa história da humanidade da
qual é um resultado e como responsável pelo mundo de
que participa; pensa-se como ser histórico, isto é, como
ser que se quer e se sabe livre — libertável — ; mas,
por outro lado, essa descoberta que fez de si mesmo lhe

305
revela seu destino de finitude inelutável e a absoluta
contingência de sua existência. Essa contradição, ne­
nhum artifício poderia desfazer: não posso querer-me
plenamente vivo — em meu ser-sensível, em minhas re­
lações concretas com outrem, em minha tarefa — se­
não sabendo também que estou votado à morte e ata­
cado por uma doença incurável faça eu o que fizer, se­
jam quais forem os progressos que se realizem nas ciên­
cias do corpo, seja qual for o voto que eu formule.
A poesia do nunca-mais, a meditação sobre a mor­
te, deverão, pois, prevalecer e a lucidez revelar irrisório
o esforço para organizar a vida? Não parece que possa
ser assim: o problema que se apresenta é o de saber o
modo de aparecimento atual da morte e da imperfei­
ção no seio da prática real da humanidade. O ser mor­
tal, a limitação individual, manifestam-se ao homem
empírico que tomou consciência de seu estatuto sensí­
vel como um fato, significativo do trágico inelutável da
existência? Tem o homem a liberdade de apreender sua
própria: vida como destino de finitude, individual e con­
tingente de que tem o encargo? E possível que pensa­
dores, enquanto pensadores, atinjam essa liberdade; a
humanidade, porém, que se sabe livre, experimenta-se
sofredora e humilhada; para ela, a tragédia está fal­
seada e se apresenta com o aspecto confuso e sem gran­
deza dos dramas terríveis nascidos da desordem dos ne­
gócios humanos, do infortúnio (um infortúnio superfi­
cial que é o contrário do destino profundo) ou da má
vontade. O trágico atualmente é impuro. Não se mani­
festa como conflito entre uma situação de finitude e
de imperfeições fundamentais e a liberdade de um in­
divíduo; apresenta a face absurda e caricata do “ aci­
dente” . A morte, para aqueles que estão empenhados
na determinação da necessidade e nas hostilidades da
história, é apenas um acontecimento; tem um nome:
chama-se fome, miséria, guerra, polícia; não passa de
um aspecto e como que um resultado da vida sofre­
dora. Este morre na guerra; e morre porque a história
e o ignóbil infortúnio armaram uma conjuntura em
que o assassínio torna-se legítimo e normal: não en­

306
frentou a morte; aconteceu-lhe como ocorre um acon­
tecimento. A coragem trágica, atualmente, na prática,
é interdita ao homem, porque o homem não é livre; o
que lhe é dado é a coragem histórica de libertar-se, de
fazer desaparecer, tanto quanto possível, esse sofrimen­
to e essa humilhação que o alienam.
O que seriam a morte e a imperfeição para o ho­
mem libertado da sujeição natural e da violência, é vão
pretender imaginá-lo. Mas, em todo caso, não é lícito
pedir à humanidade que exerça sua liberdade enfren­
tando resolutamente o fato da morte, pois não é livre
e, ao que aspira, é simplesmente viver e evitar o
acontecimento que mata; o mundo da passagem é tam­
bém o do drama histórico; e, para o homem que nele
se encontra, todas as dimensões da existência adquirem
a cor desse drama. É, sem dúvida, permitido ir além
dessa situação, considerar o homem como já libertado,
mas, assim fazendo, não trairemos a vocação do pensa­
mento da realidade humana em seu movimento pela
conquista de si mesma? Não se trata, de modo algum,
de negar a finitude, nem de ignorar sua “ importância” :
o mundo contemporâneo, mostrando o caráter empí­
rico da existência, o revela claramente; a finitude,
como tal, porém, não é o elemento determinante da
problemática humana atual; só poderá vir a sê-lo no
dia em que o homem livre puder pensar seu destino e,
não como hoje, empenhar-se em fazer sua história.
Se assim é — e trata-se apenas, ainda uma vez, de
uma observação — talvez seja porque a alienação pela
morte e a imperfeição sejam de outra ordem que a alie­
nação que resulta da sujeição natural e da violência
histórica. Entre a vida que nos é dada, mortal, e a
sofredora, existe, ao que parece, uma diferença profun­
da, diferença de fato que se manifesta na prática atual
da humanidade. A alienação pela morte, porque é dada
de modo radical, porque não pode ser objeto de nenhu­
ma solução efetiva na realidade empírica, constitui me­
nos um problema do que um fundo permanente im­
posto à existência humana. Só enquanto acontecimento

307
é que posso lutar contra a morte; desde o momento
em que a penso como uma característica geral, é um
fato que me angustia, que talvez me paralise, mas deixa
de me interessar praticamente. A vida sofredora é o
oposto da plenitude; uma e outra se concebem dialeti-
carnente. A morte não tem relação dialética com a vi­
da: não tem conteúdo algum. Desde já imagino, conce­
bo mesmo, a sociedade universal empírica satisfeita ou
a caminho da satisfação; não sei o que é a vida imor­
tal. O fato da morte pertence pois à esfera do que é
puro dado a propósito do qual se pode dizer, entusias­
mar-se, lamentar-se, mas não saber realmente e fazer.
Constitui uma dimensão existencial irredutível do mes­
mo modo que a existência em geral, que o fato da exis­
tência em geral. Dizer que é irredutível, é dizer que
não pode ser modificado e que se acha abandonado à
sua contingência, pura e brutal: como fato, é um objeto
do pensamento exercendo-se no interior de si próprio.
Só poderia ser plenamente compreendido, se é que isso
tem sentido, por um pensamento libertado e senhor de
si mesmo. O pensamento, no momento da transição,
encontra-se apenas em estado de libertação: para ele,
há inicialmente acontecimentos que deve enfrentar; se
a alienação pela morte é, a seus olhos, menos “ grave” ,
é porque está mergulhado na vida sofredora e exprime,
antes de mais nada, a vontade dos homens que sabe ter
conquistado os meios reais para alcançar a vida em sua
plenitude. Devemos repetir, como o pensamento com­
preenderá a essencia mortal do homem (e sua imper­
feição essencial), é absurdo procurar concebê-lo. Atual­
mente, o problema do homem se apresenta em termos
não de destino, de “ fato” ou de essência, mas de his­
tória .
Esse primado da historicidade empírica que se ma­
nifesta na produção social dos meios de existência, en­
contra seu “ fundamento” na própria situação que é
dada ao homem contemporâneo, vivendo na sociedade
industrial na época da passagem. Tal situação exige,
de acordo com o marxismo, a constituição de um modo
de pensar novo que supere a universalidade abstrata

308
reivindicada e alcançada pela filosofia. Mas, os pensa­
dores que salientam o que, para simplicar, chamamos o
trágico da existência humana — em perspectivas di­
versas: existencial, ontológica e mesmo visando ir além
da ontologia — sem dúvida não reconhecerão que o
Aufhebung operado pelo marxismo seja a única conce­
bível; contestarão sua radicalidade. A rigor, fora do
materialismo, depois de Kierkegaard e de Nietzsche, a
morte da filosofia foi muitas vezes proclamada e a ne­
cessidade para o pensamento de voltar-se finalmente
para o importante — o existente humano em sua rea­
lidade, como esse ser pelo qual, na angústia de ser,
advém toda questão e toda vontade — foi também pro­
clamada muitas vezes. Essa corrente encontra sua ex­
pressão mais alta e mais difícil na obra de Heidegger.
Não pretendemos aqui apresentar os temas dessa obra
nem tampouco determinar qual é a resposta do marxis­
mo, pois o presente trabalho tem por fim apenas indi­
car o que é a Aufhebung materialista e porque é desse
modo. Mas, seríamos incompletos se não observásse­
mos, de um lado, que o marxismo não é o único modo
de superação proposto e que, de outro, a análise dessa
outra superação é para ele de grande importância, faz
parte de suas tarefas primordiais no momento atual na
medida em que lhe permitiria precisar sua posição e
compreender, com mais profundidade do que até agora,
as dificuldades do pensamento na hora da passagem.
Esses pensadores que também verificam o “ malo­
gro” da filosofia e concebem a obrigação de abrir um
novo caminho, apresentam ao marxismo uma questão
séria: pretender afastar essa questão — como fizeram
vários doutrinários de inspiração marxista, a pretexto
de que essas reflexões são irracionalistas — é frívolo,
pois o objeto da pergunta é precisamente o do estabele­
cimento da razão. Essa questão é tanto mais séria quan­
to Heidegger reconhece a importância do marxismo 1:!

13 Cf., em particular, a Cana sobre o humanismo, trad. M unicr. pp.


99 ss.

309
e, se toma outro caminho, é , ao que parece, porque
contesta que a superação operada por Marx seja sufi­
ciente. Para Heidegger, não é apenas a filosofia que
deve ser posta em questão, mas a própria civilização
industrial e os modos de pensamento que correspondem
à “ civilização planetária” 14. O marxismo compreendeu
o mundo moderno, mas não o fez com bastante pro­
fundidade; não viu que o que está na sua origem é
uma “perda” , a perda do sentido do ser em sua inte­
gridade: o homem, desde Platão, esforçou-se em cons­
truir uma (representação adequada da realidade, em
aprisionar o dado na rede das determinações lógicas
cada vez mais finas e sutis; consagrou-se a uma ação
espiritual, a uma ação de transformação, esquecendo
que o único verdadeiro devenir é o da physis originária.
A civilização técnica e seu infortúnio são o desfecho
desse “ erro” fundamental: porque jamais chegava a
elaborar a representação adequada que a satisfizesse in­
teiramente, a humanidade abandonou-se à vontade de
poder que a conduziu ao “ niilismo” atual. Assim sendo,
toda tentativa para fazer dessa perda um ganho está con­
denada ao fracasso: o que importa, é tentar inclinar-se
à escuta do ser, interrogar aqueles que a preocupação
da lógica e da técnica, no sentido moderno dessas ex­
pressões ainda não tornou surdos e tentar, por um inter­
rogatório constante, apreender o momento originário no
seio do qual seja dada a fusão real do que é e do que é
dito, onde a alteridade do pensamento e do ser mostre-se
como tendo sido sempre absurda, onde o lugar a mora­
dia já seja o da presença e da razão. Trata-se de chegar
a essa presença em que a physis e o logos surgem de si
mesmos confundidos. A problemática autêntica não se
situa nem no mundo a-histórico das essências, nem na
história: encontra-se rumo à origem... O “ niilismo” dos
tempos modernos é o anúncio talvez de uma época em
que se assinala a possibilidade desse voltar à escuta do
ser, a esse retorno fundamental ao acontecimento que

14 Cf. J. Wahl, Rumo ao fim cia ontologia.

310
está na própria fonte do ente e que permitiria ouvir a
resposta que está implícita na questão que o homem ss
propõe a respeito de si mesmo e do ser.
O que exige, em suma, ao que parece, um pensa­
mento desse tipo — contanto que se possa em observa­
ções tão breves e exteriores unificar seus temas e entre­
ver sua profundidade — é uma radicalização total da
questão referente ao homem. A insuficiência do mar­
xismo consistiria então em aceitar a historicidade hu­
mana como fato que dispensa qualquer elucidação, em
esquecer que, além dos problemas postos na historici­
dade, há o fato do próprio destino histórico que remete
a um momento originário em que esse destino se tra­
çou. O que semelhante pensamento condenaria no ma­
terialismo contemporâneo é considerar indiscutível a es­
trutura da existência humana, sem procurar garantir
sua inteligibilidade, enclausurando-se no ente sem ten­
tar compreender porque é assim e não de outro modo.
Que o fato da necessidade e do trabalho tenha deter­
minado o sentido da história e tenha levado à formação
da civilização técnica, que permitiu tomar consciência
desse fato como decisivo, isso é claro, e, a respeito, a per­
gunta é a um só tempo técnica (como isso aconteceu pre­
cisamente?) e prática (como é preciso pensar e agir para
que essa civilização alcance seu pleno desenvolvimento?).
Mas, poderemos pensar em qualquer resultado com sen­
tido se não explicarmos o fato do trabalho e da necessi­
dade como estrutura necessária da existência? Ora, para
responder a essa questão, é preciso sair desses proble­
mas limitados e voltar à questão sempre proposta e que
a metafísica, pelos pressupostos que aceita, fica impe­
dida de resolver: de que se trata, a propósito do ser?
Já indicamos qual é, em tese, a resposta do mar­
xismo. Consiste em negar que haja outros tipos de per­
guntas e de soluções, referentes à estrutura dada da
realidade tal como é dada, além das que podem ser pro­
postas pelas ciências positivas. Assim como não precisa­
mos demonstrar que o homem é trabalho, também não
precisamos provar que é consciência ou ser mortal: tra­
ta-se apenas de mostrar cientificamente que é assim.

311
E, essa apresentação só pode remeter a outros fatos e a
outros acontecimentos. O “ fundamento” da história hu­
mana é a história natural. À pergunta leibniziana: “por
que há isto e não aquilo?” o marxismo responde deixando
a palavra às disciplinas positivas. E, à questão mais am­
pla e mais profunda que tal pergunta suscita: “por que
há alguma coisa e não o nada?” , opõe o fato de que tal
questão, para ter sentido, supõe que possamos nos colo­
car nessa esfera indeterminada que seria prévia à exis­
tência; sem dúvida, podemos nos colocar nessa esfera,
mas em imaginação, e as soluções que traremos serão
também do domínio do imaginário, do domínio da
poesia.
Que haja angústia diante da morte e da existência,
é um fato; que essa angústia suscite sentimentos e pa­
lavras, isso também é dado como particularmente carac­
terístico do homem que vive os dramas da época da pas­
sagem. Pode-se, certamente, afirmar que a revelação
dessa angústia é o acontecimento importante da época e
constitui precisamente o elemento no qual deve desen­
volver-se o modo de pensamento que superará a filoso­
fia. Essa afirmação, porém, por mais legítima que seja,
corre hoje o risco de ficar aquém da prática da huma­
nidade. Pois, para o marxismo, o que determina o sen­
tido e o conteúdo da interrogação teórica, é a problemá­
tica prática do homem, compreendida esta como ato de
produção social dos meios de manter e desenvolver a vi­
da humana e enriquecer suas possibilidades. Pode-se la­
mentar o advento da civilização técnica, considerar o de-
venir do homem como uma “perda” e aspirar à tran­
qüilidade que, no infortúnio contemporâneo, se recusa
e se anuncia. Mas, para o teórico marxista, não é de
modo algum operar uma radicalização entregar-se, a par­
tir dessa nostalgia, a uma procura que permita ao pen­
samento colocar-se à escuta do ser: pois, a seus olhos,
trata-se, ainda aqui, de uma tentativa que pretende rea­
lizar a vocação do pensamento apenas no pensamento.
A pesquisa verdadeira radical é a que visa compreender
a promessa de uma satisfação que se acha contida na
vida atual a agir para que essa satisfação se torne efe­

312
tiva. Não se trata, de modo algum, de eliminar os esfor­
ços para abrir ao pensamento um caminho diferente dn
quele que é proposto pelo materialismo marxista, quali­
ficando-os de irracionalistas, de místicos ou de “ reacio­
nários” . É preciso antes definir as relações que entretém
com o modo de pensar filosófico e perguntar se a supe­
ração que pretendem efetuar não passa da retomada —
em modalidades diferentes, no seio de outra problemá­
tica ideológica e em dado momento da passagem — da
solução que, em seu tempo, Hegel havia elaborado.
Não se trata, de modo algum, como vemos, de pre­
tender que os problemas individuais, que o problema es­
sencial do indivíduo, sua imperfeição, sua angústia e sua
finitude, não tenham importância ou sejam resolvidos
pela construção de um mundo humano realmente coe­
rente. Ao contrário, o que o marxismo afirma, ao qu^
parece, é que esses problemas só poderão ser resolvidos
— de que maneira? seria ingênuo querer profetizar —
em um universo onde o indivíduo se encontre finalmente
em liberdade, na riqueza de suas determinações singula­
res. O que importa é conhecer a problemática atuál da
humanidade e participar lucidamente do combate que
ela trava para que se instaure uma sociedade que per­
mita o desenvolvimento indefinido das potencialidades
humanas, que faça existir o homem como homem, que
realize a liberdade efetiva; uma sociedade em que o pen­
samento seja liberto da sujeição natural e do temor, em
que a poesia — no duplo sentido do dizer e do fazer indi­
viduais — da vida e da morte tenha sua livre eclosão:
em que o indivíduo seja capaz de formular e de resolver
pessoalmente seus problemas pessoais; em que nenhum
biombo mascare mais a presença à natureza e à vida da
cultura.
Marx dizia isso de um modo ao mesmo tempo mais
técnico e mais beloin: “ O reino da liberdade começa on­
de acaba o trabalho determinado pelas necessidades e os
fins exteriores: pela própria natureza das coisas, está

15 Cf. O Capital, L . III, cap. X L V I I I , trad. M olitor, t. X I V pp.

313
fora da produção material. O civilizado deve, assim co­
mo o selvagem, lutar contra a natureza para satisfazer
suas necessidades, deve fazê-lo em todas as formas de
sociedade e em todos os modos possíveis de produção.
Com seu desenvolvimento, ampliam-se, ao mesmo tempo,
o reino da necessidade natural e as necessidades: mas
as forças produtivas ampliam-se na proporção mesma
em que satisfazem essas necessidades. A liberdade, nes­
se domínio, só pode consistir no seguinte: o homem em
sociedade, os produtores associados, regulam racional­
mente essa troca material com a natureza, submetem-na
a seu controle efetivo em vez de serem dominados por
ela como por um poder cego; realizam-na com os esfor­
ços mais reduzidos que é possível, nas condições mais
dignas de sua natureza humana e as mais adequadas a
essa natureza. Mas, um reino da necessidade subsiste
sempre. É além desse reino que começa o desenvolvi­
mento dos poderes do homem, que é para si mesmo seu
próprio fim, o verdadeiro reino da liberdade, que, no en­
tanto, só pode desabrochar apoiando-se no reino da ne­
cessidade. A redução da jornada de trabalho é a condi­
ção fundamental”.
Talvez devêssemos acrescentar10 que a conquista
dessa liberdade individual, possível por um domínio mais
amplo da natureza, só poderá ser efetiva se a atividade
trabalhadora, fonte e meio da liberdade, for, ela própria,
livre, se os trabalhadores tiverem o poder político real de
organizar e gerir eles mesmos sua produção, de controlar
seus produtos, fazendo desaparecer assim totalmente, da
mais alta atividade humana, o trabalho, toda servidão e
toda alienação e fundindo em uma só e mesma prática
triunfante a -poièsis e a praxis.

16 C f. P . Chaulieu, Sobre o conteúdo do socialismo, in “ Socialisme


ou Barbarie” , n? 22, julho-setembro 1957, pp. 1-74,
Apêndice

A r e d a ç ã o de Logos e Praxis — apresentada à


Sorbonne como tese complementar para doutorado em
abril de 1959 — foi concluída no fim do inverno de 1958.
Desde então foram publicados quatro livros, sobre o pro­
blema da superação da filosofia. A soma e o resto de
Henri Lefebvre; Investigações dialéticas de Lucien Gold-
mann; o tomo I da Critica da razão dialética, de J.-P.
Sartre e Marx, pensador da técnica, de Kostas Axelos.
O primeiro desses livros propõe, em suas análises teó­
ricas, perspectivas semelhantes às que aqui apresentamos.
Mostra como a dupla crise que atinge, ao mesmo tem­
po, a filosofia e o marxismo, é significativa da situação
contemporânea que exige, tanto uma readaptação da fi­
losofia aos problemas do mundo moderno, quanto uma
renovação em profundidade do marxismo. Sobre esse
último ponto, fiel a seu “ objetivismo” (ver, neste livro,
cap. IV, nota 1, e cap. V), H. Lefebvre estuda cer­
to número de conceitos capazes de “ desobstruir” o mar­
xismo, de desqualificar o “subjetivismo de classe” e

31$
seu correlato, o dogmatismo, e de restituir ao conjunto
do método seu caráter científico. Parece que, nesse sen­
tido, a solução proposta carece da radicalidade. Procura-
se mostrar precisamente que a degenerescência atual do
marxismo oficial não está somente ligada ao emprego
de conceitos erroneos, mas a um desconhecimento total
da revolução teórica operada por Marx. Tornando-se
doutrina oficial de Estados e de partidos institucionali­
zados, o “materialismo dialético” escamoteia sistematica­
mente o que há de fundamentalmente revolucionário e
crítico na obra de Marx, da qual só retém os aspectos ex­
teriores, os mais “ metafísicos” e fabrica uma doutrina
“ confortável” cujo poder de contestação foi reduzido ao
mínimo. Assim, à crítica constante da sociedade indus­
trial e de sua organização, desejada e desenvolvida por
Marx, substitui-se um pálido e insípido racionalismo utili-
tarista. Não será elaborando novos conceitos metodológi­
cos que se poderá lutar contra semelhante falsificação,
nem tampouco apelando para as inquietações e a ironia
da subjetividade insatisfeita. A verdadeira contestação,
no nível teórico, deve operar-se em dois planos: pela aná­
lise histórica do processo político, e econômico de dege­
nerescência (a esse respeito as revistas Socialismo ou
1
barbárie e Argumentos trouxeram, em óticas diferentes,
preciosos elementos) e pela redescoberta do novo modo
de pensar definido e aplicado por Marx. É a esta segun­
da tarefa que se aplica o presente trabalho.
As mesmas observações poderiam ser feitas a pro­
pósito das Investigações dialéticas de L. Goldmann em
que o autor de Deus oculto revela os princípios meto­
dológicos que lhe permitiram estudar, sob perspectiva
materialista e dialética, as obras de Kant, de Rascine
e de Pascal. Não se trata, aqui, de julgar tais inves­
tigações (ver cap. IV ). Quaisquer que sejam, no en­
tanto, seu valor e seu interesse, implicam uma inter­
pretação do marxismo muito contestável: este não se
apresenta mais como um método particularmente fe­
cundo — mais fecundo que o da “ história literária” .
Face à história idealista que só considera os indivíduos,
há a história materialista que define “visões do mundo”

316
e as integra dialeticamente em seu contexto econômico-
social. A revolução teórica operada por Marx é conside­
rada apenas uma conversão do pensamento por uma
compreensão melhor do próprio pensamento. De fato,
essa interpretação do marxismo prende-se à ótica hoje
definida como “materialismo dialético” , concebido como
teoria geral do Ser e do Conhecer implicando certo mé­
todo aplicável nos diversos domínios do conhecimento e
da ação. L. Goldmann, — porque tal é a sua “especia­
lidade” — o utiliza a propósito da história da cultura,
como outros podem fazê-lo em outros domínios: arte,
ciência ou política. O sentido fundamentalmente prá-
tico-revolucionário do marxismo é posto entre parênte­
ses e a teoria se aplica aos seus objetos habituais; a mu­
dança radical de interesse desejada por Marx não é rea­
lizada. Assim, L. Goldmann — Como J.-P. Sartre quan­
do admite discutir Flaubert — situa-se na perspectiva
definida por Garaudy e entra no recinto fechado onde
se desenrolam esses debates irrisórios e essas lutas de
escola em que se trata de saber quem é mais “ forte” , o
materialismo “ ortodoxo”, o materialismo “ aprofundado” ,
o “ existencialismo ou a história tradicional” de inspira­
ção cristã.
O livro de J.-P. Sartre, Crítica da razão dialética,
situa-se em perspectiva muito diferente: ocorre que —
julguemos válidos ou caducos os resultados que obtém
— uma obra desse tipo inaugura um novo modo de pen­
sar — na filosofia francesa ao menos — ; a preocupação
do conteúdo e de seu movimento é constante: aos argu­
mentos de escola se substitui uma análise reflexiva e
dialética que incide sobre a própria experiência. A con­
clusão de Questões de método é, a esse respeito, signifi­
cativa: constitui aparentemente uma transição entre os
textos publicados em Temps moáernes e a Crítica da
razão dialética; assinala, com efeito, uma ruptura. As
Questões de método consideram os problemas na perspec­
tiva da filosofia tradicional. A Crítica da razão dialética
situa-se, desde logo, além dessa perspectiva: deixando
de lado a polêmica inútil, que sistematizamos em nosso
capítulo I, toma por objeto de sua reflexão crítica a pró­

317
pria praxis. Realiza precisamente essa radical conversão
do interesse reclamada por Marx: o objeto da teoria não
é mais a Matéria, o Espírito, a preeminência do econô­
mico ou do individual, mas o homem enquanto se cons­
titui historicamente no seio de determinada formação
social. Nesse sentido, situa-se já no nível da superação
da filosofia e indica os objetos e os problemas aos quais
deve aplicar-se a teoria se quiser deixar de ser especula­
ção abstrata. Todavia, a maneira de encarar esses pro­
blemas e considerar esses objetos difere sensivelmente da
que foi descoberta por Marx e que o último capítulo do
presente trabalho tenta redefinir. J.-P. Sartre, fundan­
do-se na experiência crítica — experiência que poderia
ser a de “qualquer um” no período pós-stalinista (p.
141) — propõe-se a lançar as bases de “ prolegômenos a
toda antropologia futura” (p. 153) isto é, reunir os ele­
mentos de uma “ antropologia estrutural e histórica”
(p. 9, p. 156). Propõe assim certo número de “ modelos”
dinâmicos: modelos da relação inter-humana fundamen­
tal, da socialidade, do grupo e de seus desenvolvimentos.
Define, assim, uma gênese ideal que vai da praxis indi­
vidual à História, gênese que faz aparecer as categorias
— as “ essências” — graças às quais o devenir aventu­
roso do homem poderá ser apreendido do interior de sua
necessidade. Procede, pois, como Rousseau no Discurso
sobre a origem da desigualdade e no Contrato social e
se refere explicitamente à análise abstrata a que pro­
cede Marx no começo de O Capital. A propósito de tal
atitude, a questão não é de legitimidade, mas de legiti­
mação. Que prova se pode dar da validade universal de
semelhantes modelos? O problema deve ser proposto no
momento em que, de todos os lados, nas ciências huma­
nas, surgem “modelos estruturais” com a pretensão de
universalidade. Esses modelos e o que é proposto por
J.-P. Sartre, apesar de sua amplitude e de sua riqueza,
não escapam a essa crítica, e só podem invocar como fun­
damento exemplos, tomados aqui e ali no devenir da hu­
manidade. Pelo temor de fazer concessões excessivas à
razão positivista (a que preside à elaboração da história
científica, por exemplo) esse gênero de reflexão chega

318
a outro positivismo, menos controlado e menos perigoso
talvez: a escolha livre do pensador que isola as ilustra­
ções que convêm à sua demonstração. Quando Marx
analisa abstratamente a natureza da troca, situa-se sem
dúvida fora da história: mas, o que então estuda, é uma
condição inerente a todo homem enquanto produtor e
reprodutor de sua existência. O “ modelo” proposto vale
apenas na medida em que revela um estatuto fundamen­
tal comum à “humanidade genérica” . Não é certo, ao
contrário, que a relação ternária estivador-jardineiro-
cantoneiro ou que a análise das jornadas de julho de
1789 permitam apreender o conteúdo prático da relação
Grego-Bárbaro no século V ou o retorno triunfal de
Trasíbulo à frente de suas tropas após a tentativa de
Crítias. Não há, sem dúvida, antropologia estrutural ou
histórica: mais precisamente, uma antropologia histó-
ricà não poderia ser estrutural, no sentido em que desco­
brisse estruturas universais. As estruturas que revela só
têm alcance e valor heurístico nos limites de determina­
da época; e, se ocorre que as estruturas reveladas por
Marx em O Capital têm significação particularmente
ampla, é porque a realização da sociedade industrial, es­
tudada por Marx em sua fase capitalista, revela o as­
pecto fundamental, até então oculto, da existência hu­
mana. O modelo marxista — em sua generalidade —
permite encarar com um fio condutor toda a civilização,
sendo claro que essa generalização indica apenas uma
direção de pesquisas, não de resultados. É de recear que
o modelo sartriano, pelo fato de dizer muito e não pro­
var suficientemente, tenha apenas um sentido circuns­
tancial. Bastará, no entanto, nesta fase da transição,
que o modelo seja circunstancialmete correto?
K. Axelos em Marx, pensador da técnica, pretende
reencontrar, além da degenerescência pós-marxista, a
mensagem autêntica de Marx. Ora, para apreender tal
mensagem, importa, antes de mais nada, compreendê-la
com suas contradições. Marx, teórico da praxis da so­
ciedade moderna, constrói um humanismo prático que
nega e supera a metafísica ocidental; esse humanismo,
no entanto, cçn§erva alguma coisa daquilo que pretende

319
superar; desenvolvendo um materialismo e um realismo
simplistas, permanece na ótica da filosofia tradicional;
trabalhando pela supressão' de todas as alienações, negli­
gencia — embora pressentindo — a alienação funda­
mental, a dilaceração e a negatividade; convoca o homem
para a conquista do mundo e vê na técnica o meio de
realizar a humanidade, mas sabe também que toda téc­
nica é fragmentária e despojadora. E o universo que
quer construir aparece ora como ser na plenitude de suas
determinações, ora como supressão de toda determina­
ção, como nihil. Esse diálogo com Marx — alimentado
pelo pensamento nietzscheano e heideggeriano — res­
taura toda a profundidade e complexidade de uma con­
cepção que as apologias sociais-democratas, e em segui­
da stalinistas, que as exposições críticas de inspiração
cristã freqüentemente apresentaram como “ sistema” su­
perficial e linear. Conquistado esse ponto, e também a
idéia de que Marx, homem do século XIX, era tributário
daquilo contra o que lutava (metafísica ocidental, pro-
gressismo, política, positivismo cientista), resta uma
questão que põe em jogo toda a interpretação dada por
K. Axelos: é possível colocar no mesmo plano textos
como a Contribuição à crítica da filosofia do Estado de
Hegel, os Manuscritos de 1844 e O Capital? O ponto
de vista que aqui sustentamos é que O Capital e a ação
política constituem, em forma e conteúdo, a resposta às
questões propostas naquilo que se convencionou, na
França, chamar de “obras filosóficas” . O Capital, obra
científico-crítica, momento teórico da prática aue Marx
vê desenvolver-se em sua época pretende ser. pelo objeto
e proieto, a superação efetiva da especulação filosófica
e do economismo positivista (e, o que é desnecessário
dizer, do estreito praticismo político): inaugura —
descobre, diria L. Althusser em notável artigo publicado
no n<? 96 da revista Pensée (março-abril de 1951, pp.
3-26) — um novo modo de pensar que, na época da so­
ciedade industrial em realização, deve substituir-se ao
Saber dos filósofos e ao empirismo parcelar dos cientis­
tas. Pode-se lamentar que Marx tenha assim resolvido a
questão do homem moderno e pensar que as perguntas

320
formuladas nos Manuscritos de 1844 não tenham rece­
bido uma resposta mais tópica e mais rica. É possível
julgar que as “soluções” propostas pelo O Capital negli­
genciam uma parte importante, talvez; essencial, da
problemática humana. Procuramos mostrar neste tra­
balho que enquanto essas “soluções” não são efetiva­
mente concretas, enquanto as condições da satisfação
empírica universal, definidas por Marx, não nos são da­
das, os outros problemas (o da finitude, em particular)
formulam-se em termos falsos, e mesmo que alcancem
profundidade e “ verdade” em um indivíduo, permanecem
sem conceito, quer dizer, sem expressão legitimável e sem
solução prática, pelo simples fato de se recortarem so­
bre o fundo da insatisfação empírica universal.

321

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