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ERRO-VÍCIO CULPOSO E A FORMAÇÃO DA VONTADE NAS

PESSOAS COLETIVAS1

Diogo Costa Gonçalves

Nestas II Jornadas Luso-Brasileiras de Responsabilidade Civil, proponho-me


abordar a possibilidade de existência de erro erro-vício culposo na formação da vontade
das pessoas coletivas.

Sendo o declarante uma pessoa coletiva, poder-se-á predicar a existência de um


estado subjetivo de desconhecimento ou ignorância, quando a falsa percepção da
realidade se ficou a dever à violação, pela pessoa coletiva em causa, da diligência
normativamente exigível na formação da sua própria vontade negocial?

O tema, com inegável relevância prática, parece-me especialmente oportuno, por


diversas razões. Desde logo, porque se encontra arreado dos roteiros expositivos da
Teoria Geral do Direito Civil, que tratam da formação da vontade negocial ignorando as
especificidades que se colocam ao interprete-aplicador sempre que o declarante é uma
pessoa coletiva2.

Existe, poderíamos dizê-lo, o mito metodológico de equiparação entre pessoas


singulares e coletivas em sede de formação e interpretação do negócio jurídico. Ninguém

1
O presente artigo corresponde ao texto que serviu de base à nossa intervenção nas II Jornadas Luso-
Brasileiras de Responsabilidade Civil, que teve lugar Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
no dia 08-nov.-2018. Optou-se por manter a marca da oralidade, acrescentando apenas as notas
imprescindíveis para uma leitura mais contextualizada.
2
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, II, 2003, 136 ss.; ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, II, 4.ª ed., 2014, 123 ss.; LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria
Geral do Direito Civil, II, 2010, 5.ª ed., 277 ss.; HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil
Português, 1992, 433 ss.; CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO/ANTÓNIO PINTO MONTEIRO/PAULO MOTA
PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., 2005, 413 ss.; PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral
do Direito Civil, 8.ª ed., 2017, 401 ss. e 573 ss.

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ignora que o casus conhece uma textura problemática distinta em função da natureza dos
sujeitos em causa3; porém, o modelo de decisão tende a ser unitário, como que
ficcionando a inexistência daquelas diferenças que todos sabemos existirem.

Do mesmo modo, o arquétipo legal do declarante é invariavelmente a pessoa


singular. Mais: por regra, a pessoa singular que celebra um negócio jurídico bilateral, de
execução imediata. Se as limitações impostas por tal arquétipo legal vêm sendo apontadas
com frequência em sede de interpretação dos negócios jurídicos4, os constrangimentos
aplicativos que se colocam em sede de formação da vontade tendem a ser ignorados.

Ora, o erro-vício culposo é um exemplo paradigmático de como, nesta sede, o


modelo decisório não pode ser unitário. Os problemas suscitados pela formação da
vontade das pessoas coletivas exigem uma resposta dogmática diversa daquela que
normalmente é apontada para as pessoas singulares.

Neste sentido, o erro-vício culposo pode muito bem representar uma hipótese de
demonstração da falsidade de uma certa orientação dogmática que, colocada diante das
particularidades da formação da vontade das pessoas coletivas, não logra aquela dimensão
explicativa e heurística que CANARIS assinala como a marca de água de qualquer tese
jurídica5.

Em segundo lugar, o tema é especialmente oportuno se tivermos em conta que nos


encontramos numas jornadas luso-brasileiras. Pese embora a marcada influência do
Código Civil português na elaboração do Código Civil brasileiro6, a verdade é que em
sede de ero na formação da vontade a influência determinante foi do codice civile italiano.

3
Quanto à origem e natureza da pessoa coletiva, veja-se o nosso Pessoa coletiva e sociedades comerciais
– Dimensão problemática e coordenadas sistemáticas da personificação jurídico-privada, 2015, passim.
4
Conferir, a título de exemplo, as críticas de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Sociedades, I, 3.ª
ed., 2011, 494-499 e de MANUEL CARNEIRO DA FRADA, “Sobre a interpretação do contrato”, in Forjar o
Direito, 2015, 15.
5
CLAUS-WILHELM CANARIS, “Funktion, Struktur und Falsifikation juristischer Theorien”, in
Juristenzeitung 48 (1993) 8, 378 ss.
6
Sobre o processo de codificação civil brasileiro veja-se o nosso “Contributo para o estudo da pessoa
jurídica no Direito civil brasileiro”, Civilistica.com 5 (2016), I, disponível in http://civilistica.com/wp-
content/uploads/2016/07/Gonçalves-civilistica.com-a.5.n.1.2016.pdf e RUI DE FIGUEIREDO
MARCOS/CARLOS FERNANDO MATHIAS/IBSEN NORONHA, História do Direito Brasileiro, 2015, 571-596.
Veja-se ainda ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit., 845-847. Para a discussão
teórica sobre a existência de uma família jurídica lusófona, BENJAMIN HERZOG, Anwendung und Auslegung
von Recht in Portugal um Brasilien, 2014, 29-34.

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Daqui resulta que o mesmo problema conhece, no Brasil e em Portugal, soluções
normativas distintas, como a seu tempo veremos, o que torna o diálogo inter-atlântico
tanto mais interessante quanto necessário.

Tenho a honra de proferir esta conferência na vetusta Universidade de Coimbra,


verdadeira alma mater da universidade portuguesa e de tantas escolas da lusofonia.

Cumprimento, com sincera admiração pessoal e académica, o Senhor Doutor


António Pinto Monteiro, que preside a esta mesa, e na sua pessoa o colégio dos doutores
desta Faculdade de Direito. Cumprimento também os Senhores Doutores Paulo Mota
Pinto e Filipe Albuquerque de Matos com quem partilho este painel e agradeço,
penhorado, à Senhora Doutora Mafalda Miranda Barbosa, o amável convite que me
dirigiu.

1. O CASO DA «EXPLORAÇÃO DE MINÉRIO»

Partamos de um caso hipotético, que nos sirva de mote nesta reflexão.

Suponhamos que durante o ano de 2018, P1 alienou a P2 a participação


qualificada de 90% que detinha na sociedade Alfa, concessionária de uma exploração de
minério. Do contrato de compra e venda de ações constava uma cláusula compromissória.
Meses mais tarde, P2 veio promover a constituição do tribunal arbitral, pedindo a
anulação da compra e venda de ações com fundamento em erro.

Alegou, para o efeito, o desconhecimento de certos factos essenciais respeitantes


à concessão – único objeto da sociedade Alfa – , conhecimento esse que, a existir, teria
inviabilizado a celebração do negócio.

P1 sustenta que o conhecimento de tais factos podia ter sido adquirido por P2
durante a fase das negociações da compra e venda de ações.

Admitamos, numa primeira hipótese, que P2 é uma pessoa singular e,


seguidamente, que é uma sociedade comercial.

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2. COORDENADAS GERAIS

O erro-vício consiste numa falsa congnitio ou falsa percepção da realidade: o


declarante representa, na sua subjetividade, um estado de coisas que não corresponde à
realidade objectiva. Consiste também na ignorantia dessa realidade objectiva, ainda que
não acompanhada de qualquer representação subjetiva7.

No caso de que partimos, P2 alega estar em erro sobre «factos essenciais


respeitantes à concessão». Assumamos que estamos na presença de um erro sobre o
objecto. A alegação de P2 é acompanhada pela invocação, por P1, da violação da
diligência devida, pelo próprio declarante, na formação da sua vontade negocial.

Estamos, como tinha anunciado, diante de uma hipótese a que a doutrina vem
denominando erro vício-culposo: aquele em que a ignorantia ou falsa cognitio fica
unicamente a dever-se à incúria grosseira do próprio sujeito que se encontra em erro8.

A doutrina tradicional entende que culpa não exclui o erro9. O estado psicológico
do sujeito existe, independentemente de ser ou não censurável a sua causa. Culposa ou
não, a falsa cognitio ou a ignorantia é um estado subjetivo do declarante e, portanto, não
pode deixar de afirmar-se que existe uma falsa percepção da realidade.

A censurabilidade surge, assim, como um (eventual) requisito da relevância do


erro (a sua desculpabilidade10). Não se trata de saber se o declarante está em erro, mas

7
Sobre a noção de erro, por todos, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Teoria Geral, cit., 136 ss., ANTÓNIO
MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit., 835 ss.; A. FERRER CORREIA, Erro e Interpretação na
Teoria do Negócio Jurídico, 2.ª ed., 2001, 24-26; LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito
Civil, II, cit., 202 ss., HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, 1992, 568 ss.;
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., 504 ss.; PEDRO PAIS DE
VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit., 579 ss.
8
A noção de erro-vício culposo é dada por MANUEL DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica, II,
1960, 239; veja-se também LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., 210.
9
Dando como dominante esta doutrina, PAULO MOTA PINTO, “Requisitos de relevância do erro. Nos
Princípios de Direitos Europeu dos Contratos e no Código Civil Português”, Estudos de Homenagem ao
Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV, 2003, 81.
10
Sobre a relevância da desculpabilidade como requisito de procedência do erro veja-se, por todos, o nosso
Erro-obstáculo e erro-vício – Subsídios para a determinação do alcance normativo dos artigos 247.º, 251.º
e 252.º do Código Civil, 2004, 73 e ss. e ainda ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil,
cit., 850-851; LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., 210-211; PAULO MOTA
PINTO, “Falta e vícios da vontade – o Código Civil e os regimes mais recentes”, Direito Civil – Estudos,
2018, 59-60. Ao abrigo do Código SEABRA, dando como doutrina tradicional a relevância da
desculpabilidade como requisito, A. FERRER CORREIA, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico,
cit., 294. Veja-se ainda, com referências, LUIZ DA CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil em
Comentário ao Código Civil Português, IV, 1931, 294 ss.

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sim de saber se tal erro, tendo ficado a dever-se a culpa do próprio declarante, permite ou
não a ineficácia da declaração emitida.

A doutrina tradicional opera, portanto, uma clara distinção entre (i) o estado
subjetivo psicológico, correspondente à existência ou não de erro; e (ii) o juízo valorativo
corresponde aos critérios normativos da relevância jurídica do erro.

Os critério normativos da relevância jurídica do erro não são idênticos em todos


os ordenamentos. Existem, com efeito, variações assinaláveis, com inegáveis
consequências aplicativas no caso de que partimos.

Uma análise ainda que perfunctória de alguns ordenamentos de referência permite


intuir, contudo, que a diversidade de opções do legislador histórico se localiza, sobretudo,
ao nível do sistema externo11. Do ponto de vista axiológico (ou de sistema interno), os
ordenamentos de matriz romano-germânica procuram o equilíbrio normativo entre dois
princípio fundamentais: a autonomia privada e a tutela da confiança (ainda que o ponto
de equilíbrio historicamente consagrado não seja sempre coincidente).

Com efeito, o Direito não tolera com facilidade que uma imperfecta voluntas seja
causa de uma vinculação jurídica. Ao estatuir a ineficácia da declaração em caso de erro,
o sistema favorece o princípio da autonomia privada, expurgando do comércio jurídico a
declaração negocial que não corresponde a uma vontade livre e esclarecida.
Contudo, o Direito também não ignora que a vontade real do declarante é, por regra,
oculta ao declaratário. O que é patente ou cognoscível no comércio é a vontade declarada,
com base na qual o declaratário (tanto quanto o próprio declarante) se auto-determina.
Sob esta perspectiva, a declaração negocial surge como um factor indutor de risco
(Risikofaktor)12, susceptível de fundar uma situação de confiança que merece tutela.

Os requisitos normativos da relevância do erro correspondem, justamente, ao


equilíbrio encontrado em cada ordenamento histórico entre estes dois princípios. Breviter,
dir-se-á que sempre que o Direito não confere relevância a um estado subjetivo errante,
prevaleceu – na ponderação valorativa do ordenamento em causa –, a tutela da confiança
sobre a autonomia privada.

11
Para a diferença e relação entre sistema interno e externo, veja-se o FRANZ B YDLINSKI, “Zum Verhältnis
von äußerem und innerem System im Privatrecht”, FS Claus-Wilhelm Canaris 70. Geburtstag, II, 2007,
1017-1040.
12
MAXIMILIAN KUMMER, Sprachprobleme und Sprachrisiken, 2016, 5 ss. e JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO
COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades comerciais, 2016, 77.

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3. REQUISITOS NORMATIVOS DA RELEVÂNCIA DO ERRO

Volvamos ao caso da «exploração de minério» e vejamos em que termos o


problema do erro-vício culposo que recaia sobre o objecto do negócio jurídico se coloca
no Brasil e em Portugal.

A norma central do ordenamento jurídico português corresponde ao art. 247.º CC,


para o qual remete o art. 251.º/1. Os trabalhos preparatórios são bem conhecidos13.

Como critérios normativos de relevância do erro surgem (i) a essencialidade, para


o declarante, do elemento sobre o qual incidiu o erro e (ii) o conhecimento ou dever do
declaratário não ignorar a essencialidade (cognoscibilidade):

São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade


emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência
normal, em face das circunstâncias do negócio.

Quando comparamos o art. 247.º CC português com a redação do art. 138.º CC


brasileiro, a divergência é muito significativa14:

São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade


emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência
normal, em face das circunstâncias do negócio.

13
Os trabalhos preparatórios foram redigidos por RUI DE ALARCÃO, “Erro, dolo e coacção – representação
– objecto negocial – negócios usurários – condição”, BMJ 102 (1961), 167-180; e “Breve motivação do
anteprojecto sobre o negócio jurídico na parte relativa ao erro, dolo, coacção, representação, condição e
objecto negocial”, BMJ 138 (1964), 71-122 (vide em particular as notas 1 a 5, ibid, 86-90).
14
Para um enquadramento comparativo do preceito brasileiro, PAULO MOTA PINTO, “Falta e vícios da
vontade – o Código Civil e os regimes mais recentes”, cit., 64.

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A essencialidade é também ela um requisito da relevância jurídica do erro no
sistema brasileiro, expresso na noção de «erro substancial»15. Todavia, o requisito da
cognoscibilidade da essencialidade do sistema português é substituído pelo requisito da
cognoscibilidade do próprio erro: o negócio jurídico só anulável se o erro pudesse «ser
percebido por pessoa de diligência normal».

Temos, portanto, que enquanto que no sistema português se exige a


cognoscibilidade da essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual incide o
erro, no sistema jurídico brasileiro exige-se a cognoscibilidade do próprio erro.

As consequências no caso da «exploração de minério» são assinaláveis, como


veremos.

Detenhamo-nos, agora, no disposto nos §§ 119 e 122 BGB16. Nos termos do §119,
quem na emissão de uma declaração negocial estava em erro acerca do seu conteúdo ou
não o queria, pode anular a declaração quando se deva aceitar que o declarante,
conhecendo a factualidade e ponderando-a razoavelmente, não teria emitido a declaração:

Quem, na emissão de uma declaração de negocial, estava em erro acerca do seu


conteúdo ou não o queria, pode anular a declaração quando se deva aceitar que
o declarante, conhecendo a factualidade e ponderando-a razoavelmente, não
teria emitido a declaração.

Encontramos aqui consagrado fundamentalmente o mesmo requisito da


essencialidade para o declarante do elemento sobre o qual incidiu o erro.

Todavia, a solução germânica é, fundamentalmente, uma solução ressarcitória.


Atenda-se ao disposto no § 122:

15
Por todos, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de Direito Civil, I, 31.ª ed., 2018, 434-441, em
particular 436.
16
Sobre estes dispositivos vejam-se os comentários em LARENZ/WOLF, Algemeiner Teil des Bürgerlichen
Rechts, 9.ª ed., 2004, 651 ss.; SÄCKER, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, I, 4.ª ed.,
2001, 1092 ss. e 1159 ss.; JOHANNSEN/KREGEL/KRÜGER-NIELAND/PIPER, Das Bürgerliche Gesetzbuch mit
besonderer Berücksichtigung der Rechtsprechung des Reichsgerichts und des Bundergerichtshofes, I, 12.ª
ed., 1982, 2.ª secção, 182 ss. e 208 ss.

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(1) Sendo uma declaração nula ou anulável nos termos do § 119 ou 120, quando
a declaração se destinava a outrem, o declarante deve indemnizar o declaratário
ou terceiro pelos danos que estes tenham sofrido por confiarem na validade da
declaração, todavia não além do valor dos interesses que a contraparte ou o
terceiro têm na validade da declaração.

(2) Não há lugar a indemnização se o lesado conhecia o fundamento da nulidade


ou da anulabilidade ou o desconhecia por negligência (devia conhecer).

A invalidade do negócio fundada em erro constitui o declarante no dever de


indemnizar o declaratário e terceiros pelos prejuízos decorrentes da invalidade.

Especialmente relevante, para o que nos ocupa, é o disposto no § 122/2: o


conhecimento ou dever de não ignorar o fundamento da invalidade, exclui o dever de
indemnizar.

O sistema germânico surge, portanto, construído do seguinte modo:


essencialidade – invalidade do negócio – dever de indemnizar. O plano ressarcitório é
afastado se o declaratário conhecesse ou devesse conhecer o fundamento da invalidade.

Vejamos ainda o que dispõe o art. 1427 do Codice Civile italiano17:

Il contraente, il cui consenso fu dato per errore, estorto con violenza, o carpito
con dolo, può chiedere l'annullamento del contratto, secondo le disposizioni
seguenti.

Se a vontade do contraente é extorquida com violência, formada com base em


erro ou dolo, o negócio é anulável. Contudo, o art. 1428 estabelece que o erro só é causa
da anulação do contrato, quando é essencial e cognoscível pelo contraente:

17
Sobre os preceitos vejam-se, por exemplo, os comentários de PAOLO CENDON (org.), Commentario al
Codice Civile, IV, 1991, 747 ss.; G. CIAN/A. TRABUCCHI, Commentario breve al Codice Civile, 5.ª ed.,
1997, 1339 ss.

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L'errore è causa di annullamento del contratto quando è essenziale ed è
riconoscibile dall'altro contraente.

O Código Civil italiano aproxima-se, assim, da regra já nossa conhecida no


Código Civil brasileiro: o requisito da essencialidade acompanha a cognoscibilidade do
próprio erro.

4. SENDO P2 UMA PESSOA SINGULAR

Quid juris se, no caso de que partimos, P2 for uma pessoa singular?

A resposta do sistema brasileiro tenderia a ser a seguinte: não é cognoscível aquele


erro que ficou a dever-se unicamente à falta de diligência do declarante; a culpa do
declarante redunda, portanto, na inexigibilidade de conhecimento do erro e, logo, na sua
irrelevância jurídica.

Com efeito, a diligência normal do declaratário não o levará, por regra, a conhecer
o erro daquele que ignora o que era expectável que se soubesse, recuperando o antigo
adágio omnes in civitate sciant quod ille solus ignorat (D.22.6.2).

Com os dados a que P2 teve acesso, qualquer declaratário médio – nem


especialmente astuto nem especialmente estulto –, teria o conhecimento daqueles factos
relativos à concessão que P2 alega ignorar. A P1, portanto, não seria exigível o
conhecimento do erro. Podia legitimamente confiar na correta formação da vontade de
P2.

Neste contexto normativo, o tribunal arbitral deveria julgar a ação improcedente


com fundamento na irrelevância jurídica do erro.

Seria esta, também, a solução em Portugal? Não necessariamente, e nunca,


seguramente, com os mesmos fundamentos.

Vejamo-lo um pouco melhor.

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5. CONT.: DESCULPABILIDADE, ESSENCIALIDADE E CULPA IN
CONTRAHENDO

A doutrina tradicional, como vimos, entende que a desculpabilidade não é


requisito da relevância do erro. Ainda que o declarante ignore quod in civitate omnes
sciant, tal circunstância não exclui o estado subjetivo de ignorância ou falsa percepção da
realidade. Tão pouco a culpa do declarante afasta (necessariamente) a cognoscibilidade
da essencialidade, de onde é concebível que o error intolerabilis conviva com a ineficácia
do negócio jurídico.

A tensão valorativa que esta situação traduz tende, porém, a ser resolvida noutro
lugar do sistema. A censurabilidade do erro, para a doutrina tradicional, decorre da
violação, pelo declarante, de um dever de indagação ou de auto-informação18 na
formação da sua vontade negocial. À falta de uma disposição equivalente ao § 122/1
BGB, a violação de dever de auto-informação tende a ser reconduzida a um ilícito pré-
contratual (art. 227.º CC): o negócio é anulável, mas o declarante fica sujeito a
responsabilidade in contrahendo, podendo ser-lhe imputado o investimento de
confiança19 do declaratário20, nos termos gerais.

É esta a posição de autores como CARLOS MOTA PINTO, ANTÓNIO PINTO


MONTEIRO e PAULO MOTA PINTO, por exemplo, que assim se aproximam da solução da
germânica21. Ainda que sem uma disposição paralela ao § 122 BGB, a solução
preconizada para as hipóteses do erro-vício culposo é, fundamentalmente, ressarcitória: a
ineficácia do negócio convide com o dever de indemnizar.

18
Para a construção dogmática do ónus de auto-informação, EVA SÓNIA MOREIRA DA SILVA, As relações
entre a Responsabilidade Pré-Contratual por Informações e os Vícios da Vontade (Erro e Dolo), 2010, 25-
30.
19
Sobre o dano indemnizável em geral em sede de culpa in contrahendo, veja-se MANUEL CARNEIRO DA
FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit., 494 ss (em particular a nota 527).
20
Para a discussão sobre a pretensão indemnizatória de terceiros com fundamento em responsabilidade in
contrahendo, veja-se MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit.,
115 ss.
21
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO/ANTÓNIO PINTO MONTEIRO/PAULO MOTA PINTO, Teoria Geral do
Direito Civil, cit., 510-511.

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Posição diversa parece sustentar MENEZES CORDEIRO.

Apesar de reconhecer que desculpabilidade não é, à luz do nosso direito positivo,


um requisito autónomo da relevância jurídica do erro, defende que a mesma deve ser
ponderada a propósito da cognoscibilidade da essencialidade22, uma vez que sendo o erro
indesculpável torna-se mais difícil imputar ao declaratário o dever de conhecer a
essencialidade do elemento sobre o qual este recai23.

Convocando os cânones da interpretação, dever-se-á fazer intervir na apreciação da


essencialidade as circunstâncias próprias do caso que podem afastar o dever de a
conhecer24.

«No silêncio da lei – sustenta MENEZES CORDEIRO –, deve concluir-se, mercê da


integração sistemática realizada, que o erro indesculpável não releva. (...) O todo
é rematado (...), de modo decisivo, por razões hermenêuticas sérias: perante o erro
verdadeiramente indesculpável, o tribunal vai pronunciar-se, de modo infalível,
pela sua inexistência»25.

A solução aproxima-se, assim, do sistema brasileiro. Ao afastar a


cognoscibilidade da essencialidade, o erro-vício culposo excluiu a própria relevância
jurídica do erro, embora o requisito ponderado seja, em cada um dos ordenamentos,
manifestamente distinto.

6. PONDERAÇÃO CRÍTICA

As construções oferecidas pela doutrina portuguesa suscitam algumas reservas.


Em primeiro lugar, não me parece isenta de dificuldades a recondução da auto-informação
a um verdadeiro dever pré-contratual, exigível ao declarante ex bona fide e segundo os
quadros dogmáticos da culpa in contrahendo.

22
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no Direito Civil, I, 1984, 520-521 (n. 283).
23
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit., 851.
24
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé, cit., 521 (n. 283).
25
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé, cit., 522 (n. 283). A desculpabilidade é requisito necessário
para a relevância do erro, mas não é requisito autónomo (cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de
Direito Civil, cit., 850-851).

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Estará em causa um verdadeiro dever pré-contratual? Será exigível ao declarante
uma conduta de auto-indagação ou auto-informação, com o alcance e para os efeitos
previsto no art. 227.º CC?

A questão é tanto ou mais pertinente quanto a concretização do dever pré-


contratual de informação se dá a montante daquele conteúdo informativo que a parte
podia e devia diligentemente ter obtido26. Tecnicamente, a auto-informação parece mais
próxima de um ónus do que de um verdadeiro dever27. A ser um ónus, porém, a não
obtenção da informação exigível ao declarante teria como consequência a impossibilidade
de este se fazer prevalecer de certa vantagem (in casu, da ineficácia da declaração
negocial). A constituição de uma pretensão indemnizatória com fundamento num ilícito
pré-contratual seria, assim, de afastar: a recondução do erro-vício culposo ao instituto da
culpa in contrahendo ficaria definitivamente comprometida.

Mais se diga que o plano ressarcitório não parece ser a opção primária do
legislador português em sede de vícios da vontade. Procurar a solução para um caso de
erro-vício culposo em sede de responsabilidade civil (ainda que pré-contratual) não
parece ser sistematicamente o mais adequado.

Também a posição de MENEZES CORDEIRO não está isenta de dificuldades. Como


escrevi há alguns anos, a culpa do declarante torna mais difícil o conhecimento do erro,
mas não me parece que se possa dizer que torna mais difícil o conhecimento ou o dever
de não ignorar a essencialidade28.

O erro culposo não ofusca a «transparência objetiva»29 da essencialidade,


fundamento da exigibilidade do conhecimento. O declaratário pode muito bem conhecer
a essencialidade (ou não a poder ignorar) sem que no entanto pudesse supor que o
declarante se encontrava em erro, ignorando quod omnes in civitate sciant.

26
MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit., 486 (em particular a
nota 509).
27
Assim EVA SÓNIA MOREIRA DA SILVA, As relações entre a Responsabilidade Pré-Contratual por
Informações e os Vícios da Vontade (Erro e Dolo), cit., 25-30.
28
DIOGO COSTA GONÇALVES, Erro-obstáculo e erro-vício, cit., 75.
29
PAULO MOTA PINTO, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, 1975, 360.

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7. SENDO P2 UMA PESSOA COLETIVA

Suponhamos agora que P2 é uma sociedade comercial. Pergunta-se: a falta do


conhecimento exigível à pessoa coletiva constitui um verdadeiro erro?30

A falsa cognitio ou a ignorantia de uma pessoa coletiva, enquanto estados


subjetivos relevantes, resultam de um juízo normativo de imputação de conhecimento31.
Numa sociedade comercial, nunca existe um estado psicológico de erro: o erro é sempre
um estado normativo.

Esta observação é determinante no caso que nos ocupa. Como vimos, se P2 for
uma pessoa singular, o erro existe enquanto estado psicológico do declarante, tenha ele
culpa ou não na formação desse estado. Contudo, se P2 for uma pessoa coletiva, o estado
psicológico – a falsa cognitio ou ignorantia – nunca corresponderá (pela própria natureza
das coisas) a um estado psicológico, mas sim a uma predicação valorativa do interprete-
aplicador.

Ora, o conhecimento normativamente exigível à pessoa coletiva é, por regra,


conhecimento que lhe é imputável32.

Daqui resulta uma acentuada diferença no modelo decisório. Enquanto que nas
pessoas físicas, a violação de deveres de indagação ou auto-informação pode surgir
acompanhada de um estado subjetivo de ignorantia ou falsa cognitio – isto é: a ilicitude
(se de ilicitude podermos falar) pode ser acompanhada de erro –, o mesmo não sucede
nas pessoas coletivas.

Com efeito, nas pessoas coletivas o modelo decisório sofre uma inflexão. A
violação de deveres de indagação ou de auto-informação concorrem (por regra) para a
formação de um juízo de exigibilidade de conhecimento. Sendo o conhecimento em falta
juridicamente exigível, tal conhecimento é imputável à pessoa coletiva. Logo, não existe
erro.

30
Sintetizamos aqui a posição defendida em parecer inédito, dado em 2018, em co-autoria com JOSÉ GOMES
FERREIRA.
31
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 22.
32
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 23 ss.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 167


A tese do risco da organização33 como critério de imputação de conhecimento
tende a consumir o espaço dogmático do erro-vício culposo. A violação dos deveres de
cuidado e diligência do declarante redundam, por regra, numa exigibilidade normativa do
conhecimento e na consequente imputação do risco da sua ausência ao próprio declarante
(concluindo-se no sentido da inexistência de erro).

Temos, portanto, que se o conhecimento em falta, alegado por P2, pudesse ter sido
adquirido nos termos invocados por P1, a falsa cognitio ou a ignorantia seria um risco
próprio da organização a ser alocado a P2. A violação dos deveres de adequada
organização do conhecimento34 – a ilicitude, portanto – exclui o erro. O negócio seria
válido e o Tribunal Arbitral deveria julgar a ação improcedente por não provada.

8. SINOPSE

O meu tempo esgotou-se. Creio, todavia, terem ficado suficientemente ilustradas


as principais coordenadas do problema que me propunha tratar.

A resposta da dogmática portuguesa ao problema do erro-vício culposo é, de facto,


insuficiente. O confronto com o sistema brasileiro mais não faz que evidenciar tal
insuficiência.

Quando o declarante é uma pessoa coletiva, os modelos de decisão associados ao


erro-vício culposo colapsam, porque não resistem à distinção entre um estado psicológico
e um estado normativo de erro.

A resposta à interrogação de que partimos é tendencialmente negativa: não é


possível predicar a existência de um estado subjetivo de desconhecimento ou ignorância
quando a falsa percepção da realidade se ficou a dever à violação, pela pessoa coletiva,
da diligência normativamente exigível na formação da sua própria vontade negocial.

33
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 70 ss.
34
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 85 ss.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 168


Não existe, portanto, erro-vício culposo das pessoas coletivas. Por princípio, a
censurabilidade permite a imputação do conhecimento, excluindo o erro. O âmbito
aplicativo da culpa in contrahendo (a ser admissível) fica, nestes casos, muito reduzido:
o instituto só poderia eventualmente ser invocado se, numa apreciação sinépica 35, a
vinculação do declarante redundasse numa alocação de risco não suportada pelo sistema
(o que é de difícil concretização).

Mas a resposta à interrogação de que partimos coloca-nos diante de outras: será o


erro um puro estado psicológico nas pessoas singulares? A censurabilidade do erro
(mais do que a exclusão do conhecimento de algum dos requisitos da sua relevância ou
do dever de indemnizar) não permitirá igualmente, à semelhança do que ocorre quanto
às pessoas coletivas, a imputação de conhecimento nas pessoas singulares? A possível
qualificação da auto-informação como um ónus não conduz, justamente, a tal conclusão?

A estas interrogações não podemos, nesta sede, dar resposta. Fica, no entanto, o
repto, talvez para as III Jornadas Luso-Brasileiras de Responsabilidade Civil.

35
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 32-33.

REVISTA DE DIREITO DA RESPONSABILIDADE – ANO 1 - 2019 169

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