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PESSOAS COLETIVAS1
1
O presente artigo corresponde ao texto que serviu de base à nossa intervenção nas II Jornadas Luso-
Brasileiras de Responsabilidade Civil, que teve lugar Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
no dia 08-nov.-2018. Optou-se por manter a marca da oralidade, acrescentando apenas as notas
imprescindíveis para uma leitura mais contextualizada.
2
JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil Teoria Geral, II, 2003, 136 ss.; ANTÓNIO MENEZES
CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, II, 4.ª ed., 2014, 123 ss.; LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria
Geral do Direito Civil, II, 2010, 5.ª ed., 277 ss.; HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil
Português, 1992, 433 ss.; CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO/ANTÓNIO PINTO MONTEIRO/PAULO MOTA
PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed., 2005, 413 ss.; PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria Geral
do Direito Civil, 8.ª ed., 2017, 401 ss. e 573 ss.
Neste sentido, o erro-vício culposo pode muito bem representar uma hipótese de
demonstração da falsidade de uma certa orientação dogmática que, colocada diante das
particularidades da formação da vontade das pessoas coletivas, não logra aquela dimensão
explicativa e heurística que CANARIS assinala como a marca de água de qualquer tese
jurídica5.
3
Quanto à origem e natureza da pessoa coletiva, veja-se o nosso Pessoa coletiva e sociedades comerciais
– Dimensão problemática e coordenadas sistemáticas da personificação jurídico-privada, 2015, passim.
4
Conferir, a título de exemplo, as críticas de ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Direito das Sociedades, I, 3.ª
ed., 2011, 494-499 e de MANUEL CARNEIRO DA FRADA, “Sobre a interpretação do contrato”, in Forjar o
Direito, 2015, 15.
5
CLAUS-WILHELM CANARIS, “Funktion, Struktur und Falsifikation juristischer Theorien”, in
Juristenzeitung 48 (1993) 8, 378 ss.
6
Sobre o processo de codificação civil brasileiro veja-se o nosso “Contributo para o estudo da pessoa
jurídica no Direito civil brasileiro”, Civilistica.com 5 (2016), I, disponível in http://civilistica.com/wp-
content/uploads/2016/07/Gonçalves-civilistica.com-a.5.n.1.2016.pdf e RUI DE FIGUEIREDO
MARCOS/CARLOS FERNANDO MATHIAS/IBSEN NORONHA, História do Direito Brasileiro, 2015, 571-596.
Veja-se ainda ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit., 845-847. Para a discussão
teórica sobre a existência de uma família jurídica lusófona, BENJAMIN HERZOG, Anwendung und Auslegung
von Recht in Portugal um Brasilien, 2014, 29-34.
P1 sustenta que o conhecimento de tais factos podia ter sido adquirido por P2
durante a fase das negociações da compra e venda de ações.
Estamos, como tinha anunciado, diante de uma hipótese a que a doutrina vem
denominando erro vício-culposo: aquele em que a ignorantia ou falsa cognitio fica
unicamente a dever-se à incúria grosseira do próprio sujeito que se encontra em erro8.
A doutrina tradicional entende que culpa não exclui o erro9. O estado psicológico
do sujeito existe, independentemente de ser ou não censurável a sua causa. Culposa ou
não, a falsa cognitio ou a ignorantia é um estado subjetivo do declarante e, portanto, não
pode deixar de afirmar-se que existe uma falsa percepção da realidade.
7
Sobre a noção de erro, por todos, JOSÉ DE OLIVEIRA ASCENSÃO, Teoria Geral, cit., 136 ss., ANTÓNIO
MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit., 835 ss.; A. FERRER CORREIA, Erro e Interpretação na
Teoria do Negócio Jurídico, 2.ª ed., 2001, 24-26; LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito
Civil, II, cit., 202 ss., HEINRICH EWALD HÖRSTER, A Parte Geral do Código Civil Português, 1992, 568 ss.;
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, cit., 504 ss.; PEDRO PAIS DE
VASCONCELOS, Teoria Geral do Direito Civil, cit., 579 ss.
8
A noção de erro-vício culposo é dada por MANUEL DE ANDRADE, Teoria geral da relação jurídica, II,
1960, 239; veja-se também LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., 210.
9
Dando como dominante esta doutrina, PAULO MOTA PINTO, “Requisitos de relevância do erro. Nos
Princípios de Direitos Europeu dos Contratos e no Código Civil Português”, Estudos de Homenagem ao
Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, IV, 2003, 81.
10
Sobre a relevância da desculpabilidade como requisito de procedência do erro veja-se, por todos, o nosso
Erro-obstáculo e erro-vício – Subsídios para a determinação do alcance normativo dos artigos 247.º, 251.º
e 252.º do Código Civil, 2004, 73 e ss. e ainda ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil,
cit., 850-851; LUÍS A. CARVALHO FERNANDES, Teoria Geral do Direito Civil, cit., 210-211; PAULO MOTA
PINTO, “Falta e vícios da vontade – o Código Civil e os regimes mais recentes”, Direito Civil – Estudos,
2018, 59-60. Ao abrigo do Código SEABRA, dando como doutrina tradicional a relevância da
desculpabilidade como requisito, A. FERRER CORREIA, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico,
cit., 294. Veja-se ainda, com referências, LUIZ DA CUNHA GONÇALVES, Tratado de Direito Civil em
Comentário ao Código Civil Português, IV, 1931, 294 ss.
A doutrina tradicional opera, portanto, uma clara distinção entre (i) o estado
subjetivo psicológico, correspondente à existência ou não de erro; e (ii) o juízo valorativo
corresponde aos critérios normativos da relevância jurídica do erro.
Com efeito, o Direito não tolera com facilidade que uma imperfecta voluntas seja
causa de uma vinculação jurídica. Ao estatuir a ineficácia da declaração em caso de erro,
o sistema favorece o princípio da autonomia privada, expurgando do comércio jurídico a
declaração negocial que não corresponde a uma vontade livre e esclarecida.
Contudo, o Direito também não ignora que a vontade real do declarante é, por regra,
oculta ao declaratário. O que é patente ou cognoscível no comércio é a vontade declarada,
com base na qual o declaratário (tanto quanto o próprio declarante) se auto-determina.
Sob esta perspectiva, a declaração negocial surge como um factor indutor de risco
(Risikofaktor)12, susceptível de fundar uma situação de confiança que merece tutela.
11
Para a diferença e relação entre sistema interno e externo, veja-se o FRANZ B YDLINSKI, “Zum Verhältnis
von äußerem und innerem System im Privatrecht”, FS Claus-Wilhelm Canaris 70. Geburtstag, II, 2007,
1017-1040.
12
MAXIMILIAN KUMMER, Sprachprobleme und Sprachrisiken, 2016, 5 ss. e JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO
COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades comerciais, 2016, 77.
13
Os trabalhos preparatórios foram redigidos por RUI DE ALARCÃO, “Erro, dolo e coacção – representação
– objecto negocial – negócios usurários – condição”, BMJ 102 (1961), 167-180; e “Breve motivação do
anteprojecto sobre o negócio jurídico na parte relativa ao erro, dolo, coacção, representação, condição e
objecto negocial”, BMJ 138 (1964), 71-122 (vide em particular as notas 1 a 5, ibid, 86-90).
14
Para um enquadramento comparativo do preceito brasileiro, PAULO MOTA PINTO, “Falta e vícios da
vontade – o Código Civil e os regimes mais recentes”, cit., 64.
Detenhamo-nos, agora, no disposto nos §§ 119 e 122 BGB16. Nos termos do §119,
quem na emissão de uma declaração negocial estava em erro acerca do seu conteúdo ou
não o queria, pode anular a declaração quando se deva aceitar que o declarante,
conhecendo a factualidade e ponderando-a razoavelmente, não teria emitido a declaração:
15
Por todos, CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Instituições de Direito Civil, I, 31.ª ed., 2018, 434-441, em
particular 436.
16
Sobre estes dispositivos vejam-se os comentários em LARENZ/WOLF, Algemeiner Teil des Bürgerlichen
Rechts, 9.ª ed., 2004, 651 ss.; SÄCKER, Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, I, 4.ª ed.,
2001, 1092 ss. e 1159 ss.; JOHANNSEN/KREGEL/KRÜGER-NIELAND/PIPER, Das Bürgerliche Gesetzbuch mit
besonderer Berücksichtigung der Rechtsprechung des Reichsgerichts und des Bundergerichtshofes, I, 12.ª
ed., 1982, 2.ª secção, 182 ss. e 208 ss.
Il contraente, il cui consenso fu dato per errore, estorto con violenza, o carpito
con dolo, può chiedere l'annullamento del contratto, secondo le disposizioni
seguenti.
17
Sobre os preceitos vejam-se, por exemplo, os comentários de PAOLO CENDON (org.), Commentario al
Codice Civile, IV, 1991, 747 ss.; G. CIAN/A. TRABUCCHI, Commentario breve al Codice Civile, 5.ª ed.,
1997, 1339 ss.
Quid juris se, no caso de que partimos, P2 for uma pessoa singular?
Com efeito, a diligência normal do declaratário não o levará, por regra, a conhecer
o erro daquele que ignora o que era expectável que se soubesse, recuperando o antigo
adágio omnes in civitate sciant quod ille solus ignorat (D.22.6.2).
A tensão valorativa que esta situação traduz tende, porém, a ser resolvida noutro
lugar do sistema. A censurabilidade do erro, para a doutrina tradicional, decorre da
violação, pelo declarante, de um dever de indagação ou de auto-informação18 na
formação da sua vontade negocial. À falta de uma disposição equivalente ao § 122/1
BGB, a violação de dever de auto-informação tende a ser reconduzida a um ilícito pré-
contratual (art. 227.º CC): o negócio é anulável, mas o declarante fica sujeito a
responsabilidade in contrahendo, podendo ser-lhe imputado o investimento de
confiança19 do declaratário20, nos termos gerais.
18
Para a construção dogmática do ónus de auto-informação, EVA SÓNIA MOREIRA DA SILVA, As relações
entre a Responsabilidade Pré-Contratual por Informações e os Vícios da Vontade (Erro e Dolo), 2010, 25-
30.
19
Sobre o dano indemnizável em geral em sede de culpa in contrahendo, veja-se MANUEL CARNEIRO DA
FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit., 494 ss (em particular a nota 527).
20
Para a discussão sobre a pretensão indemnizatória de terceiros com fundamento em responsabilidade in
contrahendo, veja-se MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit.,
115 ss.
21
CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO/ANTÓNIO PINTO MONTEIRO/PAULO MOTA PINTO, Teoria Geral do
Direito Civil, cit., 510-511.
6. PONDERAÇÃO CRÍTICA
22
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé no Direito Civil, I, 1984, 520-521 (n. 283).
23
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, cit., 851.
24
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé, cit., 521 (n. 283).
25
ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da boa fé, cit., 522 (n. 283). A desculpabilidade é requisito necessário
para a relevância do erro, mas não é requisito autónomo (cfr. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de
Direito Civil, cit., 850-851).
Mais se diga que o plano ressarcitório não parece ser a opção primária do
legislador português em sede de vícios da vontade. Procurar a solução para um caso de
erro-vício culposo em sede de responsabilidade civil (ainda que pré-contratual) não
parece ser sistematicamente o mais adequado.
26
MANUEL CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit., 486 (em particular a
nota 509).
27
Assim EVA SÓNIA MOREIRA DA SILVA, As relações entre a Responsabilidade Pré-Contratual por
Informações e os Vícios da Vontade (Erro e Dolo), cit., 25-30.
28
DIOGO COSTA GONÇALVES, Erro-obstáculo e erro-vício, cit., 75.
29
PAULO MOTA PINTO, Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, 1975, 360.
Esta observação é determinante no caso que nos ocupa. Como vimos, se P2 for
uma pessoa singular, o erro existe enquanto estado psicológico do declarante, tenha ele
culpa ou não na formação desse estado. Contudo, se P2 for uma pessoa coletiva, o estado
psicológico – a falsa cognitio ou ignorantia – nunca corresponderá (pela própria natureza
das coisas) a um estado psicológico, mas sim a uma predicação valorativa do interprete-
aplicador.
Daqui resulta uma acentuada diferença no modelo decisório. Enquanto que nas
pessoas físicas, a violação de deveres de indagação ou auto-informação pode surgir
acompanhada de um estado subjetivo de ignorantia ou falsa cognitio – isto é: a ilicitude
(se de ilicitude podermos falar) pode ser acompanhada de erro –, o mesmo não sucede
nas pessoas coletivas.
Com efeito, nas pessoas coletivas o modelo decisório sofre uma inflexão. A
violação de deveres de indagação ou de auto-informação concorrem (por regra) para a
formação de um juízo de exigibilidade de conhecimento. Sendo o conhecimento em falta
juridicamente exigível, tal conhecimento é imputável à pessoa coletiva. Logo, não existe
erro.
30
Sintetizamos aqui a posição defendida em parecer inédito, dado em 2018, em co-autoria com JOSÉ GOMES
FERREIRA.
31
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 22.
32
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 23 ss.
Temos, portanto, que se o conhecimento em falta, alegado por P2, pudesse ter sido
adquirido nos termos invocados por P1, a falsa cognitio ou a ignorantia seria um risco
próprio da organização a ser alocado a P2. A violação dos deveres de adequada
organização do conhecimento34 – a ilicitude, portanto – exclui o erro. O negócio seria
válido e o Tribunal Arbitral deveria julgar a ação improcedente por não provada.
8. SINOPSE
33
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 70 ss.
34
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 85 ss.
A estas interrogações não podemos, nesta sede, dar resposta. Fica, no entanto, o
repto, talvez para as III Jornadas Luso-Brasileiras de Responsabilidade Civil.
35
JOSÉ GOMES FERREIRA/DIOGO COSTA GONÇALVES, A imputação de conhecimento às sociedades
comerciais, cit., 32-33.