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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A pedagogia : teorias e práticas da Antiguidade


aos nossos dias / Clermont Gauthier, Maurice
Tardif (organizadores) ; tradução de Lucy
Magalhães; atualização da 3a edição canadense:
Guilherme João de Freitas Teixeira. - 3. ed. -
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
Título original : La pédagogie : théories et
pratiques de PAntiquité à nos jours, 3. ed.
Vários autores.
Bibliografia
ISBN 978-85-326-2426-0
1. Ciência da Educação - História 2. Educação -
Estudo e ensino - História 3. Educação - Filosofia -
História 4. Educação - História 5. Educadores
6. Pedagogia - História 7. Psicologia Educacional
8. Psicopedagogia I. Gauthier, Clermont. II. Tardif, Maurice.

10-07797 CDD-370

índices para catálogo sistemático:


1. Pedagogia : Educação 370
3
O Renascimento e a educação humanista
Denis Simard

Objetivos de aprendizagem

Após a leitura deste capítulo, você deveria ser capaz:

• de situar o Renascimento na história da educação


ocidental;

• de compreender o papel central atribuído pelo Re­


nascimento ao homem e à natureza na cultura;

• de compreender o contexto histórico-social e ideoló­


gico do Renascimento;

• de compreender as grandes concepções educativas,

em particular as de Rabelais e de Erasmo;

• de apreciar, por um lado, a influência exercida por


essas concepções sobre a educação do homem moder­
no e, por outro, a evolução das ideias e das práticas
pedagógicas.
76 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Introdução

O período que abordarem os neste capítulo cobre cerca


de dois séculos e m eio de história (m eados do século XIV
até o fim do XVI, ou m eados do Trecento até o fim do Cin-
quecento, para retom ar os term os italianos). E, pois, um p e­
ríodo crucial, já que finaliza progressivam ente um m ilênio
de história cristã e lança os “alicerces das artes e disciplinas
intelectuais m odernas” (PARSONS, 1973: 73).
Com o Renascim ento apareceu um a cultura secular que
se desprendeu gradualm ente da m atriz religiosa cristã1. O
hom em do Renascim ento continua sendo filho de Deus -
procura renovar o cristianism o à luz de um a cultura am plia­
da mas sua liberdade e sua ação vão abrir daí em diante
um novo espaço de liberdade. O tem a da liberdade é ap re­
sentado de form a vigorosa pelo hum anista italiano, Pico
delia M irandola, ao juntar seu verbo à voz dos filósofos que
proclam am a liberdade e a dignidade do hom em : “Por sua
liberdade, [...] o hom em reivindica com razão o privilégio
da suprem a adm iração; é esse privilégio que excita a inveja
não só dos anim ais, mas tam bém dos astros, assim com o dos
espíritos além dos m undos” (apud VALCKE & GALIBOIS,
1994: 93).
O hom em do Renascim ento pertence, pois, ao m esm o
tem po ao passado e ao presente; continua assem elhando-se
aos cristãos, mas seu olhar investiga horizontes novos, em
busca de m odelos e de valores que hão de livrá-lo da in ­
fluência da religião cristã. O ra, o hom em do Renascim ento
acredita que é na fonte da A ntiguidade greco-rom ana que
vai descobrir esses m odelos e esses valores. Em prim eiro
lugar, p o r interm édio dos árabes e, em seguida, da ciência
cristã, o hom em do Renascim ento redescobre a cultura an­
tiga, que interpreta à luz da sua p rópria situação histórica,
e instala na E uropa as bases da educação hum anista do h o ­
m em m oderno.
n \\

1. Com o Renascimento, surge igualmente a ideia de Europa, a qual era desco­


nhecida para a Idade Média; de fato, nessa época, a noção predominante era a
christianitas, ou a cristandade. Sobre o assunto, cf. a obra de J. Freund (1980).
3 O Renascimento e a educação humanista 77

Eis o que verem os neste capítulo que com porta três par­
tes. A prim eira, essencialmente recapitulativa, visa apresentar
o significado geral do Renascim ento em relação à Antigui­
dade greco-rom ana e à Idade M édia. N a segunda parte, si­
tuam os o contexto histórico-social e ideológico do Renasci­

V . m ento sob a perspectiva das grandes correntes de pensam en­


to e através do que cham am os, no prim eiro capítulo deste
livro, de experiências fundam entais de descentram ento em
v relação à tradição judaico-cristã. Enfim na terceira parte, de­

Vd. V
*Mm
pois de explicitar certo núm ero de generalidades quanto aos
instrum entos do saber, aos program as de estudos, às insti­
tuições de ensino etc., apresentam os as grandes concepções
educativas; lem bram os especialm ente os elem entos essen­
ciais daquilo que D urkheim (1969), na sua obra L’évolution
pédagogique en France, designa com o a corrente enciclopé­
dica de Rabelais e com o a corrente hum anista (ou literária)
de Erasmo.

3.1 Recapitulação e significação geral Depois, em 476 d.C ., quando o Im pério Ro­
do Renascimento m ano do O cidente se desfaz, pouco a pouco, sob
o efeito conjugado das m igrações germ ânicas, da
N os dois capítulos a n te rio re s, estudam os
crise econôm ica e da im potência da sua adm i­
a A ntiguidade grega a p artir da descoberta do
nistração, a vida política, cultural e intelectual
pluralism o das culturas, dos estilos de vida e
passa po r profundas reviravoltas. O pluralism o
das m aneiras de educar. Vimos igualm ente que
antigo dá lugar a um a nova unidade cultural que
os gregos elaboraram um a nova form a política -
dom ina o O cidente durante toda a Idade M é­
a dem ocracia - e um novo tipo de discurso, a
dia: o cristianism o. U nidade, pois, particular­
filosofia. Ao acaso de um encontro ou nas as-
m ente visível no plano religioso, mas tam bém
sembleias públicas, p o r ocasião de conferências
brilhantes ou em pequenos grupos, os gregos no plano educativo m arcado pela em ergência
se interrogavam , entre outros assuntos, sobre o da escola com o “am biente m oral organizado”
destino da C idade, sobre a felicidade e a virtude, (DURKHEIM , 1969). A educação escolar está a
sobre os valores e a educação. C om o as form as serviço da fé e da Igreja; além disso, os textos
de educação e suas finalidades são num erosas, gregos e latinos são m inuciosam ente escolhidos
qual é a m elhor e, principalm ente, qual deve ser em função de sua concordância com a ortodoxia
privilegiada? Os gregos abordaram esses proble­ cristã. Form a dom inante da consciência grega e
mas elaborando concepções educativas racio­ rom ana, o politeísm o se dissolve sob a ação do
nais, form as gerais de educação que fecundaram m onoteísm o religioso triunfante. De agora em
o O cidente, desde Rom a até hoje - com o as dos diante, há som ente um único e verdadeiro Deus,
sofistas, de Platão, de Sócrates e de Aristóteles. um único Ser Suprem o, no qual se concentram e
78 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

se reúnem todas as m anifestações da cultura hu­ abriga o Deus todo-poderoso, e o m undo visível
m ana - a arte, a ciência, a política, o pensam en­ das coisas, o hom em se descobre capaz de consti­
to, o am or etc. E, com o o ser hum ano foi criado tuir para si um a cultura e de ocupar o seu centro;
à imagem de Deus, deve tender a assemelhar-se pelo rápido progresso das ciências e das técnicas,
a Ele com todas as suas forças e com toda a sua ele tom a posse da natureza e aum enta o seu sen­
alma. A inspiração profunda, assim com o a única tim ento de poder. Assim sendo, em vez de ade­
fonte e o derradeiro objetivo do hom em , é Deus, rir a m odelos supra-hum anos ou de imitá-los,
alicerce único e pedra angular do universo. trata-se de considerar o hom em tal com o é, em
Esquem atizando ao extrem o, podem os dizer sua natureza terrestre, com o valor e, ao m esm o
que o hom em do Renascim ento deixou de se ins­ tem po, fonte de valores, “sim ultaneam ente fon­
pirar em Deus ou no Cosm o para estabelecer as te e alvo da educação” (JOLIBERT, 1987: 54).
suas regras ou os seus m odelos de conduta; o Para retom ar, de relance, Protágoras de Abdera:
m undo do hum ano já não está subordinado ao “o hom em é a m edida de todas as coisas” . E é
m undo divino, supra-hum ano. A originalidade p o r isso que a educação se to rn a tão necessária
p rofunda do Renascim ento, mais do que o seu ao hom em ; ela consistirá em realizar aquilo que,
reto rn o à Antiguidade ou a sua crítica da religião nele, é especificam ente hum ano.
e da escolástica, reside, segundo Jolibert (1987:
53), na inserção do hom em num universo de di­
3.2 O contexto histórico-social e
m ensões infinitas: “Se o universo é considerado
ideológico do Renascimento
com o infinito, então não há mais lugar garanti­
do, não há mais essência hum ana fixada desde 3.2.1 As grandes correntes de
toda a eternidade” . Assim, observa ele, todo o pensamento
esforço consiste em definir um m odelo hum a­
no que um a ação educativa esclarecida deverá H abitualm ente, distinguem -se três grandes
realizar. E a Utopia, de T. M ore, A cidade do correntes de pensam ento na renovação das ideias
sol, de Cam panella, ou a Abadia de Thélèm e, de da época: a renovação religiosa, o m ovim ento
Rabelais são outras tantas utopias “político-pe- hum anista, o pensam ento científico e técnico. A
dagógicas” que tentam “representar um futuro prim eira conduz à R eform a Protestante, à qual
organizado, em que o hom em encontra um lugar responde a C ontrarreform a C atólica; o segundo
definido mais além das angústias e das incertezas traduz o esforço de redescobrim ento da A nti­
de um presente sem p o n to de sustentação” (JO- guidade greco-rom ana; e o terceiro leva ao de­
LIBERT, 1987: 54). senvolvim ento de saberes técnicos e científicos
(JOLIBERT, 1987). É nessa ordem que vamos
A cultura do Renascim ento tem seu centro
apresentá-los na presente seção.
de gravidade no papel que ela atribui à n a tu re ­
za, em geral, e ao ser hum ano em particular, na
busca de valores e de m odelos de vida. O hom em
A R eform a e a C ontrarreform a
se to rn a um m odelo para si m esm o, autor de sua
p rópria imagem e criador de um m undo do qual Entre m eados do século XIV e o início do
é responsável. Entre o m undo invisível, onde se XV, um a série de abalos afetam o edifício m edie-
vai: a G uerra dos Cem Anos (1337-1453); a ter­ nião definitiva da Igreja R om ana do O cidente: o
rível peste negra2 de 1348 e dos anos seguintes, protestantism o4.
i f x dizim a cerca da m etade da população euro- Esse im pulso religioso da Reform a, que fun­
peía; o grande cisma do O cidente (1378-1417), da o protestantism o, se caracteriza, na origem ,
çae enfraquece irrem ediavelm ente o poder, o pela sua vontade de reto rn ar à verdade prim eira
prestígio e a autoridade da Igreja. Essas revira- dos textos sagrados, elim inando todas as form as
í : tas desestabilizam profundam ente a Europa, de m ediação entre Deus e o crente.
rem odelando-a nos planos político, dem ográfi­ A liberdade que Lutero reivindica para
co. religioso e cultural. o crente é unicamente a liberdade de en­
trar diretamente em relação com Deus,
De grande alcance político, religioso e p ed a­ sem nenhum intermediário humano, por
gógico, a R eform a de L utero m ergulha as suas meio da leitura e da mediação da Palavra
'iiz e s no cisma do papado do O cidente. Pela divina. Deste modo, Lutero substitui a
autoridade da tradição e da hierarquia
im plitude da crise - e, principalm ente, pela in­
católicas pela autoridade infalível da pa­
capacidade de a Igreja resolver o conflito que a lavra escrita, da Bíblia literalmente infa­
.nlacera - , um dano irreparável é causado ao seu lível (SPENLÉ, 1967: 13).
rrestígio e à sua autoridade. Lem brem os breve­ V alorizando e intensificando assim a relação
m ente os fatos. pessoal do hom em com Deus, elim inando as m e­
A R eform a de L utero3 encontra na Alem a­ diações que ligam cada ser hum ano ao C riador,
nha o terreno propício para a sua propagação. o protestantism o aum enta o sentim ento de res­
Afixando as suas 95 teses na p o rta do castelo de ponsabilidade do hom em para com o m undo e o
W ittenberg (1517), Lutero declara, num gesto exorta a obedecer, na conduta da sua vida, a um a
m oral estrita e rigorosa. O protestante obtém a
dram ático, o seu projeto de libertar-se da au­
sua salvação pessoal agindo com rigor; sua cons­
toridade pontificai e de restabelecer a verdade
ciência interior lhe dita a boa conduta, aquela
da m ensagem evangélica na sua pureza original.
que ele deve adotar em todas as circunstâncias
Nasce, assim, um a religião nova, selando a desu­
da sua vida.
Para deter a onda de protestos que afluem de
2. Esse mundo que se prepara para viver a grandeza do Re­
toda parte, mas principalm ente para reagir com
nascimento é também, segundo Le Goff (1975), um “mundo
selvagem”, um mundo de epidemias, de mortalidade infantil, de firm eza contra os esforços dos reform ados na
tome e subalimentação crônicas, um mundo em que a vida se A lem anha, a proliferação do m ovim ento fora de
assemelha à morte.
suas fronteiras e a constituição de um a Igreja da
3. A revolta de Lutero começa com a querela das indulgências
(uma indulgência é a remissão das penas temporais cabíveis
Inglaterra separada de Rom a, a Igreja Católica,
para pecados cometidos, concedida pela Igreja depois desses pela voz do Papa Paulo III, convoca um concilio
pecados terem sido perdoados). O fiel que dava uma esmola no ano de 1545, na cidade de Trento, na Itália.
para as obras da Basílica de São Pedro em Roma recebia uma
indulgência. Na Alemanha, essa prática toma o aspecto de uma
Os trabalhos do concilio serão, para a Igreja, a
verdadeira atividade comercial, além de sustentar o fausto do
arcebispo de Mogúncia, Albert de Hohenzollern, que se apropria 4. A Reforma teve vários focos, notadamente Calvino em Gene­
da metade das doações. Daí a revolta de Lutero, que considera­ bra (o calvinismo), Henrique VIII na Inglaterra (o anglicanismo),
va inaceitável comercializar a salvação. Zwínglio na Suíça e Knox na Escócia.
80 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

ocasião de condenar severam ente o protestantis­ gos que encontram refúgio na Itália, acarreta a huxna
mo e refazer a sua integridade m oral; são ad o ­ helenização da cultura latina e europeia. Prim ei­ ieiiz.
tados alguns decretos a fim de regulam entar a ram ente a península, depois os outros países da aiegrí
vida da Igreja, a com eçar pelos bispos até chegar E uropa com eçam a estudar a cultura e a língua é vive
aos fiéis. A arte será tam bém controlada, e sur­ gregas. Devem os dizer que, exceto pelo ensino peias
gem m uitas ordens religiosas, garantindo assim a do grego pelo eru d ito C risóloras no stu d iu m dessa
difusão do catolicism o: a Congregação do O ra ­ de Florença desde 1397, o grego continua sen­
tório de São Filipe N eri, a O rdem dos Irm ãos do, em geral, m uito mal conhecido no O cidente
de São João de Deus, os Carm elitas de Santa Te­ (GARIN, 1968). Sem dúvida, em decorrência Renas
resa e a C om panhia de Jesus de Santo Inácio de das cruzadas, foi possível redescobrir Aristóteles m os j
Loyola. através da tradução de suas obras pelos com en­ pcrcsu
taristas árabes, mas as riquezas da filosofia e da do cng
ciência gregas perm anecem encerradas no segre­
O hum anism o
do da sua língua. O exílio dos eruditos gregos Y in o !
O hum anism o5 varia segundo o lugar, o m o­ provoca a eclosão de um a corrente neoplatônica de ma
m ento histórico, os hom ens e suas obras, mas no na escola italiana; pela transform ação da ideia de ara
seu plano mais geral ele traduz o esforço n o tá ­ do “Belo” e a redescoberta da estética grega, “a se mte
vel - talvez, sem igual na história - de tom ada cultura ia renascer mais um a vez, ou, antes, o he- escaíai
de consciência do hom em po r si m esmo. O hu­ lenism o fecundaria a cultura latina e europeia” «ytntc
m anism o encontra seus prim eiros ecos na obra (M A RG OLIN, 1981a: 26). le d i i
de Petrarca, que canta a liberdade do hom em , os O hom em não é o que existe de mais adm i­
1958:,
valores espirituais, o am or e a felicidade da A n­ rável sobre a Terra? - dizia Pico delia M irandola, NLa
tiguidade reencontrada, e se irradia através das inspirando-se tam bém nas fontes árabes. Assim,
idades até o fim do século XVI, desde a Itália a ação e a reflexão de hom ens, tais com o Ficino, a e n tra
até a França, a E uropa do N o rte - a Inglaterra, Erasm o, Rabelais, M ore, M ontaigne, Da Vinci, express
os Países Baixos, os países germ ânicos - e de­ M ichelangelo e tantos outros, não teriam consis­
pois para a Península Ibérica, Portugal, a E uropa tido em definir um m odelo de perfeição hum a­ escnta.
C entral e O riental: a H ungria, a Boêmia, a Polô­ na - intelectual, m oral, estético - cujas fontes de
nia (M A RG OLIN, 1981a). inspiração estão na A ntiguidade greco-rom ana? Dm
Um acontecim ento capital m arca o rápido M as o que procuravam esses hom ens e o que te ­ •orço d
desenvolvim ento do hum anism o e a am pliação riam encontrado na Antiguidade? i
da cultura ocidental: a tom ada de C onstantino- Essencialm ente, valores e m odelos estéticos
pla em 1453 pelos turcos otom anos. Esse acon­ que expressam a beleza do hom em e do m undo.
tecim ento, que im plica a fuga dos eruditos gre­ N a p intura e na escultura, os artistas hum anistas
do Renascim ento representam a plenitude das
5 O termo data apenas da segunda metade do século XIX.
Contemporâneo de Burckhardt (1860), Voigt (1859) é o primeiro
form as hum anas, a força, a graça, o equilíbrio e a
aulor a associá-lo ao Renascimento. O termo italiano umanista harm onia. Eles extraem tam bém da Antiguidade
acarece certamente no século XV, mas designa o professor de
um a concepção renovada da felicidade hum ana,
Temática e de retórica, ofício que nem todos os humanistas ha-
. a rr exercido, como observa Margolin (1989: 728). ligada agora à realização de si na com unidade
3 O Renascimento e a educação humanista 81

num ana e na natureza: ser feliz, hum anam ente pela retórica, pelo comentário dos auto­
jeliz, com o Rabelais, é levar um a boa-vida e ser res (poetas e prosadores), e cuja finali­
.ilegre; é tam bém gostar de beber, sorrir, com er; dade própria consistia em permitir que
é viver no am or das coisas e dos seres. O gosto os rapazes adquirissem a sua humanitas,
isto é, se tornassem homens no sentido
pelas ciências e pelas técnicas faz parte tam bém
pleno da palavra, combinando estreita­
dessa concepção da felicidade, assim com o a
mente um ideal de conhecimento e um
curiosidade pela natureza e o am or ao conheci­
ideal de ação (MARGOLIN, 1981a: 9).
m ento. Fascinados pela natureza, os hom ens do
Renascim ento são m enos teóricos e contem pla­ O hum anism o desem penhou, pois, o papel
tivos (com o os gregos) e mais observadores, em- de um vigoroso m ovim ento de reestruturação
piristas e inventores. Assim, suas ciências são as da im agem do hom em e do m undo. M ovim ento
do engenheiro e do m ecânico. Em um a carta que histórico e força sociocultural que repercutem
dirige a Ludovico Sforza, o M o uro, Leonardo da nas obras, na ação e no pensam ento dos p ró ­
Vinci se apresenta, insistindo nos seus talentos prios humanistas, essa corrente propõe um ideal
de m ecânico e de engenheiro “mais do que nos de realização hum ana, que transform a cada h o ­
de artista, e vemos em seus m anuscritos que ele m em no artífice da sua vida, servindo-se dos re ­
íe interessava tanto po r aviões, anem ôm etros, cursos da sua vontade e da potência criadora da
escafandros, m etralhadoras, tanques de guerra, sua inteligência.
quanto pelo problem a da com posição do quadro
'Leda e o cisne’ ou do núm ero áu reo ” (FAURE, O rápido desenvolvim ento da ciência e da
1958: 50). técnica
M as, na A ntiguidade, os hum anistas do Re­
C om esse tem a, abordam os um a das chaves
nascim ento encontram , acim a de tudo, o am or
essenciais do universo m ental dos hum anistas do
à cultura e à civilidade, ou seja, a cultura que
Renascim ento. Realm ente, pela ciência e pela
expressa o ideal do letrado, do hom em de cul­
técnica, a grande Ideia de Progresso, tão estreita­
tu ra clássica dom inando as línguas, a palavra e a
m ente ligada à civilização europeia, tom a conta
escrita, tal com o Erasm o, para quem nada é mais
das m entes. E a Ideia coincide com o sonho de
adm irável do que o discurso.
um a mathesis universalis, que substitui a visão
Duas expressões latinas designam esse es­
antiga e qualitativa da m atéria pelo reino do
forço de ressurgência da cultura greco-rom ana6:
quantitativo; além disso, as noções de substância
studia hum anitatis e litterce humaniores:
e de qualidade dão lugar às de tem po, espaço,
[Trata-se de] um conjunto de disciplinas massa e energia. A form a geom étrica rechaça a
cuja base era constituída pela gramática, antiga form a substancial (Aristóteles). Por sua
vez, o universo não é mais do que um a grande
6. “[Esforço] que vai da tradução pura e simples (do grego para geom etria expressa em núm eros: “ [...] o M u n ­
o latim), à imitação, à adaptação, ao comentário, às edições
do inteiro é objeto de m ensurações e cálculos,
críticas e anotadas, às transposições de todo tipo; tais opera­
ções serão exercidas por um mestre, um aluno ou um artista e pode ser explicado p o r um a série de relações
apaixonado pelos símbolos patinados pelo tempo” (MARGO- m atem áticas” (M OUSNIER, 1993: 35).
LIN, 1989: 728).
82 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Essa concepção, cuja novidade é absoluta­ veis progressos. Escolas com o as de M o n t-


m ente radical, é acom panhada de um aum ento p ellier - aliás, in stitu ição em que se fo rm o u
form idável do sentim ento de poder do hom em . R abelais - Bruxelas, Pádua e C rem ona gozam
Em todas as áreas, surgem novas possibilidades. de excelente reputação: “Pierre Franco inventa
É M arsilio Ficino (1433-1499), filósofo neopla- o corte subpubiano, o belga Vesálio publica em
tônico de Florença, que atribui ao hom em novas 1543 a prim eira descrição anatôm ica exata. O
perspectivas: “O objetivo do hom em é o dom í­ espanhol M iguel Servet (1509-1553) descobre
nio do universo pela sua engenhosidade” (apud a circulação pulm onar; Am broise Paré (1509-
M O U SN IER, 1993: 27). Fiel ao plano de Deus 1590) pratica a ligadura das artérias” (FAURE,
que a natureza expressa, o hom em cria para si 1958: 64).
um m undo, análogo ao prim eiro, transform an­ M as devem os ir mais longe e ver nessas m uta­
do e com pletando a N atureza pela ação das suas
ções técnicas a expressão de um a profunda tran s­
m áquinas. Efetivam ente, um grande núm ero
form ação da relação do hom em com a natureza,
de inovações técnicas coincidem com a aurora
transform ação que explica o radicalism o da re­
dos tem pos m o d e rn o s. L igados ao rá p id o d e ­
volução copernicana, im plicando precisam ente a
senvolvim ento da burguesia m ercantil, o papel
recusa da teologia geocêntrica em benefício de
e o poder das cidades aum entam e provocam
um a cosm ologia heliocêntrica (BRETON ; RIEU
transform ações que exigem a instalação e o de­
& TIN LA N D , 1990). M ais do que abstrair-se
senvolvim ento de técnicas cada vez m ais ap er­
do m undo voltando-se para Deus, os hom ens se
feiçoadas - urbanism o, arquitetura, construção
voltam para a N atureza, reflexo de Deus, a fim
de estradas, de canais, recuperação de pântanos,
de conhecê-lo m elhor e encontrar a perfeição e
a rro te a m e n to e cultivo das terras (BRETON;
a ordem que Ele desejou. “M icrocosm o do ma-
RIEU & TIN LA N D , 1990).
crocosm o que é a natureza” (BRETON; RIEU &
Certam ente, invenções com o a pólvora de TIN LA N D , 1990: 32), o hom em tem a missão
canhão, a bússola e a tipografia são im portantes, essencial de criar e fabricar um m undo análogo
mas não são as únicas; o espírito de invenção à perfeição da criação divina que lhe fornece os
e o interesse pela técnica se propagam urbi et seus m odelos. A categoria da A rte, englobando
orbi, de N icolau de Cusa (1401-1464) a Am broi- na época tanto o “artístico” quanto a “técnica”,
se Paré (1509-1590), no fim do século XVI - resum e po r si só o destino do hom em .
pensem os nas m atérias fundidas, na m etalurgia,
E a chave do mundo moderno: a Natureza
na vidraria, na quím ica industrial e nos têxteis é feita para o homem, que deve procu­
(FAURE, 1958). N a obra de N icolau de Cusa, rar extrair dela tudo o que é necessário
observa Faure no livro citado, a m atem ática e a ao seu desenvolvimento. Ela é destinada
m ecânica ocupam um lugar im portante. E Ra­ à sua “engenhosidade”: o homem deve
belais, no seu program a de estudos, não exorta não apenas conhecê-la para completar
a sua perfeição, espelho da divindade,
G argântua a freqüentar as oficinas dos ourives,
mas também para reproduzi-la e assim
dos lapidadores de pedras preciosas, dos moedei- levá-la a servir ao seu “aperfeiçoamen­
ros, dos alquim istas, dos relojoeiros e de tantos to”, ao seu progresso. Esse é o “desíg­
outros artesãos? A m edicina faz tam bém n o tá ­ nio” (ao mesmo tempo mais primordial)
3 O Renascimento e a educação humanista 83

lont- e a finalidade da natureza. Como pode pouco mais tarde, pela França e pela Ingla­
m ou o homem satisfazer a sua função na na­ terra. Fenôm eno grandioso em que o h o ­
>zam tureza? Pela Arte, isto é, pela prática,
pelo desenvolvimento ou pela inven­ m em europeu tom a consciência de si m esm o
enta ção das técnicas (BRETON; RIEU & através do olhar do O u tro , em que ele ex­
i em TINLAND, 1990: 34). perim enta a am pliação do seu conhecim ento
i. O do globo em sua finitude esférica, o episódio
abre dos grandes descobrim entos m arca tam bém
>09- 3.2.2 As grandes experiências de
a tom ada de consciência progressiva de que
íRE, descentramento no Renascimento
a E uropa, em vez do centro, é um a parte do
Longe de ser um a im itação servil da A nti­ m undo.
uta- guidade, o Renascim ento procede a um a relei- • A descoberta, capital e decisiva, de que a
ms- tura dos m odelos antigos à luz da sua p rópria
Terra não está imóvel no centro do universo,
eza, situação histórica. Período de renovação geral e
mas gira em to rn o de si m esm a, descreven­
re- de m udanças profundas, o Renascim ento in tro ­
do um a órbita em to rn o de um astro, com o
te a duz cada hom em na experiência de um m undo
os outros planetas. Revolução fundam ental
de erodido pela perda das balizas costum eiras e das
referências habituais. Instala-se um a nova cultu­ que arruina as bases da teologia geocêntrica,
EU a representação de um cosm o finito e acaba­
ra que ainda não tem nom e, mas apresenta as
r-se do. O hom em entra assim num universo de
características daquilo que cham am os hoje de
i se dim ensões infinitas (JOLIBERT, 1987).
pluralism o (SIMARD, 1988). Abre-se daí em
fim
diante um espaço em que o sentido do m undo e • A descoberta da tipografia - “revolução
oe da vida já não é inteiram ente dado pela coletivi­ técnica m ental e social de conseqüências in­
la- dade, pela família, pelos costum es, pelas heran ­
calculáveis” (M A RG OLIN, 1981a: 26) - que
& ças ou tradições a que se pertence; um espaço em
aum enta o acesso à cultura para um m aior
ào que o sentido é construído entre as convicções
núm ero de indivíduos. A cultura se difunde;
go recebidas e a experim entação individual, e que
ela se desloca da cultura escolástica para um
os perm anece aberto à incerteza relativa, “à crítica,
ao livre-pensam ento, à deliberação, em suma, à o utro tipo de cultura, que perm ite a cada um
do
Razão” (SIMARD, 1988: 26). Quais são as p ro ­ ultrapassar o horizonte fechado, onde fica
vas m arcantes, as experiências de descentram en­ confinado pelas suas determ inações prim ei­
to em relação à tradição judaico-cristã que, es­ ras. O bservem os tam bém que Rabelais, em
za
u- tendidas p o r quase três séculos, trabalham para seus textos, foi um dos prim eiros a tom ar
io desfazer as referências habituais de identificação em préstim os à cultura ou à “tradição n a rra ­
da e para m odificar em profundidade a consciência tiva p o p u la r”.
tre e a cultura do hom em europeu?
• O advento do protestantism o, que desfaz
ar
• Em prim eiro lugar, o episódio dos grandes a unidade cristã e desloca a cultura para o u ­
e,
m descobrim entos - da América, da África, da tros centros de difusão, notadam ente a Ale­
í- Ásia, do O ceano Pacífico - inaugurados pela m anha, a Suíça (em particular, G enebra com
Espanha (Cristóvão C olom bo, em 1492) e Calvino) e a Inglaterra; Rom a deixa de ser o
Portugal (Vasco da G am a, em 1497) e um único centro da cultura europeia.
84 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

• Enfim , a dissolução da unidade cristã da Se o universo é considerado como infi­


E uropa em benefício dos Estados-nação em nito, então não há mais lugar assegura­
via de em ergência. G uerras interm ináveis - do, não há mais essência humana fixada
desde toda a eternidade. O homem está
por exem plo, a G uerra dos Cem Anos, entre
na história, e o estado de natureza cria­
a França e a Inglaterra - desferem duros gol­ do não tem outra finalidade senão ser
pes à nobreza, que vê suas terras devastadas sempre superado. O homem está por
e seu poder com prom etido. Esta G uerra p ro ­ fazer, por realizar, sua essência não é
voca um deslocam ento da riqueza para a Itá­ um dado, mas um possível. Diante des­
sa reviravolta intelectual, os problemas
lia e para Flandres. D iante dessas cidades em
educativos sofrerão uma crise profunda.
concorrência - principalm ente G and, Bru- Até então, educar consistia em condu­
ges, Ypres em Flandres; Veneza e G ênova na zir um ser do estado bruto, mal-acaba­
Itália - , o sistem a feudal desaba. Uma nova do, a um estado de acordo com a or­
classe, proveniente da plebe, se enriquece dem de um universo definido. A partir
com o com ércio e a indústria, e se aproxi­ do Renascimento, educar corresponde a
começar por definir um modelo huma­
m a do poder real através dos cargos públi­
no possível, isto é, propor um objetivo
cos que assume. Um novo tipo de hom em , o ideal para a ação educativa.
burguês, que logo provocará “a reform a da
Q ual é justam ente esse “m odelo hum ano”
organização política fundada na nação com o
que os hum anistas procuram definir e esperam
entidade histórica e no Estado com o enti­
ser capazes de realizar? Será possível traçar as
dade adm inistrativa e m ilitar” (BRETON;
suas grandes linhas?
RIEU & TIN LA N D , 1990: 30), encarna o
novo espírito econôm ico, o poder incipiente Essas perguntas nos levam a exam inar com
do dinheiro. “A Revolução capitalista é obra m aior atenção as grandes doutrinas educativas
de um tipo de hom em que participa do espí­ que estão na origem das reform as escolares vin­
rito do R enascim ento, o burguês capitalista” douras, e que expressam o ideal educativo se­
(M OUSNIER, 1993: 108). gundo o qual viveu a França, observa D urkheim
(1969), a p artir do século XVI até o fim do
C om o desm oronam ento progressivo da Ida­
XVIII7. O hum anism o do Renascim ento não se
de M édia, um m undo novo se instala, um m un­
lim ita a essas doutrinas, mas é p o r seu interm é­
do que altera a nossa representação do universo
dio que se expressam correntes de ideias em que
e a nossa concepção do hom em . Q ual será, daí
virão inspirar-se, em graus diversos, os grandes
em diante, o seu lugar? Q ual a educação que lhe
pensadores da época. A prim eira dessas ten d ên ­
deve ser dada? Analisemos essas questões na ter­
cias é representada po r Rabelais (c. 1483-1553),
ceira e últim a parte deste capítulo.
aquela em que o ideal do erudito encontra a sua
expressão mais elevada; a segunda, cujo repre-
3.3 A educação humanista
7. Ideal educativo que dominará também no Quebec a partir da
Em sua obra Raison et éducation Bernard abertura, em Nouvelle-France, do primeiro colégio pelos jesuí­
Jolibert (1987: 53) form ula nestes term os o p ro ­ tas, em 1635, até o final dos anos de 1950, momento em que o
Quebec desencadeia sua “Revolução Tranqüila” (cf. cap. 11: As
blem a da educação no Renascim ento: pedagogias abertas no Quebec, 11.3).
3 O Renascimento e a educação humanista 85

*m tante é Erasm o (1469-1536), encarna o ideal im pressionante: tendo ficado, ao princípio, sob
do hom em letrado, o ideal da grande cultura li­ a tutela de velhos m estres que utilizam m éto­
terária8. Vamos estudá-las apenas sob o ângulo dos ultrapassados, G argântua pode, em segui­
das finalidades educativas e dos program as de da, desenvolver-se, graças à ação penetrante de
estudos, ten d o a preocupação de enfatizar suas um p receptor hum anista que com eça po r livrar
Semelhanças e suas divergências. M as, prim eira­ o aluno dos estragos constatados, antes de sub­
m ente, algum as observações de ordem geral de­ m etê-lo a “m étodos racionais e m odernos” (LA­
vem ser feitas. ZARD, 1993: 194).

3.3.1 Observações de ordem geral N ovos instrum entos do saber

Uma crítica da escolástica Se os hum anistas fo ram grandes d esco b ri­


d ores de textos latinos e gregos, grandes rea-
Um ponto com um salta aos olhos do observa- nim adores da cultura antiga, eles contribuíram
i o r que esteja interessado por pedagogos com o tam bém para a difusão do saber e para o p ro ­
G uarino, V ittorino da Feltre, Vives, Erasm o ou gresso dos conhecim entos. Tal p o stu ra levou
Rabelais, para citar apenas o nom e de alguns au­ Jean-C laude M argolin (1981a: 81) a dizer que
tores: todos eles denunciam os m étodos m edie­ há provavelm ente um pleonasm o na qualificação
vais, que julgam arcaicos, anacrônicos, nefastos do hum anism o com o pedagógico. Um grande
e ineficazes. Para Erasm o com o para Rabelais, o núm ero de ensaios educativos foram publicados
m étodo escolástico é apenas “decoreba”, repeti­ no fim do século XIV e no início do XV M arg o ­
ção inútil de fórm ulas insípidas ou de regras ab­ lin (1981a: 81) escreve: “M elhor ainda, com as
surdas que tornam um a criança talentosa em um gram áticas, os dicionários, as edições críticas dos
aluno “sim plório, totalm ente distraído e aboba­ autores antigos, seus com entários, as traduções
lhado” (RABELAIS, apud LAZARD, 1993: 195). do grego para o latim (e às vezes de um a des­
C om o verem os depois, para definir o program a sas duas línguas para um a língua vernácula), eles
dessa cultura nova, Rabelais usa um contraste forjaram as verdadeiras ferram entas do saber para
várias gerações de alunos ou estudantes”.

8. O humanismo de Montaigne (1533-1592) não é abordado nes­


te capítulo. Com menos cinqüenta anos em relação a Rabelais, A relação professor-aluno
Montaigne tem apenas três anos quando Erasmo morre em Ba­
siléia, em 1536. É pois um autor da segunda metade do século Através da relação professor-aluno, um a m u­
XVI, que decantou o entusiasmo do humanismo nascente. No
plano educativo, Montaigne apresenta numerosas diferenças
dança na m aneira de educar aparece claram ente.
quando é comparado a Rabelais ou a Erasmo. Mais frugal do A p artir da obra de Ariès (1973), U enfant et la vie
que o primeiro e menos literário do que o segundo, ele não visa fam iliale sous 1’Ancien Régime, conhecem os a in­
o enciclopedismo de um, nem o estetismo do outro. À educação,
Montaigne atribui finalidades bem mais modestas e muito mais
diferença das épocas medievais em relação à infân­
práticas: formar o espírito crítico através do contato com os ho­ cia, a aspereza das relações educativas e a pouca
mens, aprender as línguas - a começar pela materna, depois as preocupação de distinguir entre as idades. Sem
línguas vivas e, enfim, as mortas a história e a educação física;
em todas as coisas, evitar o entulhamento do cérebro, pois “a
consideração pela psicologia das idades, crianças e
cabeça bem-organizada vale mais do que a cabeça bem cheia”. adolescentes são m isturados aos adultos no ensi­
86 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

no até o fim do século XIV N a base dessa tran s­ precisão de um a palavra, “a que convém em tal
form ação na m aneira de educar as crianças, na circunstância psicológica ou social, em tal m o­
origem dessa cultura nova, há um m esm o cuida­ m ento, na presença de tal auditório etc.” (MAR­
do, um a m esm a preocupação - segundo observa G O LIN , 1981a: 94). A form ação do o rador está
G arin (1968) - , ou seja, “de form ar a juventude na base da pedagogia hum anista. E pela im itação
ajudando-a a suscitar ela p ró p ria as suas energias dos Antigos que cada um pode descobrir p o r si
naturais, mas sem condicioná-la, sem forçá-la m esm o “a grande regra de agradar e com over”
no interior de quadros e de fórm ulas congela­ (p. 96). O orador, segundo o coração e o espíri­
das”. Assim, a ação de um m estre obsequioso, to dos grandes pedagogos hum anistas, deve se
sim pático e benevolente é, de longe, preferível propor, a exem plo do orator de Cícero ou de
aos m étodos de um m estre distribuindo golpes Q uintiliano, um triplo objetivo que vai além
de palm atória. da simples retórica: docere (ensinar), delectare
De V ittorino da Feltre a Jo h n C olet, de Jean (agradar), movere (comover) (p. 96).
Vives a Johannes Sturm , ou de Erasm o a R abe­
lais, encontra-se o m esm o respeito às crianças, O program a geral dos estudos
um a autêntica preocupação em não p ertu rb ar a
sua alegria e a sua serenidade, em adaptar o ensi­ De V ittorino da Feltre (1378-1446) a Jo h a n ­
no à idade do aluno, um vibrante apelo à am iza­ nes Sturm (1507-1589), para cobrir aproxim ada­
de confiante, à afeição e à escuta entre professor m ente um século e m eio de educação hum anista,
e aluno. o program a de estudos apresenta, evidentem en­
te, variações. N a Casa giocosa de V ittorino da
Feltre, po r exem plo, o esporte e as atividades ao
A form ação de um o rad o r
ar livre ocupam um lugar que não será o mesmo
C om o lem bra M argolin (1981a), a form ação no program a de Erasm o; o estudo do latim , da
do o rad o r é o objetivo prim eiro dos hum anistas retórica e da Bíblia se alterna com os jogos - li­
da E uropa no século XV O orador, no espírito terários, coletivos ou esportivos - e tam bém não
dos hum anistas, não se lim ita ao eclesiástico, ao é rara, ao lado dos copistas gregos ou dos m ate­
o rad o r político ou judiciário, mas diz respeito m áticos, a presença de músicos e de artistas fa­
a todos aqueles cuja vida profissional consiste mosos. N o caso de Rabelais, para citar um outro
em convencer os outros pela ação da palavra exem plo, a ciência ocupa um lugar que não é o
ou da escrita. Para os hum anistas - particular­ que lhe dá Erasm o.
m ente Erasm o, inspirando-se nos seus m estres Os jovens aos quais se dedicam os pedagogos
Q uintiliano e Cícero - , trata-se de desenvolver hum anistas têm entre 10 e 15 anos. N em p o r isso
o mais possível, de dom inar no mais alto grau, se deixa de educar a criança pequena. Já que se
o que eles designam pela expressão copia ver- tra ta de realizar um m odelo hum ano, é m elhor
borum . A form ação do o rad o r com preende não com eçar a educação desde a mais tenra idade.
só a m ultiplicidade dos recursos - jogos de pala­ Sobre esse tem a, Erasm o escreve o De pueris ins-
vras e de sentido, sinônim os, figuras de estilo tituendis (1529), consagrado à prim eira infân­
mas tam bém a precisão da linguagem , a força e a cia (entre três e quatro anos), a fim de iniciar a
3 O Renascimento e a educação humanista 87

criança nos rudim entos da língua, dos núm eros, os clássicos consistiu então realmente
da escrita e assim p rep arar a sua aprendizagem em levá-los a tomar consciência da co­
munidade humana na sua evolução e na
das boas letras e do latim . Uma o utra obra, De
sua unidade.
civilitate m orum puerilium (1530), é um verda­
deiro m odelo de civilidade infantil. Tudo está
ali; da m aneira de lim par o nariz à de saudar o A educação das meninas
professor e com portar-se à mesa, de com o agir
A revolução cultural que caracteriza o Re­
nos jogos e na igreja.
nascim ento repercute tam bém na situação social
Voltando aos jovens de 10 a 15 anos - e sem da m ulher. Afinal, observa M argolin (1981b),
excluir o interesse crescente p o r outras discipli­ ela contribuiu para dim inuir a distância que se­
nas, tais com o a história, a geografia e as ciências parava a m oça do rapaz, a m ulher do hom em .
naturais - o program a de estudos não chegou a M as a educação, apesar desse progresso n o tá ­
ser substancialm ente rem anejado. De novo, va­ vel, continua sendo um a prerrogativa masculina.
mos citar Jean-C laude M argolin (1981a: 82): C om o regra geral, m esm o nas classes abastadas,
O currículo dos estudos não foi consi­ as m eninas ficam em casa enquanto os m eninos
deravelmente modificado no período freqüentam o colégio9.
do humanismo triunfante e conservou o
Sobre essa questão, as opiniões de Vives, de
quadro tradicional do trivium e do qua-
drivium, isto é, o ciclo dos estudos de Erasm o ou de Rabelais não são diferentes. Vi­
gramática, retórica e lógica, seguido do ves, p o r exem plo, em bora se declare favorável
ciclo da aritmética, da música, da geo­ à educação das m eninas, concorda com as ideias
metria e da astronomia, que constituíam habituais sobre a m odéstia que convém às m u­
juntas as sete artes liberais.
lheres, sobre a inutilidade social de lhes dar um a
M as no currículo dos estudos, as disciplinas form ação avançada ou sobre a incapacidade fe­
que form am o ciclo do trivium ocupam um lu­ m inina de rivalizar com os hom ens em questões
gar preponderante. O estudo das línguas grega e científicas. A sem elhança de um grande núm ero
latina está no centro da form ação hum anista, e de outros hum anistas da época, é para cum prir
é nesse tesouro recuperado que cada hom em en­ o seu papel de boa cristã, boa esposa e boa mãe
contra o cam inho para a sua hum anidade, com o que ele prepara a m oça, e se ele consente em dar
é lem brado p o r Eugênio G arin (1968: 95): um a educação científica e política mais séria às
Estudar os antigos significa adquirir jovens das famílias nobres - ele pró p rio foi pre-
uma consciência histórica e crítica cada ceptor da princesa M aria, filha do rei H enrique
vez mais aprimorada, tornar-se capaz de VIII e de C atarina de Aragão - , quanto ao resto,
julgar a si mesmo e ao outro, abraçar as ele as confina ao despertar do espírito da criança,
vastas dimensões do mundo dos homens
à solicitude e à ternura, de m odo a lhes inculcar
e do seu desenvolvimento, compreender
que a humanidade constitui uma socie­ “um a sensibilidade m oral e afetiva” (M ARGO-
dade ao mesmo tempo múltipla e uni­
tária, progredindo em um esforço que 9. “Alcalá é a primeira cidade europeia a abrir uma escola para
se prolonga no tempo e triunfa sobre o meninas já no início do século XVI. E só em 1574 as Ursulinas
fundam em Avignon uma escola feminina” (MARGOLIN, 1981b:
espaço. [...] Educar os jovens segundo
182).
88 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

LIN, 1981a: 90-91). Para Vives com o para Eras­ novas e a pressão exercida po r um a burguesia
m o, só algumas m ulheres possuem um a erudição m ercantil favorecem , notadam ente no norte da
excepcional, talentos notáveis: a filha mais velha Itália, a criação de instituições novas e a ado­
de T. M ore, M argaret; a italiana C assandra Fe- ção de práticas pedagógicas inovadoras. C onsti­
dele; as irm ãs Pirckheim er; as m oças da família tuem -se escolas que voltarão as costas aos velhos
de eruditos holandeses, os Canter. m étodos m edievais ainda largam ente difundidos
nas universidades. Em Florença, M ilão, Veneza
ou Ferrara, grandes m estres ensinam os studia
As instituições de ensino
hum anitatis aos filhos das grandes famílias. N a
Um a visão excessivam ente ráp id a sobre o verdade, a educação superior é não só privilégio
R enascim ento seria suscetível de nos dar a im ­ dos hom ens, mas apanágio dos mais ricos.
pressão de que se trata da idade de ouro da h u ­ Se a universidade continua sendo a criação
m anidade, um período de luz que sucede às tre ­ original da Idade M édia, o colégio é a grande
vas m edievais10, um oásis de opulência intelectu­ novidade do Renascim ento do século XV quan­
al e m aterial no qual se deleitavam sem distinção to às instituições escolares. O colégio existia na
todos os m em bros da sociedade. Para o banque­ Idade M édia; assistiu-se à sua em ergência, des­
te do R enascim ento, todos estavam convidados. de o século XIII, mas sob um a form a m odesta e
M as isso é um a conclusão apressada, pois esse com o lugar de alojam ento destinado a um núm e­
m undo continua sendo essencialm ente rural e ro lim itado de alunos pobres. O ensino começa
pobre; “o m undo das cidades é um m undo bri­ a ser m inistrado no século XIV, mas no século
lhante, mas excepcional” (LE GOFF, 1975: 77). seguinte, com o é sublinhado por D urkheim , “a
Apesar do laço que une a criação das escolas às revolução chega a seu term o ” (1969: 130). “Os
lutas político-religiosas, a escola de aldeia, para alunos encontraram nos colégios, além de um
todos e p o r toda parte, ainda não existe nessa lugar para viver e de um alojam ento, o ensino
época (M A RG OLIN, 1981b). N o que se refere reclam ado p o r eles, deixando de ter necessidade
ao ensino elem entar, este ainda é assum ido por de sair; estabelecia-se assim o princípio do in­
congregações religiosas, tanto entre os p ro tes­ te rn a to ” (p. 130). E o advento dos colégios que
tantes quanto entre os católicos. Em virtude da transform ará profundam ente o ensino secundá­
ligação pessoal que une o hom em a Deus, do di­ rio. Im pregnadas dos princípios educativos n o ­
reito de cada-hom em de in terpretar as Sagradas vos - o estudo prático dos Antigos, o respeito ao
Escrituras, os protestantes são os prim eiros a fa­ aluno, a em ulação, o diálogo entre professor e
zer grandes esforços para a criação de escolas e a aluno - , essas instituições form am os hum anistas
escolarização das massas. que ocuparão as mais altas funções civis e eclesi­
É, antes, nas cidades, que se deve procurar ásticas na Europa.
verdadeiras inovações educativas. A efervescên­ Finalm ente, quanto ao ensino superior, apa­
cia das ideias, o im pulso de correntes culturais recem três grandes instituições hum anistas, três
faróis intensos da vida intelectual da época: o
10. A historiografia recente se encarregou de reabilitar a Idade
colégio trilíngue de Louvain (latim, grego, h e ­
Média, revelando-nos a sua diversidade, a sua originalidade pro­
funda e a sua fecundidade criadora. braico), criado por Jerônim o de Busleiden com
3 O Renascimento e a educação humanista 89

lesia o estím ulo de Erasm o; o de Alcalá de H enares na pseudônim o de Alcofribas Nasier, que ele publi­
e da Espanha; e, enfim , o dos “Leitores da realeza” ca a sua prim eira obra, Pantagruel (1532), con­
ado- de Paris, o atual Collège de France, fundado em denado posteriorm ente em 1535 pela Sorbonne.
nsti- 1529 p o r Francisco I, po r ins­ N os últim os anos da sua vida,
lhos tigação do hum anista francês torna-se padre em M eudon,
idos Guillaum e Budé. perto de Paris, onde m orre no
neza ano de 1553. Além de obras
udia eruditas, são dele o Gargân-
3.3.2 Rabelais ou a tua (1 5 3 4 ), o Terceiro livro
, Na
corrente enciclopédica
égio (1546), o Q uarto livro (1548)
Em muitos aspectos, a obra e o Q uinto livro (1564).
ação de Rabelais reflete a sua vida:
inde inapreensível, m últipla, des­ As finalidades educativas
uan- co n certan te. T endo com eça­
a na do p o r ser m onge francisca- Com o vimos, Rabelais cri­
des­ no, depois beneditino e padre tica a velha educação esco-
ita e secular, o célebre m édico se lástica, seus m éto d o s e seu
ime- duplica aqui de um fervoro­ R a be lais form alism o. Para ilustrar da
neça so hum anista, e o escrito r é m aneira mais nítida o anta­
culo acom panhado por um grande viajante. N ão há gonism o que o opõe aos doutores da Sorbonne,
1, “a consenso nem sobre a data nem sobre o lugar ele serve-se de um c o n tra ste im pressionante.
“Os Lem brem os que o seu personagem G argântua,
preciso do seu nascim ento. Teria nascido em
um filho de G randgousier (G rande G oela), é prim ei­
1483 na Touraine, em C hinon, no lugar den o ­
isino ram ente instruído por um d o u to r em teologia.
m inado La D evinière, propriedade do seu pai,
dade Rabelais narra:
o advogado A ntoine Rabelais. Pouco sabemos
) in- da sua infância passada provavelm ente na terra Efetivamente, recomendaram-lhe um
grande doutor sofista, chamado Mestre
que natal, nem dos seus prim eiros anos de estudo. Thubal Holopherne, que lhe ensinou
ndá- Filho de burgueses, supõe-se que recebe inicial­ tão bem o abecedário que ele o recitava
no- m ente o ensino do cursus studiorum - o trivium de trás para a frente, de cor, aprendi­
o ao e depois o quadrivium - segundo m étodos anti­ zado que lhe custou cinco anos e três
meses. Depois, leu a G ram ática de
or e gos, que ele irá ridicularizar mais tarde nos seus Donatus, o Facet, o Théodolet, e Alain
istas escritos. Provavelm ente noviço nos franciscanos em suas Parábolas, o que levou treze anos,
:lesi- de La Baum ette, em fins de 1510, ele deixa essa seis meses e duas semanas (RABELAIS.
O rdem pela dos B eneditinos quando a Sorbon- Gargantua, cap. 14, 1973: 81).

apa- ne proíbe os autores gregos, em 1523. Por volta Vêm depois os M odos da significação, com
três de 1530, Rabelais deixa a vida m onástica e vai os com entários de H eurtebise, de Faquin, de
a: o para M ontpellier estudar m edicina, e é em n o ­ T ropditeux e outros, sem esquecer o Alm anaque,
, he- vem bro de 1532 que o vem os em exercício na até a m orte do p receptor em questão. O u tro ve­
com Santa Casa de Lyon. Aliás, é nessa cidade, sob o lho “gagá” o substituiu, o M estre Jobelin Bridé,
90 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

que lhe leu o Grécise, o D outrinai, as Partes, o que é hum ano é negligenciado: as brincadeiras,
Q u id e vários outros livros. Sob o efeito dessa as atividades físicas, as artes e os ofícios, as lín­
rotina, G argântua sentia seu corpo se enfraque­ guas, as ciências profanas e religiosas, a história
cer, enquanto sua m ente ficava entulhada com e a literatura. N a fam osa carta que G argântua
todas essas tolices. escreve ao seu filho Pantagruel, então estudante
Então seu pai percebeu que sem dúvida em Paris, à qual voltarem os depois, encontra-se
nenhuma ele estudava muito e dedicava o m esm o frenesi pelo saber.
a isso todo o seu tempo; apesar de tudo O que Rabelais procura nessa busca alegre
não progredia em nada e, pior ainda,
e apaixonada é a erudição total, o saber absolu­
estava ficando maluco, bobo, distraído
to, um saber enciclopédico que abarca todos os
e destrambelhado. Por queixar-se disso
a Sir Philippe des Marais, vice-rei de dom ínios da atividade hum ana. De fato, o saber
Papeligosse, soube que seria preferível libera, enquanto a ignorância aprisiona. A educa­
não aprender nada do que aprender tais ção rabelaisiana aspira a form ar um hom em com ­
livros com tais preceptores, pois o saber pleto, a desenvolver no aluno, por m eio de m éto­
destes era apenas asneira e sua sabedoria dos eficientes e racionais, todas as capacidades da
se limitava a bobices, embrutecendo os sua pessoa, as suas qualidades tanto físicas quan­
nobres e bons espíritos e fazendo mur­
to m entais. Abre-se um a vida nova, abundante e
char a flor da juventude (RABELAIS.
generosa, um a vida autêntica e verdadeira, que
Gargantua, cap. 5, 1973: 82).
perm ite a cada hom em levar suas potencialidades
Depois de longas discussões, designaram Po-
ao auge do seu desenvolvim ento.
nócrates para o ofício de preceptor de Gargântua.
Provavelmente, é por isso que o ideal ra-
C onstatando em seu aluno os malefícios dos belaisiano se encarna em gigantes. E que
m étodos antigos, Ponócrates lhe adm inistra o só gigantes têm porte para realizá-lo. O
heléboro de A nticyre, a fim de lim par-lhe o cére­ gigante é o modelo popular do super-ho-
mem, do homem superior ao homem
bro “de to d a corrupção e de todo vício”. Expres­
médio (DURKHEIM, 1969: 211).
sa em term os de m edicina, purgativos e lavagens,
é a ideia de um novo nascim ento, de um a volta Tal visão do hom em , da educação e do sa­
à natureza, um a ideia que percorre todo o Re­ ber não poderia tolerar as coações, os limites e
nascim ento sob form as diversas (GARIN, 1968). a coerção. Tudo o que atrapalha ou é obstáculo
aos desejos e às necessidades do hom em , tudo
N a escola de Ponócrates, G argântua se ins­
o que reprim e a livre expansão das suas capa­
trui de m odo a não perder um a única h ora do seu
cidades e a sua m archa gloriosa para o saber, é
dia. O program a de estudos11 a que é subm etido
contrário à natureza do hom em . Rabelais aspira
dosa habilm ente a educação do corpo e a educa­
a “um a sociedade em que a natureza, liberada
ção intelectual, o lazer livre e a frequentação dos
de toda coação, pode desenvolver-se com to d a a
Antigos, os diálogos com os eruditos e o contato
liberdade” (DURKHEIM , 1969: 210). N aturam
direto com a natureza. O que logo im pressiona é
sequere: seguir a natureza; essa é a sua divisa.
o caráter “gargantuesco” do program a - nada do
Esse ideal de um a sociedade livre e perfeita se
realiza na Abadia de Thélèm e. Sem horários e
11. Cf. o livro de Rabelais: Gargantua, 1973, cap. 23, p. 106-117. sem m uralhas, o único regulam ento dessa abadia
3 O Renascimento e a educação humanista 91

cabe inteiro nesta breve fórm ula: “Faça o que lhe fortificar os músculos. Além dessa educação físi­
a prouver”. ca rigorosa, a arte da cavalaria, para defender a
Faça o que lhe aprouver, porque as casa e proteger os amigos, figura tam bém no pla­
pessoas livres, bem-nascidas, bem-edu- no de educação de Rabelais. Essa arte consiste,
cadas, vivendo em boa sociedade, têm no essencial, em lições de equitação para guiar o
naturalmente um instinto, um estímulo
cavalo, no m anejo das arm as, da lança, da espa­
que elas chamam de honra e que as afas­
ta do vício (RABELAIS. Gargantua, cap. da, do m achado, da adaga e do punhal, ou ainda
57, 1973: 203). em lições de caça ao cervo, ao cabrito-m ontês,
ao urso, à corça, ao javali.
Faça o que lhe aprouver, pois a natureza, in ­
teira e sem restrição, é boa e generosa. “É, com o Q u a n to à form ação in telectu al, esta visa,
se vê, essa convicção da bondade fundam ental com o dissemos, o enciclopedism o. E toda a ci­
da natureza que está na base do realism o de Ra- ência do seu tem po que o aluno deve adquirir,
belais”, lem bra D urkheim (1969: 210). Com o pois só o conhecim ento integral da ciência o p re­
esse ideal se traduziu em educação no âm bito de encherá com a soberana felicidade. Se há um a
um program a de estudos? capacidade que Rabelais quer desenvolver na sua
plenitude é a faculdade cognitiva.
O homem só realiza plenamente a sua
O program a de estudos
natureza se empurrar os limites do seu
conhecimento para tão longe quanto
Com o já foi m encionado, a exaltação da
possível, se alargar a sua consciência de
faculdade de conhecer se destaca tan to no p ro ­
modo que ela abrace o universo. Ele só
gram a de estudos de G argântua quanto na céle­ é verdadeira e absolutamente feliz no
bre carta que este envia ao seu filho Pantagruel, estado de exaltação em que se encon­
então estudante em Paris. O que im pressiona tra a inteligência que possui a verdade;
im ediatam ente é o caráter enciclopédico do p ro ­ é nas alegrias da embriaguez científica
que ele deve procurar a suprema beati-
grama. Rabelais estabelece o plano de um a edu­
tude (DURKHEIM, 1969: 220).
cação de gigante, que visa um saber universal.
Assim, para Rabelais, com o aliás tam bém para Q uando o abade de Thélèm e, F. Jean des En-
Erasmo, o m estre deve possuir um a ciência uni­ tom m eures, se aventura com Panúrgio à procura
versal, ter percorrido todo o círculo do saber. da felicidade, é um a ilha longínqua onde se eleva
Program a denso, com pleto e am bicioso, que va­ um tem plo dedicado à “Divina G arrafa” que lhes
mos exam inar de m odo sum ário nestas páginas. revela o segredo da felicidade. D a garrafa m iste­
N as atividades cotidianas de G argântua, a riosa um a única palavra escapa: beber... beber, e
educação física ocupa um lugar im portante. Três beber ainda, no rio da ciência, até o êxtase su­
ou quatro horas po r dia de exercícios físicos d u ­ prem o do espírito.
rante as quais ele deve aprender todos os espor­ N a carta enviada a Pantagruel, G argântua
tes: jogos com bola, natação, navegação, escala­ recom enda-lhe que aprenda as línguas: a com e­
da; ele deve igualm ente subir nas árvores, correr, çar pelo grego, com o quer Q uintiliano; depois
saltar, lançar, gritar para exercitar os pulm ões, o latim , o hebraico, o caldeu e o árabe para ler
e praticar ginástica para desenvolver o corpo e as Sagradas Escrituras. Recom enda-lhe tam bém
92 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

que form e o seu estilo com Platão, para o grego, do m undo. Assim, à mesa ou no cam po, o con­
e com Cícero, para o latim (RABELAIS. Panta- tato com as coisas é cuidadosam ente equiparado
gruel, 1973, cap. 8). Aqui im põe-se um a breve aos textos que tratam delas. É um a característica
observação. Ao contrário de Erasm o, com o ve­ de Rabelais insistir no processo contínuo que vai
rem os, o interesse do ensino das línguas para do livro até a vida, e da vida até o livro (GARIN,
Rabelais, especialm ente o latim e o grego, não 1968). Para com pletar essa form ação intelectual,
se deve a nenhum a preocupação estética. C om o G argântua recom enda ao filho que faça tam bém
nota D urkheim (1969), é com o erudito que ele o estudo dos mais belos textos do direito civil, a
se aproxim a dos Antigos. A A ntiguidade não é, releitura dos livros dos m édicos árabes, gregos e
segundo Rabelais, um instrum ento ou um m o­ latinos, dos talm udistas e dos cabalistas; enfim,
delo de cultura estética ou de elegância literária, que freqüente as pessoas letradas de Paris e de
“mas um a m ina de conhecim entos positivos” outros lugares.
(apud D U RK HEIM , 1969: 216). Rabelais com ­
Uma educação estética e um a educação para
põe assim o seu program a sem considerar o valor
os diferentes ofícios se acrescentam ainda a esse
literário da obra. E os Trabalhos de H esíodo ou
program a já m uito sobrecarregado. N os dias de
as Geórgicas de Virgílio têm seu lugar, aqui, ao
chuva, de fato, Pantagruel se inicia nas artes da
lado de Teofrasto, de D ioscórides, de M arinus,
p intura e da escultura, depois vai visitar os o u ­
de O piano e de Pólux. Pantagruel deve tam bém
rives, os ferreiros, os m oedeiros, os lapidadores
instruir-se nas artes liberais e nas ciências m ate­
de pedras preciosas, os relojoeiros, os tipógrafos
m áticas: música, geom etria, aritm ética e astro­
e tantos outros.
nom ia, excluindo-se en tretan to a astrologia divi­
natória e a arte de R aim undo Lúlio (a alquimia). Finalm ente, Rabelais preconiza um a educa­
A ciência ocupa, nesse program a, um lugar ção m oral e religiosa, pois “ciência sem cons­
preponderante. Atenção! N ão a ciência form a- ciência é só ruína da alm a”. D urante algumas
lista da dialética da Idade M édia, nem a futura horas po r dia, Pantagruel deve ler as Sagradas
ciência experim ental, mas o conhecim ento po­ Escrituras: o N ovo Testam ento e as Epístolas em
sitivo das coisas do m undo, o conhecim ento da grego, o Antigo Testam ento em hebraico. E, to ­
natureza, do hom em .
dos os dias, ele se entrega a Deus e se recom enda
E quanto ao conhecimento da natureza, à sua clemência.
quero que te dediques com aplicação:
que não ignores os peixes de todos os Mas - pelo fato de que, segundo o sábio
mares, rios e nascentes; que nada te seja Salomão, Sabedoria não entra em alma
desconhecido entre os pássaros do céu, malevolente e ciência sem consciência é
as árvores, arbustos e moitas das flores­ só ruína da alma - deves servir, amar e
tas, as ervas da terra, os metais escon­ temer a Deus, além de depositar nele to­
didos no ventre dos abismos, as pedras dos os teus pensamentos e toda a tua es­
preciosas de todos os países do Oriente perança; e por uma fé alimentada na ca­
e do Sul (RABELAIS. Pantagruel, 1973, ridade, deves estar unido a Ele, de modo
cap. 8: 248). que nunca te separes dele pelo pecado.
[...] Presta serviço aos teus próximos e
M as o texto de um autor antigo vem com ple­ ama-os como a ti mesmo (RABELAIS.
tar esse contato direto do aluno com a realidade Pantagruel, 1973, cap. 8: 248).
3 O Renascimento e a educação humanista 93

Esse plano de educação p roposto po r Ra­ lita: em prim eiro lugar, com o secretário do bispo
belais, esse ideal e essa aspiração profunda pelo de Cam brai, Flenrique de Berghes; depois no
saber universal, ele próp rio - e vários outros Colégio de M ontaigu, em Paris; e, em seguida,
autores, tais com o Ramus, Alberti, Ficino, Leo­ percorrendo toda a Europa, desde a Inglaterra
nardo da Vinci - vai realizá-lo e encarná-lo no (em 1499) - onde conhece Thom as M ore, futuro
mais elevado grau. C onhecia todas as línguas, chanceler de Flenrique VIII e futuro m ártir - até
cuja aprendizagem era recom endada po r ele; Louvain (em 1502), onde contribui para fundar
era m édico, jurisconsulto e teólogo, conhecia o Colégio das Três Línguas, passando pela Itá­
tudo sobre a A ntiguidade e possuía um sólido lia (de 1506 a 1509) - Turim, Bolonha, Veneza,
conhecim ento da ginástica, das artes e ofícios Roma. Finalm ente, vive de novo na Inglaterra,
do seu tem p o , com o é com provado p o r sua entre 1509 e 1514. N o ano de 1522, deixa de­
obra (DURKH EIM , 1969). N o plano individu­ finitivam ente a H olanda e se instala em Basiléia,
al, com o nos lem bra D urkheim (1969: 218), ele cidade onde m orre em 1536. Suas ideias sobre a
era o que são as sociedades europeias no tem po educação são expostas nas seguintes obras: An-
do Renascim ento: está em plena juventude. E o tibarbaros (1520), D e ratione studii (1512) e De
próprio da juventude consiste em “ignorar tudo pueris (1529). É autor tam bém do célebre livro
o que é balizas e lim ites” (p. 218). Elogio da Loucura (1511); de um a obra sobre a
civilidade infantil, De civilitate m orum puerilium
3.3.3 Erasmo ou a corrente literária (1530); e de várias obras eruditas sobre filologia
e teologia, nas quais tenta reconciliar a sabedoria
Erasm o teve um destino curioso: nascido de antiga com o cristianismo.
pais não casados, em 28 de outubro de ano incer­
to, provavelm ente 1469, tornar-se-á o príncipe
As finalidades educativas
do hum anism o, um pacifista atuante e um arden­
te defensor do cristianism o. Educado em um a Desde os seus prim eiros anos de estudo em
família da pequena burguesia holandesa, Erasmo Steyn - escreverá então com G érard C orneille
deixa poucas lem branças da sua prim eira infân­ um a apologia contra os bárbaros - , Erasm o p re­
cia. Em 1476, entra para a Escola Peter W inckel, para um a diatribe, o seu Antibarbaros. Os “bár­
em G ouda, e depois para a escola capitular de baros” aqui são, de um lado, aqueles que se to r­
Utrecht, com o corista, em 1477. De 1478 a 1483, naram “incultos e deform ados” ao receber um a
freqüenta a célebre escola dos Irm ãos da Vida educação escolástica e, por o utro, seus professo­
Com um , em Deventer. E ali que se encontra com res. H alkin, na sua obra intitulada, Erasme par-
Rudolf Agrícola, então paladino do hum anism o m i nous, escreve (1987: 32): “Os bárbaros que
nos Países Baixos. Aos 17 anos, Erasm o fica ór­ Erasm o com bate são incultos e deform ados. A
fão. Alguns anos depois, em 1486 ou 1487, entra educação escolástica substituíra os autores anti­
para o m osteiro dos cônegos regulares de Santo gos pelos com entários, pelas glosas e sumas. Ela
Agostinho em Steyn, perto de Gouda. O rdenado ensinava m uitas vezes um program a de estudos
sacerdote em 1492, inicia um a vida errante atra­ nocionais e superficiais, em que o argum ento de
vés da Europa, um a vida de hum anista cosm opo­ autoridade ocupava um lugar indevido”.
94 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

N o seu plano de estudos, Erasm o exige do núm ero de indivíduos fique livre desse encar­
m estre um a ciência universal. go. “M eu desejo é que um só hom em leia todas
Dito isso [ele se refere aos conselhos de as obras dos Antigos a fim de poder dispensar
Quintiliano sobre os métodos de instru­ todos os outros de fazer o m esm o” (ERASMO,
ção], todo aquele que quiser dar a ou­ 1992: 451).
trem algum ensino, terá todo o cuidado
de fornecer imediatamente ao seu aluno Trata-se de um a diferença fundam ental que o
os melhores conhecimentos; mas aquele separa de Rabelais: só o m estre deve saber tudo
que quer ensiná-los da melhor maneira para poupar o aluno da obrigação de aprender
deverá, necessariamente, ser onisciente; tudo. O conteúdo da lista estabelecida po r Eras­
ou se isso não é permitido a um espírito
mo é m in u c io sa m e n te e sc o lh id o . O p rim e iro
humano, que ele conheça pelo menos os
elementos principais de cada disciplina lugar cabe a Luciano, o segundo a D em óstenes,
(ERASMO, 1992: 448). o terceiro a H eró d o to . Entre os poetas, encon­
tram os Aristófanes, H om ero e Eurípides. Entre
M ais à frente, ele indica com precisão:
os latinos, ele com eça p o r citar T erêncio, Plau-
Para isso, não me contentarei com aque­
to em algum as de suas com édias, e depois V ir­
les dez ou doze autores12 mencionados
acima, mas exigirei o círculo completo gílio, H o rá c io , C ícero e C ésar; e com estes o
do saber, a fim de que aquele que se pre­ tra b a lh o está com pleto. Pela escolha m inuciosa
para para um ensino elementar esteja a dos seus autores e pela frugalidade do seu p ro ­
par de tudo (ERASMO, 1992: 448). gram a, Erasm o se d istin g u e um a segunda vez
De preferência, recom enda Platão e A ristóte­ das exigências exageradas de Rabelais. N a verda­
les para a filosofia; A gostinho, de, deve-se procurar alhures as
Crisóstom o, O rígenes, Jerôni- finalidades do seu program a.
mo, Am brósio e Basílio para Para Erasm o, efetivam ente, a
a teologia; H om ero e Ovídio ciência não é um bem em si
p a ra a m itologia; P om pônio com o para R abelais, m as um
M ela, Ptolom eu e Plínio para a m eio a serviço de um a e d u ­
cosm ografia (geografia); e de­ cação c o m p le ta m en te literá­
pois o estudo da astrologia, da ria. C om o se trata de form ar
história e das ciências naturais. o gosto do aluno, não há ne­
M as se o m estre é obrigado a cessidade de um conhecim ento
possuir tal conhecim ento, não enciclopédico. Atingimos aqui a
é para vertê-lo na sua totalida­ finalidade profunda da educa­
de na cabeça do aluno. Em ou­ ção erasmiana: form ar um ho­
tros term os, se ele atribui esse m em de bom -senso e de bom
im enso fard o a um a pessoa, gosto, capaz de discorrer oral­
E rasm o
é p ara p e rm itir que o m aior m ente e por escrito.
A faculdade de discorrer,
12. Erasmo se refere aqui a autores gregos e latinos, tais como
tanto no oral quanto no escrito, é aquela que de­
Homero, Eurípides, Aristófanes, Hesiodo, Luciano, Virgílio, Cí­
cero. vemos desenvolver antes de qualquer outra. O
3 O Renascimento e a educação humanista 95

que ele cham a de orationis facultas, a faculda­ se corretam ente é adquirida principalm ente pelo
de verbal - a arte po r excelência é a arte de contato e pela conversação com aqueles que se
discorrer, de desenvolver um a ideia num a língua expressam em um a língua apurada, e pela leitura
correta, e principalm ente em um a língua fluida, assídua dos autores eloqüentes. Para tirar o m aior
elegante e bela, apropriada ao tem a. A faculdade proveito dessas leituras, Erasmo recom enda es­
verbal é tam bém a arte de analisar o pensam en­ tudar Lorenzo Valia, “que escreveu da m aneira
to, de dispor os seus elem entos em um a ordem mais refinada sobre a elegância da língua latina”
conveniente; em suma, é a arte de falar bem , de (ERASMO, 1992: 445). Esse conselho de Erasmo
escrever bem e de discorrer bem em qualquer nos introduz em o u tra novidade.
circunstância. A língua latina m encionada pelo hum anista
Não há nada, diz ele, de mais admirá­ holandês não é a língua viva dos escolásticos da
vel e de mais magnífico do que o dis­ Idade M édia, côm oda e prática, mas sem valor
curso (oratio) quando, rico de ideias e
educativo; é um a língua expurgada de suas escó­
de palavras, ele flui abundantemente
como um rio de ouro (ERASMO, apud rias, um a língua literária altam ente educativa. O
DURKHEIM, 1969: 225). latim que Erasm o introduz pela prim eira vez no
ensino é o latim clássico do século de Augusto,
N a educação erasm iana, a faculdade privile­
o latim com o língua m orta. Já que não se trata
giada é a literária, em vez da faculdade de conhe­
de conhecer tudo, mas de form ar bem o gosto
cer, com o vimos com Rabelais.
do aluno, um a antologia será m inuciosam ente
preparada em função da elevação m oral do au­
O program a de estudos to r e do seu m érito literário. E a erudição, do
lado do m estre, está aqui a serviço da explicação
Já que se trata de form ar hom ens capazes de
literária. D urkheim (1969: 228) nos lem bra: “A
expressar-se bem , oralm ente e por escrito, já que
erudição, longe de ser um fim em si, está, pois,
se trata de form ar hom ens de bom gosto e de
a serviço de um a o u tra cultura; é um m eio de
bom -senso, devemos ensinar aos jovens as gran­
explicação literária” .
des obras do passado. De fato, nessas obras resi­
dem não só um a língua rica e bela, mas tam bém É po r isso que a literatura ocupa tal lugar
tudo o que é digno de ser conhecido. O ra, só as no plano de educação de Erasm o: é a disciplina
línguas grega e latina dão acesso a esse tesouro. mais altam ente educativa, enquanto as ciências
Em conseqüência, Erasm o recom enda consagrar naturais, a história e a geografia lim itam -se a de­
ao estudo das gram áticas grega e latina um fervor sem penhar um papel subsidiário.
igual. Entre os gram áticos gregos, Teodoro Gaza Além disso, com Erasm o, aparece um con­
atinge o prim eiro lugar e, no segundo, C onstanti- junto de exercícios escolares que serão a base do
no Lascaris; entre os gram áticos latinos, o prim ei­ ensino na França posteriorm ente. Em prim eiro
ro é D iodem o e depois N icolau Perotti, pelo seu lugar, a explicação literária dos textos substi­
zelo até nos m enores detalhes. M esm o reconhe­ tui a expositio dos escolásticos. Ela consiste em
cendo a necessidade da gram ática, Erasm o quer enfatizar a beleza e as curiosidades literárias do
que o núm ero de suas regras sejam tão reduzido texto, em sublinhar a sua elegância, os seus arca­
quanto pertinente, pois a aptidão de expressar- ísmos e os seus neologismos, assim com o os tre ­
96 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Quadro 3.1 As duas grandes concepções educativas do século XVI

Rabelais Erasmo

Dimensão crítica Crítica da escolástica, que ele julga arcaica, Crítica da escolástica que ele julga arcaica,
superada, ineficaz, por dirigir-se apenas à superada, ineficaz, por dirigir-se apenas à
inteligência verbal. inteligência verbal.

Concepção básica Concepção naturalista que repousa sobre a Concepção cultural, civilizada, centrada nos
ideia de que, à semelhança da natureza, o prazeres delicados e nos refinamentos da vida
homem é também bom e generoso. civilizada e culta.

Qualidades humanas Energia, paixão, força, expansão, livre Elegância e polidez, refinamento do espírito,
dominantes expressão, que se exprimem em atividades bom gosto e bom-senso, autodomínio e boas
intensas, em ações em que o homem se volta maneiras.
para o mundo da natureza.

Princípios educativos, • A educação deve favorecer a livre expressão • A educação deve favorecer a imitação e a
finalidades e ideal e a livre expansão de todas as faculdades aprendizagem dos melhores modelos de cultura
educativo humanas: é preciso formar homens completos e de civilidade.
(cabeça e corpo).
• Ela deve formar um intelecto perspicaz, o
• Contra a disciplina, contra tudo o que refreia, bom gosto e o bom-senso, a capacidade de
cria limites e reprime. expressar-se bem, tanto oralmente quanto por
escrito.
• 0 ideal rabelaisiano: o homem que
desenvolveu ao máximo todas as suas • 0 ideal erasmiano: o homem de intelecto
faculdades, o Gigante. A ciência não é nada perspicaz, culto e refinado.
mais do que o grande saber, o desenvolvimento
máximo de todas as capacidades humanas.

Meios Aprender tudo, submeter-se a todas as Aprender principalmente com os grandes


experiências, pôr-se em contato direto com as autores clássicos, aprender as línguas antigas: o
coisas da natureza, conhecer todos os livros grego e o latim. Aprender com aqueles que têm
que falam das coisas. uma linguagem apurada.

Concepção do saber A ciência é a síntese viva de todos os Essencialmente, a literatura clássica.


que o aluno deve conhecimentos: ela é ao mesmo tempo
aprender erudição, literatura, conhecimento das coisas,
do mundo, da natureza.

Papel do mestre A erudição é um fim em si. 0 mestre deve A erudição não é um fim em si, mas um meio de
saber tudo, a fim de ser capaz de ensinar tudo explicação literária. 0 mestre deve saber tudo para
ao aluno. poupar ao aluno a obrigação de aprender tudo.

chos obscuros ou criticáveis. Q uanto ao aluno, Em resum o, vemos na im portância excepcio­


este deve anotar cuidadosam ente em um caderno nal atribuída à literatura o sinal de um a grande
as expressões felizes e as frases bem-sucedidas revolução m oral e intelectual no Renascim ento.
(DURKHEIM , 1969). Além disso, insiste Erasmo Uma sociedade que se desenvolve, se aperfei­
(1992), em m atéria de eloqüência, ler não basta; çoa e se enriquece, rejeitando a violência e as­
é preciso exercitar sua pena, escrevendo em ver­ p iran d o aos costum es civilizados e à polidez. O
so, em prosa e em cada gênero de composição. livro de Erasm o, D e civilitate m orum puerilium ,
Desconhecidos na Idade M édia, a com posição e a crítica de Rabelais contra a severidade dos
escrita e o exercício de estilo farão parte, dora­ professores “sorbonnogros” m ostram esse refi­
vante, do program a educativo do jovem aluno. nam ento dos costum es. Tal im agem de socieda­
3 O Renascimento e a educação humanista 97

de polida, rica e benevolente se oferecia então à É po r isso que, para desenvolver o gosto e o
visão de todos, com o um m odelo relativam ente refinam ento, a A ntiguidade greco-rom ana e seus
perfeito: escritores aparecem a Erasm o com o os educado­
[...] Era o mundo da nobreza. [...] E a res por excelência das sociedades (1992: 233).
polidez das cortes que Erasmo se pro­
põe a difundir no seu De civilitate; é A presentam os sucessivam ente as duas gran­
o que ele nos diz já no começo do seu des concepções educativas que dom inam o sé­
tratado. O jovem Eudêmon, produto da culo XVI: um a representada p o r Rabelais, que
nova educação, nos é apresentado como encarna o ideal do erudito, enquanto a o u tra é
um jovem pagem. E o que é a Abadia de
representada p o r Erasm o, que personifica o ide­
Thélème senão uma sociedade de gen-
tis-homens e gentis-donas, mas onde a al do fino letrado. Vamos encontrar, no Q uadro
nobreza intelectual está em um plano 3.1, um a breve com paração que retom a os p rin ­
semelhante ao da nobreza de sangue? cipais elem entos desta apresentação.
(DURKHEIM, 1969: 232-233).

Conclusão

O Renascim ento lançou as bases da educação hum anista


do hom em m oderno. Vimos com o, sob o efeito de um a ren o ­
vação geral da cultura, Erasm o e Rabelais - assim com o vá­
rios outros hum anistas dos séculos XV e XVI - contribuíram
am plam ente para o fim da educação escolástica, m ostrando
que esses m étodos antigos eram contrários ao espírito de um
m ovim ento novo, que visava, na sua aspiração mais pro fu n ­
da, a libertação do hom em , a realização de um ideal de ação
com binado com um ideal de conhecim ento. Essas doutrinas,
observa entretanto D urkheim (1969: 261), continuam sendo
“sistemas de ideias, concepções inteiram ente teóricas, planos
e projetos de reconstrução”. N o que se refere à escolarização
das massas e à organização dos estudos, às práticas pedagó­
gicas e às m aneiras concretas de dar aula, é forçoso adm itir
que o aporte dessas doutrinas para nós é reduzido. Rabelais é
um hum anista conhecedor dos problem as do seu tem po, um
grande viajante e um observador atento dos seus contem po­
râneos, um leitor assíduo dos Antigos e um m édico experien­
te, mas é com o erudito que ele aborda a educação. Erasmo,
por sua vez, escreveu certam ente o De pueris e o D e ratione
studii-, interessou-se pela prim eira infância e propôs, para os
jovens entre dez e quinze anos, um plano de estudos rechea­
98 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

do de finas intuições e de observações psicológicas p ertinen ­


tes, mas é m uito mais com o hum anista e filósofo que ele vê a
educação. Seu program a de estudos se dirige prim eiram ente
e antes de tudo a um a jovem elite que irá dedicar-se ao estu­
do. Erasm o visa sobretudo o hom em , e se a infância solicita
o seu interesse, é porque um a infância bem -educada prepara
o acesso à mais alta faculdade do hom em : a razão (MAR-
GO LIN). Para ver essas doutrinas se realizarem em escala
concreta, passarem pela difícil prova da realidade escolar, e
para ver instalar-se um a série de conselhos práticos, regras e
m étodos de ensino sistemáticos, em outros term os, para ver
surgir a pedagogia, terem os de esperar o século XVII, que
será objeto do próxim o capítulo.
Acreditam os ter m ostrado, no decorrer deste capítulo,
toda a im portância da educação hum anista na evolução das
ideias e das práticas pedagógicas. M as essas ideias não per­
tencem apenas ao passado. Os hum anistas do Renascim en­
to, através de suas obras, seus sonhos e suas aspirações, nos
falam ainda hoje; eles são um a digressão obrigatória, sem
a qual existe o sério risco de passarm os ao largo do deba­
te atual sobre a escola e a cultura, das questões relativas à
cultura geral, da form ação fundam ental e daquela - m uito
mais com plexa - que tem a ver com a transm issão de um a
herança cultural.

Resumo

O período que estudam os neste capítulo cobre cerca de


dois séculos e m eio de história (de m eados do século XIV
ao fim do XVI). Esse período é decisivo pelo fato de ter
lançado os fundam entos de um a cultura secular e as bases
da educação do hom em m oderno. N a prim eira parte, por
m eio de um a recapitulação geral, colocam os em evidência
o papel central que a cultura do Renascim ento atribui à n a­
tureza e ao hom em na busca de novos m odelos de vida. A
segunda parte incidiu sobre as grandes correntes de pensa­
m ento que contribuíram para renovar as ideias da época: a
Reform a protestante e a C ontrarreform a católica, o m ovi­
m ento hum anista e o rápido desenvolvim ento das ciências e
das técnicas. Exam inam os, tam bém , o que designam os com o
3 O Renascimento e a educação humanista 99

ien- “experiências de descentram ento”, experiências que tran s­


iè a form aram profundam ente a representação do m undo e do
:nte lugar do hom em no universo, e vimos com o foi abordado
stu- o problem a da educação em toda a sua am plitude. N a ter­
cita ceira parte, pretendem os m ostrar que a educação se to rnou
>ara um a prioridade para as m entes mais esclarecidas da época;
AR- daí, a reflexão dos grandes pensadores do tem po e a ren o ­
cala vação das ideias sobre a educação. A presentam os duas das
ir, e grandes doutrinas educativas: a corrente enciclopédica de
as e Rabelais e a corrente hum anista (ou literária) de Erasm o.
ver N a conclusão deste capítulo, lem bram os que o hum anism o
que do Renascim ento continua sem pre pertinente para refletir
sobre um dos grandes desafios da educação contem porânea:
ulo, a transm issão cultural.
das
per- Questões
len-
1) Quais são as relações que existem entre o ideal educa­
nos
tivo de Rabelais e sua concepção da ciência?
sem
eba- 2) Para E rasm o, a educação deve form ar o aluno, pon-
as à do-o em c o n tato com os m elhores m odelos da litera tu ­
luito ra e da cultura. Por quê?
um a 3) C om pare as duas grandes concepções educativas na
época do Renascim ento: um a representada por Rabe­
lais, a o utra p o r Erasm o. Quais são os pontos de sem e­
lhança e de diferença?
4) Os hum anistas foram grandes reanim adores da cul­
:a de tu ra antiga e contribuíram para um a m aior difusão do
XIV saber. D efenda esse enunciado, citando exem plos per­
e ter tinentes.
?ases
5) Q ual é, segundo M argolin, o objetivo prim eiro da
, por
educação hum anista no Renascim ento? Desenvolva sua
:ncia
resposta.
à na-
ia. A
ensa- Atividade de aprendizagem
ca: a
novi- Referindo-se ao capítulo 3 e às notas de curso, com pare
:ias e as concepções educativas de Rabelais e de Erasm o em função
:omo dos principais elem entos citados no Q uadro 3.1.
100 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

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Hachette. intellectuel de Jean Pic de La Mirandole. Quebec:
Presses de 1’Université Lavai.
4
O século XVII e o nascimento da pedagogia
Clermont Gauthier

Objetivos de aprendizagem

Após a leitura deste capítulo, você deveria ser capaz:

• de explicar os fatores que conduziram à emergência


da pedagogia;

• de definir os conceitos de educação, de ensino, de


escola e de pedagogia, tais como são apresentados nes­
te livro;

• de descrever os principais elementos que caracteri­


zam a pedagogia como discurso e prática de ordem.
102 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Introdução

Desde o prim eiro capítulo desta obra, abordam os vários


conceitos - tais com o educação, ensino, escola - por meio
de filosofias ou ideologias tão variadas, apesar de com ple-
m entares, quanto o sofismo, o cristianism o e o hum anism o.
Se, no decorrer das épocas passadas, a educação se define
pela im plem entação de certo núm ero de elem entos, cujos
conteúdos e m étodo form am o essencial, a dim ensão peda­
gógica ainda não é aí fundam ental. Será necessário esperar o
século XVII para que essa dim ensão seja levada em conside­
ração de m aneira sistemática.
Chegam os aqui, p o rtan to , a um ponto de articulação na
nossa viagem sobre a evolução das ideias e das práticas pe­
dagógicas. Este capítulo m ostra o conceito de pedagogia que
vam os arrim ar nos conceitos considerados anteriorm ente. A
partir do que se passa nas escolinhas do século XVII, esta­
m os em condições, efetivam ente, de descrever um fenôm e­
no novo, um a preocupação ausente até então, posicionando
a prática de ensino, sua organização e seus m étodos no âm a­
go de um a reflexão inédita. Essa preocupação, a pedagogia,
é um a reflexão consciente e ordenada sobre a m aneira de
fazer e de organizar a classe. Ela deriva, entre outros aspec­
tos, da aparição de um cuidado m oral em relação à infância
e de um aum ento do núm ero de alunos e de escolas. Ensino
sim ultâneo, gestão do tem po e do espaço, enquadram ento
da criança e organização dos saberes... além de filósofos e
pedagogos obstinados, tais com o C om enius (1592-1670),
C. Dém ia (1637-1689), J.B. de La Salle (1651-1719) e J. de
Batencour vão aperfeiçoar diversos procedim entos com o
objetivo de responder a essa nova necessidade de instruir e
educar grupos de alunos.
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 103

4.1 Alguns marcos para compreender ofício, que não se com para a nenhum o u tro no
o caminho percorrido seio das sociedades tradicionais: o de docente.
O ofício dos sofistas, ao contrário, po r exem plo,
Já percorrem os boa parte do cam inho. Va­ ao dos artesãos, não prepara para nenhum outro
mos rever os seus principais m arcos para nos im ­
ofício preciso. C om o se sabe, o artesão, com o
pregnarm os m elhor do respectivo conteúdo.
o ferreiro, aprende o seu trabalho po r im itação
N os capítulos precedentes, vimos que toda e repetição, em contato com o u tro artesão, que
sociedade educa, no sentido em que transm ite às por sua vez tam bém o aprendera de outro m estre
gerações jovens um a tradição, costum es, m anei­ e assim p o r diante. Esses ofícios, de certa form a,
ras de fazer. N a verdade, para J. M oreau, toda fazem parte da tradição. Ao contrário, o ofício
sociedade, m esm o aquela dita tradicional, exer­ de sofista, em vez de m ostrar aos outros um ofí­
ce um a função educativa ao transm itir, de m odo
cio aprendido por im itação e repetição, consis­
m ais ou m enos consciente, “as suas instituições e
te, de preferência, em ajudar o o u tro a aprender
as suas crenças, seus conceitos m orais e religio­
a pensar. O ra, pensar é um a atividade que não
sos, seu saber e suas técnicas” (MOREAU, 1966:
se aplica a um a única ocupação, mas a todos os
1). Essa transm issão se faz de m aneira inform al,
problem as da vida. G randes viajantes, os sofistas
>em que ninguém seja oficialm ente designado
para essa tarefa. Ela se realiza de m odo anônim o encontraram m atéria de reflexão em tudo o que
por um a espécie de integração e am álgam a dos estava à sua volta; questionaram a tradição, in­
diversos ingredientes - tais com o valores, costu­ terrogaram os fundam entos da verdade, da justi­
mes e hábitos - no crisol social. ça, da beleza, da política e da educação. Eles re ­
fletiram no que poderia ser um hom em instruído,
O utro aspecto é que, se todas as sociedades
isto é, aquele que tivesse atingido o m áxim o da
educam , nem todas ensinam , necessariam ente. O
sua plenitude (Paideia).
ensino com eça realm ente com os gregos: os p ri­
meiros que se separam da tradição e questionam D eve-se n o tar, e n tre ta n to , que, apesar de
a natureza, a sociedade. Região de encruzilhada, tere m in v en tad o o ofício de do cen te, de terem
a Grécia é um espaço de m igração dos hom ens. ensinado, os gregos não refletiram sistem atica­
Vários estrangeiros ali perm anecem regularm en­ m ente no ensino, nas m aneiras de organizar a
te, vários gregos viajam por to d a a parte nas classe e transm itir os conhecim entos. N a verda­
regiões vizinhas, de m odo que não será surpre­ de, não encontram os entre eles nenhum tratado
endente ver que esse povo viveu, sem dúvida, de pedagogia. A república, de Platão (1966), é
o pluralism o de m aneira trágica. Efetivam ente, mais um tratad o sobre a educação em geral do
o contato dos gregos com os outros povos, as que um a obra sobre a m aneira precisa de ensi­
outras culturas e as outras tradições, teve com o nar e de organizar a classe. Se os gregos não es­
conseqüência incitá-los a refletir sobre a sua p ró ­ creveram tratados de pedagogia, é porque sem
pria tradição, e p o rta n to sobre a sua visão da dúvida não sentiram necessidade disso. M esm o
verdade, da justiça, da beleza, de governar a ci­ se falamos de escola entre os gregos, devem os
dade e da educação da juventude. lem brar que ela é algo com pletam ente diferente
Os sofistas dão início a essa reflexão. Com o dos vastos edifícios repletos de alunos de hoje.
prim eiros professores, eles exercem um novo Por exem plo, o núm ero m áxim o de alunos na es­
104 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

cola de Isócrates, célebre na época, não passava magistro seja de Santo Tomás de Aquino (1983) naliza*
de nove, e a m édia era de cinco ou seis. Com tão ou de Santo A gostinho (1988) - são escritos no memb
poucos alunos, principalm ente rapazes reunidos singular, isto é, abordam a questão da educação progri
em to rn o de um m estre, não há razão de pensar num a perspectiva de preceptorado (um m estre m enu
em verdadeiros problem as de disciplina, tão es­ com o seu discípulo) e não visando esclarecer, TRLN
treito e pessoal era o contato entre professor e para um professor, a m aneira de organizar o seu Ei
alunos. Assim, não era necessário refletir sobre a ensino com um grupo. N ão será surpreendente morrM
pedagogia com o tal, pois ensinar, em um contex­ constatar que “o ato essencial e o regim e norm al manií
to de “p re c e p to ra d o c o le tiv o ” com o esse, não da pedagogia m edieval será a leitura (lectio)” sobre
provocava m uitos problem as de organização. (PARÉ; BRUNET & TREMBLAY, 1933: 111). mas c
N ão é, pois, surpreendente a afirm ação de M ar­ M ais ainda, parece que na Idade M édia não se grane
rou (1948: 221) segundo a qual essa pedagogia é encontra nenhum a reflexão sistem ática sobre a õcar
rotineira e elem entar. Ensinar se lim itava então a m aneira de ensinar. os ItH
decom por o conteúdo e a transm iti-lo; isso não Assim, entre a reforma carolíngia com dar a
exigia habilidades pedagógicas especiais. A que­ seus ‘capitulares’, aliás muito primitivos,
e os primeiros regulamentos universi­
le que sabia ler tin h a a possibilidade de im p ro ­
tários de Paris ou de Bolonha depois
visar-se m estre-escola. Veremos que tu d o será de 1200, apesar de certa uniformidade
m uito diferente no século XVII. de programa e de método, encontra­
mo-nos em um período de improvisa­
Vimos tam bém que o ensino e a escola são
ção, de iniciativa, de mobilidade, em que
duas coisas distintas: pode-se, p o rtan to , ensi­ as influências soberanas e gerais dos pa­
nar, m esm o sem escola. N a verdade, só na Idade pas, dos concílios, dos príncipes e dos
M édia aparece a escola. Esta se define, segundo imperadores, são de ordem moral mais
D urkheim (1969), com o um am biente m oral or­ do que institucional, e se expressam em
exortações mais do que em regulamen­ que
ganizado, isto é, reúne sob o m esm o teto vários
tos, do ponto de vista seja administra­ aux:
m estres que trabalham com o m esm o objetivo: tivo, ou relativamente à matéria e aos riad
converter os alunos ao cristianism o. M as, assim métodos de ensino (PARÉ; BRUNET & recc
com o durante a A ntiguidade, a pedagogia ainda TREMBLAY, 1933: 56).
a ed
não era a principal preocupação da escola na Ida­ Pode-se, pois, afirm ar que os procedim entos gera
de M édia. Os grandes pedagogos desse período pedagógicos são pouco desenvolvidos na Idade dos
(por exem plo, A belardo e Santo Tomás), com o M édia, pois cobrem apenas algum as facetas do Rai
tam bém os da A ntiguidade, são antes de tudo ensino, tais com o ler, copiar, aprender de cor, uni
pensadores que lecionam : em vez de se lim itarem com entar os autores clássicos. N ão se encon­ diri
a ensinar um saber produzido po r outros, eles tram nem deveres nem sistem a de em ulação pcw
ensinam o saber que criam. Até se poderia afir­ (D U R K H EIM , 1969: 303). Além disso, esses de
m ar que eles são pedagogos p o r acidente, p o r­ processos pedagógicos se lim itam em prim eiro nis
que ensinam e exercem a sua “arte pedagógica” lugar e principalm ente ao conteúdo e servem à soè
com m uito talento. M as não se encontram tra ta ­ lógica da disciplina a ensinar. Enfim , esses p ro ­ q™
dos de pedagogia na Idade M édia. Os textos que cessos são m uitas vezes im provisados, e não fa­ gr*
poderiam equiparar-se a isso - pensam os no De zem parte de um regim e uniform e e institucio­ un
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 105

nalizado. Estão ligados às iniciativas de certos Em suma, querem os observar que, apesar das
m em bros do clero, e não são o resultado de um várias aquisições no cam po da educação a partir
progresso in stitu cio n al que e n q u a d ra e sedi­ dos gregos, passando pela Idade M édia e pelo
m enta os m odos de fazer (PARÉ; BRUNET & R enascim ento, ainda não houve pedagogia no
TREMBLAY, 1933: 56). sentido estrito da palavra. N a verdade, as socie­
Enfim, vimos que o Renascim ento foi um dades tradicionais educaram seus povos, sem te ­
m om ento im portante na história tan to da h u ­ rem im plem entado reflexão pedagógica, ensino
m anidade quanto da educação. V ários discursos ou escola. Tendo inventado o ensino, os gregos
sobre a educação foram redigidos nessa época, não fazem a reflexão pedagógica avançar. Do
mas tinham o defeito de lim itar-se à doutrina, às m esm o m odo, a Idade M édia deu nascim ento à
p-andes finalidades; visavam principalm ente cri­ escola, mas não fez progredir a reflexão sobre
ticar a escolástica. Preocupavam -se pouco com a pedagogia. Os pensadores do Renascim ento
os meios de ensino, com as m aneiras precisas de favoreceram o fim da Idade M édia e da esco­
dar aula. lástica, mas não tinham igualm ente preocupação
Certamente, os grandes humanistas do pedagógica. Só no século XVII aparecem um dis­
século XVI - Erasmo, Budé, Rabelais curso e um a prática form alizados que podem ser
e, mais tarde, Montaigne - lançaram qualificados de “pedagogia”.
muitas ideias novas na área pedagógica.
Mas, apesar de terem conseguido arrui­ O objetivo deste capítulo consiste em m os­
nar a filosofia escolástica, eles não che­ tra r que o século XVII traz algo de novo na p rá­
garam a exercer, sobre as próprias insti­ tica do ensino: o m étodo, isto é, a pedagogia.
tuições de ensino, uma influência direta Por pedagogia entendem os aqui a codificação de
(HUBERT, 1949: 48).
certos saberes próprios ao docente, isto é, um
Pensemos po r um instante em M ontaigne, conjunto de regras, de conselhos m etódicos que
que escrevia na to rre do seu castelo de Borde- não devem ser confundidos com os conteúdos a
iu x ; apesar de ter sido classificado pelos histo­ ensinar, cuja form ulação visa o m estre para que
riadores entre os grandes pedagogos, é forçoso o aluno aprenda um acervo m aior de conheci­
reconhecer que ele escreveu m uito pouco sobre m entos, mais depressa e em m elhores condições.
i educação, e sua produção é um a crítica m uito
jieral. Assim, é norm al constatar que os discursos
io s grandes pedagogos do R enascim ento, com o 4.2 A pedagogia em duas ilustrações
Rabelais, Erasm o e M ontaigne não têm função
Para ter um a boa ideia do tem a que vamos
utilitária. Escritos po r um a elite que não ensina,
explorar neste capítulo, exam inem os para co­
dirigem-se em prim eiro lugar a essa elite e res­
pondem às suas preocupações: as ideias. Em vez m eçar duas ilustrações1. N elas encontram os o
de discursos de docentes encarregados de adm i­
nistrar grupos de alunos em um a classe, trata-se 1. A pintura de A. van Ostade encontra-se no Museu do Louvre,
sobretudo de reflexões gerais sobre a educação, em Paris; por sua vez, a segunda ilustração é de Giovanni Ga-
que se inscrevem - exatam ente com o entre os gliardi e representa João Batista de La Salle e a primeira escola
dos Irmãos, na Rue Princesse, em Paris. Por amável autoriza­
gregos e os intelectuais da Idade M édia - em ção da Casa Generalícia dos Irmãos das Escolas Cristãs, em
um a perspectiva de preceptorado. Roma.
106 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

essencial daquilo que procuram os dem onstrar. O contraste entre duas ilustrações da mesma
Ambas pertencem ao século XVII e m ostram o época, o século XVII, sobre o m esm o tem a - en­
ensino nas classes da época. A prim eira se inti­ sinar - , é estranho e im pressionante. E com o se
tula O mestre-escola e foi pintada por Van Os- um a reviravolta das m entalidades tivesse ocorri­
tade (Figura 4.1), enquanto a segunda m ostra os do sobre a m aneira de fazer a escola. Ao docente
Irm ãos das Escolas Cristãs trabalhando em um a “n atu ral” da prim eira ilustração, que aprendeu
classe (Figura 4.2). As duas obras apresentam pela im itação dos seus m estres de ou tro ra, su­
um contraste im pressionante. A p intura de Van cede o outro docente, m etódico e organizado,
O stade m ostra um velho m estre, com a palm a­ que edificou em piricam ente um novo “saber-en-
tória na m ão, interrogando um aluno po r vez, sinar” que cham arem os aqui de pedagogia. En­
enquanto um a quinzena de outros, de idades sinar necessita, doravante, além do dom ínio uni­
variadas, se dedicam a todo tipo de ocupações, cam ente do conteúdo a transm itir, a instalação
brincam ou brigam . O local, um a espécie de p o ­ de um a série de dispositivos que vamos explorar
rão, é sujo e está com pletam ente em desordem . mais adiante neste capítulo. Essas m udanças não
Em contrapartida, a o u tra ilustração m ostra ape­ apareceram da noite para o dia, mas são o resul­
nas parcialm ente um a classe, na qual crianças tado do efeito com binado de vários fatores que
da mesm a idade e do m esm o sexo2 estão de uni­ convém examinar.
form e, sentadas em seus lugares, cada um a com
um livro na m ão, concentradas em executar uma
tarefa dirigida pelo m estre a todos sim ultanea­
4.3 Alguns fatores que influenciaram
m ente. Vê-se, na parede, um m apa-m úndi entre o aparecimento da pedagogia e suas
duas imagens sacras dispostas sim etricam ente e, conseqüências
diante dos alunos, encontra-se João Batista de
4.3.1 Os fatores
La Salle em com panhia de dois outros mestres.
Apesar do núm ero im ponente de crianças nessa A Reforma Protestante
classe - p ro v a v e lm e n te em to rn o de 70 a lu ­
Em 1517, M a rtin h o L utero (1483-1546),
nos a ordem , a lim peza e a calm a parecem rei­
teólogo e religioso alem ão, afixa as suas 95 te ­
nar. O Q uadro 4.1 nos perm ite perceber m elhor
ses nas p o rtas do castelo de W ittenberg, para
a diferença entre essas duas ilustrações.
p ro te sta r no tad am en te co n tra a venda das in ­
dulgências. C om o sabem os, as indulgências ti­
nham p o r função g aran tir a rem issão das penas
2. Em seu Traité de l ’éducation des filies (Tratado da educação
a que estavam sujeitos os cristãos que haviam
das moças), Fénelon (1651-1715) defendia a posição de que
elas recebessem uma educação à semelhança do que ocorria pecado. Assim, a recitação de preces e a assis­
com os rapazes. Na contramão das ideias de seu tempo, ele tência aos ofícios religiosos, p o r exem plo, da­
era a favor de que a mulher fosse instruída porque isso fortifi­
vam indulgências que perm itiam aos pecadores
cava a fragilidade de sua mente e ajudava a encarregar-se, em
melhores condições, da administração da família, do bem-estar abreviar a sua potencial perm anência no p u r­
do esposo e da educação dos filhos. Entretanto, foi apenas no gatório. O ra, um dom inicano alem ão de nom e
século XX que as moças tiveram a real possibilidade de receber
Tetzel se to rn a ra célebre graças ao com ércio das
uma educação semelhante à dos rapazes e, mesmo assim, tal
prática ocorreu de maneira variável segundo os países. indulgências... que ele vendia com a finalidade
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia

lesma Figura 4.1 O mestre-escola


- en-
no se
:orri-
cente
■ndeu
i, su-
zado,
:r-en-
l En-
) uni-
lação
•lorar
s não
■esul-
s que

m Fonte: Parias, 1981: 242.


s
Figura 4.2 João Batista de La Salle e os
Irmãos das Escolas Cristãs

>46),
5 te-
para
is in-
as ti-
>enas
viam
issis-
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lores
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lome
a das
dade
108 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Quadro 4.1 Uma comparação entre as duas ilustrações

Elemento Figura 4.1 Figura 4.2

0 método • Ensino individual e modo ocupacional. • Ensino coletivo (simultâneo) e modo funcional.
• Sem método. • Metódico.
• Desordem. • Ordem absoluta.

0 mestre • 0 mestre é pobre (deve fazer outra coisa • 0 mestre apenas ensina: é um profissional.
para ganhar a vida).

O saber do mestre • 0 saber docente se define pelo conteúdo • 0 saber docente difere do conteúdo a ensinar.
a ensinar. Aquele que sabe ler pode
• Ensinar é mais do que ministrar um conteúdo, é
ensinar a ler.
também organizar o ambiente total da classe.

A formação do • 0 mestre é abandonado a si mesmo. • Mestre supervisionado. É o início da formação dos


mestre Ensina como viu fazer, por imitação. mestres.
• Docente “natural”, sem consciência de si • Docente formado em um verdadeiro ofício.
mesmo.

Os alunos • Crianças de idade variável e sexo • Crianças pequenas (mesma idade e mesmo sexo).
diferente.
• Muitas crianças.
• Poucas crianças na classe.
• Crianças agrupadas fazendo juntas a mesma coisa
• Crianças fazendo várias coisas diferentes ao mesmo tempo.
individualmente.
• Roupas das crianças: o uniforme.
• Roupas da época: diversificadas.

A classe • 0 local serve para outra coisa; espécie • 0 local serve unicamente para o ensino. Local
de depósito de loja. especializado (exemplo: mapas, carteiras).
• Não há quadro. • 0 quadro de leitura aparece com o ensino simultâneo.

Relação professor- • Relação do tipo crueldade/afeição, bater/ • Relação do tipo humilhação/recompensas; o “castigo”.
alunos abraçar; correção física: a palmatória.
• Relação racional: escala graduada das recompensas
• Relação Im pulsiva”. e das punições, distância afetiva, exclusão da relação
afetiva.

de prosseguir a construção da Basílica de São consciência, e não mais segundo os ensinam en­
Pedro em Rom a. Isso significava, no fim das tos da Igreja. Para o protestantism o, m ovim ento
contas, que os ricos podiam co m p rar o céu, e religioso proveniente da influência de Lutero,
L utero se opôs a isso energicam ente. O p ro te s­ cada indivíduo deve ter a capacidade de inter­
to de L utero m arcou o início de um m ovim en­ pretar as Escrituras. É preciso, pois, suprim ir os
to m uito im p o rtan te, a R eform a, que resultou interm ediários e não deixar a autoridade papal
num cism a da Igreja. interpretá-las no lugar de cada um.
N o essencial, L utero afirm ava que, em m até­ Se a tipografia não tivesse sido inventada,
ria de fé, só as Sagradas Escrituras têm au to rid a­ é provável que as ideias de L utero não teriam
de, e não o papa. Segundo essa doutrina, Deus tido tanta repercussão em tão pouco tem po, e,
concede ao hom em a sua Palavra (pela Bíblia) ao invés de tom ar a form a de um m ovim ento de
e a sua G raça (pela fé). O hom em vive a sua fé reform a em escala europeia, elas seriam apenas
e recebe a Palavra divina na intim idade da sua um a revolta passageira.
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 109

Já que agora todos podiam in terpretar as Es­ nas escolas católicas. O s católicos m antinham
crituras, tornava-se pois essencial traduzir a Bí­ um a atitude principalm ente defensiva, assegu­
blia nas línguas nacionais. L utero traduziu, p o r­ rando-se de que os m estres nas paróquias fos­
tanto, a Bíblia para o alem ão. E ntretanto, m esm o sem autênticos católicos (PARIAS, 1981, t. II:
que exista um a tradução da Bíblia na língua do 257). E n tretan to , po sterio rm en te, no fim do
país, é preciso ainda que as pessoas possam lê-la! século XVI, os católicos ad o taram um a atitude
Assim, L utero enfatizou a necessidade de educar mais ofensiva, pois perceberam que não bastava
o povo e pediu a criação de escolas elem entares p regar e ouvir confissões; era necessário esta­
para todas as crianças: belecer um instru m en to ainda mais eficaz para
[...] O direito, para cada cristão, de dom inar as almas. Em conseqüência, eles fun­
interpretar as Sagradas Escrituras não daram tam bém escolas.
pode dispensar a obrigação do ensino
para todos. E preciso que cada um seja Levados pelo exemplo dos protestantes
capaz de ler os textos e de compreender e preocupados em vencê-los no seu pró­
a doutrina, tomada diretamente em sua prio terreno, os católicos se veem impe­
fonte (HUBERT, 1949: 44). lidos a utilizar a leitura como meio de
evangelização (PARIAS, 1981, t. II: 21).
O protestantism o foi, pois, um m ovim ento
determ inante na criação das escolas e na esco­ O exem plo mais eloqüente é a form ação da
larização das massas. Parias (1981, t. II: 252) com unidade dos jesuítas. Estes, soldados de Je ­
indica que, a p artir do m om ento em que os p ro ­ sus Cristo, form ando um a milícia religiosa e d o ­
testantes com eçaram a construir suas igrejas, eles cente, um a com unidade que pronuncia um voto
providenciaram tam bém a construção de escolas de fidelidade ao papa, tinham p o r missão com ­
da sua confissão. bater o protestantism o fora dos m osteiros, isto é,
Devem os n o tar que, nessa época, a imensa no m undo. Os jesuítas queriam dar à palavra do
m aioria da população não sabe ler nem escrever. C risto o lugar que ela tinha antes do advento do
N a verdade, em bora o cristianism o seja um a re ­ protestantism o. Q ueriam dar ao cristianism o um
ligião erudita, a população aprendeu principal­ poder ofensivo que lhe fazia falta, não lim itando
m ente os seus ritos, e não as Escrituras, exceto a religião a um papel reativo às diferentes here­
quanto à elite e ao clero, que se encarregavam sias, mas introduzindo (e enraizando) a religião
de ensiná-las. A Igreja estava aberta a todos (po­ desde cedo no coração das crianças.
bres e ricos) para o conhecim ento das Escrituras, O que suscitou a Ordem dos Jesuítas
mas, para isso, era necessário destinar-se a um a foi a necessidade sentida pela cato-
vocação religiosa. O papa, p o r m eio do clero, licidade de deter os progressos sempre
ensinava à população, mas esta perm anecia anal­ mais ameaçadores do protestantismo.
Com uma extraordinária rapidez, as
fabeta, em sua grande m aioria.
doutrinas de Lutero e de Calvino ga­
nharam a Inglaterra, a Alemanha quase
A C ontrarreform a C atólica toda, a Suíça, os Países-Baixos, a Suécia,
uma grande parte da França. Apesar de
N o início, a R eform a P rotestante não teve todas as ameaças que fazia, a Igreja se
grande efeito sobre a organização do ensino sentia impotente e começava a temer
110 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

que o império do mundo lhe escapas­ ou, com sua m ãe, na colheita e no cultivo da ho r­
se definitivamente. Foi então que, para ta. Evidentem ente, as crianças eram am adas, mas
deter e combater a heresia em melho­ essa afeição não correspondia necessariam ente a
res condições, se fosse possível, Inácio
um a consciência da especificidade da infância,
de Loyola teve a ideia de recrutar uma
que fizesse com que a criança fosse distinguida
milícia religiosa de um gênero comple­
tamente novo. Ele compreendera que do adulto (ARIÈS, 1973: 177). Ariès defende a
tinham passado os tempos em que se sua tese com o exem plo das m iniaturas do século
podia governar as almas do fundo de XII, em que as crianças eram representadas nuas
um claustro. [...] era preciso constituir e m usculosas com o adultos, e tam bém pelo fato
um exército de tropas ligeiras [...]. A de que estavam vestidas com o adultos (p. 53).
Companhia de Jesus foi esse exército Segundo ele, isso é um sinal de que elas são con­
(DURKHEIM, 1969: 267).
sideradas com o adultos de tam anho reduzido, e
O s jesuítas ab riram m u ito s colégios que não com o crianças dotadas de um a psicologia e
conheceram um a grande fama. Por exem plo, de um a identidade próprias.
contavam -se na França cerca de 300 colégios
N o século XVI, começa-se a perceber que,
de jesuítas em 1600 e, no fim do século XVIII, por si só, a infância é um a fase da vida, mas ela é
seu núm ero elevava-se a mais de 1.500. Vários considerada um a fonte de divertim ento. Esse pe­
grandes espíritos, com o Descartes, foram educa­ ríodo seria o da “denguice” ; na família, a criança
dos em colégios jesuítas. Assim, a clivagem entre é então considerada com o um brinquedo encan­
católicos e protestantes acarretou a criação de tador. E m im ada, mas isso não acarreta neces­
escolas. sariam ente ações precisas, orientadas para a sua
educação. Um pouco mais tarde, no século XVII,
O novo sentimento em relação à infância a infância se to rn a um a verdadeira preocupação
m oral. Sua leviandade (sua desordem , seu vício,
Entre os fatores que influenciaram o nasci­ seu pecado) deve ser corrigida. A infância é vis­
m ento da pedagogia, deve-se m encionar tam bém ta durante essa época com o um período negati­
o aparecim ento de um novo sentim ento em re­ vo da vida, que deve ser objeto de tratam ento.
lação à infância no século XVII. Realm ente, a Esse trabalho de cura da infância é assum ido po r
infância torna-se então um a preocupação m oral agentes exteriores à família, os religiosos.
para o adulto. Mas no século XVII aparece um novo
sentimento da infância, que vem do
Segundo Ariès (1973), a visão da infância e,
exterior, dos homens de Igreja, preo­
po r conseguinte, o com portam ento dos adultos
cupados em policiar os costumes. Eles
em relação às crianças, varia ao longo das épocas. se tinham tornado também sensíveis
Segundo esse autor, esse sentim ento pela infân­ ao fenômeno outrora negligenciado da
cia não existia na sociedade medieval. A criança, infância, mas negavam-se a considerar
desde a mais tenra idade, um a vez superado o essas crianças como brinquedos encan­
tadores, pois viam nelas frágeis criaturas
risco de m ortalidade infantil, se m isturava aos
de Deus, que tinham necessidade de ser
adultos; pertencia à sociedade dos adultos. Com preservadas e, ao mesmo tempo, corri­
seu pai, tomava parte nas atividades agrícolas gidas (ARIÈS, 1973: 185).
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 111

hor- Tratava-se, pois, diz Ariès, do início de um (DÉMIA, s.d.) e que era preciso educá-los “pelo
, mas sentim ento sério e autêntico em relação à infân­ estabelecim ento dos catecism os e da disciplina
nte a cia3. Já não era possível, deste m odo, aceitar a le­ das escolas” (CHARTIER; CO M PÈRE & JU-
ncia, viandade da infância. Pelo contrário, era preciso LIA, 1976: 60); caso contrário, a ordem social
;uida corrigi-la. D aí o confinam ento das crianças em seria perturbada. Essa posição era m uito diferen­
ide a instituições que substituíam a família. Sente-se, te daquela do Renascim ento, segundo a qual a
;culo pois, a necessidade de criar escolas, para respon­ escola era principalm ente reservada para a elite
nuas der a esse novo sentim ento m oral em relação à e não era verdadeiram ente útil no plano social.
' fato infância. Em bora a tese de Ariès tenha usufruído Lem brem o-nos de que, para Rabelais, era im por­
53). de elevada reputação durante os anos de 1970, tante saber enquanto a ignorância era algo de
con- ela foi razoavelm ente m odificada posteriorm en­ m au, mas segundo tal postura tratava-se de um a
do, e te (BIDON, 1991). M as um fato perm anece: a valorização do saber pelo saber, e não do saber
gia e im portância m oral atribuída à educação da in ­ em vista de um a utilidade qualquer. Do mesmo
fância no século XVII que, conjugada com o u ­ m odo, no Renascimento, a educação do povo não
tros fatores, estim ulou a educação das crianças e era valorizada, enquanto, de acordo com um a
que,
a criação de escolas. opinião com o a de Dém ia (s.d.), retom ada por
ela é
■e pe- João Batista de La Salle (1951), percebe-se que ela
iança O problem a u rb an o pode ser tam bém um a questão que afeta o povo, e
ícan- que toda a sociedade ganha com a instrução. Essa
O novo olhar m oral sobre a infância incen­ nova visão da utilidade social da escola teve, pois,
eces-
tivou, sem dúvida, os notáveis das cidades a se com o efeito favorecer a educação do povo e, por
a sua
preocupar com a juventude turbulenta e a querer conseguinte, a criação de escolas.
CVII,
corrigir essa situação indesejável. N a verdade,
>ação
nessa época, os jovens desocupados se tornavam ,
rício,
para os burgos, um problem a cada vez mais im ­ 4.3.2. Os efeitos desses fatores
é vis-
portante. Esses jovens eram cada vez mais num e­
-gati- O efeito com binado dos quatro fatores m en­
rosos, vagando pelas ruas, m endigando, ro u b an ­
ento. cionados precedentem ente (a Reform a Protestan­
do, causando escândalo ou m edo entre os habi­
o por te, a C ontrarreform a Católica, o novo sentim en­
tantes. Foi então que apareceu um a nova ideia.
to em relação à infância e o problem a urbano
Charles Dém ia (s.d.) declarou que abrir um a
novo causado pelos jovens) se traduziu, po r um lado,
escola era fechar um a prisão. Essa tese é m ui­
m do p o r um aum ento notável do núm ero de alunos
preo- to im portante, porque, pela prim eira vez, argu-
com a chegada à escola dos filhos do povo, das
. Eles m enta-se sobre a utilidade social da escola. Com
crianças errantes e das mais jovens e, p o r outro
síveis efeito, Dém ia tinha observado que os jovens de
do da lado, por um aum ento do núm ero de escolas.
Lyon, especialm ente os filhos do povo, “estavam
iderar Efetivam ente, C hartier, C om père e Julia (1976)
na últim a libertinagem , p o r falta de instrução”
ncan- sublinham que, no norte da França e na região
aturas de Ile-de-France [região m etropolitana parisien­
de ser 3. É preciso notar, entretanto, que uma preocupação com a in­ se], no século XVII, quatro paróquias entre cin­
corri- fância ainda não é uma teoria: a primeira verdadeira grande Teoria
da Infância será elaborada por Rousseau, no século XVIII.
co tinham um a escola. M ais ainda, esse fenôm e­
112 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

no não se lim ita à França, mas engloba toda a e sólido proveito [...] (COMENIUS,
Europa: 1952: 31).
Essa marcha para a escola se torna uma O u ainda:
corrida em massa no primeiro terço do A fim de aliviar de alguma forma aque­
século XVII. [...] Tal solicitude em re­ les que estão nesse trabalho, dando-lhes
lação aos estudos se verifica no espaço certa facilidade para ensinar com menos
europeu (CHARTIER; COMPÈRE & dificuldade e em menos tempo o que
JULIA, 1976: 294). a juventude deve saber sobre os seus
C om o exem plo, os autores m encionam que Primeiros Princípios (BATENCOUR,
1669, prefácio).
é, entre 1575 e 1625, que se encontra na Polônia
a m aior densidade de escolas paroquiais urbanas Isso significa que ensinar a grupos de crian­
e rurais, além de se instalar um a prim eira rede ças era difícil e que o m estre tinha de enfrentar
de colégios e de academ ias jesuítas. Também m uitos problem as de disciplina, de m otivação,
na Inglaterra, as associações em favor das esco­ de organização da classe etc. Assim, bem mais do
que o dom ínio do conteúdo, essa tarefa exigia A a
las atingem o apogeu e, na França, os colégios
a instalação de um verdadeiro sistema de regras a h a nu
dos jesuítas têm um a popularidade crescente e
e procedim entos, sistema que devia englobar a riâcava
acolhem mais de 4 0 .0 0 0 alunos (CHARTIER;
totalidade da vida da classe. im iq i
CO M PÈRE & JULIA, 1976: 294).
nas (Cl
É para resolver esses problem as de ensino
E n tre tan to - e esse é o essencial da nossa 67). D«
que os m estres-escolas em preenderam a busca de
tese - se há m uito mais crianças de idades d i­ conteú*
soluções. A solução consiste naquilo que cham a­
ferentes que freqüentam a escola durante perí­ dom ím
m os aqui de pedagogia, isto é, o estabelecim ento
odos de tem po mais longos, isso não deixa de receber
de um m étodo e de procedim entos detalhados e
criar problem as pedagógicos porque, até então, um co«
precisos para dar aula. Esses processos implicam
era utilizada um a pedagogia no singular, isto é, e apren
a consideração da organização do tem po, do es­
um a pedagogia em que o m estre recebia sucessi­ Os que
paço, dos conteúdos a serem vistos, da gestão
vam ente os alunos (que são poucos na sua classe) aqueles
disciplinar; em suma, trata-se de um m étodo que
e em que o único saber pedagógico verdadeira­ o u tro n
rege a totalidade da vida escolar, dos m icroacon-
m ente estabelecido consistia em conhecer a m a­ tecim entos aos aspectos mais gerais, da chegada
téria ensinada. O ra, a chegada de um m aior nú­ dos alunos à sua saída, do prim eiro ao últim o dia
m ero de crianças à escola, com frequência mais do ano letivo.
assídua, torna-se o revelador da insuficiência dos
O que é, p o rtan to , a pedagogia? E um dis­
m étodos de ensino, com o m ostram algumas de­
curso e um a prática de ordem que visam con­
clarações de autores da época:
trapor-se a toda form a de desordem na classe. A
A Barca da nossa didática dirigirá a sua questão pedagógica se to rn a então: com o ensi­
proa e a sua popa à procura e à desco­ Mx
nar a grupos de crianças (do povo), durante um rem p n
berta do método que permitirá aos do­
centes ensinar menos e aos estudantes período contínuo, em determ inado local e fazen­
meçam
aprender mais; às escolas ter menos ba­ do de m odo que elas aprendam um acervo m aior
percebe
rulho, menos problemas, menos traba­ de conhecim entos, mais depressa e em m elhores
já não I
lho inútil e mais lazeres, mais prazeres condições?
precisai
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 113

Nós, pessoalmente, temos a audácia de do, com eçou-se a com preender que o ensino é
prometer uma “Grande Didática”, que­ um ofício especializado, que exige a form aliza­
ro dizer, um tratado completo da arte
ção e a aprendizagem de um código. Atribui-se a
de ensinar tudo a todos. E de ensinar de
Charles D ém ia um a das prim eiras tentativas de
tal modo que o resultado seja infalível.
E de ensinar depressa, isto é, sem sus­ form ação de m estres (MARC, apud AVANZINI,
citar nenhuma aversão nem dificuldade 1981: 250). Dém ia, que se inspirou abundante­
entre os alunos e os mestres, mas, antes, m ente na obra de Jacques de Batencour (1669),
com um extremo prazer para ambos. E criou o prim eiro organism o francês de form a­
de ensinar solidamente, e não superfi­ ção de m estres, em 1678. Os Irm ãos das Escolas
cialmente e com palavras, mas promo­
Cristãs, com unidade exclusivam ente consagrada
vendo os alunos a uma verdadeira cul­
tura científica, literária e artística, aos ao ensino, estabeleceram tam bém um a form ação
bons costumes, à piedade (COMENIUS, rigorosa de seus noviços. Os jesuítas, p o r sua
1952: 33). vez, se tornaram célebres pela excelente form a­
A aplicação de um m étodo de ensino cam i­ ção dada aos m em bros de sua com unidade que
nha junto com a form ação dos m estres, pois ve- se destinavam ao ensino. Nesses dois casos, ins-
rificava-se um grande núm ero de queixas sobre taurou-se um a ordem verdadeira nas classes: seja
a má qualidade dos m estres das escolinhas urba­ entre os jesuítas ou entre os Irm ãos das Escolas
nas (CHARTIER; CO M PÈRE & JULIA, 1976: Cristãs, todas as classes se assem elhavam , inde­
pendentem ente de estarem situadas na França,
67). De fato, ensinar era apenas um a questão de
na N ouvelle-France (Canadá) ou em outro lugar.
conteúdo, que se lim itava a exigir do m estre o
dom ínio da m atéria sem que ele fosse obrigado a
receber um a form ação. O docente aprendia com 4.4 A pedagogia como novo saber
um colega, ou, em geral, era deixado a si m esm o metódico sobre o ensino nas escolas
e aprendia na prática (PARIAS, 1981, t. II: 277).
Os que exerciam tal ofício eram m uitas vezes 4.4.1 Um método inspirado na natureza
aqueles que não tinham conseguido encontrar
Ensinar é mais do que sim plesm ente adm i­
outro trabalho.
nistrar um conteúdo, dividi-lo em seqüências
[...] daí uma estranha mistura de ope­
e transm iti-lo; é tam bém preocupar-se com o
rários, ex-soldados, domésticos sem em­
educando. O ensino im plica um m ovim ento em
prego, inválidos de guerra. Ou então
são pessoas extremamente jovens que direção ao outro, o aluno, para com preendê-lo,
se improvisam mestres-escolas, para ter apoiá-lo, dar-lhe aquilo de que ele precisa. Isso
tempo de procurar um verdadeiro ofí­ supõe, pois, um m étodo que vai além das sim ­
cio (SNYDERS, 1971: 301). ples considerações a respeito da m atéria, e que
M as, a partir do m om ento em que ocor­ se interessa p o r aquele a quem o m estre se dirige.
rem problem as de ensino e certos docentes co­ E nquanto o ensino se aplicava a algum as crian­
meçam a refletir sobre seu ofício, a codificá-lo, ças sim ultaneam ente e de m aneira episódica, não
percebeu-se que apenas o dom ínio do conteúdo havia problem as propriam ente ditos, pois o m es­
já não bastava e que a aprendizagem do ofício tre estava suficientem ente p erto dos seus alunos
precisava de um a form ação específica. N o fun­ para ajustar-se, se necessário, e gerir os eventuais
114 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

problem as. M as a p artir do m om ento em que o E, um pouco mais adiante, ele indica o se­ CSZX3
aluno deixa de ser conjugado no singular e se guinte:
to m a um grupo perm anente, tudo m uda e é en­ [Seria necessário tentar] dar às escolas
tão que há razão de p ro cu rar um m étodo para uma organização tal que ela seja, em to­
gerir esse coletivo. N este caso, o subtítulo da dos os pontos, tão precisa quanto a de
obra de C om enius (1952) é revelador. N a verda­ um relógio (p. 79).
- doan
de, “ensinar tu d o a to d o s” im plica não se lim itar M ais ou m enos na m esm a época, os católi­
ao conteúdo, nem trabalhar segundo o m odo de cos, com J. de B atencour (1669), C. Dém ia (s.d.)
preceptorado, mas fazer com que “to d o s” te ­ e os jesuítas seguem a m esm a orientação. Por
nham acesso ao conteúdo, independentem ente exem plo, vem os B atencour (1669: 8) afirm ar
de suas diferenças individuais. C om enius esboça que “tu d o o que é de Deus é segundo a o rd em ”.
já um program a com pleto de pedagogia que só Em suma, o m étodo na pedagogia se inspira
se conjuga no plural e exige um m étodo: a apli­ então na natureza e esta, obra divina, é perfei­
cação de um a ordem cuidadosam ente elaborada, ta aos olhos dos pedagogos do século XVII: in­
a fim de garantir que os alunos aprendam um teiram ente organizada, sem acaso. A pedagogia,
acervo m aior de conhecim entos, mais depressa e com o m étodo inspirado na natureza, ten ta assim
em m elhores condições. conjurar a desordem sob todas as suas form as. E
Para os pedagogos do século XVII, a natureza do m étodo vem o sucesso; e, de acordo com a essa
nos dá o m étodo. Vemos nisso, sem dúvida, a in­ pretensão de C om enius, um resultado infalível. exa
fluência das ideias do Renascim ento. M as é p re­ Esse é, pois, o grande ideal pedagógico que des. e h
ciso com preender que se trata de um a natureza se estabelece no século XV II e seu sucesso é en ­ escoíinh.
bem “sobrenatural” . R ealm ente, para Ratichius tão indiscutível. Efetivam ente, Snyders (1971: alunos n
[Wolfgang Ratke (1571-1635)], é preciso respei­ 289) atribui precisam ente ao m éto d o o sucesso cola do *
tar a obra de Deus, a natureza, e agir segundo da pedagogia dos jesuítas que se elaborou no ndual r«
ela. O ra, esta é essencialm ente harm oniosa. Por século XVII: cada vez
conseguinte, a natureza fornece um m étodo. O caráter mais evidente dos colégios do sua próp
A natureza, inimiga da desordem, se es­ século XVII, e uma das causas do su­
força para ordenar tudo para que tudo cesso obtido pelos jesuítas, foi o esfor­
seja normalmente ensinado e aprendido ço para fazer com que uma juventude
de maneira rápida e precisa (RATICHIUS, turbulenta vivesse de maneira metódica.
apud RIOUX, 1963: 249).
D o m esm o m odo, para C om enius (1952:
4.4.2 As características do método
76), é preciso seguir a ordem da natureza:
Se procuramos saber em virtude de que Vim os que a p edagogia é essencialm ente O en
força o universo, composto de partes m éto d o , isto é, o rd em e c o n tro le m inuciosos que não
tão distintas, se mantém no seu ser, de to d o s os elem en to s da classe. E xam inem os menos »
constatamos que é unicamente pela or­ no funda
agora em d etalh e a natureza desses m ecanism os
dem, que é a justa disposição das coisas
de controle. E preciso com preender que alguns que as a
no espaço e no tempo [...]. E por isso
desses processos de controle podem ter apare­ jam agra
que alguém disse que a ordem é a alma
das coisas. cido em épocas anteriores, mas o que nos pare­ existe a p
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 115

0 se- ce especialm ente im portante é a sua aplicação, e particularm ente dos filhos do povo; as classes
ao m esm o tem po e de m odo sistem ático, e seu são pois mais num erosas. Segundo com entários
icolas efeito conjugado, que deu nascim ento ao que se de J. de B atencour (1669: 49), padre católico
m to- convencionou cham ar de pedagogia. que ensina em Paris, suas classes podiam agru­
a de par cerca de cem alunos. H á, pois, mais crian­
ças que freqüentam as escolas e, p o r isso, um a
O dom ínio do grupo: o ensino sim ultâneo
itóli- m aior possibilidade de agrupá-las de acordo
(s.d.) Em prim eiro lugar, o ensino sim ultâneo im ­ com o seu nível. C om um a classe de cem alunos
Por plica que o m estre possa ver o conjunto do gru­ é difícil im aginar que o m estre receba cada um
rmar po de alunos de um só golpe de vista, a fim de deles sucessivam ente para interrogá-los. Pres­
em ”, m antê-lo sob controle em m elhores condições. sionados pelas exigências de um contexto novo,
spira Situando-se diante da classe, diante dos alunos, os m estres não têm o utra escolha senão inovar.
;rfei- muitas vezes sobre um pequeno degrau cham a­ Relata-se que até m esm o os quadros de leitu­
l: in- do tribuna, o m estre pode dar a sua aula, suas ra nas paredes da sala de aula estão em relação
ogia, instruções a todos os seus alunos, para a execu­ com o desenvolvim ento desse m étodo sim ultâ­
issim ção do m esm o trabalho e, com um simples olhar, neo (CHARTIER; C O M PÈRE & JULIA, 1976:
as. E controlar o funcionam ento do grupo. M esm o 130). Além disso, para que o ensino sim ultâneo
>m a que essa form a de ensino já estivesse presente, se concretize, é preciso que cada criança dis­
vel. por exem plo, na Idade M édia, nas universida­ ponha de um exem plar do m esm o livro, e não
1que des, ela não se encontrava verdadeiram ente nas apenas o m estre, com o ocorria anteriorm ente;
í en- escolinhas, talvez porque o reduzido núm ero de isso só foi possível com a invenção da tipografia,
971: alunos não a justificasse. Efetivamente, o mestre-es- p o r interm édio da qual o livro se to rn a cada vez
:esso cola do século XV ou XVI ensinava de m odo indi­ m enos um objeto de luxo, com o era no tem po
i no vidual recebendo em sua m esa os alunos, um de de Carlos M agno, época em que o consideravam
cada vez, enquanto os restantes se ocupavam por com o um vaso precioso ornado de diam antes. O
ys do sua p rópria conta. livro se to rn a um objeto de consum o usual. Um
d su- m aior acesso à escrita m odificou assim a m anei­
O mestre interroga uma das crianças sob
sfor- a ameaça da palmatória; durante esse ra de ensinar. C om o ensino sim ultâneo, tem os
imde tempo, os outros, de todos os sexos e de agora um a alternativa séria para p ô r fim à escola
dica. todas as idades, dispersos pelos quatro desorganizada e ruidosa, ilustrada pelo quadro
cantos, brincam ou escrevem, leem ou de Van O stade.
brigam uns com os outros (CHARTIER;
COMPÈRE & JULIA, 1976: 111).
A gestão do tem po
ente O ensino sim ultâneo supõe vários elem entos
osos que não estavam reunidos anteriorm ente, pelo N a escola, o m estre deve gerir o em prego
m os m enos no que se refere aos anos iniciais do ensi­ do tem po. O horário é cuidadosam ente p rep a­
m os no fundam ental. Em prim eiro lugar, ele im plica rado de m odo que, desde a chegada dos alunos
guns que as crianças com as mesmas capacidades se­ até a sua saída, não há nenhum tem po m orto
>are- jam agrupadas. Isso é agora possível, depois que no dia. As atividades se sucedem rapidam ente:
>are- existe a preocupação com a educação da infância en trad a, prece, refeição, aulas, m issa, catecis­
116 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

m o etc. A ociosidade, “mãe de todos os vícios”, A gestão do espaço


é vista com o um a fonte de desordem ; convém,
O m estre deve tam bém gerir o espaço: “para
pois, ocupar as crianças em todos os m om en­
evitar a confusão e o barulho na escola, cada
tos (CHARTIER; CO M PÈR E & JULIA, 1976:
criança deve ter o seu espaço” (BATENCOUR,
114). N enhum a etapa do dia é deixada ao aca­
1669: 138). Nesse ponto tam bém , há muitas
so: tu d o é previsto, cronom etrado, preenchido.
diretivas. Em prim eiro lugar, várias recom enda­
C ada atividade se desenrola na hora m arcada, ao
ções afetam a escola em geral: esta deve ser um
m esm o tem po para evitar a coincidência entre
lugar fechado para o m undo exterior, para evi­
elas, para não om itir aspectos im portantes e para
tar qualquer distração que poderia causar desor­
rem ediar o im previsto (JOUVENCY, 1892: 93).
dem . Segundo Batencour (1669), ela deve estar
João Batista de La Salle (1951: 262) recom enda
de preferência afastada da vizinhança, ou ainda,
ao inspetor das escolas que zele para “que não
segundo La Salle (1951), a escola não deve ter
reste tem po para os m estres, depois de terem
janelas a m enos de dois m etros do solo (no texto
levado todos os alunos a fazer a leitura”, e, se
original, fala-se de sete pés).
houver um núm ero m enor de alunos na sala do
que o necessário para preencher o tem po, o mes­ O utras recom endações se referem à organi­
tre deverá fazer com que “cada aluno leia mais zação da sala de aula, cujo espaço é cuidadosa­
ou m enos tantas linhas quantas necessárias para m ente dividido:
ocupar todo o tem po que deve ser utilizado para Cada um dos alunos em particular terá
ler nessa classe, não devendo haver tem po inútil o seu lugar fixo, e nenhum deles deixará
ou mudará o seu, a não ser por ordem
em nenhum a classe”.
e consentimento do inspetor das escolas
Essa obsessão com o h o rá rio é, segundo (LA SALLE, 1951: 251).
D urkheim (1969), o que explica, em parte ao Essa divisão do espaço é regulam entada se­
m enos, o enorm e sucesso da pedagogia dos je­ gundo toda um a série de critérios precisos. Por
suítas; efetivam ente, estes exigiam que os alu­ exem plo, a cada um é atribuído um lugar fixo: os
nos estivessem perm anentem ente ocupados. Para prim eiros aos alunos mais adiantados, os que es­
evitar que ficassem inativos, inventaram os deve- tudam latim ; depois, outros lugares são previstos
res escritos: para aqueles que aprendem a escrever; finalm en­
Desconhecidos no tempo da escolásti- te, de cada lado da sala, instalam -se aqueles que
ca, os deveres escritos tiveram um belo leem sem escrever. A essas grandes categorias se
destino com os jesuítas. Foi com eles
acrescentam subdivisões, lugares atribuídos se­
que nasceu esse sistema pedagógico que
torna o dever escrito no tipo do dever gundo as capacidades, segundo a riqueza (por
escolar [...]. Desde as classes inferiores, m otivos higiênicos!), ou ainda lugares especiais
o aluno devia fazer por dia pelo menos para os novatos. Os alunos punidos m erecem o
dois deveres latinos, sem prejuízo dos banco da infâm ia (ou banco dos ignorantes), si­
deveres gregos. Mas o número e a im­
tuado atrás da p o rta ou no lugar mais sórdido
portância dos deveres cresciam, à medi­
da que se elevava a hierarquia das clas­ da escola (CHARTIER; CO M PÈRE & JULIA,
ses (DURKHEIM, 1969: 285). 1976: 119).
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 117

Enfim, fazem-se também estimativas para de­ ser lida) etc. Por exem plo, no que diz respeito à
term inar a relação ideal espaço/número de alunos, escrita:
as ilustrações a afixar, a dim ensão dos bancos [Depois de aprender a segurar correta­
etc. (p. 119). Por exem plo, B atencour (p. 138) mente a pena], é preciso posicionar o
faz as seguintes recom endações: corpo de quem escreve de tal maneira
que não esteja nem excessivamente in­
As mesas devem ser postas no lugar mais
clinado sobre o papel, nem ereto de­
claro da escola, ficando cada extremida­
mais, mas em um agradável meio-ter-
de delas perto da janela, de modo que
mo: para isso, ele observará que o braço
as crianças tenham o lado esquerdo vol­
esquerdo esteja pousado confortavel­
tado para essa janela. Cada aluno deve
mente sobre a mesa, e que o peso do
dispor de quatorze polegadas [cerca de
corpo esteja inteiramente apoiado nele,
35cm] para o seu lugar, se tiver talhe mé­
a fim de aliviar o braço direito, que assim
dio; se é pequeno, doze [cerca de 30cm],
ficará mais livre para escrever sem in­
se é grande, dezesseis [cerca de 40cm].
cômodo. E preciso manter o corpo reto
Também é necessário que nem todas as
diante do papel, não se inclinando nem
mesas tenham altura igual, mas que haja
para a direita nem para a esquerda, mas
parte delas mais altas e parte mais bai­
apenas abaixando ligeiramente a cabe­
xas, a fim de que as crianças se assentem
ça e os ombros para a escrita. O bra­
comodamente, para que escrevam bem.
ço direito deve estar sobre a mesa até
Com todas essas recom endações quanto à o meio do intervalo que existe desde a
organização do lugar, vem os que o local da ponta dos dedos até o cotovelo. Que o
classe se to rn a um espaço especializado, cujo ar­ resto do corpo, notadamente o estôma­
go, não esteja apoiado sobre a mesa, a
ranjo serve a fins precisos. Estam os bem longe não ser ligeiramente, pois, além de ser
da confusão ilustrada p o r Van O stade. desgraciosa, essa postura poderia cau­
sar grandes dores no estômago, e é pre­
ciso tomar cuidado quanto a isso [...]
A direção da criança (BATENCOUR, 1669: 199-200).

Em seguida, o m estre deve dirigir a criança:


eis vai ditar-lhe sua postura, seus deslocam entos Os deslocam entos
e sua conduta.
N ão só a postura é objeto de um controle
m inucioso, mas tam bém os deslocam entos. Em
A postura prim eiro lugar, os deslocam entos dos alunos no
exterior da classe (ou da escola) se executam em
O século XVII instituiu um verdadeiro có­
ordem , em fila. Cada aluno tem um lugar que
digo das posturas. Diz-se que um a m á postura é
lhe é designado segundo critérios precisos (por
am sinal de relaxam ento (desordem ); o exterior
exem plo, segundo o tam anho, do m enor para o
i a imagem do interior. Diz-se tam bém que um
m aior). A fila torna-se o m étodo por excelência
oorpo bem posicionado é a expressão de um a
para gerir os deslocam entos:
iim a forte. O s alunos adotam determ inada pos­
Os alunos das classes mais baixas sai­
tura durante as aulas, o u tra durante as preces,
rão antes dos colegas das classes mais
am a terceira para os exercícios de escrita, o utra altas; aqueles, por exemplo, da mais bai­
r^ara a leitura (com o dedo p erto da palavra a xa sairão durante os cânticos. Os alunos
118 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

sairão de suas classes e da escola dois a fica que se deve com eçar a ler, p arar de ler etc. O
dois, cada um tendo o seu companhei­ sino, no exterior e nos corredores, assim com o
ro, que lhe será dado pelo mestre. Os a cam painha, na classe, têm essa m esm a função.
alunos sairão de seus lugares em ordem,
Esses instrum entos garantem a ordem m antendo
deste modo: o mestre faz sinal ao pri­
meiro de um banco para que se levante, o silêncio. As atividades se sucedem sem perda
esse aluno sairá do seu lugar, sem cha­ de tem po. O m estre pode tam bém fazer sinais
péu, de braços cruzados e, ao mesmo com o corpo:
tempo, aquele que lhe foi dado como
Para mandar recitar as orações, o mes­
companheiro [...]. Os alunos, estando
tre juntará as mãos. Para fazer repetir as
fora da classe, deixarão de rezar em voz
respostas da Santa Missa, ele baterá no
alta, e caminharão em silêncio e em or­
peito. Para mandar repetir o catecismo,
dem, uns atrás dos outros (LA SALLE,
fará o sinal da Santa Cruz (LA SALLE,
1951: 111).
1951: 126).
Até a volta a casa se faz sob a responsabi­
lidade dos “deciários”, oficiais da classe que se
A conduta
ocupam da conduta dos alunos nas ruas.
N o interio r da classe, os deslocam entos dos Além da postura e dos deslocam entos da
alunos se efetuam discretam ente e em silêncio. criança, as escolas do século XVII exercem um
Até se tom a o cuidado de precisar com o os alu­ verdadeiro sistema de vigilância. A base desse
nos devem proceder para fazer as suas “necessi­ sistema consiste em nunca deixar o aluno so­
dades” : ao sair, o aluno pega um a varinha p en ­ zinho e fazer com que ele seja sem pre vigiado,
durada na parede e a devolve ao seu lugar quan­ m esm o sim bolicam ente. Esse sistema se com põe,
do voltar (DÉMIA, s.d.). Isso evita que o m estre em prim eiro lugar, de dispositivos de vigilância
fale inutilm ente e que a classe seja perturbada. que podem ser utilizados pelo m estre. B atencour
N enhum aluno pode ir ao banheiro se a varinha (1669) fala de prever, na arquitetura escolar,
não estiver pendurada em seu lugar. Igualm ente, um a pequena janela, cham ada “gelosia”, de onde
para dim inuir o vaivém na classe, recorre-se aos seria possível vigiar os alunos do exterior sem ser
oficiais distribuidores e coletores de papel, que visto. Pensamos tam bém na cátedra elevada, cha­
se encarregam , com o seu nom e indica, da execu­ m ada “trib u n a”, que perm ite ver todos os alunos
ção dessas tarefas (LA SALLE, 1951: 223). com um só olhar. Depois, a vigilância tam bém
pode ser feita pelos oficiais da classe, isto é, po r
Além disso, instaura-se um a série de sinais
alunos especialm ente designados para tom ar
que perm item a execução de tarefas, m antendo
nota do nom e dos contraventores e denunciá-los
o silêncio. Esses sinais perm item um a seqüência
ao m estre. Eles constituem os alcaguetes oficiais,
ordenada entre as atividades ou os deslocam en­
aqueles que de certa form a substituem o m estre
tos. Um estalo, dois estalos com o “sinal”4 signi­
na ausência deste.

4. “O sinal tradicional se compõe de duas hastes de madeira M ais ainda, o sistema de vigilância se refina
dura: uma é grossa, mais volumosa na extremidade, e a outra a tal p o n to que se recorre ao próp rio Deus. “O
é fina e está presa a essa extremidade por uma cordinha. Abai­
olho de Deus te vê” ; “Deus te vigia”. É aqui que
xando e depois soltando a haste fina, ela golpeia a extremidade
áa grossa, emitindo um pequeno estalo” (LA SALLE, 1951: 125). vemos aparecer o que cham am os de vigilância
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 119

simbólica perm anente, pelo jogo das imagens Falou-se m uito da crueldade na escola durante
sacras, ilustrando, entre outros tem as, Jesus cru­ a Idade M édia. Aqui, recom enda-se ao m estre
cificado, o Julgam ento Final e o inferno. B aten­ que não se deixe levar pelas suas em oções. Se ele
cour (1669: 52) diz que a im agem do inferno pune, deve fazê-lo sem cólera nem paixão, com
serve para dar m edo às crianças quando com e­ distanciam ento, com um a seriedade de pai, diz
tem um a falta, e a do paraíso as estim ula à virtu ­ La Salle (1951). O castigo corporal não é abolido,
de. A vigilância vai ainda mais longe nos colégios mas agora é a últim a m edida de um a série gradual
dos jesuítas, onde a confissão perm ite conhecer de castigos. N o século XVII, prefere-se substituir
os segredos dos alunos. Em suma, inspeciona-se os castigos corporais por penitências que visam
não só o exterior, mas tam bém verifica-se um a hum ilhar o aluno: chapéu de asno, banco da de­
introm issão no interior; a alm a é perscrutada, sonra, latomias (prisão na Antiguidade), banco
a intim idade mais profunda é devassada. Esse é dos ignorantes ou ainda cópias de textos.
om form idável sistema de intim idação cuja eficá­ [O lugar do asno] onde se porá um pe­
cia foi largam ente reconhecida. queno ancinho com feno, um velho pe­
daço de rédea de cavalo, onde se porão
Para m elhor dirigir a conduta dos alunos, além
os preguiçosos; e até deve haver pendu­
do sistema de vigilância, m odificou-se a estrutura rado acima um velho boné de papelão
dos castigos e das recom pensas. A ideia básica é com grandes orelhas de papelão que
nitroduzir a racionalidade nessas práticas: serão pregadas nele, que se deve enfiar
O mestre dispensará com prudência e na cabeça dos preguiçosos, uma peque­
precaução o elogio e a repreensão. Não na placa quadrada de madeira, onde se
prodigará as recompensas ao acaso e pintará a figura de um asno e um pe­
sem medida. [...] E principalmente ele queno prego para suspendê-lo. Haverá
se absterá de mostrar ódio ou aversão algum velho farrapo de lã para servir de
àquele a quem dirige uma repreensão ou arreio nas costas do asno e aquele que
uma acusação [...] (JOUVENCY, 1892: for posto nesse lugar será revestido com
89). essas belas vestimentas de asno e o pas­
searão pela escola, com uma vassoura
Passava-se da relação crueldade/afeição para na mão e preso pelo braço ao ancinho
2 relação hum ilhação/recom pensa. N essa pers­ no lugar do asno, durante o tempo que
pectiva, Jouvency (1892: 87) declara: o mestre achar conveniente e o fará
vaiar por todos os alunos (CHARTIER;
Observou-se, em nossas regras, com mui­ COMPÈRE & JULIA, 1976: 119, citan­
ta sabedoria e verdade, que se consegue do BATENCOUR).
muito mais com as crianças pelo medo
da desonra do que pelo medo dos casti­ Do m esm o m odo, as recom pensas não são as
gos [...]. E por isso que um mestre sen­ mesmas. Ao invés de se dedicar a m anifestações
sato deve se limitar ao uso desses dois de afeição, a gestos amistosos, o m estre não deve
meios, o elogio e a repreensão. deixar-se dom inar pela paixão do m om ento, mas
N o que se refere às punições, os culpados recom pensar com racionalidade. Ele m antém
« o punidos, mas os castigos m udam de form a. certa reserva no seu entusiasm o para sublinhar
Ès penas são graduadas segundo a gravidade o bom com portam ento dos alunos. As recom ­
i o delito, e tom am um c a rá te r de hum ilhação. pensas são graduadas: po r exem plo, há um a or-
118 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

sairão de suas classes e da escola dois a fica que se deve com eçar a ler, p arar de ler etc. O sm bóln
dois, cada um tendo o seu companhei­ sino, no exterior e nos corredores, assim com o sacras, i
ro, que lhe será dado pelo mestre. Os aâcadc
a cam painha, na classe, têm essa m esm a função.
alunos sairão de seus lugares em ordem,
Esses instrum entos garantem a ordem m antendo cour (1
deste modo: o mestre faz sinal ao pri­
meiro de um banco para que se levante, o silêncio. As atividades se sucedem sem perda serve p
esse aluno sairá do seu lugar, sem cha­ de tem po. O m estre pode tam bém fazer sinais tem um
péu, de braços cruzados e, ao mesmo com o corpo: de. A vj
tempo, aquele que lhe foi dado como dos jea
Para mandar recitar as orações, o mes­
companheiro [...]. Os alunos, estando
tre juntará as mãos. Para fazer repetir as os segn
fora da classe, deixarão de rezar em voz
respostas da Santa Missa, ele baterá no não só
alta, e caminharão em silêncio e em or­
peito. Para mandar repetir o catecismo, intromi
dem, uns atrás dos outros (LA SALLE,
fará o sinal da Santa Cruz (LA SALLE,
1951: 111). a innm
1951: 126).
Até a volta a casa se faz sob a responsabi­ um fon
lidade dos “deciários”, oficiais da classe que se cia foi I
A conduta
ocupam da conduta dos alunos nas ruas. Par
N o interior da classe, os deslocam entos dos Além da postura e dos deslocam entos da do sisa
alunos se efetuam discretam ente e em silêncio. criança, as escolas do século XVII exercem um dos cas
Até se tom a o cuidado de precisar com o os alu­ verdadeiro sistema de vigilância. A base desse introdi
nos devem proceder para fazer as suas “necessi­ sistema consiste em nunca deixar o aluno so­
dades” : ao sair, o aluno pega um a varinha p en ­ zinho e fazer com que ele seja sem pre vigiado,
durada na parede e a devolve ao seu lugar quan­ m esm o sim bolicam ente. Esse sistem a se com põe,
do voltar (DÉMIA, s.d.). Isso evita que o m estre em prim eiro lugar, de dispositivos de vigilância
fale inutilm ente e que a classe seja perturbada. que podem ser utilizados pelo m estre. Batencour
N enhum aluno pode ir ao banheiro se a varinha (1669) fala de prever, na arquitetura escolar,
não estiver pendurada em seu lugar. Igualm ente, um a pequena janela, cham ada “gelosia”, de onde
para dim inuir o vaivém na classe, recorre-se aos seria possível vigiar os alunos do exterior sem ser Pa-
oficiais distribuidores e coletores de papel, que visto. Pensamos tam bém na cátedra elevada, cha­ a rela»
se encarregam , com o seu nom e indica, da execu­ m ada “trib u n a”, que perm ite ver todos os alunos pecnv;
ção dessas tarefas (LA SALLE, 1951: 223). com um só olhar. D epois, a vigilância tam bém
pode ser feita pelos oficiais da classe, isto é, po r
Além disso, instaura-se um a série de sinais
alunos especialm ente designados para tom ar
que perm item a execução de tarefas, m antendo
nota do nom e dos contraventores e denunciá-los
o silêncio. Esses sinais perm item um a seqüência
ao m estre. Eles constituem os alcaguetes oficiais,
ordenada entre as atividades ou os deslocam en­
aqueles que de certa form a substituem o m estre
tos. Um estalo, dois estalos com o “sinal”4 signi­
na ausência deste.
N.
4. 'O sinal tradicional se compõe de duas hastes de madeira M ais ainda, o sistema de vigilância se refina
sáo pi
dura: uma é grossa, mais volumosa na extremidade, e a outra a tal ponto que se recorre ao próprio Deus. “O
é fina e está presa a essa extremidade por uma cordinha. Abai­
olho de Deus te vê” ; “Deus te vigia”. É aqui que
As pe
xando e depois soltando a haste fina, ela golpeia a extremidade do de
da grossa, emitindo um pequeno estalo” (LA SALLE, 1951: 125). vemos aparecer o que cham am os de vigilância
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 119

simbólica perm anente, pelo jogo das imagens Falou-se m uito da crueldade na escola durante
sacras, ilustrando, entre outros tem as, Jesus cru­ a Idade M édia. Aqui, recom enda-se ao m estre
cificado, o Julgam ento Final e o inferno. B aten­ que não se deixe levar pelas suas emoções. Se ele
cour (1669: 52) diz que a imagem do inferno pune, deve fazê-lo sem cólera nem paixão, com
serve para dar m edo às crianças quando com e­ distanciam ento, com um a seriedade de pai, diz
tem um a falta, e a do paraíso as estim ula à virtu ­ La Salle (1951). O castigo corporal não é abolido,
de. A vigilância vai ainda mais longe nos colégios mas agora é a últim a m edida de um a série gradual
dos jesuítas, onde a confissão perm ite conhecer de castigos. N o século XVII, prefere-se substituir
os segredos dos alunos. Em suma, inspeciona-se os castigos corporais por penitências que visam
não só o exterior, mas tam bém verifica-se um a hum ilhar o aluno: chapéu de asno, banco da de­
introm issão no interior; a alm a é perscrutada, sonra, latomias (prisão na Antiguidade), banco
a intim idade mais p rofunda é devassada. Esse é dos ignorantes ou ainda cópias de textos.
um form idável sistema de intim idação cuja eficá­ [O lugar do asno] onde se porá um pe­
cia foi largam ente reconhecida. queno ancinho com feno, um velho pe­
daço de rédea de cavalo, onde se porão
Para m elhor dirigir a conduta dos alunos, além
os preguiçosos; e até deve haver pendu­
do sistema de vigilância, m odificou-se a estrutura rado acima um velho boné de papelão
dos castigos e das recom pensas. A ideia básica é com grandes orelhas de papelão que
introduzir a racionalidade nessas práticas: serão pregadas nele, que se deve enfiar
na cabeça dos preguiçosos, uma peque­
O mestre dispensará com prudência e
na placa quadrada de madeira, onde se
precaução o elogio e a repreensão. Não
pintará a figura de um asno e um pe­
prodigará as recompensas ao acaso e
queno prego para suspendê-lo. Haverá
sem medida. [...] E principalmente ele
algum velho farrapo de lã para servir de
se absterá de mostrar ódio ou aversão
arreio nas costas do asno e aquele que
àquele a quem dirige uma repreensão ou
for posto nesse lugar será revestido com
uma acusação [...] (JOUVENCY, 1892:
essas belas vestimentas de asno e o pas­
89).
searão pela escola, com uma vassoura
Passava-se da relação crueldade/afeição para na mão e preso pelo braço ao ancinho
a relação hum ilhação/recom pensa. Nessa pers­ no lugar do asno, durante o tempo que
pectiva, Jouvency (1892: 87) declara: o mestre achar conveniente e o fará
vaiar por todos os alunos (CHARTIER;
Observou-se, em nossas regras, com mui­ COMPÈRE & JULIA, 1976: 119, citan­
ta sabedoria e verdade, que se consegue do BATENCOUR).
muito mais com as crianças pelo medo
da desonra do que pelo medo dos casti­ Do m esm o m odo, as recom pensas não são as
gos [...]. E por isso que um mestre sen­ mesmas. Ao invés de se dedicar a manifestações
sato deve se limitar ao uso desses dois de afeição, a gestos amistosos, o m estre não deve
meios, o elogio e a repreensão. deixar-se dom inar pela paixão do m om ento, mas
N o que se refere às punições, os culpados recom pensar com racionalidade. Ele m antém
são punidos, mas os castigos m udam de form a. certa reserva no seu entusiasm o para sublinhar
As penas são graduadas segundo a gravidade o bom com portam ento dos alunos. As recom ­
i o delito, e tom am um c aráter de hum ilhação. pensas são graduadas: por exem plo, há um a or­
120 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

dem de “dignidade” nos lugares dos alunos que Além de ter estabelecido um sistema de vi­
serão atribuídos a cada quinze dias àqueles que gilância e um a nova estruturação das penas e
os m erecem (BATENCOUR, 1669: 234). O m es­ das recom pensas, os pedagogos do século XVII
tre pode tam bém atribuir pontos de “diligência”, im plem entaram um verdadeiro sistema de em u­
cuja contabilidade conserva num grande livro lação, cujo prim eiro passo consiste em confiar
(p. 35). Pode tam bém distribuir livros com o re­ responsabilidades aos oficiais. B atencour (1669:
com pensa (recom pensa extraordinária), figuras 69) indica o sentido dessa função da seguinte
piedosas ou figurinhas de gesso e finalm ente, na m aneira:
m aioria das vezes, sentenças impressas em gran­ Para conduzir bem um Reino, um exér­
des caracteres (LA SALLE, 1951: 145). Em suma, cito, uma Cidade, uma família, é preciso
que haja ordem. E aquele que é o Chefe
as práticas am plam ente difundidas de recom pen­
deve se servir de diversos Oficiais que
sa e de punição por gestos am istosos e castigos mantêm com ele uma relação de subor­
corporais são substituídas por um sistema racio­ dinação. É o que se deve praticar exa­
nal que controla os exageros afetivos pela aplica­ tamente em uma escola, onde o mestre
ção de gratificações e de sanções graduais. que é o chefe deve se servir de seus alu­
nos, que o ajudarão não só a conduzir
Os pedagogos do século XV II in stau ram seus companheiros, mas ainda a levá-los
tam bém um a série de registros (ou catálogos) eles próprios até a perfeição da Virtude
“bem estabelecidos” para “m anter a ordem nas e da ciência, por emulação [...] Como o
escolas” e que se acrescentam ao sistema de vigi­ desígnio do Mestre em relação às crian­
ças consiste em conservar a ordem na
lância. João Batista de La Salle (1951: 132) m en­
escola, ele cria oficiais: o que servirá
ciona seis deles: em prim eiro lugar, o catálogo para levá-los por emulação, entre uns e
de recepção, no qual são escritos os nom es de outros, a se comportarem bem, já que
todos os alunos adm itidos na escola, do início esses ofícios só serão dados àqueles que
os tiverem merecido por seu trabalho
ao fim do ano; em segundo lugar, o catálogo das
ou por sua Virtude; além disso, estes
m udanças de lição, que perm ite an o tar a lição hão de ser substituídos, de tempos em
onde está cada aluno na escrita, na aritm ética tempos, a fim de dar coragem a cada um
etc.; em terceiro lugar, o catálogo das ordens de para aspirar a isso, por sua piedade e sua
lição, que perm ite m anter em dia todos os n o ­ diligência.
mes dos alunos por ordem de lição; em quarto A lista dos oficiais é longa; inclui in te n d e n ­
lugar, o catálogo das boas e más qualidades dos tes, explicadores, vigilantes, leitores, recitado-
alunos, que perm ite traçar o retrato pessoal de res de preces, oficiais de escrita, encarregados
cada criança, sua personalidade, seu co m p o rta­ da tin ta e do pó secante, v arredores, carrega­
m ento; em quinto lugar, o catálogo do banco, dores de água, p o rteiro s, tesoureiros, visitan­
que perm ite registrar os atrasos e ausências dos tes, p o rta-ro sário s, p orta-aspersórios, sineiros,
alunos que se sentam no m esm o banco; em sex­ inspetores, observadores, d istribuidores e cole­
to lugar, o catálogo dos visitantes dos ausentes, tores de papel. O sistem a de em ulação se exer­
preenchido pelos “oficiais visitantes” que vão até ce tam bém pela com petição entre os alunos.
a casa dos alunos, indagando a causa da ausência A com petição pode fazer-se no in te rio r de um
dos alunos. grupo designado p ara o m esm o banco, onde o
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 121

prim eiro lugar é reservado para o m elhor aluno A form ação cristã
e assim p o r diante até o últim o. M as ela foi le­
Desde a Idade M édia, a escola tem um a fun­
vada até a sua m ais alta expressão pelos jesuítas,
ção de conversão religiosa. Trata-se de influen­
que in tro d u ziram sistem aticam ente a co m p eti­
ciar profundam ente os alunos, de elevar a sua
ção entre os alunos em suas classes. São esclare­
alm a, de instruí-los corretam ente sobre as verda­
cedoras as declarações de Jouvency (1892: 87),
des da religião. A escola do século XVII não m o­
que defende a necessidade de estabelecer lutas
difica essa função original; ela continua visando
entre os alunos:
m odelar um bom cristão, crente e fiel praticante.
Que nenhum deles [os alunos] por exem­
É a mesm a ideia, tanto para os católicos quanto
plo, leia sozinho o seu dever; ele deve ter
para os protestantes. Os m estres-escolas, com o
um rival que esteja pronto a corrigi-lo,
pressioná-lo, combatê-lo, alegrar-se com vimos, são um dos instrum entos fundam entais
o seu insucesso. Do mesmo modo, não da Reform a e da C ontrarreform a. Os tratados
se pode proveitosamente interrogar al­ de pedagogia - tendo sido escritos, na m aioria,
guém isoladamente; é necessário que por religiosos - reservam um grande espaço ao
haja um antagonista que o levante se ele ensino da religião. Em geral, a ênfase se faz sobre
tropeça nas respostas, que o substitua três vertentes da form ação cristã: o catecism o, a
se ele hesita, e fale em seu lugar se ele
missa diária e as preces.
permanecer em silêncio. Faça-se com
que uma classe superior enfrente uma
classe inferior; escolham-se combaten­ O dom ínio dos rudim entos
tes nos dois campos; estabeleçam-se jui­
zes; convidem-se espectadores, seja da É in te re ssa n te ver com o a p arecem novas
casa, seja do exterior, e quanto a estes ideias sobre o ensino da leitura. M uitas vezes, os
últimos, escolham-se, se possível, pes­ alunos com eçam aprendendo a ler em latim e, em
soas ilustres.
seguida, em francês, o que é recom endado, aliás,
por Batencour (1669). N os colégios dos jesuítas,
A organização dos saberes tudo se faz igualm ente em latim. É preciso dizer
que o latim é a língua da Igreja e que nele não há
Essa form a de organização é, evidentem ente, nenhum a sílaba m uda, o que facilita a sua apren­
a mais antiga e a mais difundida. Já que a escola dizagem. Em contrapartida, no século XVII, co-
sem pre foi organizada em to rn o dos saberes a meça-se a favorecer cada vez mais a aprendiza­
transm itir, a organização desses saberes é objeto gem da leitura em língua m aterna. João Batista
de especificação e form alização há vários sécu­ de La Salle (1951) declara que é mais fácil e mais
los. Em prim eiro lugar, o territó rio dos saberes útil aprender prim eiro o francês, que não tem o
a transm itir foi destrinçado. Para as escolinhas, defeito de ser um a língua m orta.
três ordens de saberes foram assim delim itadas: Nesses séculos em que não se pode contar
em prim eiro lugar, a form ação cristã; em segun­ nem com o telefone nem com o rádio, nem com
do lugar, o dom ínio dos rudim entos (ler, escre­ a televisão, nem com algum processo de grava­
ver, contar); e, em terceiro lugar, o aperfeiçoa­ ção, a escrita assume um a im portância capital.
m ento dos costum es, a civilidade. E preciso, pois, ser capaz de escrever e de es­
122 Parte A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

crever bem, no sentido de dom ínio da caligra­ É preciso dizer que, para os cristãos, o visível
fia. O s tratados de pedagogia contêm mil e um a é a imagem do invisível, o corpo reflete a alma.
precisões sobre a postura geral do corpo, sobre Assim, encontra-se um a série de conselhos e pre­
com o segurar a pena, sobre as técnicas de aparar ceitos quanto à aparência, às roupas, ao riso, à
as penas de ganso etc. Simplificaram-se m uito, m aneira de com er, de lim par o nariz etc. Por
apesar de tudo, as técnicas de escrita dos m estres exem plo, cruzar os braços é sinal de preguiça,
escritores que as tornavam não só em um ofício, encarar é sinal de im pertinência etc. São, pois,
mas tam bém em um poder (para escrever a letra dispositivos de c o n tro le da afetividade. Trata-
M era preciso dom inar suas doze com ponentes). se de conter os sentim entos excessivos e evitar
C ontar é a últim a aprendizagem escolar e ela qualquer exagero.
se faz sem pre em ligação com a vida cotidiana. N ão só o territó rio do saber a transm itir
Ensina-se a co n ta r com fichas ou com ou tros foi dividido em três grandes regiões, mas cada
objetos fam iliares. E n tre ta n to , a m aio ria das região foi dividida em m últiplas partes, repar­
crian ças d eix am a escola an tes de a d q u irir tal tidas sobre um a escala que será aprendida, co­
aprendizagem . m eçando pela parte mais simples até chegar à
mais com plexa. Essa divisão do saber cam inha
junto com a divisão do tem po. Distinguem-se,
O aperfeiçoam ento dos costum es: a civilidade
p o r exem plo, várias etapas na aprendizagem da
A partir do sucesso do livro de Erasm o sobre leitura. B atencour (1669) enum era seis, Démia
a civilidade, esse tem a teve um a voga inquestio­ (s.d.) sete e La Salle (1951) nove. N o interior
nável. Desde o século XVI, a civilidade se to r­ dessas grandes divisões há to d a um a série de mi-
nou um tem a escolar (CHARTIER; CO M PÈRE croetapas a atravessar, de m odo que a trajetó­
& JULIA, 1976: 137). João Batista de La Salle ria do saber escolar a dom inar se desenha com o
(1951) escreveu um a versão cristã. Para ele, o es­ um a longa escadaria.
tudo da civilidade perm ite, prim eiro, com pletar João Batista de La Salle (1951) esboça, po r
a aprendizagem da leitura, mas tam bém e p rin ­ exem plo, um a ideia dessa ordem geral para a
cipalm ente “ensinar as regras de um a m oral cris­ aprendizagem da leitura:
tã ” (CHARTIER; CO M PÈRE & JULIA, 1976:
Mapa do alfabeto: 2 meses. Mapa das
137). Ao passo que o u tro ra as regras de civilida­ sílabas: 1 mês. Silabário: 5 meses, dos
de eram reservadas à elite, ao m undo da corte, quais iniciantes, 2 meses; médios, 1
agora, com a R eform a Católica, a aprendizagem mês; avançados, 1 mês. Soletração no
da civilidade se to rn a acessível ao m aior núm ero primeiro livro: 3 meses (1 mês em cada
de pessoas. ordem). Soletração e leitura no segundo
livro: 3 meses (1 mês em cada ordem).
Ao lado do catecismo e da pregação, Apenas leitura no segundo livro: 3 me­
sua aprendizagem é um dos meios para ses (1 mês em cada ordem). Leitura no
eliminar os maus costumes, civilizar terceiro livro: 6 meses (2 meses em cada
uma sociedade ainda violenta e contro­ ordem). Leitura em latim no Saltério:
lar os exageros perigosos da afetivida- 6 meses (2 meses em cada ordem).
de (CHARTIER; COMPÈRE & JULIA, Leitura na Civilidade: I a ordem, 2 me­
1976: 138). ses; 2a ordem, enquanto continuarem
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia

a freqüentar a escola (LA SALLE, apud não a prim eira tentativa de sistem atização da p e­
CHARTIER; COMPÈRE & JULIA, dagogia e da didática” (COM ENIUS, 1952: 18).
1976: 118). Os católicos tam bém se m anifestam . Jacques de
Batencour (1669) redige A escola paroquial ou
4.5 O século XVII marca o a maneira de ensinar bem nas escolinbas-, João
aparecimento de uma nova ordem Batista de La Salle (1951) publica a C onduta das
escolar escolas cristãs; e os jesuítas m arcam a época com
a sua Ratio studiorum (Program a e regulam ento
Com o acabam os de ver, os m estres do sé­ dos estudos da C om panhia de Jesus).
culo XVII foram então obrigados a solucionar
Fato novo, esses tratados de pedagogia não
novos problem as, que até então não ocorriam
são obra de um a elite intelectual sem ligação
com tanta acuidade. Eles passaram para o papel
com o ensino. Ao contrário, para escrever tra ­
suas ideias que assum iram a form a de tratados
tados de pedagogia tão precisos sobre a m aneira
de pedagogia. A originalidade desses textos, sua
de ensinar, era preciso ter-se em penhado pesso­
im portância e sua repercussão nos fazem dizer
alm ente na prática do ofício durante vários anos;
que a pedagogia é obra do século XVII. N a ver­
são discursos pedagógicos construídos no terre ­
dade, se existia o cuidado de dar tantas diretivas
no da classe, por docentes experientes e para d o ­
aos m estres, foi porque o ensino se tinha to rn a ­
centes. Esses pedagogos explicitam o seu saber
do um a preocupação, e exigia um saber m etó­
pedagógico, seu saber na ação, fruto de m uitos
dico específico. A im portância desse século no
anos de experiência de ensino. Todos os tratados
plano pedagógico é raram ente enfatizada, pelo
m encionam esse elem ento capital. E, po r exem ­
fato de parecer bem m enos brilhante com parado
plo, o caso de J. de Batencour (1669, prefácio),
ao Renascim ento (Rabelais, Erasm o, M ontaigne)
padre e professor de carreira:
ou ao Século das Luzes (Rousseau, D iderot, Vol-
Eu estava convencido de que não seria
taire). Entretanto, é realmente no século XVII que
inútil dar parte ao Público daquilo que o
se encontra o m aior núm ero de indicações precisas uso e a experiência me ensinaram nesse
para os docentes a respeito da organização do ensi­ Exercício.
no na classe; e que se elaboram os primeiros enun­
E, mais ainda, as palavras de La Salle, em
ciados de um saber pedagógico, saber que se situa
1706, no prefácio da sua Conduta das escolas
em um nível diferente das doutrinas, das concep­
cristãs:
ções teóricas, tal como as encontram os expostas,
Essa Conduta só foi redigida em forma
por exemplo, nas obras de Erasmo e de Rabelais.
de regulamento depois de um grande
Os pedagogos do século XVII procuraram , número de conferências com os Irmãos
antes, organizar a prática escolar. Assim, os p ro ­ deste Instituto, os mais antigos e mais
testantes, sob o estím ulo de Ratichius (RIOUX, capazes de fazer bem a escola, e depois
de uma experiência de vários anos...
1963), produzem um a Introdução geral à didá­
tica ou arte de ensinar. M ais tarde, C om enius É tam bém o caso dos jesuítas que, depois de
(1952) escreve A grande didática - Tratado da trin ta anos de prática das instruções de Inácio
arte universal de ensinar tudo a todos; segundo o de Loyola, coordenam e fixam os resultados da
seu autor, essa obra será “um a das prim eiras se­ sua experiência em um docum ento que se to rna
124 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

célebre, mais conhecido com o nom e de Ratio fidelidade segundo as diretivas dos fundadores
Studiorum (DURKHEIM , 1969: 275). com o lem bra, po r exem plo, La Salle (1951, p re­
Fundam entalm ente, com o vimos, esse novo fácio) na C onduta das escolas cristãs:
saber pedagógico posto em prática tem com o Os superiores das casas deste Instituto
objetivo elim inar o acaso e a desordem , fonte de e os inspetores das escolas se aplica­
rão a aprendê-lo bem (isto é, o livro da
pecado, regulando cada aspecto do ensino. Tudo
Conduta das Escolas) e a dominar per­
é previsto, calculado, cronom etrado. Essa peda­ feitamente tudo o que ali está encerra­
gogia, tan to do lado católico quanto do p ro tes­ do, e procederão de modo que os mes­
tante, quer subm eter os corpos e as almas aos tres não falhem e observem exatamente
bons costum es, fazendo de cada criança um indi­ todas as práticas que ali são prescritas,
víduo civilizado, instruído e cristão. até as menos importantes, a fim de pro­
porcionar, por esse meio, uma grande
É p o r isso que os tratados de pedagogia do ordem nas escolas, uma conduta bem
século XVII nos parecem fundadores de um a regulamentada e uniforme nos Irmãos
nova ordem . Eles são assim o sinal m anifesto de que serão encarregados de aplicá-las, e
um a nova preocupação e inauguram um m étodo um fruto considerável para as crianças
para dar aula. Esses tratados são concebidos para que ali serão instruídas.
definir as ações do m estre no seu ensino a grupos C onsequentem ente, nada se parece mais com
de crianças do povo. N ão se lim itam a conselhos um colégio dos jesuítas do que um outro colégio
para uso de um preceptor, num a perspectiva in­ dos jesuítas, ou um a escola dos Irm ãos das Esco­
dividual; ultrapassam a lógica do conteúdo com o las Cristãs do que um a o u tra escola dos Irm ãos
sem pre ocorrera, e vão mais longe do que um a das E scolas C ristãs. A p e d ag o g ia assim in sti­
crítica teórica, com o fizeram os hum anistas do tu íd a se constitui pouco a pouco com o tradição.
Renascim ento. Esses tratados de pedagogia sis­ As habilidades dos m estres são depois transm iti­
tem atizam procedim entos de ensino e definem das a seus sucessores que, po r sua vez, as legam
com pletam ente a relação com o o u tro (o grupo), àqueles que os sucedem . Assim se cristaliza p ro ­
a fim de garantir em m elhores condições a sua gressivam ente um código uniform e dos saber-fa­
instrução e a sua educação. zer, um a tradição pedagógica com posta de um
O m étodo para ensinar a pedagogia, instau­ conjunto de respostas, prescrições, ritos quase
rado no século XVII, se difundiu com bastante sagrados a reproduzir.

Conclusão

N o século XVII, instala-se um fenôm eno fundam ental


para quem se interessa pela tem ática escolar e, mais par­
ticularm ente, pelo ensino. Tendo a obrigação de ensinar a
grupos de alunos oriundos do povo, alguns m estres-escola
elaboraram toda a espécie de estratégias para dar aula que,
em seguida, eles form alizaram e agruparam em tratados.
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 125

ores Posteriorm ente, estes serão transm itidos aos novatos que,
pre- p o r seu turno, pretenderem exercer o ofício de professor.
Desde então, assiste-se tan to ao nascim ento da pedago­
tuto gia quanto da constituição de um a tradição pedagógica. Essa
lica-
m aneira de fazer a escola será exportada para a Am érica e
o da
para o m undo inteiro. H á quem diga que o livro de Jac-
per-
rrra- ques de Batencour (1669) era utilizado em Nouvelle-France
nes- (Canadá). E sobejam ente conhecida a irradiação dos jesuítas
enre p o r to d o o planeta. São as com unidades religiosas docen­
iras, tes que, principalm ente, dissem inaram esse novo saber-fazer
pro- que chegou até nós.
mde
bem
lãos
Resumo
e
vças Aventamos a hipótese de que a pedagogia surgiu no sé­
culo XVII. Efetivam ente, no decorrer desse período, parece
om ter nascido um a nova preocupação: a de saber com o dar
gio aula. Vários fatores concorrem para a em ergência desse fe­
co nôm eno: a reform a iniciada p o r L utero, a réplica católica,
ãos a preocupação m oral com a infância, assim com o um novo
sri- questionam ento a respeito da utilidade da escolarização na
ão. m anutenção da ordem social. O efeito conjugado desses fa­
liri- tores im plica o crescim ento do núm ero de alunos e de esco­
am las; tal aum ento suscita um a reflexão consciente e ap rofun­
ro- dada sobre a organização com pleta da classe para resolver
novos problem as de ensino.
ía-
im Assim sendo, trata-se de enunciar um m étodo preciso
ase e procedim entos detalhados e exatos de ensino. Todas as
dim ensões da prática educativa são abordadas em função do
controle e da gestão - grupo-classe, tem po, espaço, conduta
e postura do aluno, conteúdos de saber, form ação dos m es­
tres - e subm etidas a um a codificação estrita e detalhada.
Assiste-se a um a divisão dos saberes em três grandes te rri­
tórios, cada um com suas subdivisões. A em ulação se to rna
um a noção im portante da educação no século XVII, e a classe
se transform a em um sistema fechado para a realidade ex­
terior. A parecem os tratados pedagógicos e a form ação dos
m estres. Em suma, a pedagogia com o prática de ordem e de
controle assinala o início de um a tradição, não provisória,
mas que se perpetuará no tem po.
126 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Questões

1) A partir de suas características no século XVII, será


que a pedagogia é um a prática de ordem ?
2) Será possível associar a concepção da pedagogia do
século XVII à representação do m undo que os pedago­
gos tinham na época? O que elas têm em comum ?
3) A p artir do que foi visto até agora, estabeleça dis­
tinções entre os conceitos seguintes: educação, ensino,
escola, pedagogia. Pense, em particular, no m om ento em
que eles surgiram na história.
4) O que se pode dizer a respeito da pedagogia a partir
da com paração entre as duas ilustrações (Figura 4.1 e
Figura 4.2) apresentadas neste capítulo, na p. 107.
5) Pode-se falar do nascim ento, no século XVII, de um
novo saber pedagógico. Q ual é esse saber? De que m a­
neira e por quem foi elaborado e transm itido?

Atividade de aprendizagem

Vários fatores favoreceram o surgim ento da pedagogia


no século XVII. Tom ando com o referência o capítulo 4 e
suas notas de curso, faça a lista de tais fatores, descreven­
do-os de form a sucinta.

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5
O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau
Stéphane Martineau

Objetivos de aprendizagem

Após a leitura deste capítulo, você deveria ser capaz:

• de descrever as principais ideias da Filosofia das Lu­


zes;

• de explicar a concepção de Rousseau a respeito da


criança;

• de descrever os princípios da educação rousseauísta


e de ilustrar seu impacto sobre o papel do docente.
130 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Introdução

N este quinto capítulo, abordam os um pensador do sé­


culo XVIII, cujas ideias exerceram um a im portante influên­
cia sobre a pedagogia: Jean-Jacques Rousseau (1712-1778).
C ham ado o C o pérnico1 da pedagogia, Rousseau introduziu,
efetivam ente, na educação um a visão positiva da criança e,
de m aneira mais fundam ental, ele elaborou um a verdadeira
Teoria da Infância, ou seja, um a tentativa estruturada e lógi­
ca de com preender quem é realm ente a criança. Para Rous­
seau, essa Teoria da Infância se inscrevia em um projeto mais
am plo que visa elaborar um a teoria da sociedade perm itindo
explicar e superar as patologias sociais. De fato, ele consi­
derava que a sociedade de sua época era corrom pida, estava
enferm a; em sua opinião, m ediante a educação é que, em
parte, seria possível reform ar essa sociedade. Para Rousseau,
o m odelo a im itar encontra-se na natureza: pelo fato de que
esta é boa em si m esm a, a educação deveria estar atenta ao
desenvolvim ento natural da criança. Para ele, um a criança
instruída segundo a natureza tornar-se-ia, na idade adulta,
um a pessoa m elhor e, por conseguinte, um m elhor cidadão.
O presente capítulo está dividido em três grandes se­
ções. A prim eira esboça um panoram a do século XVIII, mais
habitualm ente cham ado de Século das Luzes. Entre outros
aspectos, verem os o papel capital desem penhado, durante
esse período, pelos filósofos e o lugar im portante reserva­
do à razão, ao progresso e à ciência. A segunda seção pinta
um rápido retrato de Rousseau e, por isso m esm o, perm ite
com preender m elhor a relevância do personagem e a am pli­
tude da sua obra. Finalm ente, a terceira seção é inteiram en­
te consagrada à apresentação do pensam ento educativo de
Rousseau.

1. Nicolau Copérnico (1473-1543) foi um astrônomo polonês. Formulou a hi­


pótese do movimento dos planetas sobre si mesmos e em torno do Sol. Sua
descoberta implica um verdadeiro descentramento do mundo humano; de fato,
até então, a Igreja considerava a Terra como o centro do universo.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau

5 1 O século XVIII: o Século das Luzes instalado desde o R enascim ento; ele é tam bém e
principalm ente a sua radicalização. N a verdade,
Esta prim eira seção apresenta o Século das o Século das Luzes levará até o extrem o lim i­
-azes - período em que Jean-Jacques Rousseau te, ao m esm o tem po, as possibilidades críticas
Tr-eu - e evoca as razões pelas quais esse século do ser hum ano diante das ideias preconcebidas
recebeu tal denom inação. e dos poderes estabelecidos, e a valorização da
razão e do individualism o. Em suma, se a cultura
5 1.1 O advento do século XVIII m oderna se constituiu no Renascim ento graças
ao discurso hum anista, a sociedade m oderna,
Vimos nos capítulos anteriores que aquilo por sua vez, nasceu no século XVIII. Essa socie­
que se convencionou cham ar de M odernidade dade m oderna fornecerá à cultura proveniente
começa na época do Renascim ento. Esse período do Renascim ento as bases m ateriais, políticas e
i e transição da história do O cidente é m arcada sociais necessárias para a sua encarnação em ins­
pela em ergência do discurso hum anista. Esse dis­ tituições duradouras.
curso é p o rta d o r dos elem entos fundam entais da
cultura m oderna, notadam ente a crítica da reli-
cião e a valorização da razão e da cultura. Será a 5.1.2 O que é o Século das Luzes?
seqüência do século XVI o qual é, de certa for­
N a Europa, o século XVIII foi atravessado
ma, o século do hum anism o, corrente de pensa­ por um m ovim ento de um a considerável am pli­
m ento que desem penhará um papel dom inante dão: a Filosofia das Luzes {Aufklãrung, segundo
30 discurso dos ideólogos e dos filósofos. o te rm o alem ão). Vários personagens célebres
Q uanto ao século XVII, época das reform as lhe são associados: na França, M ontesquieu e
e contrarreform as, é, de preferência, um tem po Voltaire; na Inglaterra, N ew ton e Locke; na Ale­
de reação e de busca de concessões diante das m anha, W olff e Lessing. Até K ant foi influencia­
rmmerosas reviravoltas originadas pelo Renas­ do po r esse m ovim ento.
cim ento. E justam ente nesse m om ento que se M as, nesse contexto, o que representa, pois,
instaura a pedagogia - que pode ser definida su­ a palavra “Luzes” ? Significa o triunfo da razão,
m ariam ente com o um discurso sobre a m aneira da racionalidade. M as, em que dom ínios se ve­
de organizar o ensino na classe - e, por isso mes­ rifica esse triunfo? Três cam pos da atividade h u ­
mo, que se m odelam as bases de um a tradição m ana são particularm ente atingidos pela Filoso­
pedagógica. Por exem plo, na França, seja entre fia das Luzes: a ciência, as artes e a técnica. Cada
os jesuítas, seja entre os Irm ãos das Escolas Cris­ um desses dom ínios deverá, consequentem ente,
tãs, procura-se antes de tudo codificar as práticas pôr-se a serviço do progresso e da felicidade da
dos docentes, a fim de responder ao novo desa­ hum anidade. Fundam entalm ente otimistas, os ato­
fio p roposto pelas escolas urbanas, que acolhem res desse século acreditam então que o progresso
agora um grande núm ero de alunos. e a felicidade podem ser literalmente construídos
N o que se refere ao século XVIII, convém graças à razão.
desde já precisar que este não é apenas o p ro lo n ­ E ntretanto, convém precisar im ediatam ente
gam ento de to d o o m ovim ento de m odernização que se trata aqui de um a razão diferente daquela
132 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

que se encontrava entre os gregos ou os cristãos. De tudo isso, evidencia-se certo núm ero de
Na verdade, entre os últim os, a razão designa­ elem entos que caracterizam o Século das Luzes.
va um a realidade objetiva independente do h o ­ Vamos exam iná-los um a um , a fim de apreender
mem. Assim, da A ntiguidade até o século XVIII, bem as particularidades desse período. Isso nos
o m undo é racional em si (as Ideias platônicas) perm itirá situar m elhor o pensam ento de Rous­
ou concebido e orquestrado por um criador ra­ seau em sua época, ao m esm o tem po nos aspec­
cional (Deus, na religião católica). tos em que é tributário ao contexto e naqueles
A p a rtir do século XVIII, o axiom a funda­ que ele oferece com o radical novidade.
m ental é m ais ou m enos o seguinte: to d a reali­
dade, m aterial ou m oral, é analisável. Para co ­
5.1.3 A razão como faculdade crítica
nhecer essa realidade, basta decom pô-la de tal
m odo que se possa perceber cada um dos seus C om o m encionam os acima, na Filosofia das
elem entos, até m esm o os m ais sim ples; depois, Luzes, a razão se opõe à fé, à autoridade e à igno­
reco m p õ em -se esses e le m en to s seg u in d o um rância. E quem diz oposição diz necessariam ente
p lan o lógico; o que dá com o resultado um sis­
crítica; a razão pretende, pois, ser um a faculda­
tem a racional. A razão se to rn a, em sum a, um a
de crítica. Através dessas diferentes oposições,
faculdade subjetiv a esp ecificam en te h u m an a.
a razão hum ana afirm a assim o seu direito de
A gora, não é m ais o m undo que é racional, mas
raciocinar livrem ente. C onsiderem os um após o
o ser hu m an o que, p o r isso m esm o, desem pe­
outro os três objetos da crítica.
nha o papel de p ad rão de m edida daquilo que é,
ou não, racional. A Filosofia das Luzes assinala, Os capítulos precedentes dem onstraram cla­
com evidência, um a ru p tu ra com as ideologias ram ente que, a partir do fim do Im pério Rom a­
do passado. no, a Igreja desem penhou um papel prim ordial
na preservação da cultura. Única instituição ain­
M as que ideologia anim a o Século das Luzes?
da sólida, ela soube, na Idade M édia, conservar
Os pensadores e filósofos dessa época opõem a
as aquisições mais preciosas da civilização. En­
razão à fé, à autoridade e à ignorância. C ontra
tretan to , com o frequentem ente acontece no caso
a tradição e a tutela do poder, herdadas dos sé­
de instituições que exercem um vasto poder, a
culos anteriores, eles pretendem devolver ao ser
hum ano a sua liberdade, um a liberdade que se Igreja acabou po r ser percebida com o um en­
caracteriza pelo “livre-exam e” - o qual pode ir trave à liberdade de expressão, um freio para a
mesmo até o ceticismo - e um a atitude crítica. pesquisa e para o questionam ento científico, em
Por exem plo, inspirada no m étodo científico, resum o, um freio para a razão. Assim, a oposição
a exigência de rigor intelectual se traduz, entre à fé se m anifestará contra as verdades religiosas
outros aspectos, no dom ínio da exegese, pela e, po r conseguinte, contra a p ró p ria Igreja. Efeti­
substituição da ciência sagrada tradicional pelas vam ente, a Filosofia das Luzes afirm a claram ente
ciências religiosas. Isso significa que, no século que o hom em pode construir um a ideia racional
XVIII, a razão se to rn a não só um a faculdade do m undo independentem ente da religião. Por­
humana, mas tam bém representa um valor dese­ tanto, o ateísm o, pelo m enos e n tre os in telec­
jável, inseparável da procura da liberdade. tuais, se difunde pouco a pouco no O cidente.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 133

A razão se opõe tam bém aos poderes políti­ fornecer esses instrum entos. N ote-se aqui que a
cos. Assim com o a Igreja, esses poderes são vis­ instrução já não consiste, com o ocorreu m uitas
tos com o a expressão de certo obscurantism o. vezes no passado, em aprender sim plesm ente a
N o século XVIII, a E uropa ainda é governada ler, para ter acesso direto às Sagradas Escrituras.
por reis; os hom ens e as m ulheres vivem, na Trata-se, antes, de instruir-se, p o r um lado, para
m aioria, sob um regim e m onárquico. O ra, esses conhecer o m undo (neste ponto, o século XVIII
regimes “de direito divino” repousam sobre o ar­ prolonga o Renascim ento: pensam os im ediata­
bítrio (geralm ente o do rei). Por isso m esm o, não m ente no program a enciclopédico de Rabelais)
podem garantir as liberdades individuais. E essas e, por o u tro , para ser capaz de controlar esse
liberdades, com o vimos, são fundam entais para m undo, m odelá-lo à vontade e, principalm en­
os filósofos das Luzes; daí a sua oposição a es­ te, superá-lo pela crítica (neste aspecto, o século
ses regimes, e o desejo de vê-los substituídos po r XVIII vai mais longe do que o Renascim ento).
outros, que respeitem mais o livre-pensam ento.
Finalm ente, a razão se opõe à ignorância. 5.1.4 A razão como realidade positiva
M arch ando de m ãos dadas, a Igreja e o p o d er
m onárquico reduziram , d u ran te m uito tem po, A razão é certam ente discurso crítico diante
o povo a um nível de cu ltu ra extrem am ente da fé, da autoridade e da ignorância. Aliás, se
baixo. D iante dessa ignorância, a razão eleva a ela se limitasse a essa função crítica, isso já teria
cham a das Luzes. N ão é, pois, su rp reen d en te representado um a enorm e contribuição para a
que os filósofos dessa época valorizem a educa­ história do O cidente. M as não é assim. Longe
ção e a instrução. Segundo eles, cada indivíduo de confinar-se apenas à crítica das instituições
deve ter a posse de certa q u antidade de v erd a­ existentes, a razão se m anifestou com o realidade
des, a fim de ser capaz de co n stru ir um a ideia positiva. Esse aspecto positivo da razão se tra d u ­
pessoal sobre as coisas e os acontecim entos que ziu de duas m aneiras diferentes: os direitos do
lhe dizem resp eito 2. indivíduo, assim com o os direitos coletivos e a
O século XVIII está impregnado pela fé universalidade do gênero hum ano.
na unidade e na imutabilidade da razão. O individualism o m oderno nasce realm en­
A razão é una e idêntica para todo sujei­ te no século XVIII. A afirm ação dos direitos do
to pensante, para toda nação, toda épo­
indivíduo é a sua expressão mais eloqüente, no
ca, toda cultura (CASSIRER, 1966: 41).
sentido em que eles se baseiam na ideia de que
Em bora todos possuam a razão, nem todos
todos os seres hum anos possuem a faculdade
dispõem dos instrum entos para exercê-la ade­ de raciocinar e que, po r conseguinte, todos são
quadam ente. Esta será a tarefa da instrução: iguais diante da razão.
Aliás, em seu discurso sobre a razão, os filó­
2 Entretanto, convém precisar que os pensadores das Luzes
sofos das Luzes vão além dos direitos do indiví­
desdenham, geralmente, a instrução do povo. Sua representa­
ção da educação pode ser qualificada de elitista. Por exemplo, duo, para refletir sistem aticam ente sobre o direi­
-a França, só com a revolução de 1789 a educação nacional se to dos povos de se governarem p o r si m esm os e
tomará uma preocupação central e englobará também as ca­
decidir o seu destino. Se todos os seres hum anos
nadas mais pobres da população (cf. JACQUET-FRANCILLON,
1995: 79-88). são iguais, segue-se que a vontade geral de todos
134 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

os indivíduos deve ser o critério sociopolítico bá­ a possibilidade de controle sobre o m undo so­ fatos, uh
sico. Assim, as decisões referentes à coisa pública cial. N este aspecto, ele já não se reduz ao puro então tra
devem necessariam ente ser tom adas por todos e conhecim ento sem objetivo prático, tal com o se das coisa
não apenas pelo rei, pelos nobres ou pela Igreja. podia encontrar ainda no Renascim ento. Em vez Assim, é
Reconhecem os aqui, evidentem ente, o princípio de conhecer sim plesm ente o m undo, trata-se de rer, prep.
motor de to d o regim e dem ocrático. conhecê-lo para dom iná-lo e dobrá-lo à vontade
hum ana. Nesse sentido, o século XVIII contém
o germ e do espírito técnico que, em nossa época, 5.1.6 O
5.1.5 O século do progresso e da ciência tem as suas grandes horas de glória.
N a é]
Apesar de tudo, essa ideologia do progresso um lugar
O século XVIII vê a ideologia do progresso
não se baseia sobre um a pura quim era. Bem ao Luzes” aí
difundir-se p o r todas as cam adas da sociedade.
contrário, ela se enraíza num fato real: os p ro ­ do século
Esse progresso se apoia na ideia de que a razão
gressos das ciências da natureza que são o núcleo
não serve apenas para conhecer o m undo, mas o século
duro do racionalism o. O corre que, ao contrário
tam bém para agir sobre ele. Em vez de procurar te-se, de :
da religião e da filosofia, a ciência é capaz de
atingir o absoluto das coisas, trata-se sim ples­ sofos e, ei
efetuar verdadeiros progressos, no plano tanto
m ente de conhecer a sua natureza pela ex p eri­ p reponde
dos conhecim entos teóricos quanto das técnicas.
ência. Em outros term os, a razão não é um sis­ pensa que
Esse progresso seria, po r natureza, um a contri­
tem a fechado, m as aquilo que em erge dos fatos, ra francês
buição positiva para o ser hum ano e a socieda­
em conseqüência da observação destes, do seu de. Essa visão otim ista se acom panha de um a da Europa
conhecim ento. orientação norm ativa que atribui um a direção N a ve
O poder da razão não é romper os li­ particular ao progresso. Efetivam ente, com o no tenham dí
mites do mundo da experiência para século XVII, as ideias de unidade e de ciência pagação d
abrir-nos uma saída para o mundo da ainda são, no século XVIII, com pletam ente in- de m odo ,
transcendência, mas ensinar-nos a per­
tercam biáveis. Assim, o progresso proveniente de constru
correr com toda a segurança este mun­
da ciência será percebido unicam ente com o um a piraram fc
do empírico, a habitá-lo comodamente
(CASSIRER, 1966: 47). procura de unidade.
e filósofos
A ordenação racional, a dominação racio­ ceses consi
É preciso com preender que o racionalism o do
nal do dado é impossível sem uma rigoro­ listas e críi
Século das Luzes é orientado para a vita activa - e
sa unificação (CASSIRER, 1966: 57).
não para a vita contem plativa com o na escolás­ Jo h n Locfc
tica da Idade M édia isto é, para as realidades O m étodo, a observação e a aplicação técni­ 1727) e D;
ca caracterizam a ciência, a qual se to rn a o m o­
terrestres, para o m undo real, para a vida ati­ M as q
delo geral aplicável diretam ente não só ao estu­
va e prática. Além disso, ao contrário do século contem poi
do da natureza, mas tam bém à análise, à previsão
XVII, o século X V III vê a raz ã o n ã o co m o um tratava-se i
e ao controle das dim ensões sociais e culturais
con teú d o determ inado de conhecim entos, p rin ­ quentavam
do m undo hum ano. Efetivam ente, o ideal m e­
cípios, verdades; mas, antes, com o um a espécie os poderos
todológico da razão - p o rtan to , da ciência e do
de energia, um a força que se percebe com pleta­ pretensão c
progresso - se encontra nas ciências físicas (ou
mente apenas na sua ação ou nos seus efeitos. dem o crátk
ciências da natureza): p artir dos fatos detecta­
O progresso significa, pois, não só a possi­ dos po r observação e m ostrar suas ligações, isto que eles re
bilidade de ação sobre a natureza, mas tam bém é, construir um a representação “sistêm ica” dos dos jornalií
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau

indo so- fatos, indo do particular para o geral. Só resta eram “hom ens da m ídia”, “hom ens públicos” que
ao puro então transpor esses elem entos para a conduta assumiam a tarefa de divulgar os princípios da Fi­
com o se das coisas políticas, econôm icas, educativas etc. losofia das Luzes. Esses filósofos dispunham de
. Em vez Assim, é possível para qualquer sociedade que­ um a arm a temível: a Enciclopédia ou Dicionário
ata-se de rer, preparar e dirigir o seu p ró p rio progresso. com entado das ciências, das artes e dos ofícios\
vontade obra publicada sob a direção de D iderot4 e cujo
[ contém “discurso prelim inar” foi redigido por D ’Alem-
5.1.6 O século dos filósofos
>a época, bert5. Essa enciclopédia tinha por fim reunir em
N a época de Rousseau, a filosofia ocupava um a única obra o conjunto dos conhecim entos e
irogresso um lugar tão im portante que a corrente dita “das das ideias adquiridos até aquele dia.
Bem ao Luzes” acabou dando o seu nom e ao conjunto
: os pro- do século. Assim, com razão, pode-se qualificar
0 núcleo 5.1.7 A consolidação da economia de
o século X V III de século dos filósofos. Assis­
:ontrário mercado
te-se, de fato, ao reinado incontestável dos filó­
capaz de sofos e, entre eles, os franceses ocupam um lugar Nessa época, assiste-se tam bém à propaga­
n o tanto
preponderante. Isso não surpreende, quando se ção de um m odo de produção baseado em uma
técnicas,
pensa que, durante esse m esm o período, a cultu­ econom ia de m ercado. A partir do Renascim en­
ia contri-
ra francesa se afirm a com o a cultura dom inante to, o capitalism o m ercantil - substituindo a an­
socieda-
da E uropa, que serve de m odelo para as outras. tiga organização proveniente do feudalism o - ti-
. de um a
nha-se afirm ado com o o sistema essencial para
1 direção N a verdade, em bora os filósofos franceses
a riqueza das nações europeias (pensam os im e­
com o no tenham desem penhado um papel capital na p ro ­
diatam ente no com ércio com a África e com a
le ciência pagação da Filosofia das Luzes, eles não devem,
A m érica6). E ntretanto, esse tipo de capitalism o
nente in- de m odo algum , receber to d o o crédito. Longe
aveniente de construir a partir do nada, suas obras se ins­
om o um a 3. Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des
piraram fortem ente em vários grandes cientistas
Arts et des Métiers: publicação dirigida por Diderot entre 1751
e filósofos ingleses. Dos escritos destes, os fran­ e 1772 e inspirada em uma obra similar do inglês Chambere
ação racio- ceses conservaram os ideais racionalistas, sensua- (1729), cujo objetivo consistia em divulgar os progressos da ci­
ima rigoro- ência e do pensamento em todos os domínios.
listas e críticos. Seus principais inspiradores são
S: 57). 4. Denis Diderot (1713-1783) foi um escritor e um filósofo fran­
John Locke (1632-1704), Isaac N ew ton (1642-
cês, considerado por seus contemporâneos como o “filósofo por
ção técni- 1727) e David H um e (1711-1776). excelência”.
-na o mo- 5. Jean Le Rond d’Alembert (1717-1783) foi escritor, filósofo
M as quem eram esses filósofos franceses,
5 ao estu- e matemático. Cético em matéria de religião e em metafísica,
contem porâneos de Rousseau? Essencialmente, defensor da tolerância, expôs no seu “Discours préliminaire" da
à previsão
tratava-se de viajantes, ensaístas e críticos. Fre­ Encyclopédie a filosofia natural e o espírito científico que presi­
culturais diam a essa obra.
qüentavam a nobreza, a burguesia; em resum o,
ideal me- 6. Ao longo do século XVIII, um único setor econômico era ver­
os poderosos deste m undo. E ntretanto, tinham a
rncia e do dadeiramente próspero: o comércio de além-mar. Os barcos
pretensão de falar em nom e do povo e dos ideais partiam da Europa carregados de mercadorias de todo tipo (te­
físicas (ou
s detecta- dem ocráticos. Em certo sentido, pode-se dizer cidos, armas etc.), faziam escala na África, a fim de trocar o
seu carregamento por escravos negros que, em seguida, eram
ições, isto que eles representavam o equivalente de alguns
transportados para a América, de onde os barcos voltavam com
mica” dos dos jornalistas da atualidade, na m edida em que açúcar e rum.
136 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

se transform a, pouco a pouco, sob a influência é geralm ente m uito baixo e um a grande parte
decisiva de num erosas descobertas técnicas que dos cam poneses vivem constantem ente à beira
perm item aum entar a produção (por exem plo, da miséria. Essa situação se explica, em parte,
as m áquinas de te c e r7). A ssistim os e n tã o , no pela falta de transporte terrestre econôm ico, rá­
m eio urbano, ao nascim ento das prim eiras m a­ pido e preponderante (no século XIX, a ferrovia
nufaturas, ancestrais das fábricas. virá dim inuir consideravelm ente o problem a).
Esse m ovim ento continua no século XVIII, Por exem plo, é extrem am ente difícil transportar
que serve, de certa form a, de introdução para a rapidam ente o trigo das regiões produtoras para
era da industrialização, cujo triunfo virá no sé­ aquelas que não o produzem . C onsequentem en­
culo seguinte. Pela sua ideologia do individualis­ te, para a grande m aioria da população, a ativi­
m o, da razão e do progresso, o século XVIII ins­ dade econôm ica só ocorre localm ente.
taura um discurso capaz de legitim ar a ascensão Evidentem ente, essa insuficiência crônica de
da classe burguesa, cujos interesses estão estrei­ transporte provoca um a paralisia da indústria.
tam ente ligados ao rápido desenvolvim ento do Se os têxteis ocupam o prim eiro lugar nas trocas
novo m odo de produção presente nas grandes de m ercadorias, não é em função das necessida­
cidades. des reais, mas apenas em função da leveza dessa
E é a Inglaterra que lidera. R ealm ente, o su­ m atéria, que to rn a mais fáceis o seu transporte
cesso do capitalism o, a m onopolização do p o ­ e a sua distribuição. Em contrapartida, os m i­
der econôm ico pela burguesia e a industrializa­ nerais e os combustíveis continuam a ser quase
ção serão m ais rápidos nesse país. D o seu lado, intransportáveis por via terrestre. Além disso, as
a França levará tem po para “to m ar o tre m ”, longas caravanas de carretas às quais se recorre
n o tad am en te em razão de um a distribuição da para o transporte dos víveres essenciais (com o o
população que favorece m uito os m eios rurais sal) exigem investim entos elevados.
(econom ia principalm ente agrícola), das esco­ Em conclusão, digam os que no século XIX as
lhas de certos dirigentes (a m on arq u ia e a n o ­ conseqüências da instauração do m odo de p ro ­
breza não veem im ediatam ente o interesse do dução capitalista serão m uitas, e às vezes dram á­
sistem a capitalista) e dos distúrbios políticos (a ticas para as cam adas mais pobres da população.
Revolução, o Im pério, a R estauração etc.). M as Vamos citar algumas: o aum ento da capacidade
com o se apresenta, pois, a paisagem econôm ica de produção; a criação lenta, mas inevitável, de
do século XVIII? um m ercado de consum idores; o êxodo m aci­
N a época de Rousseau, as bases da econom ia ço dos trabalhadores do cam po para os grandes
ainda são essencialm ente agrícolas; de fato, esse centros urbanos; fenôm eno ligado ao preceden­
setor de atividade ocupa cerca de 80% da p o ­ te, o aum ento da m obilidade geográfica e social;
pulação (BRUNET, 1990: 119). O nível de vida a generalização do sistema salarial, que resulta
todavia em um a extrem a pobreza do povo; a as­
7. A fim de aumentar a produção e responder à demanda cres­
censão irresistível dos valores m aterialistas (que
cente do comércio, a indústria têxtil recorre cada vez mais às terão seu apogeu na segunda m etade do século
máquinas. Por suportar melhor o trabalho mecânico, o algodão XX ); a consolidação da burguesia com o classe
acaba substituindo a lã como produto têxtil de primeira impor­
tância dom inante no plano econôm ico.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 137

5.1.8 O século das reviravoltas políticas e 1783, essa independência foi reconhecida pela
das revoluções Inglaterra.
A Revolução Francesa é realm ente um a revo­
O século XVIII passou p o r num erosas re­
lução do povo contra os privilégios da nobreza e
viravoltas. E vid en tem en te, pensam os logo na
o arbítrio da m onarquia absoluta8. Ela im plicou
G uerra dos Sete Anos, que opõe, entre outros,
vastas transform ações na sociedade francesa: já
a Inglaterra e a França (1757-1763) e da qual o
não é o rei, mas a nação inteira que detém a so­
C anadá é um dos m otivos. Além disso, as guer­
berania. O regime m onárquico não existe mais e
ras e os conflitos assolam todo o territó rio do
dá lugar à república; os poderes legislativo, exe­
Velho C ontinente: p o r exem plo, a conquista das
cutivo e judiciário são agora separados.
regiões do Báltico (1689-1726) e do M ar N e ­
gro (1762-1796) pelos russos, que expulsam os Essas duas revoluções, ocorridas com alguns
turcos; a guerra de sucessão da Polônia (1733- anos de intervalo, são verdadeiram ente a origem
1738); a guerra de sucessão da Áustria (1740- das principais instituições das nossas sociedades
:~48) ; as divisões da Polônia entre a Rússia e a atuais. Por exem plo, ambas enfatizam o papel in­
Áustria (a prim eira em 1772, a segunda e a ter­ dispensável do Estado na afirm ação e na p ro te ­
ceira entre 1793 e 1795). ção dos direitos privados e públicos, assim com o
a im portância do caráter laico das instituições
O século no qual viveu Jean-Jacques Rous-
públicas.
seau foi m arcado tam bém p o r duas revoluções
im portantes que m udaram o curso da história do
Ocidente: a Revolução A m ericana (1776-1783) 5.2 Jean-Jacques Rousseau: o
e a Revolução Francesa (1789). personagem e sua obra

A Revolução A m ericana tom a a form a de 5.2.1 Alguns elementos biográficos


uma guerra de libertação colonial contra o Im ­
pério Britânico. A fim de encher seus cofres es­ Jean-Jacques Rousseau nasce a 28 de junho
vaziados pela G uerra dos Sete Anos, a Inglaterra de 1712, na Suíça, na cidade de G enebra, de
arige im postos e taxas, principalm ente sobre o um pai p ro te sta n te que exerce o ofício de re ­
d iá , das suas treze colônias da Am érica. Os co­ lojoeiro; sua m ãe m o rre no parto . Até a m o r­
lonos se recusam sistem aticam ente a pagar. Se- te de Rousseau, oco rrid a em E rm enonville, na
íue-se então um longo conflito jurídico (1765- França, em 2 de junho de 1778, ele leva um a
1"73), que provoca um a ru p tu ra entre a m etró ­ vida erra n te e m uda duas vezes de religião: aos
pole e suas colônias. D epois de um a prim eira dezesseis anos, renuncia ao p ro testan tism o para
declaração de direitos pelo Congresso de Fila- abraçar a fé católica, m as em 1753 volta à sua
iélfia (1774), pela qual os signatários reivindi­ prim eira confissão. D eixa m uito cedo a fam í­
cam a independência das colônias am ericanas, a
çuerra estoura. O Congresso am ericano aprova, 8. Em 1789, a Assembleia Nacional redige uma constituição para
a n 4 de julho de 1776, a “D eclaração de Inde­ a nação francesa. O absolutismo régio, assim como os poderes
feudais e os direitos nobiliários, são abolidos. A 26 de agosto do
pendência dos Estados U nidos da Am érica”, mas
mesmo ano é proclamado o estatuto revolucionário que afirma
<> com a assinatura do Tratado de Versalhes, em os princípios universais dos direitos humanos.
138 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

lia e exerce vários ofícios. Aos vinte anos, fica Em 1756, Rousseau passa algum tem po na em
conhecendo M adam e de W arens, que se to rn a casa de M adam e d ’Épinay, não longe da floresta dige ub
então a sua benfeitora. É na casa desta que ele de M ontm orency. Ali, pode trabalhar com cal­ francês.
se dedica à leitura e se inicia ao latim e à m ú­ ma. E ntretanto, essa calm a será curta, pois já em Soa
sica. Em 1741, com 29 anos, instala-se em Pa­ 1762 a publicação do E m ílio desperta o ódio dos m divid
ris e lá conhece D iderot. Alguns anos depois, seus inimigos. Rousseau, então, tem de fugir da tico vir
em 1750, sua obra in titu lad a Discurso sobre as França. Prim eiro, chega ao seu país de origem , a Rousse
ciências e as artes lhe p ro p o rc io n a um suces­ Suíça, depois refugia-se na Inglaterra, junto ao o indn
so fortem ente m isturado com escândalo. Essa filósofo H um e, com quem não tard a a se desen­ Com o
p rim eira publicação é apenas o início de um a tender. Uma vez acalm ados os espíritos dos seus caracre
longa controvérsia em to rn o da sua obra. Assim, inim igos, volta a Paris, onde com põe suas últi­ nascen
porque Rousseau denuncia a sociedade da sua mas obras, principalm ente As confissões. se prol
época, seus escritos posteriores lhe atraem m ui­ tende-
tos inim igos (entre o u tros, Voltaire) e lhe valem 5.2.2 As contribuições intelectuais de que a <
m uitos dissabores com os poderes públicos. Rousseau para o seu século conseq
nação
Os elem entos biográficos precedentes p erm i­
Ev
tem que o leitor faça certa ideia do personagem
te do i
que foi Jean-Jacques Rousseau. E ntretanto, a fim
rios as
de apreender bem a im portância desse filósofo, é
as tara
preciso exam inar a diversidade dos seus campos
brilha)
de interesse que incluem tanto a política, a lite­
oêncL
ratura e a m úsica quanto a educação.
em si
C om o verem os depois, Rousseau é um dos ção. a
fundadores do pensam ento político m oderno. portai
C om a sua obra Do contrato social ou Princípios puro.
do direito político, preconiza a igualdade de to ­ servir
dos os seres hum anos e funda a ordem política contr
sobre a ideia de contrato feito entre os cidadãos. a sen
Esse contrato social resultaria das vontades par­ mesqi
ticulares, unidas em um a vontade geral. um c
Rousseau é tam bém um inovador em m a­ menu
téria de lite ra tu ra , assim com o um c o m p o si­ para
to r e teórico da m úsica. N o cam po da escrita, rer à
cria um gênero literário novo: a autobiografia. A
Nesse gênero, suas obras principais serão D eva­ O cid
neios de um passeante solitário e As confissões. tra d i
Jean-Jacques Rousseau N o que se refere à m úsica, com põe um a ópera O COI
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 139

em 1752, in titu lad a O adivinho da aldeia e re ­ m ano, o que significa dizer que o saber não é
dige um tra ta d o teórico, Carta sobre a m úsica apenas diferente da ignorância, m as lhe é tam ­
francesa (1753). bém superior (com o o conhecim ento é bom em
Suas num erosas obras o m ostram com o um si m esm o, o “e ru d ito ” é pois m elhor do que o
individualista, um teórico da liberdade e um crí­ ignorante). O ra, para Rousseau, o conhecim en­
tico virulento das ideias da m oda. Individualista, to só é bom na m edida em que o ser hum ano é
Rousseau o é sem dúvida algum a, pois para ele bom . Em últim a análise, ele afirm a que não há
o indivíduo é o fundam ento da ordem social. nenhum a ligação d ireta entre a ciência e a ética.
Com o teórico, defende que a liberdade é um a
característica p ró p ria a to d o ser hum ano: todos 5.2.3 Chaves para a compreensão da sua
nascem livres e iguais. Essa liberdade individual obra
se prolonga com o liberdade coletiva, e assim, es­
tende-se a to d a a sociedade. Isso eqüivale a dizer Jean-Jacques Rousseau é um hom em de con­
que a soberania é inalienável e indivisível e que, tradições, de paradoxos, que procura a liberdade
consequentem ente, os poderes devem ser a em a­ e a felicidade para o indivíduo, que hesita sem ­
nação do corpo social. pre entre a autonom ia individual e a suprem acia
da sociedade. E tam bém um hom em ressentido,
Evidentem ente, Rousseau é um representan­
te do seu século, mas tam bém o criticará em vá­ convencido de ser vítim a de um a perseguição
rios aspectos. Por exem plo, denuncia vivam ente sistem ática, um hom em que procura o paraíso
as taras do m odernism o, o lado som brio e m enos p erd id o feito da “tra n sp a rê n c ia recíp ro ca das
brilhante do progresso. Segundo ele, a razão, a consciências, [da] com unicação total e confian­
ciência e o progresso são boas coisas, mas não te ” (STAROBINSKI, 1971: 19).
em si mesmas. N a realidade, é a pureza do cora­ A sucessão de vários fracassos confirm a a
ção, a consciência reta, que verdadeiram ente im ­ sua convicção profunda de que a sociedade do
portam . Se o indivíduo não possui um coração século XVIII é basicam ente má. Essa convicção
puro, então o progresso, a ciência e a razão não explica em boa parte o seu projeto de descobrir a
servirão à felicidade da hum anidade. M uito pelo origem da infelicidade dos seus contem porâneos,
contrário, eles podem até tornar-se instrum entos elaborando um a história do ser hum ano (especu­
a serviço das paixões doentias e dos interesses lativa e não baseada na análise de docum entos
m esquinhos. Logo, Rousseau não acredita em concretos) que insiste na sua bondade anterior.
um conhecim ento que fornecesse autom atica­ Em vários aspectos, o pensam ento de Rousseau
m ente a sabedoria. Ao invés de confiar na razão se situa, por isso m esm o, na contram ão do dis­
para guiar a conduta hum ana, ele prefere recor­ curso elaborado pelos filósofos das Luzes.
rer à retidão m oral. Tendo sofrido com a sociedade, Rousseau a
Assim, ele se opõe à filosofia d o m in an te no julga, pois, globalm ente nociva para o ser hum a­
O cidente, desde a época da G récia Antiga. Essa no. Por conseguinte, m ostra em particular sua
tradição se baseia, efetivam ente, na ideia de que desconfiança em relação ao conjunto das carac­
o conhecim ento m elhora a natureza do ser h u ­ terísticas próprias dessa sociedade, da qual a Fi­
140 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

losofia das Luzes se faz, de algum a form a, o eco. 5.2.4 Discurso sobre a origem e os
Assim, para corrigir os excessos possíveis da fria fundamentos da desigualdade entre os
lógica proveniente do reinado absoluto da razão, homens (1755)
ele lhe opõe as vias do coração e do sentim ento.
Esta obra quer ser nada m enos do que um a
E tam bém , às enganosas aparências m undanas,
história da hum anidade. E ntretanto, não se trata
ele prefere a verdade interior dos seres.
de um a pesquisa científica. N a verdade, Rous­
D epois das denúncias dos sintom as do m al seau propõe um a interpretação da história que
social que se en co n tram no Discurso sobre as é apenas verossímil, mas capaz de fornecer um a
ciências e as artes e no Discurso sobre a origem explicação da infelicidade que aflige os seres h u ­
e os fu n d a m en to s da desigualdade entre os h o ­ m anos. Essa história se divide em três períodos
m ens, Rousseau elabora as suas soluções no Do principais.
C ontrato Social, ou Princípios do direito p o líti­
O prim eiro é o do hom em da natureza, que
co e no E m ílio ou Da Educação. É claro que é
se pode definir com o um “anim al pré-sociável” :
com pletam ente ilusório p rete n d er que o ser h u ­
vive sozinho, não dispõe de nenhum a linguagem
m ano possa re to rn a r ao estado de natureza. É,
e é anim ado unicam ente pelo am or a si mesmo.
pois, através de um salto no escuro que se pode
Esse hom em satisfaz suas necessidades im ediata­
reco m p o r artificialm ente as qualidades p e rd i­ m ente, a p artir dos recursos que a natureza lhe
das. Esse salto passa pelas instâncias políticas e fornece. D otado da capacidade de transform ar-se
educativas, que devem resp o n d er tan to quanto em função das circunstâncias (a perfectibilida-
seja possível à n atu reza p ro fu n d a do indivíduo, de), adaptou-se às m odificações do seu am bien­
m odelando as suas ações respectivas sobre essa te, reunindo-se aos seus sem elhantes para criar
natureza. as prim eiras sociedades. Esse reagrupam ento era
D urante a sua vida, Rousseau foi alvo de necessário para a sobrevivência da espécie.
violentos ataques em razão do seu antirraciona- O segundo período se caracteriza pela aqui­
lismo e da sua aparente hostilidade em relação sição do conjunto das diferentes qualidades p ró ­
ao progresso. Isso não im pedirá Kant de adm irar prias aos hum anos: a piedade (prim eiro senti­
profundam ente esse pensador da liberdade indi­ m ento adquirido pelo hom em da natureza), a
vidual. Aliás, a sua visão antropológica antecipa linguagem, o pensam ento. Vive em total h arm o­
as de H egel e M arx e, no século XX, a etnologia nia, ao m esm o tem po com os m em bros da socie­
irá evocá-lo com o um dos seus mais em inentes dade e com a natureza que o cerca. Essa é, para
precursores. Acrescentem os que a sua obra Do Rousseau, a verdadeira Idade de O uro da hum a­
Contrato Social, ou Princípios do direito político nidade, im pregnada de transparência.
constitui, ainda hoje, um elem ento inevitável da M as esse estado de graça não perdurou. Efe­
reflexão política. tivam ente, a desigualdade física entre os indiví­
A fim de apreender m elhor o seu pensa­ duos (fenôm eno natural) acarreta um a deterio­
m ento, vamos agora lançar um olhar sobre duas ração com pleta das relações e a perversão das
obras im portantes de Rousseau, que estão estrei­ qualidades hum anas. Com eça então o terceiro
tam ente ligadas ao E m ílio. período, o da sociedade do parecer. N essa so-
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 141

- rdade, já não se pode falar do hom em da n atu ­ 5.3 O pensamento educativo de


reza; surge um novo tipo de hom em , o hom em Rousseau
social. Seu aparecim ento se explica pela incapa­
Vamos agora abordar o pensamento de Rous­
cidade dos seres hum anos para exercer um con­
seau sobre a educação9. Aqui, a obra de referência
trole adequado dos efeitos negativos da própria
é o E m ílio ou Da educação, publicada em 1762
satureza. Aqui com eça a alienação com seu cor-
e que provocou vivas reações entre os dirigen­
Tejo de efeitos negativos: a m entira, o ciúm e, o
tes da época. Em um prim eiro tem po, apresen­
a n o r-p ró p rio etc. N a política, essa decadência se
tarem os sucintam ente essa obra, situando-a em
traduz por um regim e tirânico.
relação ao conjunto da sua obra. O E m ílio for­
m a, efetivam ente, um a espécie de tríptico com
5.2.5 Do Contrato Social, ou Princípios do o Discurso sobre a origem e os fundam entos da
rreito político (1762) desigualdade entre os hom ens e o D o Contrato
social, ou Princípios do direito político. Em um
C o n statan d o que a sociedade repousa, na segundo tem po, indicarem os em que sentido o
■taior p arte do tem po, sobre a au to rid ad e pa- E m ílio pode ser qualificado com o discurso p o ­
arna, a vontade divina ou ainda sobre a força lítico. D epois, deduzirem os os dois princípios
truta, Rousseau tem neste livro o objetivo de fundam entais da pedagogia rousseauísta, assim
estabelecer a legitim idade de um p o d e r político, com o as suas três leis psicológicas e seus corolá­
cajo alicerce teria raiz em um pacto de associa­ rios pedagógicos, tirando quatro conseqüências
ção, em que cada indivíduo se em penhasse vo­ educativas mais im portantes desse pensam ento.
luntariam ente em relação ao conjunto dos seus Finalm ente, farem os ressaltar, num quadro, os
sem elhantes, ren unciando assim à sua liberda­ elem entos inovadores das ideias de Rousseau.
de individual natural. Em retribuição, a socie­
dade lhe g arantiria o status de cidadão. Esse 5.3.1 Emílio ou Da educação (1762)
.cjíM5 se caracterizaria pela igualdade jurídica
e m oral e pela liberdade civil. Dessa m aneira, O E m ílio é m uitas vezes apresentado com o
haveria a passagem da independência original um a espécie de vasto tra ta d o de “pedagogia
para a liberdade política. Ao m esm o tem po, se- n atu ral”. N a realidade, Rousseau “posiciona a
r_a possível desenvolver um a v erd ad eira m oral criança a educar em situações geralm ente arti­
ficiais, organizadas ou controladas pelo precep-
que respondesse às necessidades e aos desejos
t o r ” (D U R O Z O I & ROUSSEL, 1990: 292).
i a vontade geral. Essa vontade geral, aliás, não
Assim, a importância histórica dessa obra deve-se
corresponderia à som a das vontades individu­
sobretudo ao fato de que Rousseau afirm a a es­
ais e dos interesses particulares, m as, antes, à
pecificidade da infância e da sua m entalidade.
expressão da soberania do povo (de quem o
legislador é o in térp rete). E já que essa sobera­ 9. Rousseau concebeu seu projeto educativo, acima de tudo,
nia perm aneceria sim ultaneam ente inalienável para os rapazes. À semelhança de seus contemporâneos, ele
entende a educação das moças com o objetivo de se tornarem
e indivisível, os poderes deveriam ser apenas a
boas auxiliares do homem. Na sociedade pensada por Rous­
em anação do corpo social. seau, a mulher fica confinada ao universo doméstico.
142 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Annguiuau^ _____

Essa afirm ação acarreta certo núm ero de conse­ dam ental e prim eiro. Esse princípio prim eiro a
qüências, não só para o ensino de m atérias, tais que Rousseau faz alusão é a natureza. A tarefa
com o a geografia ou a m atem ática, mas tam bém da educação será justam ente realizar esse retor­
para o ensino da religião. De fato, com o dizem no “e restaurar no indivíduo-criança, enquanto
D urozoi e Roussel (p. 292): ele ainda não está m odificado pelo seu am biente
[A pedagogia de Rousseau demonstra] a social, a espontaneidade do julgam ento e do sen­
inutilidade de uma educação prematura tim en to ” (OTTAVI, 1995: 20).
(pois a criança é incapaz de compreendê-la)
Vimos anteriorm ente que os valores veicu­
e [preconiza] o acesso a Deus apenas pe­
las vias do coração [...] independente­ lados por Rousseau são o individualism o, a li­
mente dos textos e intermediários consa­ berdade e a bondade do coração. A educação
grados - o que acarretará a condenação representa, pois, para ele, um m eio de sair da
da obra pelo arcebispo de Paris. história e retom ar o ser hum ano em seu esta­
Do m esm o m odo que o Discurso sobre a ori­ do natural (retorno involutivo). Nesse sentido,
gem. e os fundam entos da desigualdade entre os a educação, para Jean-Jacques Rousseau, é um
homens, o E m ílio faz parte de um a história con­ m eio político. Isso significa que, com a ajuda da
jectural. Aliás, a obra é estreitam ente associada educação, o autor do Em ílio quer prom over uma
ao Contrato social (os dois livros são publicados reform a profunda do indivíduo, tom ando-o tal
no m esm o ano) já que propõe um program a com o ele é no seu estado de natureza original.
educativo adaptado a um a verdadeira sociedade C onsequentem ente, essa natureza desem penha
política. Rousseau quis enunciar um a filosofia, um duplo papel: ao m esm o tem po origem e m o­
form ular um discurso contínuo sobre o hom em , delo10. Rousseau quer reform ar a sociedade, que
sobre suas origens, sua história, suas institui­ se to rnou má e pervertida, po r ter se afastado
ções. O E m ílio é um a psicologia genética sobre demais da natureza. C riar um ser hum ano “na­
a qual se apoiam um a ped ag o g ia, um a relig ião tu ral” pela educação é, nesse sentido, criar um
(ou “re lig io sid a d e ”) e um a política (STARO- indivíduo livre, que poderá m udar a sociedade
BINSKI, 1971: 321-322). (uma revolução social não se faz sem um a revo­
lução educativa).

5.3.2 A educação como política: É preciso com preender bem que, na sua óti­
natureza-cultura ca, a natureza hum ana é po r essência um estado
de perfeição. E a sociedade que faz o indivíduo
Frequentem ente, Rousseau é acusado de ser sair desse estado: o que se traduz m uitas vezes,
ingênuo, tendo concebido um utópico paraíso segundo Rousseau, por um a degradação m oral
perdido onde o hom em , em estado natural, seria da sociedade e dos seus m em bros. A im perfeição
totalm ente bom. N a verdade, essa não é a ideia vem da inadequação entre os desejos e a natureza
que o anim ava. O sentido do seu pensam ento real do sujeito. O ra, justam ente, a sociedade faz
é, de preferência, que o desenvolvim ento deve
necessariam ente fazer um reto rn o involutivo so­ 10. O ser humano “natural” é não só o do início da humanidade,
bre algo de “arcaico”, no sentido p ró p rio da raiz mas também o ser humano na sua pureza, aquele cujas virtudes
morais não foram alteradas pelas influências nefastas da socie­
grega arkhe, isto é, voltar a um princípio fun­ dade. A origem indica o modelo a seguir.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 143

~^scer desejos inapropriados à natureza dos seres te. Por quê? Porque o ideal, para qualquer ser
iu m an o s. É por isso que, se querem os evitar a hum ano, consiste em estar plenam ente ad apta­
corrupção do indivíduo, é preciso m odelar a edu­ do à sua sociedade (am biente). Essa adaptação
cação sobre a natureza (a natureza é um m odelo se verifica tanto pelo equilíbrio estreito existente
porque ela é estado de perfeição). Fato im portan- entre as suas necessidades e os m eios de que ele
o ser natural que ainda não foi corrom pido dispõe para realizá-las quanto no equilíbrio en­
pela sociedade é precisam ente a criança. tre as suas diferentes faculdades e os desejos que
E ntretanto, Rousseau não afirm a que o adul- o habitam . Essa é a condição da felicidade.
K> deva se m odelar sobre a criança. Sua afir­ Rousseau c o n sta ta que seus c o n te m p o râ ­
mação é sim plesm ente que a criança é um ser neos habitam um m undo corrom pido, que não
hum ano em estado de natureza, isto é, não des- os to rn a felizes. C om desejos ilim itados que não
naturado pela sociedade. Por outras palavras, a aprenderam a controlar, eles se sentem mise­
criança representa o ser hum ano m enos m odifi­ ráveis. Para m odificar essa decadência m oral,
cado pela ação socializadora da cultura; p o rta n ­ Rousseau im aginou um a sociedade (no Contrato
to , está mais próxim o da natureza que o adulto, social) e um indivíduo (no Em ílio) plenam ente
e mais perfeito, considerando que a natureza é adaptados um ao outro.
percebida com o um estado de perfeição. Para Para to rn ar o ser hum ano feliz é preciso pôr
conservar essa pureza, convém educar a criança um freio aos seus desejos. Essa lim itação deve
segundo sua natureza de criança, ou seja, con­ vir da natureza e não da cultura, pois só as coa­
siderar a natureza com o guia. Por isso m esm o, ções da natureza podem ser realm ente sentidas
é preciso conhecer a natureza da criança. Nesse com o um a necessidade. Assim, pela educação,
sentido, Rousseau vai elaborar um a verdadeira a criança será levada a sentir a necessidade das
teoria da infância, identificando cinco estágios coisas, a fim de que ela se to rne mais tarde um
Je desenvolvim ento (voltarem os posteriorm ente ser totalm ente adaptado ao seu m eio. Em outras
a esse ponto). palavras, educada segundo a natureza, a criança
Se a natureza representa um estado de per- aprende a necessidade das coisas e não o arbítrio
reição, nem por isso o indivíduo deixa de viver dos hom ens. Tornando-se adulta, ela será feliz,
em sociedade (é um ser social, dirão os sociólo­ pois terá feito a experiência dos limites fixados
gos); por conseguinte, ele não pode ser deixado pela p rópria natureza. Terá assim aprendido a
no estado de natureza. Além de se adaptar ao seu refrear os seus desejos.
ambiente natural, ele deve adaptar-se ao seu am ­
biente social; p o r isso, é preciso educá-lo. M as
essa educação, se desejamos que ela faça com
5.3.3 Os princípios na educação
que o hom em e a m ulher sejam realm ente felizes,
rousseauísta
deve conciliar natureza e cultura. Uma leitura atenta do Em ílio perm ite deduzir
Essa conciliação será conseguida pela educa­ dois princípios fundam entais na educação: o ho­
ção da criança segundo a sua natureza de criança. m em não é um meio, mas um fim; quanto ao ou­
Em resum o, o educador terá com o tarefa form ar tro princípio, é preciso redescobrir o hom em na­
um indivíduo em harm onia com o seu am bien­ tural. Vamos analisá-los de form a mais detalhada.
A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

O homem não é um meio, mas um fim seres hum anos para a da natureza, pois ela é a
única sobre a qual não se tem nenhum controle
Para os pedagogos que precederam Rousseau,
(além disso, ela é a mais geral, e Rousseau procu­
todos os princípios de educação tinham como ca­
ra justam ente form ar um ser hum ano “inteiro” e
racterística querer form ar o hom em em vista
não um indivíduo para tal tipo de sociedade ou
de algum a coisa. Por exem plo, educava-se com
tal época particular). R ecorrendo ao m odelo da
o objetivo de to rn a r o hom em sensato, crente,
natureza, a pedagogia pode escapar ao arbítrio
para fazer dele um cidadão, um erudito, um le­
e ter um objeto de conhecim ento, um objeto de
trado etc. A educação utilizava o hom em de ta ­
observação, m atéria de um a ciência sobre a qual
m anho reduzido (a criança) com o um m eio para
ela poderá se basear.
atingir um objetivo, realizar um m odelo.
N a ótica de Rousseau, a situação deve m udar
Redescobrir o homem natural
radicalm ente. Ele não trata o hom em e a crian­
ça com o m eios, mas, antes, com o fins absolutos. Em suma, à sociedade e à cultura, Rousseau
Para ele, a educação não deve procurar form ar opõe o estado de natureza: as duas prim eiras são
um tipo de hom em ou de m ulher em particular, corrom pidas, enquanto a segunda é pura.
mas o hom em e a m ulher em sua p rópria essên­ Toda a nossa sabedoria consiste em pre­
cia. É po r isso que, ao longo da obra, Rousseau conceitos servis; todos os nossos costu­
procura constantem ente afastar o acidental, o mes são apenas sujeição, mal-estar e coa­
variável, a fim de encontrar o essencial. A edu­ ção. O homem civil nasce, vive e morre
cação deve perm itir e favorecer a form ação do na escravidão: quando nasce, é enfiado
em uma fralda; quando morre, é fecha­
pró p rio ser hum ano, o ser hum ano tal com o ele
do em um caixão; enquanto ele con­
é na sua natureza profunda. Esse indivíduo livre
serva a figura humana, é acorrentado
e único é ao m esm o tem po desejo, necessidade, pelas nossas instituições. (ROUSSEAU,
paixão, razão, sentidos e intelecto. 1966: 43)
A realização desse objetivo passa po r três Segundo ele, deve-se a d o ta r a atitu d e de não
tipos de educação: aquela que vem da natu re­ in terferir e deixar a n atu reza ser o que ela é (a
za (desenvolvim ento das faculdades e órgãos); natureza é um m odelo, um guia que o pedago­
aquela que vem dos hom ens (usos desse desen­ go deve seguir). A educação não deve superpor
volvim ento); e aquela que vem das coisas (a ex­ à criança um a cultura com o segunda natureza
periência pessoal sobre os objetos). artificial, mas deixar a criança se desenvolver
A pedagogia deve harm onizar esses três ti­ livrem ente, sem entravar o seu desenvolvim en­
pos de educação. Para isso, o ser hum ano deve to. C om o se deu a en te n d e r an terio rm en te, a
saber que ele não tem nenhum controle sobre educação deve im itar a n atu reza e seguir o de­
a natureza e m uito pouco sobre as coisas. Só a senvolvim ento natu ral da criança em to d o s os
educação dos hom ens e das m ulheres está ao seu pontos de vista: afetivo, moral, intelectual. Assim,
alcance. A ação educativa deve, po r conseguinte, p o d e rá nascer um hom em m elhor em um a so­
orientar a educação das coisas e a educação dos ciedade m elhor.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 145

5.3.4 As leis na educação rousseauísta ral. Existe aqui um a inversão de ideias absoluta­
m ente capital.
D epois de term os apresentado os dois p rin ­
Para Rousseau, a criança tem um a natureza
cípios fundam entais da pedagogia de Rousseau,
vamos indicar com precisão as leis psicológicas que lhe é própria e é diferente da natureza do
em que repousa esse sistema. Sem mais com en­ adulto. E assim que hoje Rousseau recebe legi­
tários, vam os expor aqui, de m odo esquem ático, tim am ente o título de descobridor da infância
as três leis e seus corolários. com o estado fundam ental da vida, estado dis­
tin to da existência adulta. C om essa tese funda­
1) Prim eira lei psicológica: A natureza fixou
m ental nasce to d a a pedagogia m oderna que se
as leis necessárias ao desenvolvim ento da
criança. baseia não sobre um conhecim ento daquilo que
- C orolário pedagógico da prim eira lei: a criança deve ser quando for adulta, mas, antes,
O docente deve respeitar a m archa da sobre aquilo que ela é (um conhecim ento da sua
evolução m ental da criança. natureza própria).

2) Segunda lei psicológica: O exercício da N a verdade, Rousseau faz a seguinte per­


função a desenvolve e prepara a eclosão de gunta: quem é a criança? Aliás, na sua célebre
funções posteriores. obra E m ílio, ele afirma: “Tente conhecer seu
• C o ro lário pedagógico da segunda aluno, antes de educá-lo”. Essa ideia im plica
lei: O docente deve d eix ar a função um a observação da criança, a fim de apreendê-la
agir segundo o seu m odo: m antendo-a tal com o ela é. É po r isso que Rousseau insiste
sob controle, guiando-a, sem esmagá-la tanto na im portância do exam e m inucioso. De
com raciocínios, tan to livrescos e teó ri­ certa form a, ele poderia ser qualificado com o o
cos quanto prem aturos. precursor de um a pedagogia que pretende ser
3) Terceira lei psicológica: A ação natural é científica, porque se apoia sobre um a psicologia
aquela que tende a satisfazer o interesse ou a experim ental.
necessidade do m om ento.
Aqui, há um princípio im portante. A peda­
• C o ro lário pedagógico da terceira
gogia de Rousseau é inovadora no sentido em
lei: O docente deve incitar o aluno a
que ela apresenta um caráter psicológico (co­
aprender.
nhecer a psicologia da criança). M as disso deriva
um caráter ainda mais geral. Essa psicologia não
5.3.5 As conseqüências educativas se baseia sobre ideias preconcebidas, ideologias,
dos princípios e das leis da pedagogia preconceitos que traduzem os sentim entos e as
rousseauísta aspirações dos pedagogos. Ela se fundam enta so­
bre a observação feita a partir de critérios objeti­
A criança-modelo: seu conhecimento e seus
vos. Assim, Rousseau tem o m érito de instituir os
estágios de desenvolvimento
princípios básicos de um a psicologia da criança
Os hum anistas to m a ram o hom em com o verdadeiram ente científica. Por exem plo, ele de­
m odelo educativo; p o r sua vez, Rousseau tom a fende que o desenvolvim ento da criança passa
a criança com o m odelo do indivíduo ideal, n atu ­ po r diferentes estágios naturais:
146 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

• a idade das necessidades (o estágio infan­ aliás, esse processo repousa, essencialm ente, na
til); observação direta e na experim entação. Trata-se,
• a idade do desenvolvim ento dos desejos efetivam ente, de fornecer à criança as ferram en­
e dos sentidos (a idade da puerilidade, indo tas necessárias para que ela possa conhecer por
até os 12 anos); si m esm a (a aprendizagem po r si m esm o, através
da observação e da experim entação, é a condição
• a idade do senso com um ou a idade da ra­
indispensável para que o aluno utilize plenam en­
zão (o estágio interm ediário, isto é, dos 12 te a sua razão). As ferram entas de conhecim ento
aos 15 anos); são, nesse pon to , m uito mais im portantes do que
• a idade dos sentim entos (o período da ad o ­ os próprios conhecim entos. O que eqüivale a di­
lescência, isto é, dos 15 aos 20 anos); zer que, em educação, a qualidade predom ina
• a idade do casam ento, da vida de trabalho, sobre a quantidade.
da parentalidade e do exercício dos direitos Lembrem-se sempre de que o espíri­
do cidadão (a m aturidade, após os 20 anos). to da minha instituição não é ensinar
à criança muitas coisas, mas impedir
A educação deve resp e ita r esses estágios. que, em seu cérebro, entrem ideias que
N esse sentido, Rousseau pode ser visto com o não sejam justas e claras (ROUSSEAU,
um dos precursores da psicologia dos estágios do 1966: 220).
desenvolvim ento que, no século XX, será con­ Além disso, a pedagogia rousseauísta adota o
sideravelm ente aprofundada, notadam ente por princípio de que é mais im portante form ular um
Piaget. juízo bem fundam entado do que dispor de um
am plo conhecim ento. A observação e a experi­
m entação visarão, pois, desenvolver a capacida­
A criança ativa e responsável pela sua educação
de de julgam ento do aluno.
Segundo a tese de Rousseau, a criança, à se­
m elhança do adulto, é livre e essa liberdade deve
O objetivo da educação: formar um ser
ser respeitada. Isso significa que o seu papel na
humano livre
educação não deve se resum ir ao de um ser pas­
sivo, que recebe o conhecim ento do exterior. D o que foi dito acim a decorre que, para
M uito ao contrário, o educador deve fazer dela Rousseau, o objetivo da educação não é p reen ­
um ser ativo, cuja ação contribui fundam ental­ cher a cabeça das crianças com mil e um a coisas
m ente para a sua p ró p ria form ação. inventadas e im aginadas pelos adultos. Trata-se
Por isso m esm o, o papel da educação não m uito mais de favorecer o seu livre desabrochar
é reduzir a criança a um a atitude passiva, mas, natural. O que se deve form ar não é um tipo de
antes, servir-se da sua atividade natural - por hom em em particular, mas o próp rio hom em ,
exem plo, suas b rin cad eiras, suas ex p lo raçõ es um “inteiro un itário ”, isto é, um indivíduo livre
sensoriais, seus interesses, suas necessidades - e responsável.
com o base do seu processo educativo (apren­ Em suma, o objetivo derradeiro da educação
dizagem). Assim, para Rousseau, a criança deve é forjar um hom em livre. O ra, o hom em pode
ser ativa durante o processo de aprendizagem ; tornar-se livre, com a condição de ser tratado
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 147

com o um ser livre desde o nascim ento. Nesse a natureza é um estado de perfeição; logo ela
sentido, para o a u to r do E m ílio, a liberdade não é boa em si mesma). N o estado de natureza, o
se aprende, mas se desenrola na atividade h u ­ indivíduo é m oralm ente inocente (bom); conse­
mana. E p o r isso que é preciso deixá-la ser. N ão quentem ente, não se deve estragar essa inocente
se pode ensinar a ser livre, pois a liberdade está bondade com um a ação arbitrária fundada em
inscrita na p rópria natureza do ser hum ano. preconceitos próprios a um a época específica. A
criança deve evoluir em um m undo puram ente
físico, sem m oral.
Uma maneira de educar: a educação negativa
N a perspectiva de Rousseau, o papel do edu­
O que é a educação negativa? Para responder cador consiste principalm ente em proteger seu
a essa pergunta vamos dar a palavra a Rousseau aluno contra os malefícios da sociedade, contra
1966: 149): “Jovem m estre, anuncio-lhe um a
as influências nefastas da cultura e seu cortejo de
arte difícil, ou seja, governar sem preceitos e fa­
corrupções e preconceitos11. N este ponto, lem ­
zer tudo sem fazer n ad a”. A verdadeira ideia da
brem os que, para ele, a sociedade é c o rru p to ­
educação negativa se encontra nessa frase, resu­
ra da natureza hum ana quando, no com eço do
mida nesse simples convite do filósofo. Assim,
E m ílio, declara: “Tudo é bom ao sair das mãos
quando se fala de educação negativa, faz-se re-
do A utor das coisas, tudo degenera entre as mãos
rerência a um a educação em que o indivíduo e a
do hom em ” (ROUSSEAU, 1966: 35).
sociedade são excluídos, em proveito da natu re­
za; um a educação que recusa as opiniões e a m o­ Se o pedagogo deixa a natureza agir, nem por
ral; um a educação em que o m estre não produz isso fica reduzido a um papel totalm ente passivo.
nenhum a ação inform ativa, pois a aprendizagem N a verdade, seguindo escrupulosam ente a n atu ­
deve vir da experiência das coisas e não do co­ reza, ele escolhe ao m esm o tem po o conteúdo
nhecim ento pelas palavras. C item os novam ente (experiências e observações) e o m om ento p ro ­
o autor do Emílio: pício para adm inistrá-lo.
Torne o seu aluno atento aos fenômenos Já que o contraditório de toda posição
da natureza; logo ele se tornará curioso; falsa é uma verdade, o número de verda­
mas, para alimentar a sua curiosidade, des, assim como de erros, é inesgotável.
nunca se apresse em satisfazê-la. Situe Existe, pois, uma escolha nas coisas que
as questões ao seu alcance e deixe que se deve ensinar, assim como no tempo
ele as resolva. Que tudo o que sabe, em propício para aprendê-las (ROUSSEAU,
vez de depender do que lhe foi dito, seja 1966: 213).
o resultado do que compreendeu por si Isso não exclui que a criança deva fazer suas
mesmo; que ele não aprenda a ciência,
próprias experiências.
mas a invente (ROUSSEAU, 1966: 215).
É po r isso que a criança deve ser capaz de se
A educação negativa à m aneira de Rousseau
expressar com a mais total liberdade. Por conse­
deixa a natureza agir. A criança aprende pela
guinte, Rousseau propõe isolá-la da fonte nega­
sua própria experiência diante das coisas. Logo,
nada de discurso teórico ou moral. Para Rousseau,
11. Por exemplo, o educador Rousseau leva o seu aluno Emí­
a m elhor m oral é aquela que vem diretam ente
lio ao campo, a fim de subtraí-lo às numerosas distrações da
da natureza (é preciso lem brar que, para ele, cidade.
148 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

tiva representada pela sociedade dos adultos. A Mestre, poucos discursos; mas ensine a
educação ideal se faria sob a form a de precep- escolher os lugares, os tempos, as pes­
soas e depois dê todas as suas lições com
torado. O que significa isso? O educador e seu
exemplos, e fique certo do seu efeito
aluno estarão continuam ente na presença um do (ROUSSEAU, 1966: 301).
outro. O único m estre da criança será o seu edu­
cador e este terá apenas um único aluno. Aliás, Não me canso de repetir: em todas as li­
a relação professor-aluno não se reduzirá a um a ções dos jovens, sirva-se da ação, em vez
simples interação pedagógica, mas oferecerá dos discursos; que eles evitem aprender
tam bém um a forte dim ensão afetiva. nos livros tudo aquilo que pode ser en­
sinado pela experiência (ROUSSEAU,
R ousseau e la b o ro u , p ois, um a ped ag o g ia 1966: 328).
ativa (a criança participa inteiram ente do p ro ­ Em resum o, a pedagogia de Rousseau pode
cesso de aprendizagem ), concreta (ela recorre à ser qualificada com o negativa, na m edida em que
observação), essencialm ente utilitária (ela prepa­ propõe intervir o m enos possível junto à criança,
ra para a vida entre os m em bros da sociedade), a fim de deixá-la fazer as suas próprias experiên­
centrada na experim entação e não no estudo li- cias. O desafio a enfrentar pelo educador con­
vresco ou nos discursos m agistrais (são as coisas siste não só em afastar a corrupção oriunda da
e não os discursos que devem falar porque as p ri­ sociedade (a fim de que a natureza possa se reali­
m eiras, ao contrário dos segundos, têm a força zar em toda a sua beleza), mas tam bém em criar
da necessidade). Através dos diferentes estágios no aluno o gosto pela instrução. Assim, longe de
do seu desenvolvim ento, a criança aprende dire­ im por os seus desejos, o educador deve levar o
tam ente, no contato com as coisas e não com p a­ aluno a desejar aprender p o r si m esm o. E p re­
lavras ou ideias. É assim que a sua razão natural ciso que a criança tenha prazer em instruir-se:
p o d erá se desenvolver saudavelm ente, evitando “O talento de instruir é fazer com que o discípu­
lo tenha prazer com a instrução” (ROUSSEAU,
a contam inação pelos preconceitos.
1966: 323). É com essa condição que o m estre
Evitem mostrar à criança tudo o que ela
poderá dizer: “missão cum prida”.
não possa ver. Enquanto a humanidade
for quase estranha para ela, sendo inca­
paz de elevá-la ao estado de homem, re­
baixem para ela o homem ao estado de 5.3.6 Uma comparação entre a
criança. Pensando naquilo que lhe pode pedagogia do século XVIII e o
ser útil em outra idade, falem-lhe ape­ pensamento educativo proposto por
nas daquilo cuja utilidade ela vê desde Rousseau
agora (ROUSSEAU, 1966: 238).
Antes de concluir este capítulo, e com a fina­
lidade de ressaltar a radical novidade das ideias
Em vez de lhe ensinar uma verdade, tra­
ta-se sobretudo de lhe mostrar como se de Rousseau, vamos com parar agora, no Q uadro
deve proceder para descobrir sempre a 5.1, a pedagogia do século XVIII e o pensam ento
verdade (ROUSSEAU, 1966: 267). educativo pro p o sto por Jean-Jacques Rousseau.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 149

Quadro 5.1 Uma comparação entre a pedagogia do século XVIII


e o pensamento educativo de Rousseau

A pedagogia estabelecida no A formulação de um novo ideal segundo


século XVIII Rousseau

A concepção da criança ou A criança deve imitar o mais possível A criança é o seu próprio modelo. Ela é
do educando o adulto, que é o seu modelo. No naturalmente boa e livre. Ela é até melhor do que o
plano educativo, a criança é, pois, adulto, pois este é corrompido pela civilização.
um simples meio cujo fim reside no
adulto.

A concepção do mestre ou O mestre constitui o polo importante 0 mestre constitui o polo secundário da relação
do docente e ativo da relação pedagógica. pedagógica. Deve estar a serviço da criança. O
A criança deve, essencialmente, saber nasce da criança.
escutar. 0 saber flui do mestre para
o aluno.

A concepção da A aprendizagem se faz de modo A aprendizagem parte do princípio de que o ser


aprendizagem tradicional: obediência e imitação dos humano possui em si mesmo a razão. A educação
modelos, sofistica, retórica. procura favorecer o desenvolvimento do homem
completo.

Conclusão

Jean-Jacques Rousseau foi um dos principais pensadores


do século XVIII e sua influência ainda se faz sentir em nos­
sos dias. Sua concepção educativa é funcional, im plicando
um a visão exclusivam ente utilitarista da cultura: a criança
só deve aprender aquilo que lhe será diretam ente útil du­
rante a sua existência. O pensam ento educativo de Rous­
seau se baseia em certo núm ero de noções fundam entais,
que exam inam os nas páginas anteriores. Vamos resumi-las
rapidam ente:
• A pedagogia deve ser fundada na observação da crian­
ça e ligada a um a teoria geral da natureza hum ana.
• Existe um a natureza própria à alm a infantil.
• É preciso distinguir as etapas sucessivas do desenvol­
vim ento natural.
• A educação pelas coisas deve predom inar sobre a edu­
cação p o r palavras e, consequentem ente, os m étodos
sensitivos, intuitivos e ativos devem ser privilegiados.
150 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

• A aprendizagem só é válida na m edida em que m obili­


za o interesse da criança.
• N ão pode haver revolução das instituições e dos cos­
tum es sem um a revolução da educação.
O E m ílio foi, para o seu tem po, um a obra particular­
m ente revolucionária. Essa obra efetuava um a inversão sem
precedentes da concepção da criança e da educação que lhe
deveria ser dada. E ntretanto, a “pedagogia” de Rousseau,
baseando-se sobre um a relação face a face entre um m estre e
um aluno (o preceptorado), se presta m uito mal a um a adap­
tação para as escolas urbanas. N a verdade, de que m aneira o
seu m étodo poderia ser aplicado ao ensino de um grupo de
alunos? Rousseau não respondeu a essa pergunta, e se desin­
teressou totalm ente dessa questão. Nesse sentido, pode-se
afirm ar que ele im aginou um m étodo educativo “aristocráti­
co”, reservado a alguns m em bros privilegiados da sociedade.
É po r isso que, além das experiências de Pestalozzi e de
alguns outros pedagogos, o pensam ento de Rousseau teve
finalm ente poucos efeitos sobre as práticas educativas dos
séculos XVIII e XIX, que transm itirão o essencial dos p rin ­
cípios pedagógicos herdados do século XVII. Aliás, em m a­
téria de educação, no século X IX , o interesse será focalizado
sobretudo nas questões legislativas, em vez das questões pe­
dagógicas. Em certo sentido, será preciso esperar o com eço
do século X X para que reapareçam as ideias de Rousseau,
retom adas dessa vez pela corrente da pedagogia nova.

Resumo

Este capítulo apresenta a contribuição de Jean-Jacques


Rousseau no cam po da educação. Para com preender em m e­
lhores condições sua obra, convém apreender o contexto
histórico em que evoluía o filósofo de origem suíça. Nesse
sentido, analisam os um a im portante corrente de pensam en­
to no século XVIII, a Filosofia das Luzes, que representa o
triunfo da racionalidade através da ciência, das artes e da
técnica, cujo desenvolvim ento - segundo se presum ia - ga­
rantiria o progresso da hum anidade. Jean-Jacques Rousseau
foi um im portante pensador político, tendo preconizado a
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau

nobili- igualdade de todos os seres hum anos m ediante um acor­


do, um contrato pactuado pelos cidadãos. Nesse sentido,
ele é um dos fundadores do pensam ento político m oderno.
os cos-
Se Rousseau é um pensador do Século das Luzes, nem por
isso deixou de criticar algumas ideias em voga na época:
ricular-
p o r exem plo, aquela segundo a qual a ciência garantiria a
ão sem
felicidade. Ao reinado absoluto da razão, ele opunha as vias
}ue lhe do coração e da verdade interior; ele tentava encontrar, de
usseau, novo, a bondade original perdida no âm bito de um a socie­
íestre e dade em que todos são iguais e livres. O E m ílio, seu célebre
a adap- tratad o de educação, inscreve-se nessa visão da sociedade;
neira o nessa obra, ele relata a educação natural de Emílio que, ao
upo de reencontrar sua bondade original perdida, será capaz even­
: desin- tualm ente de m udar a sociedade.
>ode-se
tocráti-
iedade. Questões
íz íe de
1) O que é a Filosofia das Luzes e quais são as suas p rin ­
au teve
cipais ideias?
ras dos
>s prin- 2) Em que sentido a concepção da natureza hum ana de
ím ma- Rousseau influencia a sua concepção de educação?
alizado 3) Descreva a Teoria do D esenvolvim ento da Criança,
ões pe- tal com o é concebida p o r Rousseau.
:om eço 4) Q ue papel d esem penha o ed u cad o r na pedagogia
usseau, rousseauísta?
a.
5) O que é a pedagogia negativa?

Atividade de aprendizagem
Jacques
A filosofia de R ousseau influ en cio u p ro fu n d a m en te
em me-
to d as as concepções da educação nos séculos X IX e XX,
antexto
incluindo o sistema de ensino im plantado no Quebec: por
- Nesse
exem plo, em 1969-1970, o Conseil Supérieur de 1’Educa-
isamen-
•senta o tion (CSÉ) do Q uebec publicou seu R elatório Anual in titu ­
es e da lado, L’activité éducative [A atividade educativa]. Este Rela­
ia - ga- tório exprim ia o espírito da época e, em ideias, traduzia as
□usseau profundas orientações pedagógicas da “Revolução Tranqüi­
lizado a la” (cf. cap. 11 - As pedagogias abertas do Q uebec, 11.8).
152 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Baseando-se no capítulo 5 e nas notas de curso, identi­


fique no extrato do relatório, distribuído pelo professor, as
ideias que, em seu entender, se inspiram na visão educativa
de Rousseau, em particular no que se refere ao aluno ou à
criança.

Referências Referências suplementares


BRUNET, A. (1990). La civilisation occidentale. CHÂTEAU, J. (1969). Jean-Jacques Rousseau ou la
Paris: Hachette. pédagogie de la vocation. In: CHÂTEAU, J. (org.).
Les grands pédagogues. Paris: PUF.
CASSIRER, E. (1966 [Publicação original em 1932]).
La philosophie des Lumières. Paris: Fayard [Em por­ DURKHEIM, É. (1919). “La ‘pédagogie’ de Rousseau”.
tuguês: (1992). A filosofia do Iluminismo. Campinas: Revue de Métaphysique et de Morale, n. 26, p. 153-
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DUROZOI, G. & ROUSSEL, A. (1990). Dictionnaire LÉVI-STRAUSS, C. (1973). Tristes tropiques. Paris:
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(1996). Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das
JACQUET-FRANCILLON, E (1995). “Éduquer: des
letras].
Lumières à la Révolution”. (Le) Télémaque, n. 1, p.
79-88. VANDER ELST, P. (1986). “(Re)lire PÉmile avec
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OTTAVI, D. (1995). “L’éducation naturelle: un re-
vol. 48, n. 193, p. 25-29.
tour aux origines?” (Le) Télémaque, n. 1, p. 19-31.
ROUSSEAU, J.-J. (1978). Du contrat social. Paris: Le
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saio sobre a política de Rousseau por Bertrand de
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______ (1968). Discours sur l’origine et les fonde-
ments de l’inégalité parmi les hommes. Paris: Sociales
[Col. Les Classiques du Peuple] [Em português:
(1978). Discurso sobre a origem e os fundamentos da
desigualdade entre os homens. São Paulo: Abril].
______(1966 [Publicação original em 1762]). Emile
ou De Véducation. Paris: Flammarion [Em português:
(2004). Emílio ou Da educação. São Paulo: Martins
Fontes].
STAROBINSKI, J. (1971). Jean-Jacques Rousseau:
la transparence et 1’obstacle. Paris: Gallimard [Col.
Tel.].
6
Da pedagogia tradicional à pedagogia nova
Clermont Gautbier

Objetivos de aprendizagem

Após a leitura deste capítulo, você deveria ser capaz:

• de explicar em que sentido o ensino mútuo pode ser


considerado como o prolongamento da tradição peda­
gógica;

• de comparar a pedagogia nova à pedagogia tradicio­


nal;

• de explicar a maneira como se constituiu o debate


pedagogia nova / pedagogia tradicional.
154 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

Introdução

N este capítulo, decidim os enfatizar um aspecto que


nos parece relevante, m esm o correndo o risco de deixar na
som bra alguns acontecim entos que, talvez, tenham sido im ­
portantes, ou ideias que tiveram algum sucesso. Escolhemos
concentrar os nossos esforços na análise da transição entre
duas m aneiras de fazer a escola: a pedagogia tradicional e a
pedagogia nova. Insistirem os no significado dessa transfor­
m ação profunda do discurso e das práticas pedagógicos.
Duas razões m otivaram a nossa escolha. Em prim eiro
lugar, é preciso reconhecer que, em bora o século XVIII nos
tenha levado a conhecer um p en sad o r genial com o Rous-
seau, não houve m udança im portante e d uradoura nas prá­
ticas pedagógicas entre os séculos XVIII e XIX. Pensamos
6.1
im ediatam ente em Pestalozzi, fiel continuador da obra de peá
Rousseau, mas parece-nos que as suas tentativas, corajosas
e engenhosas, são praticam ente insignificantes em com pa­ P
ração com a m aré que subm ergiu o m undo escolar a partir
do século XVII. N a verdade, a pedagogia, cujo nascim ento ■ o ra
teria ocorrido no século XVII, se m anteve de um a m aneira na d e
relativam ente estável até o século X IX , tan to no seu espíri­ R eiii
to quanto nas suas práticas, para constituir um a espécie de sé o il
tradição pedagógica na Europa. N a França, notadam ente, Dl2>
os esforços não se dirigiram para a pedagogia, mas para os òc. n
debates legislativos referentes às grandes reform as da edu­ to n s
cação, m ediante as quais a instrução laica irá tornar-se obri­ Apes;
gatória e pública. Sem querer dim inuir a im portância dessas tradn
m udanças do século XIX, pensam os que elas só se referem da»
indiretam ente ao nosso tem a de estudo - a evolução das ra*. p
ideias e das práticas pedagógicas - e não parecem influen­ te a t
ciar diretam ente a pedagogia, isto é, a m aneira de ensinar *rr 01
nas classes.
C
D epois, e esta é a nossa segunda razão, vemos surgir, dagoj
no fim do século XIX e no início do X X , um m ovim ento culo
im ponente que visa derrubar essa tradição pedagógica. Sob e nos
a influência da incipiente ciência da educação e da ideia de O DÓI
reform a pela educação da sociedade destruída pela guerra,
a i* a j
um m ovim ento novo se im põe gradualm ente, provocando
tres c
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

transform ações relevantes nas ideias e nas práticas pedagó­


gicas. Tendo m arcado o século X IX , esse m ovim ento é o da
pedagogia nova.
Para que o leitor apreenda bem as ideias elaboradas pe­
los autores representativos desse m ovim ento, dividim os o
presente capítulo em três partes. Em prim eiro lugar, exam i­
narem os a tradição pedagógica que se perpetuou no século
XIX. Depois, analisarem os a transform ação que se operou
no fim do século X IX e verem os com o a ciência com eçou
a criticar a tradição pedagógica. Finalm ente, explicarem os
que a pedagogia nova se define de m odo polêm ico, isto é,
pela negação da pedagogia tradicional.

6.1 O século XIX e a tradição problem as diários. Esse saber-fazer codificado


pedagógica atinge não só os conteúdos a ensinar, mas tam ­
bém todos os aspectos da vida da classe (ensi­
Precedentem ente, form ulam os a hipótese de
no sim ultâneo, códigos orientando a postura,
que a pedagogia apareceu no século XVII. Uma
os deslocam entos, as punições, o lugar de cada
nova m aneira de fazer a escola se im pôs, dife­ aluno na sala etc.). Os docentes transm item es­
rindo consideravelm ente das práticas anteriores. sas habilidades a seus sucessores que, po r sua
Realmente, seria mais justo dizer que, antes do vez, as legam àqueles que os substituem . Assim
século XVII, havia um a tradição de ensino: p rá ­ se constitui, pouco a pouco, um código de en­
ticas diversas da arte de ensinar na A ntiguida­ sino uniform e, um a tradição pedagógica que se
de, na Idade M édia e no Renascim ento, práticas perpetua durante séculos. E ntretanto, para que
transm itidas de um a geração de docentes a outra. haja um a tradição pedagógica, era preciso que,
Apesar dessa tradição de ensino, ainda não havia previam ente, a pedagogia se revele com o obje­
tradição pedagógica. As abordagens, m esm o em to de um a preocupação particular. Isso não foi
classes com efetivos restritos, ainda eram rotinei­ possível antes do século XVII. Além disso, eram
ras, pouco elaboradas e reduzidas principalm en­ necessárias condições propícias para perpetuar
te a considerações de conteúdos, que deveriam esse código de ensino uniform e.
ser organizados de acordo com a lógica.
O século XVII preocupa-se mais com a p e­
6.1.1 As características da tradição
dagogia. C om o vimos no capítulo 4, nesse sé­ pedagógica
culo assiste-se a m udanças no contexto escolar
e nos hábitos de ensino em vigor. Cresce, então, Para as necessidades da presente análise, en­
o núm ero de escolas que acolhem mais crianças, fatizam os quatro características de um a tradição
cuja presença é um pouco mais assídua. Os m es­ pedagógica, a fim de dem onstrar o m elhor pos­
tres criam um novo saber-fazer para resolver os sível seu a partir do século XVII. Prim eiram ente,
156 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

reconhecem os na tradição a sedim entação dos infância e que fazem com que, geralm ente, cada
gestos que precederam , a conservação e a perpe­ m estre ensine, em parte, com o foi ensinado.
tuação dos usos anteriores. Uma tradição encerra M as o uso não é tudo, pois um a tradição
certos com portam entos vindos do passado, p ro ­ transform a igualmente as m aneiras de fazer. Com
move m odelos de conduta. Em segundo lugar, efeito, B atencour (1669) fala tam bém da ex­
toda tradição deve adaptar progressivam ente as
periência ou, po r outras palavras, daquilo que
suas m aneiras de fazer aos novos contextos. Uma
ele acrescentou pessoalm ente com o adaptação
tradição não se lim ita a reproduzir sim plesm ente
e m odificação dos usos, considerando as novas
os com portam entos, mas vai transformá-los pouco (
condicionantes ligadas ao contexto da sua épo­
a pouco. Em terceiro lugar, é preciso sublinhar
ca, condicionantes que não existiam antes dele
o aspecto prescritivo da tradição, no sentido em ío o d
ou estavam pouco presentes: um ensino prim á­
que ela é mais um reservatório de respostas do jp b c
rio m inistrado a grupos de crianças oriundas do
que um conjunto de perguntas que necessitam rern
povo. Escreveu a sua obra para m ostrar bem a
de explicações. Efetivam ente, um a tradição diz qoes
natureza das m udanças que ele próp rio havia in­
o que fazer; ela não tem com o função questionar
troduzido na m aneira de fazer a escola no seu
as coisas. Enfim , em quarto lugar, os com porta­ Com
tem po. Do m esm o m odo, observa-se que a pe­
m entos se tornam gradualm ente rituais e adqui­ dadx
dagogia dos Irm ãos das Escolas Cristãs, tal como
rem um status quase sagrado. tra n s
está registrada na C onduta das escolas cristãs,
A pliquem os, agora, à pedagogia essas carac­ é o resultado das contribuições respectivas dos eaab
terísticas da tradição. Supom os que a pedagogia
usos e das experiências. João Batista de La Salle
colas
apareceu no século XVII, no m undo ocidental todon
(1951) assinala esse aspecto no seu prefácio:
cristão, porque pensam os, evidentem ente, que Amei
Esta Conduta só foi redigida em forma
houve conservação de certos usos ancestrais
de regulamento depois de um grande G
q u an to ao que convinha fazer para ensinar nas número de conferências com os Irmãos S3S d
escolas. A creditam os tam bém que esses costu­ deste Instituto, os mais antigos e mais ta. ui
mes foram m odificados, a fim de responder às capazes de bem fazer a escola; e depois
mane
exigências dos novos contextos. Batencour, po r de uma experiência de vários anos; nada
mnits
exem plo, no prefácio da sua Instrução metódica foi escrito sem uma apurada negocia­
ção e experimentação, além de terem Por e
para a escola paroquial, redigida para as escoli-
sido previstos, tanto quanto foi possí­ ver n
nbas (1669), ilustra de m aneira interessante estas vel, os erros ou as más conseqüências à apn
duas características da tradição, a conservação e desse texto. lo de
a adaptação: “Eu estava convencido de que não prátK
Os caracteres prescritivos e sagrados da tra ­
seria inútil dar parte ao Público daquilo que o uso
dição encontram a sua ilustração, mais um a vez, então
e a experiência me ensinaram neste Exercício”.
no prefácio da Conduta das escolas cristãs-. g ó g i-
Por “uso”, Batencour entende a tradição à sua
Os superiores das casas deste Instituto e
volta, que o habitava e lhe ditava as m aneiras de
os inspetores das escolas se dedicarão a
fazer para ensinar pela im itação, mais ou m enos aprendê-lo bem (o livro da Conduta) e 6. 1.2
consciente, dos m estres que ele conhecera. Ele a dominar perfeitamente tudo o que ali
V;
retom a pois as m aneiras de fazer a escola que viu está encerrado, e procederão de modo
no seu am biente, que ele viveu provavelm ente na que os mestres não falhem e observem m ún*
6 Da pedagogia tradicional á pedagogia nova T~

exatamente todas as práticas que ali es­ cham ar de extrem idade de um continuum de
tão descritas, até as menos importantes, ideias e de práticas pedagógicas. Se situássem os
a fim de proporcionar, por esse meio,
o ensino m útuo sobre um eixo tendo em um dos
uma grande ordem nas escolas, uma
conduta bem regulamentada e uniforme seus polos “a o rd em ” e no o u tro “o acaso”, ele
nos Irmãos que serão encarregados de estaria no extrem o lim ite, do lado da “o rd em ”,
aplicá-las, e um fruto considerável para enquanto, por exem plo, Neill e sua pedagogia
as crianças que ali serão instruídas (LA libertária (cf. cap. 9) estaria no lado oposto. N a
SALLE, 1951: 6). verdade, o ensino m útuo em prega um discurso
O saber-fazer dos Irm ãos, registrado na C on­ e um a prática de controle mais ou m enos ini-
duta das escolas cristãs, verdadeiro código de gualados na história da educação. Nesse ponto,
conduta no sentido estrito da palavra, foi pois ele constitui um controle pedagógico verdadei­
iplicado às suas escolas. Além disso, o código foi ram ente excessivo. A ordem pedagógica inci­
'eproduzido em seus m enores detalhes, sem ser piente, que esquadrinhava to d a a vida escolar no
questionado, com o se contivesse a resposta defi­ século XVII, parece quase m oderada quando a
nitiva para todas as am bigüidades. Em resum o, a com param os com a ordem que se instala com o
Conduta das escolas cristãs cristaliza as respostas ensino m útuo no século XIX.
.ladas pelos Irm ãos no seu ensino e acaba por Quais são a natureza, os princípios, as m oda­
transform á-las em um a tradição. Assim, todos os lidades de organização dessa nova abordagem ?
estabelecim entos de ensino dos Irm ãos das Es­ O sistema de ensino m útuo surge nas escolas p ri­
colas Cristãs são sem elhantes, com o ocorre com m árias no fim do século XVIII, na Inglaterra. É
todos os colégios jesuítas, estejam situados na destinado a alfabetizar o m aior núm ero possível
América, na E uropa ou em qualquer outro lugar. de alunos ao m elhor custo e nos m elhores prazos
Graças ao trabalho das com unidades religio­ (LESAGE, 1981: 241). Esse m étodo foi sistem a­
sas docentes, um a tradição pedagógica se insta­ tizado por Bell e Lancaster. Posteriorm ente, teve
la, um a espécie de dispositivo de repetição da um sucesso im portante na França, p o r volta de
m aneira de fazer a escola que se perpetua, sem 1820. O ensino m útuo esteve em uso, em quase
muitas m odificações, até o início do século XX. todo o m undo, no C anadá inglês e até m esm o no
Por exem plo, é preciso esperar até 1837 para Q uebec; Joseph-François Perrault, em particular,
ver na C onduta um a justificação relativam ente o utilizou e estim ulou a sua im plantação. Entre
à aprendizagem da leitura, da escrita e do cálcu­ 1815 e 1820, na França, contavam -se 1.000
lo de m aneira sucessiva e não sim ultânea; essa escolas m útuas, que reuniam cerca de 150.000
prática ancestral não fora, pois, contestada até alunos, enquanto as escolas dos Irm ãos das Es­
então (PROST, 1968: 118). Essa tradição peda­ colas Cristãs instruíam apenas 5 0 .0 0 0 crianças
gógica atinge o seu apogeu com o ensino m útuo. (LÉON, 1971: 342). Ao contrário do m odo si­
m ultâneo, em que o m estre é o agente do ensi­
no, o princípio básico do ensino m útuo é que a
6.1.2 O ensino mútuo
própria criança se encarrega de ensinar aos seus
Vale a pena exam inar o sistema de ensino colegas. C om o indica a palavra “m ú tu o ” (“m o-
m útuo, porque ele constitui o que poderíam os nitorial system ”, em inglês), as crianças ensinam
158 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

um as às outras. M ais precisam ente, algumas, se ensino querem aplicar à escola os m étodos de w pecx
mais talentosas, se tornam m onitoras dos seus divisão do trabalho em vigor na indústria nas­ man-dan
colegas mais fracos. cente, a fim de reduzir os custos da instrução exlad-a

N esse p rim e iro p rin cíp io enxerta-se um (LEON, 1971: 368). C oncretam ente, nas esco­ a mmdi
segundo: a econom ia. E fetivam ente, é preciso las regidas pelo sistema de ensino m útuo, encon- ea se 3&
in stru ir um a m u ltid ão de crianças ao m esm o tra-se um único m estre para ensinar a um grupo ■ icrio r
custo que um pequeno núm ero (BALLY, 1819: que pode ir até mil alunos, e até acima desse nú­ Asa
277). Devem os dizer que na França, assim com o m ero nas grandes cidades; entretanto, a m édia CBifimei
na Inglaterra, alguns autores com eçam a tom ar se situa em to rn o de 250 alunos. Tal sistema só
consciência do valor econôm ico da educação p o ­ pode existir e funcionar eficazm ente se estiver
cálculo
pular: baseado sobre a aplicação de um a ordem abso­
oc->c qi
luta. E por isso que afirm am os que ele participa
A moralidade do povo e a manutenção «cr 1.00
da ordem social não são os únicos moti­ de um a preocupação com a ordem sem elhante
poc 5 d
vos que exigem uma educação popular. àquela que estava em vigor 200 anos antes, além
mo. O a
A agricultura, as artes mecânicas, as fá­ de ser o prolongam ento da tradição pedagógica
■HTUÇC
bricas e todos os tipos de indústria te­ do século XVII.
rão vantagens com ela, e não contribui­ o roesnr
rão menos para o bem-estar e a fortuna Exam inem os essa hipótese e vejamos em que estrado
dos indivíduos do que para a força e a sentido esse sistema é o aperfeiçoam ento dos td&áno
prosperidade do Estado (LASTEYRIE, procedim entos de controle já estabelecidos dois págnus
1819: 47). séculos antes. Prim eiro, de um ponto de vista ge­
H hezss
H á um a vontade de educar o povo, mas ral, notam os que um discurso de ordem em ana
éoi ahn
sabe-se perfeitam ente que essa educação custa dessa concepção.
aodicid*
caro e, com o a escolaridade não é gratuita, tem- O mestre deve, pois, dar a sua atenção
se to d o o interesse em estim ular o ensino m útuo, especial a todos os objetos de detalhe O e
e estabelecer um regulamento fixo de ptsner-ü
fórm ula m uito mais econôm ica do que qualquer
tal modo que a sua execução caminhe «íe cíassi
outra. Por exem plo, decide-se que, já que os li­
sozinha, e, por assim dizer, sem que se cdco n
vros se deterioram rapidam ente e custam caro
perceba. Aqui, a ordem reina por toda ■de-se ei
sobretudo para os alunos pobres, é preferível a parte, mesmo nos menores objetos: a n u i co
utilizar quadros em que se afixam os textos. Da a cesta, as penas, os livros, os quadros;
m esm a form a, papel e penas são trocados por tudo tem o seu lugar, tudo foi classifi­
ie zelai
ardósias e lápis de xisto, m uito mais econôm i­ cado, situado na sua posição; nada é
arbitrário. É nesse sentido que se inter­ nroções
cos. Nesse espírito, o C onde de Lasteyrie (p. 26)
preta o quadro que se vê nas nossas ins­ (BALLY
elogia a escola de Lancaster (1811) que utiliza tituições, com estas palavras: “Um lugar
Esíl!
apenas um livro para mil crianças! para cada coisa e cada coisa em seu lu­
gar” (BALLY, 1819: 195). neo
Enfim , adota-se um princípio de eficiência
imelÈx
que decorre das necessidades de econom ia e visa M ais ainda, o conde de Lasteyrie (1819: 6),
od
“taylorizar” a instrução. C ertam ente não é por no seu m anual de ensino m útuo, chega mesmo
1981: 2
acaso que o ensino m útuo surge na Inglaterra, a utilizar a m etáfora do exército para descrever
o nível
país da revolução industrial. Os prom otores des­ o sistema: “Cada classe é com andada, ensinada,
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

inspecionada e m antida na ordem p o r um co­ gundo as suas responsabilidades e as suas tarefas.


m andante e po r um inspetor de classe, que são Os mais elevados na hierarquia, os m onitores ge­
ajudados p o r subcom andantes”. Todos estão sob nerais, verificam a disciplina dos alunos no m o­
a jurisdição de um com andante geral, que verifi­ m ento das m udanças de atividade, assim com o
ca se as ordens dadas são executadas nos níveis das entradas e saídas da escola; eles dirigem as
inferiores. preces e intervém igualm ente junto aos m oni­
tores com uns. Estes, escolhidos entre os mais
Assim, não só o ensino m útuo retom a p ro ­
avançados das diferentes disciplinas a ensinar,
cedim entos de controle já vistos no século XVII,
são responsáveis por um grupo de um a dezena
mas os aperfeiçoa. Por exem plo, depois de um
de crianças do m esm o nível. O utras responsabi­
cálculo p reciso do espaço da classe, e sta b e le ­
lidades são dadas tam bém a diferentes alunos:
ce-se que um a sala de 45 m etros po r 9 deve con­
p o r exem plo, um é porteiro, outro é m onitor de
ter 1.000 alunos, enquanto um a sala de 9 m etros
bairro com a função de acom panhar os colegas
por 5 deve acolher 70, o que dá 0,4m p o r alu­
em boa ordem , de m anhã, para a escola e, no fim
no. O m anual de Bally (1819) contém m últiplas
do dia, levá-los para as respectivas casas.
instruções a propósito do espaço necessário para
O conteúdo de cada m atéria é cuidadosa­
o m estre, da altura do teto, das dim ensões do
m ente especificado e hierarquizado em um p ro ­
estrado etc. Assim tam bém , o m aterial e o m o­
gram a com portando oito níveis; cada um deles é
biliário são descritos de form a detalhada (em 40
dirigido po r um m onitor. M udança im portante
páginas): a m esa do professor, a caixa para os
em relação ao século XVII: daí em diante, o en­
bilhetes de recom pensa, as ardósias, os bancos
sino das m atérias se faz sim ultaneam ente e não
áos alunos (com prim ento e altura) etc. Tudo é
sucessivam ente. Assim, aprendem -se ao m esm o
radicado com precisão.
tem po a leitura, a escrita, o cálculo, o desenho
O em prego do tem po tam bém é objeto de e a religião. Além disso, com o os program as
planejam ento m inucioso. A jornada de seis horas são avaliados de m odo m uito preciso, um aluno
de classe é dividida em m últiplos m om entos de pode estar ligado, por exem plo, a um subgrupo
o n c o m inutos, aproxim adam ente. C o m p reen ­ para a leitura e a um o u tro para a escrita ou para
de-se então a necessidade de im plantar um sis-
o cálculo. Por m otivo de econom ia, utilizam-se -
cema codificado de transm issão das ordens por
para a leitura, a escrita, o desenho e o cálculo -
crversos meios (voz, cam painha, apito, sinal) e
quadros (148 no total) im pressos de um só lado,
«áe zelar pela sua execução. Umas sessenta ins­
m ontados sobre papelão e m inuciosam ente gra­
truções são assim descritas com to d a a m inúcia
duados. Esses quadros substituem os livros. Bally
fBALLY, 1819: 236).
(1819) critica o m étodo sim ultâneo, m uito one­
Estima-se que um a classe de 200 a 250 alu- roso, que necessitaria de 1.000 livros para 1.000
necessita de 40 m onitores a escolher entre alunos, e isso para um a única m atéria. Os livros
m elhores alunos e com a m elhor conduta; eles não só custam m uito caro, mas são danificados
o elem ento essencial do m étodo (LESAGE, e conspurcados pelos alunos; além disso, em ge­
1: 243). Uma ordem hierárquica determ ina ral, utiliza-se apenas um a parte deles, e as outras
nível dos m onitores, que são classificados se­ tornam -se inúteis (BALLY, 1819: 278).
160 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

A disciplina é baseada, com o antes, num sis­ m antinham a tradição do ensino “em sucessão”,
tem a de recom pensas e de sanções. C om o tudo no qual era preciso saber ler antes de escrever.
é hierarquizado em oito níveis p o r m atéria, cada Essa organização envelhecida a carretav a um a
criança sabe onde está situada e conhece o ní­ perda de tem po considerável, além de suscitar
vel superior que pode atingir. A em ulação se tédio e rejeição no aluno (PROST, 1968: 118).
m antém , pois, facilm ente. As recom pensas são O ensino m útuo era, segundo os seus partid á­
m uitas vezes bilhetes, trocados po r dinheiro ou rios, mais eficaz e mais econôm ico. Supunha-se
p o r um prêm io no fim da semana. Escreve-se que a aprendizagem era mais rápida porque as
aos pais para inform á-los sobre os progressos do crianças eram agrupadas segundo o seu nível,
seu filho; este pode tam bém levar para casa um a porque aprendiam todas as m atérias ao mesmo
m edalha de m érito. As presenças, as ausências, o tem po e porque, com os m onitores, não havia
progresso escolar e o com portam ento são m inu­ perda de tem po (BALLY, 1819: 281). E ainda,
ciosam ente registrados em livros que perm item substituindo os livros p o r quadros, o ensino m ú­
anotar a evolução da conduta dos alunos. As p u ­ tuo perm itia econom ias apreciáveis.
nições, por sua vez, são cuidadosam ente descri­
Por que essa abordagem declinou? N a Fran­
tas em 18 categorias. Essas escolas m útuas ins­
ça, o clero católico, apoiado pelos m onarquistas
tauram um júri por interm édio do qual os alunos
(os “ultras”), tem ia a propagação de um m étodo
infligem a si mesm os sanções po r seus delitos.
inglês e protestante. Preferia o m étodo de ensino
A hum ilhação ainda está presente, mas os p ro ­
cedim entos são mais sofisticados. Por exem plo, dos Irm ãos das Escolas Cristãs. D epois de m ui­
encontram os em prim eiro lugar: “A criança que tos conflitos entre partidários dos dois clãs, os
lê pior dá o seu lugar àquela que lê m elh o r”. E m onarquistas levaram a m elhor (1820-1828) e
no décim o quinto lugar: “São am arrados em um favoreceram as escolas das congregações, o que
poste quando são excessivam ente indóceis, ou acarretou um a dim inuição de m etade das esco­
desobedecem form alm ente ao m estre” (BALLY, las m útuas (GON TA RD, 1981: 256). Depois, a
1819: 189). Assinala-se que na Inglaterra pen­ partir do m om ento em que a Lei G uizot (1833)
dura-se no pescoço do aluno recalcitrante um entrou em vigor, o ensino m útuo se extinguiu
pedaço de m adeira de dois ou três quilos. O cor­ progressivam ente (LÉON, 1971: 343). Tal lei
re tam bém que se pode am arrar um pedaço de obrigava cada m unicípio a instalar escolas; essa
m adeira entre as suas pernas e obrigá-lo a dar foi um a das causas do declínio das escolas m ú­
a volta da sala de aula. Às vezes os delinqüen­ tuas. O utras acusações contra essas escolas eram
tes são colocados em um a grande cesta ou saco, feitas pelos pais, que não gostavam de ver os
suspenso ao teto da escola, à vista de todos, en­ filhos perderem tem po servindo de m onitores,
quanto as crianças preguiçosas são postas num ao invés de eles próprios aprenderem ; elas eram
berço e balançadas po r um colega (p. 193). acusadas tam bém de form ar autôm atos ou mili­
tares (p. 342). M as não há nenhum equívoco em
Por que se apreciava tan to esse m étodo de
afirm ar que as verdadeiras causas do declínio das
ensino? O fato de ensinar as m atérias básicas
sim ultaneam ente foi um a das causas do suces­ escolas m útuas são, em prim eiro lugar, políticas.
so im portante do ensino m útuo. Sabemos que Em conclusão, devem os assinalar que, em bo­
os Irm ãos das Escolas Cristãs, ainda em 1837, ra o ensino m útuo constitua um a inovação peda­
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

gógica m uito interessante, principalm ente com o segundo ele, p o r trás da longa querela ideológi­
uso dos quadros e o ensino de todas as m atérias ca a propósito do controle da escola pela cor­
sim ultaneam ente, não é m enos verdade que ele rente laica ou pelos religiosos, há um a espécie
se inscreve no prolongam ento da pedagogia do de concordância geral sobre os fins e os meios.
século XVII. Efetivam ente, o grande m érito do Segundo parece, seja p o r parte dos republicanos
ensino m útuo foi talvez sublinhar a im portância ou dos conservadores, não são questionados os
da função econôm ica da escola, da qual não se princípios de ordem e de autoridade da escola;
estava consciente anteriorm ente. “O ra, recusar a ainda se desconfia da espontaneidade da criança
instrução é sufocar o gênio e privar a sociedade (p. 8). As querelas quanto aos m étodos pedagó­
dos talentos que form am o seu mais belo b rilh o ” gicos ocorrem no final do século. Evidentem en­
(LASTEYRIE, 1819: 51). C onsiderava-se daí te, há grandes nom es no seio desses antagonis­
em diante que podia ser lucrativo para um Es­ tas: Froebel, H erbart, Itard, Pestalozzi, Tolstoi,
tado instruir o povo; não só os custos da educa­ K ergom ard etc. M as, segundo Prost (1968: 9),
ção deixavam de ser proibitivos, mas tam bém o a audiência real desses autores continua sendo
Estado podia prosperar graças a cidadãos mais lim itada e sua influência se fará sentir algumas
instruídos. Essa função econôm ica da escola foi décadas depois, no fim do século, quando suas
levada ao seu apogeu no século XX. ideias e práticas forem retom adas pelos p arti­
dários da pedagogia nova. Assim tam bém , há
6.1.3 A legislação e a organização m udanças notáveis no ensino de algumas m até­
escolares no século XIX rias: p o r exem plo, aprende-se a leitura a partir
de m étodos fonéticos; escreve-se com pena de
Parece que vários historiadores da educação aço, que substitui a pena de ganso; e utiliza-se
consideram o século X IX com o um período de mais frequentem ente a ardósia, em vez do papel.
im portância secundária (LÉON, 1971: 333). A M as estam os longe de um a revolução pedagógi­
contribuição principal deste século se situa mais ca profunda; trata-se, antes, da evolução gradual
ao plano da organização da educação popular de determ inadas práticas.
Jo que no plano da inovação dos m étodos p e­ A contribuição fundam ental do século XIX
dagógicos. Efetivam ente, ainda no início do sé­ para a educação encontra-se alhures. É nessa
culo X IX , só um terço ou um q uarto das crian­ época que se percebe mais claram ente a ligação
ças francesas vão à escola, e esta continua sendo estreita que une a educação à evolução política e
tributária das iniciativas locais (GONTARD, econôm ica (LÉON, 1971: 376); isso terá conse­
1981: 255). M as, no fim do século, quase todas qüências im portantes na organização escolar. Em
crianças estão escolarizadas; tal constatação prim eiro lugar, no plano político, são incontes­
m ostra a eficiência das m edidas legislativas a d o ­ táveis os efeitos da Revolução Francesa: o m un­
tadas e a im portância dos esforços despendidos do se dirige progressivam ente para a dem ocra­
□esta área (p. 261). cia. Esta é inconcebível sem a instrução do povo,
C om o diz Prost (1968: 8), no século XIX, que deve dispor do conhecim ento indispensável
ire s a r dos num erosos debates sobre a questão para o exercício do poder. Assiste-se assim à ins­
escolar, “não se discute pedagogia”. N a verdade, tauração de várias legislações para que o ensino
162 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

prim ário se torne obrigatório e gratuito. É evi­ Em conclusão, poderíam os dizer que, à se­
dente, considerando-se as diferenças econôm icas m elhança do que ocorre no século XVII, u n u
na população, que a obrigação escolar exige a vez que as crianças estavam na escola, sentiu-íe
gratuidade. O fam oso Projeto-Lei de C ondorcet, a necessidade de reform ar as práticas pedagóg:-
em 1792, ilustra perfeitam ente a natureza dos cas. Em fins do século XIX, depois de descobnr
debates escolares que ocorrem ao longo do sé­ que a instrução p opular era necessária à prospe­
culo XIX. Seu plano de educação propõe, por ridade do Estado, e de instaurar um verdadeir;
um lado, um a escola única para os dois sexos, a sistema legislativo para garantir a sua perenida­
instrução popular obrigatória, laica e gratuita; e, de, percebeu-se que era necessário reform ar o*
p o r outro, um ensino secundário aberto a todos m étodos pedagógicos. Tendo passado po r rara>
e centrado nas ciências. O plano de C ondorcet m udanças no decorrer dos três séculos anterio­
está constantem ente presente na m ente dos re­ res, a pedagogia será objeto de grandes transfor­
form adores do fim do século XIX e irá inspirar m ações no futuro.
mais de um a dezena de m edidas legislativas.
N o plano econôm ico, com o desenvolvim en­ 6.2 A ciência critica a tradição
to industrial, comercial e agrícola da Europa, a pedagógica
sociedade precisa, para o seu funcionam ento, de
outros docentes além dos hum anistas instruídos à É m uito im portante insistir no fato de qut
m aneira clássica. De agora em diante, procura-se poderíam os qualificar com o tradicional o saber
associar a escola ao sistema de produção econô­ pedagógico reproduzido de geração em geração
mica e form ar um pessoal experiente nas ciências pelos Irm ãos das Escolas Cristãs, pelos jesuítas
e nas técnicas. A revolução industrial tem com o e pelos m estres da escola m útua. É um saber
efeito não apenas aum entar as exigências quanto que se adquire principalm ente p o r im itação,
ao ensino prim ário, mas torna necessária a cria­ no c o n tato com pedagogos experientes (ISANl-
ção de “salas de asilo” (espécie de creches criadas BERT-JAMATI, 1990: 89). Vimos que a tradi­
a partir de 1826) para cuidar das crianças cujas ção im plica um conjunto de ações ritualizadas.
mães trabalham nas fábricas (LÉON, 1971: 353). executadas m aquinalm ente e que fazem com que
Enfim , no plano social, disputa-se com a o jesuíta noviço, p o r exem plo, ensine com o foi
Igreja o m o nopólio escolar, o que tem com o ensinado, “sem m esm o pensar nisso”. Ainda no
efeito secularizar mais ainda a escola. A distin­ século X IX , os Irm ãos das Escolas Cristãs ensi­
ção entre os sexos vai tam bém se atenuando. nam mais ou m enos da m esm a m aneira que no
A b arreira entre as escolas prim ária e secundá­ século XVII; o m étodo de ensino m útuo, além
ria é igualm ente derrubada. A escola prim ária de algumas adaptações exigidas pelo grande nú­
é cada vez m enos reservada ao povo e a escola m ero de alunos, participa em m uitos aspectos da
secundária não é m ais exclusivam ente acessível m esm a ideologia de ordem e de controle em vi­
à burguesia. Discute-se sobre a passagem h ar­ gor dois séculos antes. Com o vimos, a sem elhan­
m oniosa entre as duas escolas, para g arantir a ça é im pressionante.
igualdade de todos qu an to à instrução (G O N - É essa tradição pedagógica que denunciam ,
TARD, 1981: 253). na prim eira m etade do século X IX , os p a rtid á ­
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 163

, a se- rios da pedagogia nova. Esse saber pedagógico Segundo ele, deve-se superar o em pirism o pela
, um a sedim entado há três séculos é adquirido por experim entação controlada. Bernard dá o exem ­
itiu-se im itação; é um banco de preceitos a aplicar, plo da crença tradicional dos m édicos na eficácia
agógi- proveniente do uso e m odificado pela ex p e ri­ do tratam ento da pneum onia pela sangria. Essa
cobrir ência. Esse conjunto de respostas prontas, esse prática, am plam ente difundida, era um erro bem
rospe- rep ertó rio de ações pedagógicas a serem rep e­ consolidado na tradição m édica, e só um a ex­
ideiro tidas c o m p o rta erros, evidentem ente. A gora, é perim entação científica controlada perm itiu que
enida- preciso q uestionar esse saber, passar pelo pente isso fosse constatado.
la r os N ão é pois surpreendente ver surgir, em fins
fino da crítica essas afirm ações que datam de
raras do século XIX e início do X X , vários autores
três séculos e, possivelm ente, tran sfo rm ar a
iterio- que preconizam a necessidade de superar a trad i­
tradição em um a pedagogia mais adequada ao
nsfor- ção e de fundar a pedagogia sobre a ciência. Por
novo contexto.
exem plo, C harbonnel (1988) situa por volta de
Uma das funções fundam entais da ciência é
1880, na França, o m ovim ento que visa transfor­
precisam ente verificar hipóteses, garantir a ve­
m ar a pedagogia na ciência da educação:
racidade de certas afirm ações, corrigir erros. A
ciência, que tivera um forte im pulso durante o Nasce uma disciplina, intelectual e insti-
tucionalmente, a Ciência da Educação.
Século das Luzes, com eça a tom ar um a im por­
e que Pela primeira vez, na França, seja na
tância decisiva em fins do século XIX. C onhece­ Sorbonne, em Lyon, ou em Bordeaux, al­
saber
mos a influência que terá a d o utrina positivista guns homens sobem às cátedras das facul­
raç ã o dades para ministrar cursos de Pedagogia1
de Augusto C om te (1798-1857). Este afirm ava
suítas (CHARBONNEL, 1988: 18).
que a hum anidade passa p o r certo núm ero de
saber
estágios na sua evolução. Primeiro, um estágio teo­ N o Dicionário de Pedagogia e de Instrução
ação,
lógico, caracterizado pela explicação sobrenatu­ Primária, publicado sob a direção de F. Buisson,
SAM-
ral dos fenôm enos; depois, um estágio m etafí­ em 1888, H. M arion assina o artigo “Pedago­
tradi-
sico, em que as entidades sobrenaturais, com o gia” e define-a com o ciência da educação. Essa
tadas,
Deus, são substituídas p o r conceitos abstratos precaução lingüística não é sim plesm ente um
n que
da mesm a natureza; finalm ente, um estágio p o ­ jogo de palavras superficial; ela assinala um a
10 foi
sitivo, em que os hum anos, renunciando às an­ m udança fundam ental na m aneira de conceber
da no
tigas explicações, descobrem pela observação a pedagogia e sua evolução futura. Pela pesquisa
ensi­
e pelo raciocínio científico as leis que regem o de novos fundam entos mais sólidos, aquilo que
ne no
real. A ciência, segundo C om te, é pois o estágio se cham a m odernidade consagra precisam ente
além
mais avançado da evolução da hum anidade. N o essa ru p tu ra com um a tradição form ada de com ­
le nú-
mesmo espírito, conhecem os tam bém a enorm e portam entos sacralizados que eram baseados no
os da
influência da obra do m édico C laude Bernard, uso, na experiência, nas tentativas. O artigo de
m vi-
intitulada Introdução ao estudo da medicina ex­ M arion (1888: 2.240) tem esse sentido:
Ihan-
perim ental, publicada em 1865. Em substância,
esse au to r defende que, se toda ciência com eça
ciam, 1. É interessante notar que, pouco a pouco, na mesma época, a
pela observação e pela experiência fortuita, essa
Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, instaurava uma
rtidã- é apenas a prim eira etapa da sua elaboração. cátedra de Science and Art of Teaching (HAZLETT, 1989: 11).
164 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

[É importante fundamentar a pedagogia Alfred Binet, o fundador da pedagogia expe­


como ciência] ou pelo menos como cor­ rim ental, expressava-se no m esm o sentido, em
po de doutrina tão sólido, tão coerente,
1898:
tão satisfatório para o espírito que toda
boa vontade encontre nele um apoio se­ A antiga pedagogia, apesar de boas par­
guro e uma direção, todo sofisma a sua tes de detalhe, deve ser completamente
refutação, todo erro de boa-fé o seu re­ eliminada, pois está afetada por um ví­
médio. cio radical; ela foi feita teoricamente, é o
resultado de ideias preconcebidas, pro­
Em outro trecho, no m esm o texto, ele insiste: cede de afirmações gratuitas, confunde
A diferença entre o educador preocupa­ as afirmações rigorosas com citações
do em obedecer a uma doutrina pedagó­ literárias; resolve os mais graves proble­
gica e aquele que acredita ser capaz de mas invocando o pensamento de autori­
dispensá-la é que em todos esses pontos dades como Quintiliano e Bossuet, subs­
o primeiro tenta formar, pela reflexão titui os fatos por exortações e sermões
e pelo estudo, uma convicção racional, (BINET, apud COUSINET, 1965: 64).
enquanto o outro se abandona a opiniões E concluía que a pedagogia deveria fundar-se
preconcebidas, a preferências irrefletidas, sobre a observação e a experiência, que ela deve­
cujo alcance até mesmo talvez lhe escape
ria ser antes de tudo experim ental.
(MARION, 1888: 2.240).
Um pouco mais tarde, C laparède (1958),
Em 1879, o historiador G. Com payré, no
no seu célebre texto intitulado Por que as ciên­
prefácio do seu célebre livro H istória crítica das
cias da educação?, publicado pela prim eira vez
doutrinas da educação na França a partir do sé­
em 1912, expressa tam bém o duplo objetivo de
culo XVI (1883: 8), form ula tam bém um a críti­
elim inar o que existia antes em pedagogia e ela­
ca da tradição, que ilustra perfeitam ente a nova
preocupação científica dessa época: borar um novo espírito pedagógico científico:
“O ra, era preciso arrasar [o edifício pedagógi­
Por outro lado, a prática da educação
co anterior] e reconstruí-lo, pois o seu próprio
está ainda menos avançada do que as
teorias dos filósofos: nela, obedece-se plano era ruim . Esta será a tarefa de am anhã”
em geral a uma rotina irrefletida; hesi­ (CLAPARÈDE, 1958: 93). D estruir o edifício pe­
ta-se entre várias inspirações contrárias. dagógico antigo é dem olir tudo o que, na peda­
Os métodos em uso, recomendados por gogia, se fundam enta sobre o bom-senso (a tradi­
uma longa experiência, contêm partes
ção); reconstruir um novo edifício é transform ar
excelentes, mas elas têm o grave defei­
a pedagogia em um a disciplina experim ental (p.
to de não serem coordenadas, de não
tender para o mesmo objetivo. Elas ofe­ 118). “É apenas na observação controlada e na
recem uma mistura singular de velhas observação provocada que jaz a salvação da pe­
tradições e de sobrecargas modernas. dagogia” (p. 115) e isso perm itirá fazer “mais,
Mostram, enfim, por sua incoerência, mais depressa e m elh o r” (p. 112).
que são o produto compósito de longas
hesitações, não a obra simples e forte de Em suma, não se quer mais que a pedagogia
uma razão refletida, seriamente esclare­ seja sim plesm ente a expressão ingênua da trad i­
cida sobre os meios a empregar e o fim ção educativa, com o tinha sido o caso durante
a perseguir. três séculos; deseja-se que ela corresponda a um
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 165

conjunto de saberes positivos e a um saber-fa- Em todo caso, é aos progressos dessa


zer proveniente de verificações científicas. As­ ciência [a psicologia] que está suspenso
sim, mais do que fundar-se sobre a tradição e o futuro da educação. Pedagogia e psi­
cologia são agora dois termos insepará­
arriscar-se a perp etu ar erros graves, a pedagogia
veis, como a conseqüência e o princípio.
ie baseia agora na ciência, para ilum inar a sua Acabaremos por compreender que, sem
prática. N ão será, pois, surpreendente constatar um conhecimento preciso das leis da or­
que, entre os prim eiros grandes nom es da peda­ ganização mental, é impossível regular
gogia nova, encontrem -se M ontessori e Decroly, a ordem dos estudos, apreciar o valor
assim com o seus predecessores Itard e Séguin, pedagógico dos diversos objetos do en­
sino, fazer uma escolha entre as ciências
que são m édicos e x p erien tes nos m éto d o s de
e as letras, estabelecer, ano a ano, adap­
observação científica.
tando-os à idade e às disposições na­
Se a tradição não constitui mais a base da turais, os exercícios mais convenientes
atividade do educador, e a ciência pode agora para educar os homens (COMPAYRE,
1883, t. 1: 9).
>ubstituí-la, haverá um a ciência em particular
i qual seja possível recorrer? Para C laparède, A pedagogia se torna, pois, para esses au­
a psicologia é a ciência talhada para sustentar a tores do fim do século XIX e com eço do XX,
pedagogia. N o seu texto de 1912, ele se p ergun­ não só um a ciência, mas um a ciência aplicada,
ta por que a pedagogia - ao contrário de outras cujo destino está ligado ao estado do progresso
disciplinas aplicadas, tais com o a m edicina, a so­ dos conhecim entos fundam entais em psicologia.
ciologia, a política e o direito - ainda não sofreu C om preende-se facilm ente a forte influência da
alterações que teriam com o efeito renovar com ­ psicologia sobre as novas abordagens pedagógi­
pletam ente a sua m aneira de ver e de com preen­ cas que surgirão posteriorm ente.
der (CLAPARÈDE, 1958: 92). É porque, segun­
do ele, a pedagogia está mal fundam entada. Ela
não tem base científica, julga C laparède (p. 102),
6.3 A pedagogia nova versus a
e é a psicologia que deveria lhe fornecer tal su­
pedagogia tradicional
porte. “Só um fundam ento rigorosam ente cientí­ 6.3.1 Os primórdios da pedagogia nova
fico e psicológico dará à pedagogia a autoridade
que lhe é indispensável para conquistar a o pi­ C laparède faz de Rousseau o grande inspi­
nião e forçar a adesão às reform as desejáveis” (p. rad o r da pedagogia nova. N a verdade, é difícil
104). Para C laparède, à imagem do horticultor negar a m udança im portante e fundam ental da
que deve ter certo conhecim ento de botânica, o concepção sobre a infância e a educação inspi­
pedagogo deve conhecer a criança. Essa analogia rada na obra de Rousseau. Ele abriu um enorm e
não é banal, mas ilustra a ideia de que a pedago­ cam po de reflexão sobre a educação. E ntretanto,
gia, no espírito desses autores do início do século só em fins do século X IX , poderem os ver nas
XX, é um a psicologia aplicada. As verdades re­ classes a aplicação de algumas das suas intuições.
conhecidas na psicologia são, pois, transpostas À parte Rousseau com o longínquo inspirador,
com o m áxim as pedagógicas (COMPAYRE, apud não se pode atribuir à educação nova um fun­
BERTHELOT et al., 1898: 216). dador específico. E ncontram os, antes, dispersos
166 Parte A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

entre o fim do século X IX e a prim eira m etade toda confiança em si mesmos, nascia a
do X X , um a série de autores, cujas iniciativas di­ grande esperança de que uma educação
versas, mas de espírito aparentado, contribuíram bem compreendida formaria indivíduos
capazes de pôr fim às guerras e organi­
para a em ergência desse m ovim ento2.
zar, pela compreensão mútua, um mun­
Uma prim eira onda chega ao fim do sécu­ do melhor (SKIDELSKY, 1972: 83).
lo XIX. Segundo Ferrière, a expressão “escola Assiste-se, portanto, à im plantação de um a sé­
nova” (new school) parece ter surgido na Ingla­ rie de tentativas pedagógicas. Por exem plo, inau­
terra po r volta de 1889, no m om ento em que gura-se a Fundação das Com unidades Livres de
Cecil Reddie cria um a escola nova em Abbot- H am burgo, onde as crianças organizam sozinhas
sholm e. Em 1894, Jo h n Dewey (cf. cap. 7) é a sua vida escolar, escolhem seus responsáveis e
nom eado professor de psicologia e de pedago­ redigem seus regulam entos (M ÉDICI, 1969: 33).
gia na Universidade de Chicago e funda a sua A criação da Associação para a Educação Nova,
fam osa escola prim ária ligada à universidade. em 1921, e a organização do Prim eiro Congres­
K erschensteiner com eça no m esm o ano as suas so Internacional de Educação N ova, no mesmo
prim eiras experiências nas escolas de M unique, ano, são outros exemplos. Neill (cf. cap. 9) funda
na A lem anha (arbeitsschule: escola ativa). Em a sua célebre escola de Summerhill, na Inglater­
1898, A. Binet publica a sua obra A fadiga in­ ra, em 1921. A pedagoga norte-am ericana, H.
telectual, na qual “declara guerra” à pedagogia Parkhurst divulga, em 1922, o plano D alton, que
tradicional. O Bureau Internacional das Escolas preconiza o m étodo do trabalho individualizado
N ovas é fundado em 1899 por Ferrière. M ontes- e, no m esm o ano, C. W ashburne dirige a Escola
sori (cf. cap. 8) cria em Rom a a prim eira Casa dei de W innetka, que concebe um m étodo particular
Bam bini (Casa das Crianças) em 1900. Decroly de educação nova em ciências e em aritm ética. A
funda em 1907, em Bruxelas, a Escola de Her- revista Pour l’Ere nouvelle é fundada em 1923.
m itage e apresenta um novo m étodo de leitura Piaget (cf. cap. 14) começa a publicar, no mes­
global, dito natural. m o ano, um a série de obras sobre a psicologia
Uma segunda onda im portante se segue ao da criança, obras que exercerão um a influência
fim da Prim eira G uerra M undial. Segundo Cou- considerável no rápido desenvolvim ento da edu­
sinet (1965), vários europeus sentem então a ne­ cação nova. C ousinet publica o seu m étodo de
cessidade de reform ar a educação para garantir a trabalho livre por grupo em 1925, e Freinet (cf.
salvação da hum anidade. Desejam, por m eio da cap. 10) inventa a im prensa na escola durante o
educação, criar um novo tipo de hum ano, a fim m esm o período. Dezenas de outras obras são pu­
de suprim ir definitivam ente as causas da guerra blicadas durante esses anos de intensa atividade
(SKIDELSKY, 1972: 147). de pesquisa pedagógica. Os exem plos preceden­
Depois de uma terrível revolução que tes bastam para m ostrar que o período entre o
desestimulara os homens e lhes tirara fim do século XIX e o com eço do X X é um m o­
m ento forte na história da pedagogia.
2. Pode-se consultar proveitosamente a obra de F. Chatelain e As décadas subsequentes são, de certa for­
R. Cousinet (1966) para obter uma cronologia detalhada dos
acontecimentos e os títulos das obras dos autores mais impor­
ma, o prolongam ento desse m ovim ento, cujos
tantes associados à pedagogia nova, entre 1870 e 1966. efeitos ainda percebem os em nossos dias. À se­
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

m elhança de seus prim órdios, encontra-se ao E ntretanto, os adeptos da pedagogia nova


longo do século X X um a preocupação com um não deixam de criticar a pedagogia tradicional.
relativam ente à criança, mas tam bém um grande N a verdade, eles a denunciam com o se fosse um a
núm ero de propostas diversas e heteróclitas. Vá­ doutrina viva, com portando argum entos preci­
rias correntes se encontram : algum as têm um a sos, pertencendo a um autor específico, situada
tendência um tan to mística ou são mais científi­ em um a época e um lugar determ inados. M as,
cas, outras são centradas sobre os problem as de na realidade, trata-se de um objeto mais sutil, de
poder e de cooperação, ou têm um a orientação contornos pouco nítidos e com ponentes m últi­
experiencial. E ntretanto, todas têm em com um plos. E com o se, não podendo (ou sabendo) des­
a oposição à educação tradicional e a concentra­ cobrir precisam ente, na história, a origem da p e­
ção sobre a criança. dagogia tradicional nem os argum entos dos seus
rep resen tan tes, eles se lim itassem a co m b ater
um a tradição de que haviam tido a experiência
6.3.2 A oposição à pedagogia tradicional
enquanto alunos; com o se essa tradição fosse a
A oposição sistem ática à pedagogia tradicio­ encarnação de um a vontade ainda ativa de rep re­
nal é verdadeiram ente um elem ento im p o rtan ­ sentantes sem pre reais e engajados na luta. O ra,
te nos discursos da época. E ntretanto, Kessler com o vimos, a tradição acaba por insinuar-se nas
!1964) observa criteriosam ente, depois de um a nossas vidas sem que percebam os. A tradição é
m álise aprofundada dos discursos dos pioneiros feita de fórm ulas estereotipadas [“prêt-à-pen-
i a pedagogia nova, que a denúncia da pedago­ ser”] e repousa sobre o fato de que cada um age
gia tradicional assume um a form a curiosa. Efe­ po r im itação, sem refletir. A tradição condenada
tivam ente, não só a pedagogia tradicional tem pelos partidários da pedagogia nova teve, com o
origens históricas diferentes, segundo os autores vimos, um a origem real e partidários declarados,
ilguns a fazem rem ontar à Idade M édia, outros mas, três séculos depois, a locom otiva continua
i Aristóteles), mas suas características podem va­ avançando sobre os seus trilhos, sem condutor,
riar (alguns a definem de m odo parcial, outros propulsada unicam ente pela força do hábito. Os
descrevem vários aspectos). Além disso, apesar partidários da pedagogia nova viram um perso­
da presença constante de críticas à pedagogia nagem onde havia apenas um espectro; assumi­
tradicional nas obras dos partidários da pedago-
ram os efeitos da tradição com o um a doutrina.
ç a nova, não se encontra nenhum estudo histó­
rico e sistem ático sobre a pedagogia tradicional C om o criticavam um a tradição cujos au to ­
j| üKESSLER, 1964: 32). Parece que todos se en- res estavam por definição ausentes, era fácil para
eles com por-lhe a face que desejassem. Assim,
iKnderam para denunciá-la, mas ninguém sentiu
criaram um a caricatura à qual deram o nom e de
i necessidade de subm eter a sua análise à prova
pedagogia tradicional.
n fe s fatos e da verificação rigorosa. Assim, Kessler
■arou a seguinte conclusão: “Logo, não há mais E uma grita geral contra os princípios
| aozão de falar de um a escola tradicional, no sen- atribuídos à escola tradicional. Nesse
tribunal, não se admitem testemunhas e
|co>) de um a pedagogia transm itida e fundada
elas são até ignoradas. Ou antes, os pró­
[ m b re princípios escolásticos, m edievais, filosófi- prios juizes são testemunhas, já que, ten­
p s . dogm áticos ou em píricos” (p. 176). do sido eles próprios alunos da escola
168 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

tradicional, estimam ter sido lesados em que a m ente das crianças é com o um a pequena
seu desenvolvimento natural. São, pois, jarra de boca estreita, que devolve o líquido que
ao mesmo tempo, a parte queixosa,
ali se despeja em grandes quantidades e recebe
as testemunhas e os juizes (KESSLER,
1964: 31). aquele que se introduz gota a gota”. H avia, en­
tre os jesuítas, um a preocupação com a infância
E com o a tradição pedagógica com porta
que os partidários da pedagogia nova ocultaram
dim ensões que atingem a totalidade da vida da
com pletam ente, utilizando a m etáfora de m odo
classe, é denunciada da m esm a m aneira, isto é, caricatural, com finalidade polêm ica.
opondo-se sistem aticam ente a um a organiza­
M as é preciso observar que as críticas con­
ção pedagógica com posta de elem entos julga­
tra a pedagogia tradicional não eram sem fun­
dos maus. A pedagogia tradicional abom inada,
dam ento. A tradição não evolui suficientem ente
proscrita, carrega todos os pecados do m undo:
rápido para enfrentar os novos contextos, e a
verbalism o, desconhecim ento da psicologia da
escola tradicional m erece a sua parte de acusa­
criança, confusão entre fins e meios. Essa posi­
ção. E ntretanto, “p retender que to d a inovação
ção m aniqueísta leva Kessler (1964: 30) a defen­ da Escola N ova corresponde a um defeito da es­
der a hipótese de que os partidários da escola cola tradicional, é levar a sistem atização longe
nova criaram , para servir à sua causa, um a espé­ dem ais” (KESSLER, 1964: 33). C riando assim
cie de caricatura da pedagogia tradicional, que um a espécie de inim igo que tem todos os defei­
utilizaram para definir a sua p rópria pedagogia. tos, os partidários da pedagogia nova podiam
A tradição pedagógica que descrevem os acim a se valorizar, em um a oposição quase term o a ter­
to rn a, pois, progressivam ente, na boca dos seus m o, as características da sua p rópria pedagogia e
detratores, a “pedagogia tradicional”, expressão prom ovê-la. E um jogo sedutor, de acordo com
negativam ente carregada e extrem am ente pejo­ Snyders (1975: 13), o por todos os defeitos do
rativa, ainda em nossos dias. m undo aos encantos daquilo que se quer criar;
Em outras palavras, os adversários da peda­ ora, os partidários da pedagogia nova não se pri­
gogia tradicional criticam não um objeto real, varam desse prazer.
mas um a caricatura, e isso, com um a intenção
polêm ica. Essa pedagogia tradicional denuncia­ 6.3.3 As características da oposição entre
da é, na realidade, um a coisa útil, inventada com pedagogia tradicional e pedagogia nova
fins erísticos para facilitar a orientação da ação
pedagógica em um a o utra direção. C om o exem ­ Vamos exam inar, através dessa oposição, o
plo, vamos pensar na velha m etáfora da jarra. retrato de um a e da outra, tal com o foi dese­
Todos nós já não ouvim os dizer que, na pedago­ nhado pelos partidários da pedagogia nova. Para
gia tradicional, concebia-se a m ente da criança facilitar a leitura desta subseção, retom am os os
com o um a simples jarra a encher? O ra, se con­ principais elem entos de descrição, que apresen­
fiarmos no exem plo relatado po r Isambert-Jamati tam os no Q uadro 6.1.
(1990: 88), a m etáfora original, tirada dos textos Parece-nos, em prim eiro lugar, que Bloch
do Padre Jouvency no século XVIII é na verdade (1973: 34) tem razão de sublinhar que a peda­
bem mais sutil: “O m estre não se esquecerá de gogia nova é prim eiram ente e antes de tudo um
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 169

Quadro 6.1 A op o siçã o entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova (segundo o s partidários da pedagogia nova)
Características Pedagogia tradicional Pedagogia nova
"Terminologia • Pedagogia fechada e formal. • Escola ativa.
• Abordagem mecânica. • Educação funcional.
• Pedagogia enciclopédica. • Escola renovada.
• Ensino dogmático. • Abordagem orgânica.
• Pedagogia centrada na escola. • Pedagogia aberta e informal.
• Escola nova (new school)2.
• Educação puerocêntrica (pedagogia centrada na criança).
-naKdade da • Transmitir uma cultura “objetiva” às novas • “Transmitir” a cultura a partir das forças vivas da criança.
•riMcação gerações. • Permitir o desenvolvimento das forças imanentes da
• Formar a criança, modelá-la. criança.
• Valores objetivos (o verdadeiro, o belo, o bem). • Valores subjetivos, pessoais.
■Modo • Educar de “fora” para “dentro”. • Educar de “dentro” para “fora".
• Ponto de partida: o sistema objetivo da cultura • Ponto de partida: o lado subjetivo, pessoal da criança.
que se recorta em partes que devem ser • Pedagogia do interesse.
assimiladas pela criança.
• Escola ativa (learning by doing).
• Pedagogia do esforço.
• Educação funcional.
• Escola passiva (a criança segue um modelo).
• Enciclopedismo.
Concepção da • A criança é como cera mole. •A criança tem necessidades, interesses, uma energia
criança • A infância tem pouco valor em relação à idade criadora.
adulta. • A infância tem um valor em si mesma.
• É preciso agir sobre a criança. • A criança age.
• Visa-se principalmente a inteligência. • Preconiza-se o desenvolvimento integral da criança.
• A criança gira em torno de um programa • 0 programa gira em torno da criança.
definido fora dela.
Concepção do • 0 conteúdo a ensinar às crianças não leva • Os campos de interesse das crianças determinam o
arograma em conta os seus campos de interesse (cultura programa (estrutura e conteúdo).
objetiva). • Realismo do programa (conteúdo ligado ao ambiente em
• Idealismo do programa (conteúdo que vive a criança).
desencarnado).
Autores • É uma tradição sem que seja possível • Dewey, Kerschensteiner, Claparède, Decroly, Cousinet,
“ oresentativos identificar suas origens. Freinet, Montessori, Ferrière.

Concepção da • A escola é um meio artificial. • A escola é um meio natural e social, no qual decorre a vida
cscola • Repressão das emoções (distanciamento). da criança (a escola como ambiente de vida).
• Lá longe, outrora. • Espontaneidade infantil.
• A criança resolve problemas artificiais. • Aqui e agora.
• A escola prepara para o futuro. • A criança resolve problemas reais.
• A escola ajuda a criança a resolver os seus problemas do
momento.
=*apel do • 0 mestre dirige. • 0 professor orienta, aconselha, desperta a criança para o
arofessor • O mestre está no centro da ação: ele dá o seu saber. É uma pessoa-recurso.
saber. • A criança está no centro da ação.
• 0 mestre é ativo: faz o exercício diante da • A criança se exercita.
criança, é o modelo a imitar.
-•sciplina • Disciplina autoritária (motivação extrínseca: • Disciplina pessoal (motivação intrínseca).
recompensas e punições). • Disciplina que vem do interior.
• Disciplina exterior que visa coagir.
I p o de • Pedagogia do objeto: a cultura a transmitir. • Pedagogia do sujeito: a criança a desenvolver.
sedagogia • Pedagogia de ordem mecânica. • Pedagogia da ordem espontânea (natural).
_____________ i________________________
' Vários desses termos aparecem entre 1917 e 1920.
~ Esse termo aparece em 1889 na Inglaterra e, em 1899, na França.
170 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

espírito, mais do que um m étodo particular. N a O objetivo da educação nova é, pois, fazer
verdade, com o já vimos, esse m ovim ento agrupa frutificar todos os dons que a criança traz con­
vários atores que, em diversos contextos nacio­ sigo ao nascer (DEWEY, apud BLOCH , 1973:
nais (França, Bélgica, A lem anha, Inglaterra, Es­ 31). A escola já não se lim ita, daí em diante, às
tados Unidos etc.), elaboraram m aneiras de fazer dim ensões intelectuais: ocupa-se da totalidade
a escola bem diferenciadas um as das outras. Ve­ dos aspectos do ser h u m a n o . Por e x e m p lo ,
rem os, p o r exem plo, a que p o n to é diferente a K ersch en stein er pensava que a arbeitsschule (es­
abordagem de M ontessori em relação à de Neill, cola ativa) deveria concentrar os seus esforços
e com o estas diferem dos m étodos de Freinet ou no desenvolvim ento das capacidades m anuais,
de Freire (cf. cap. 12). M as apesar dessas dife­ artísticas, m orais e intelectuais das crianças (p.
renças, todos com partilham a ideia de centrar a 49 e 62). Ainda mais, desenvolver a criança sig­
educação sobre a criança e não sobre os conheci­ nifica que se enfatiza não mais a transm issão de
m entos a transm itir. certos conteúdos culturais po r um m estre, mas
aquilo que perm ite o desabrochar das forças es­
Essa ideia fundam ental, que tem conseqüên­
pirituais da criança (p. 32).
cias concretas em todas as dim ensões da pedago­
gia, constitui um a espécie de revolução coper- Para atingir esse fim, era preciso m odificar
nicana do ensino, assim com o o livro Em ílio de consideravelm ente a concepção da criança. Na
Rousseau (cf. cap. 5). M as, nesse m o m en to da perspectiva da pedagogia nova, a criança não
história, opera-se um a reviravolta no que se re­ é mais um hom unculus, um hum ano reduzido,
fere não só às concepções, mas tam bém às p rá ­ mas um ser integral, distinto do adulto, que tem
ticas. Bloch, retom ando a célebre expressão de as suas m aneiras de pensar e de agir (COUSI-
C laparède, escreve: NET, 1965: 67).
Mas pedir assim ao educador que si­ A criança não é uma cera mole que pos­
tue o centro de gravidade na própria samos modelar à vontade; a criança tem
criança, é pedir-lhe nada menos do que dons, necessidades, apetites intelectuais,
realizar uma verdadeira revolução, se é curiosidades, “uma energia criativa e as-
verdade que, até agora, como vimos, o similadora” (BLOCH, 1973: 31).
centro de gravidade foi situado sempre Nesse valor positivo da criança é que irá
fora dela. É essa revolução - exigência
fundam entar-se toda a educação nova. Assim,
fundamental do movimento de edu­
cação nova - que Claparède compara C ousinet (1965) retom a a m ensagem de Rous­
àquela que Copérnico realizou na astro­ seau, que queria ensinar o ofício da vida ao seu
nomia, e que ele define com tanta felici­ personagem , Emílio. Para C ousinet, a educação
dade nas seguintes linhas: “Os métodos é obra da criança (e não do m estre), pois a crian­
e os programas que gravitam em torno
ça nada tem para fazer além de viver: “ [...] A
da criança, e não mais a criança giran­
do mais ou menos bem em torno de vida é para a criança - sim plesm ente pelo fato de
um programa decidido fora dela, essa é ser um a criança - com preensão e aprendizagem .
a revolução ‘copernicana’ à qual a psi­ Para aprender e com preender, ela só precisa vi­
cologia convida o educador” (BLOCH, ver. Para ela, a vida po r si só é educação” (COU-
1973: 33). SINET, 1965: 89).
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 171

Por que se deve deixar a criança viver com o Antes de tudo, ele cria o ambiente, o
lhe aprouver? meio favorável. E começa pelo cenário.
Há uma organização do local escolar, a
[Porque] a sua natureza a leva a fazer o
disposição das carteiras, das mesas, um
que é necessário para o seu crescimento.
cuidado, a preocupação com a beleza e
Esses impulsos vitais - designados pelos
psicólogos como os “interesses profun­ com a renovação que já são um convi­
dos” da criança - são, como se vê, alavan­ te ao trabalho ativo (CHATELAIN &
cas naturais da sua atividade, a cada etapa COUSINET, 1966: 33).
do seu desenvolvimento (CHATELAIN Depois, o professor adota um a atitude que
& COUSINET, 1966: 21).
inspira calm a, com preensão e confiança; os alu­
Nessa perspectiva, a criança sabe n atural­ nos têm vontade de estar p erto dele. Estamos
m ente o que é bom para ela. Ela tem um a indivi­ longe da atitude rígida e distante da pedago­
dualidade p rópria que orienta o seu desenvolvi­ gia tradicional. N as atividades que ele propõe,
m ento, de certa form a, com o m ostra a reflexão o m estre é, p rin cip alm en te, um estim ulador,
de Ferrière (apud MIALARET, 1969: 13):
um guia; está presente mas m antém -se discre­
A criança cresce como uma pequena to. Além disso, e esta é sem dúvida a dim ensão
planta. Cada criança segundo a sua es­
mais im portante do seu papel, ele procura basear
pécie, à semelhança de cada planta se­
gundo a sua espécie, à semelhança de to d a atividade escolar nos cam pos de interesse
cada pequeno animal segundo a sua reais da criança e perm itir-lhe desabrochar. Para
espécie. [...] Assim, cada criança cresce C laparède (1958), a educação funcional é aquela
segundo a sua espécie, segundo a sua va­ que responde às necessidades da criança. A ati­
riedade, segundo o matiz particular da vidade de todo indivíduo é suscitada p o r um a
sua mente.
necessidade. N ão se trata mais de im por neces­
Essa insistência relativam ente à natureza da sidades de adultos às crianças, com o se fazia na
criança tem repercussões im portantes no papel pedagogia tradicional, na qual tudo era decidi­
do professor. N a verdade, se a criança deve se do previam ente e fora da criança: os program as,
desenvolver de dentro para fora, “é preciso que as atividades, as lições etc. É preciso, de prefe­
o adulto evite m ultiplicar as intervenções intem ­ rência, que o m estre esteja à escuta daquilo que
pestivas que se exercem de fora para d e n tro ” vivem e sentem os alunos. Ele é o observador
ífER RIÈRE, apud BLOCH , 1973: 31). Essa é
atento daquilo que eles fazem e pode assim dife­
a escolha decisiva efetuada pelos partidários da
renciar um capricho passageiro de um a necessi­
pedagogia nova quanto ao papel do docente.
dade profunda. C om o se dizia com to d a a razão
E e s nos convidam a situar o debate em torn o
na época, a ajuda do docente pode ser útil, mas
é t duas opções. A prim eira, tradicional e nefas-
a sua direção não é necessária.
agir “de fora para d e n tro ” ; a segunda, mais
priada: agir “de dentro para fora” (BLOCH, Assim, o conjunto das atividades que se de­
3: 32). O m estre deixa, pois, de ser aquele senrolam na classe são m odificadas. N a lógica
dá constantem ente o saber (p. 48). Seu papel daquilo que vimos anteriorm ente, toda atividade
iste, antes, em responder às necessidades da deve responder a um a necessidade (CLAPARÈ­
ça, situando-a no centro das suas preocu- DE, apud BLOCH, 1973: 36). C onsequente­
s. m ente, nenhum a atividade é im posta a partir do
172 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

exterior. A escola ativa de que se fala não é sim ­ a escola tradicional, mas problem as concrt-:»^
plesm ente um a escola onde se desenrolarão ativi­ vindos do seu m undo in terio r (BLOCH, i-~ 3
dades; pelo contrário, é um conceito preciso, do 36). É p o r essa razão que o m étodo dos p r c r e a j
qual Kerschensteiner (apud BLOCH , 1973: 44) é tão p o p u lar na escola nova. O fam oso
dá um a definição com plexa, mas interessante: ning by doing de Dew ey expressa p e r f e i t a m a J
Em vez de exigir que a criança seja “ati­ a ideia de que, ao fazer as atividades (que c m I
va”, é preciso que ela seja “ativa por si respondem às suas necessidades), é que a cr*sm
mesma”, e ser “ativa por si mesma” não ça evolui e aprende. M as deve-se n o tar que. a j
significa apenas que ela deve ser “por si
p rep arar atividades atraentes, o m estre não raw
mesma ativa”, mas que o princípio da­
quilo que a obriga à atividade deve es­ ponde necessariam ente às necessidades da c r á J
tar “nela mesma”, e que essa obrigação ça. Tanto Dewey quanto C laparède d e n u n c ia *
deve emanar “da própria criança”, dos severam ente os artifícios inventados pelos pro­
seus “próprios interesses”, e traduzir fessores hábeis, para suscitar o interesse atravdti
a urgência com a qual estes exigem os de atividades divertidas, mas não significativas*
meios da sua satisfação.
para as crianças (CHATELAIN & COUSINET
Insiste-se nas atividades de expressão. Efe­ 1966: 38). Segundo eles, um interesse não pooe
tivam ente, favorecendo a expressão infantil, ser estim ulado a p artir do exterior; ele só pooe
pode-se perceber m elhor tanto as necessidades surgir do fundo do p ró p rio indivíduo.
quanto os cam pos de interesse da criança. É
Essa abordagem tem um a incidência impor­
assim que são desenvolvidas profusam ente as
tante no program a a “tran sm itir” aos alunos. N i
atividades de desenho livre, de redação sobre
escola nova não há program a preestabelecidc
tem as livrem ente escolhidos pelos alunos, as
Para Dewey, os program as são estranhos à ex­
brincadeiras espontâneas, as conversas em que
periência da criança; são um a preparação para
as crianças discutem sobre aquilo que as p reo ­
mais tarde e não poderiam ser verdadeiram ente
cupa verdadeiram ente. Além disso, as atividades
devem “tom ar sem pre com o p o n to de partida o educativos. As necessidades e os cam pos de inte­
m eio natural e social no qual decorre a vida da resse dos alunos devem, pois, estar na base dos
criança” (BLOCH, 1973: 34). A escola nova é program as.
um a escola aberta para o m undo e não cortada Veremos como, aos olhos de Dewey,
da vida. Assim, o docente não se obstina em exi­ uma matéria deve corresponder preci­
samente a esse ponto de vista para fa­
gir que as crianças realizem atividades que não
zer parte do programa; e só poderia ser
sejam significativas para elas e cuja utilidade introduzida nele no momento em que
esteja dependente unicam ente de critérios dos ela intervém no ciclo vivo dos interesses
adultos. De preferência, faz-se en trar na escola da criança, para permitir-lhe resolver
o m undo da criança. E o seu m undo é o que a os seus problemas. Essa regra é válida
p reocupa “aqui e agora”. Jo h n Dewey dizia que para o ensino tanto das ciências quan­
to da história, da geografia e da língua
a criança procura constantem ente resolver os
materna. Ela implica a condenação de
problem as com que se depara. N ão se deve dar todo ensino dogmático que viesse a ser
à criança um problem a fictício e fora da sua ex­ imposto aos alunos em virtude de um
periência viva, com o aqueles em que era perita programa preestabelecido, além de pro­
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 173

K. clamar que “toda lição deve ser uma res­ puramente exterior dos métodos tradi­
3: posta” [a uma necessidade] (BLOCH, cionais [...] vem do interior”; a discipli­
1973: 38). na interior deve substituir a disciplina
o>
exterior (BLOCH, 1973: 52).
ir- A concepção da disciplina é um a característi­
K ca im portante da abordagem centrada nos cam ­ Essa disciplina interior se m anifesta na a t­
•r- pos de interesse das crianças. N a escola tradicio­ m osfera geral de um a classe nova. N ão se en­
D- nal m antém -se a disciplina de m odo autoritário, contra ali a ordem m ecânica e excessiva da clas­
bO com o se o aluno estivesse constantem ente en tre­ se tradicional, seu clima sério e triste; a classe
Sr- gue à agitação e à deso rd em e fosse preciso vi- assemelha-se, de preferência, a um a colm eia em
n- giá-lo. C om pletam ente diferente é a concepção que todos estão ocupados em suas tarefas respec­
m de disciplina em um a perspectiva nova. Q uando tivas, num a espécie de am biente sereno (p. 43).
D- há interesse na classe, quando o aluno pode tra ­
Em conclusão, o retrato da pedagogia tra ­
CS balhar com aquilo que o m otiva verdadeiram en­
dicional pintado pelos partidários da pedagogia
t>- te, a questão da disciplina se apresenta diferente­
nova é bastante som brio. E ntretanto, esse artifí­
i; m ente e fica, em grande parte, resolvida.
cio retórico lhes perm itiu definir o tipo de p ed a­
Je A velha disciplina autoritária e policial,
gogia que preconizavam . E nquanto a pedagogia
k [...] a disciplina de heteronomia e de co­
ação com todas as suas ameaças pode ser tradicional é um a pedagogia do objeto, da cultu­
suprimida. “O interesse, o interesse pro­ ra a transm itir pelo professor ao aluno, a peda­
ir­ fundo pela coisa que deve ser assimilada gogia nova se inscreve em um a dinâm ica oposta:
ia ou executada”, substitui, como “mola
substitui o ensino do m estre pela aprendizagem
o. propulsora da educação”, o temor ao
castigo, e até o desejo de recompensa. do aluno e se define, po r conseguinte, com o um a
s- pedagogia do sujeito. Essa visão da pedagogia
Torna-se assim o princípio de uma dis­
ra ciplina que em oposição à “disciplina continua bem presente em nossos dias.
te
e-
»
Conclusão

O estudo das transform ações que se produziram no


m undo da educação, nos séculos XIX e X X , perm itiu o
aparecim ento de alguns elem entos im portantes. Prim eira­
m ente, tom am os consciência da existência de um a tradição
pedagógica que tem a sua origem no século XVII e que se
consolidou nos séculos seguintes. Depois, constatam os que
a contribuição do século XIX para a educação reside princi­
palm ente em um a série de m edidas legislativas (escolaridade
obrigatória, gratuidade, laicidade). O ensino m útuo não é,
propriam ente falando, um a inovação, mas, antes, um a con­
solidação da ideologia pedagógica do século XIX. Analisa-
174 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX

mos tam bém a derrubada das concepções que se opera


fim do século XIX. Vimos o papel im portante desemp
do, então, pela ciência com o crítica da tradição, e os esfc
despendidos nesse m om ento para fundar a pedagogia
a ciência. M ais especificam ente, assinalam os a im por
da psicologia na constituição dos novos discursos pedagcip
cos, assim com o as tentativas em preendidas p o r essa c :„ c - |
plina no estudo da criança e das suas necessidades. E n ím |
insistim os num m ovim ento pedagógico de grande amplinad
que se desenhou no início do século X X , a escola nova. Vi­
mos que a pedagogia nova se define de m odo polêm ico, isqfl
é, p o r oposição à pedagogia tradicional. A pedagogia nota i
representa um a verdadeira revolução das ideias e das práti­
cas que se estendeu po r todo o século.
O p resen te cap ítu lo desem penha, pois, um papel de
transição. Por um lado, descreve o fim de um longo pn>
cesso de estruturação da pedagogia, que com eçou com c»
gregos, atravessou a Idade M édia, o Renascim ento, o séculdj
XVII e o Século das Luzes para culm inar no século XIX.
Por o u tro lado, ele abre a p o rta para o século X X , que foi
incrivelm ente fecundo no plano das ideias e das práticas pe­
dagógicas. Eis o que analisarem os nos próxim os capítulos.

Resumo

O fim do século XIX e o início do X X são m arcados


pela passagem da pedagogia tradicional para a pedagogia
nova. A pedagogia tradicional, p o rta d o ra dos costum es dos
séculos passados, é um a prática conservadora, prescritiva e
ritualizada, além de ser um a fórm ula que perpetua o m étodo
de ensino do século XVII. Essa tradição, baseada na ordem ,
é levada ao extrem o no século XIX com o ensino m útuo:
po r seu interm édio, e po r um a questão de eficácia, preten­
de-se instruir o m aior núm ero de alunos com o m enor custo
possível.
E n tretan to , é no início do século X X que a pedagogia
tradicional é contestada pela escola nova. O s fatores subja­
centes a essa revolução estão ligados n o tad am en te à ciên-
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova

:ra no cia, que tom a agora um lugar p rep o n d e ra n te , e ao desejo


•enha- de estar mais à escuta das necessidades da criança, a fim de
forços criar um hom em novo. A pedagogia é ab o rd ad a com o um
sobre dom ínio de p rática que deve relacionar-se com a ciência
tància em geral e com a psicologia da criança em particular. Re-
agógi- corre-se à observação e à experim entação objetivas, a fim
dísci- de criar um a ciência da educação. A pedagogia nova tom a
intim, corpo em um a oposição estreita à tradição: concentração
•lirude da atenção na criança, nas suas necessidades e seus cam ­
ra- M - pos de interesse; definição do docente com o guia etc. Em
o, isto sum a, a pedagogia nova situa a criança no centro das suas
i nova preocupações e se opõe a um a pedagogia tradicionalm ente
prári- cen trad a no m estre e nos conteúdos a transm itir. Esse m o­
vim ento é o p o n to de p artid a de correntes de pensam ento
f>el de que ainda existem hoje e que influenciam o conjunto das
a pro- práticas pedagógicas atuais.
om os
século Questões
XDC
[ue foi 1) M encione e descreva as quatro características mais
a s pe- im portantes da pedagogia tradicional.
ulos. 2) N o início do século X X , começa-se a falar de “ciência
da educação”. O que significa essa expressão?
3) M encione e com ente as duas características mais rele­
vantes da pedagogia nova.
rcados
4) Explique com o a pedagogia nova se construiu por
agogia
oposição à pedagogia tradicional. Dê exemplos.
es dos
itiva e 5) Em que sentido a criança é um centro de interesse
létodo novo na pedagogia nova? C om ente a sua resposta.
»rdem.
aútuo:
Atividade de aprendizagem
>reten-
r custo A pedagogia nova m arca o advento de um a nova m anei­
ra de ver a educação. Servindo-se de suas palavras, escreva
agogia em que sentido essa pedagogia continua sendo válida em
subja- nossos dias.
i ciên-
176 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade ate o

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N o alvorecer do século X X , a pedagogia teve Esta segunda parte apresenta as respostas de
de enfrentar novos e im portantes desafios decor­ alguns dos mais im portantes pedagogos do século
rentes da herança contraditória dos séculos prece­ X X para essas questões, tensões e contradições:
dentes. De fato, desde o Século das Luzes, a visão Jo h n Dewey, M aria M ontessori, A lexander Neill,
rousseauniana de um a infância feliz e livre tinha Célestin Freinet, Carl Rogers e Paulo Freire.
conseguido um destaque considerável. E ntretan­ Apesar da diversidade de suas concepções,
to, essa visão está em desacordo com a herança todos esses pedagogos têm um aspecto em co­
de um a pedagogia considerada com o um a prá­ m um : tendo escrito, em sua m aioria, num erosos
tica de ordem baseada no controle das crianças, livros, eles não se contentaram em im aginar ou
im plem entada no século XVII, com as prim eiras sonhar com um a pedagogia ideal, mas tiveram
com unidades dedicadas ao ensino, tanto protes­ a ousadia de colocá-la em prática em escolas e
tantes quanto católicas. Essa pedagogia do con­ turm as junto de alunos e professores de carne e
trole instalou-se am plam ente nas instituições de osso. Em suma, todos esses pedagogos são cria­
ensino dos séculos XVIII e XIX; além disso, nes­ dores e inovadores - alguns se definem , inclusi­
te últim o século, impôs-se gradualm ente a ideia ve, com o revolucionários não deixando de ser
de um a escola prim ária obrigatória para todas as hom ens e m ulheres de ação - da ação pedagógi­
crianças. N o século XIX, essa ca - que trabalham no terreno
ideia será dom inante através da A pedagogia contemporânea é concreto das práticas de ensino
edificação dos grandes sistemas um espaço de tensões entre as e da organização das escolas e
escolares m odernos que preten­ tradições e as inovações, entre das classes.
dem ser dem ocráticos e abertos a ciência e a liberdade, entre H á mais de um século, nas
a todas as crianças sem exceção.
a democracia de uma escola escolas e nas salas de aula, a pe­
Enfim, no final do século XIX,
emerge a ideia de um a ciência da
para todos e as necessidades dagogia alim enta-se de - além
peculiares de cada aluno. de confrontar-se com - suas
educação capaz de servir de base
ideias, seus posicionamentos, suas
à pedagogia; essa ciência positi­
proposições de m udança, suas inovações e suas
va, que reivindica apoiar-se em fatos objetivos e
criações. Aos poucos, e m uitas vezes de m aneira
em conhecim entos verificáveis, tem a pretensão
tím ida e distorcida, estas têm im pregnado efeti­
de fundar um a nova educação baseada na crítica
vam ente as práticas escolares e, no século XXI,
das antigas tradições pedagógicas.
acabaram praticam ente p o r dom iná-las. Assim,
M as com o conciliar um a nova escola públi­ nos capítulos desta segunda parte, os leitores
ca - em determ inados países, esta chega a aco­ descobrirão que a pedagogia contem porânea
lher dezenas de m ilhões de alunos - com a antiga é um espaço de tensões entre as tradições e as
pedagogia do controle e da ordem ? E com o é inovações, entre a ciência e a liberdade, entre a
que essa pedagogia será capaz de se harm onizar dem ocracia de um a escola para todos e as ne­
com um a visão positiva da infância e com um a cessidades peculiares de cada aluno. Os pedago­
concepção científica da educação? Enfim , essa gos do século X X nos ensinaram justam ente que
concepção científica será com patível realm ente esse espaço era habitável, considerando que aí
com determ inados valores, tais com o a liberdade era possível respirar, viver e, sobretudo, agir em
da criança, o respeito po r seu desenvolvim ento e benefício de todos, a com eçar pelo espaço desti­
um ensino a serviço da espontaneidade? nado às crianças e aos jovens.
7
John Dewey: aprender pela ação*
to ò ert B. Westbrook

Objetivos de aprendizagem

Após a leitura deste capítulo, você deveria ser capaz:

• de apreender os elementos essenciais da concepção


educativa de John Dewey, assim como os vínculos des­
sa concepção com sua filosofia e sua visão da demo­
cracia;

• de entender o funcionamento da escola segundo


Dewey, além dos princípios que lhe servem de suporte;

• de compreender as críticas dirigidas por Dewey con­


tra a educação de sua época, em particular contra os
tradicionalistas e românticos.

' Este texto é extraído de Perspectives: revue trimestrielle d’éducation comparée (Paris: Unesco/Bureau intemational d’éducation), vol.
XXIII, n. 1-2, mar.-jun./1993: 277-293. Unesco: Bureau International d'Éducation, 2000.
182 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

Introdução

Jo h n Dewey (1859-1952) foi o filósofo norte-am erica­


no mais im portante da prim eira m etade do século XX. Sua
carreira abrange a vida de três gerações, e sua voz se fez [sic]
ouvir no m eio das controvérsias culturais que abalaram os
Estados Unidos (e outros países), desde a década de 1890
até sua m orte em 1952, às vésperas de com pletar 93 anos.
Ao longo de sua carreira, Dewey elaborou um a filosofia que
preconizava a unidade entre teoria e prática - unidade de
que deu exem plo em seu próprio trabalho com o intelectual
e ativista político. Seu pensam ento estava enraizado na con­
vicção m oral de que dem ocracia significa liberdade, tendo
dedicado sua vida a desenvolver um a argum entação filo­
sófica para fundam entar tal convicção e se em penhar para
aplicá-la na prática (DEWEY, 1892: 8). O com prom isso de
Dewey com a dem ocracia e com a integração entre teoria e
prática se m anifestou com m aior evidência - em relação a
qualquer outro aspecto - em seu percurso enquanto refor­
m ador da educação.
Ao assum ir suas funções na Universidade de Chicago, no
outono de 1894, Dewey escreveu à esposa, Alice: “Às vezes,
penso deixar o ensino direto da filosofia para ensiná-la pelo
viés da pedagogia” (DEWEY, 1894). Em bora nunca tivesse
deixado de ensinar filosofia, é provável que suas opiniões fi­
losóficas tenham atingido um m aior núm ero de leitores por
interm édio de suas obras destinadas aos educadores - tais
com o A escola e a sociedade (The School and Society, 1899);
C om o pensam os {H o w we think, 1910); Democracia e edu­
cação (D em ocracy and E ducation, 1916); e Experiência e
educação (Experience and E ducation, 1938) - e não tanto
pelas publicações dirigidas principalm ente a seus colegas fi­
lósofos; além disso, ele próp rio chegou a afirm ar (DEWEY,
1916) que o texto Democracia e educação era, de todas as
suas obras, aquela que mais se assem elhava a um resum o
de sua doutrina filosófica. De acordo com sua observação,
não se tratava de um acaso se, com o ele, num erosos grandes
filósofos haviam m anifestado um interesse particular pelos
7 John Dewey: aprender pela ação

problem as da educação porque existe “um a relação íntim a


e vital entre a necessidade de filosofar e a necessidade de
ed u car”. Se a filosofia fosse um a sabedoria - a visão de um a
“m aneira m elhor de viver” neste caso, a práxis do filósofo
seria a de o rientar conscientem ente a educação.
Se a filosofia deve ser outra coisa além de especula­
ções fúteis e não verificáveis, ela tem de estar anima­
da pela convicção de que sua Teoria da Experiência é
uma hipótese que só se concretiza na medida em que
a experiência é modelada, efetivamente, de acordo
com ela; ora, essa realização exige que o ser huma­
no seja colocado em tais disposições de ânimo que
venha a desejar e procurar esse tipo de experiência
(DEWEY, 1912-1913: 298, 306-307).
Essa m odelagem das disposições pode ser efetuada m e­
diante diversos agentes; mas, nas sociedades m odernas, um
dos mais im portantes desses agentes é a escola e, nesse sen­
tido, constitui o lugar indispensável em que um a filosofia se
concretiza com o “realidade viva” .
Os esforços despendidos p o r Dewey para dar vida à sua
p rópria filosofia no âm bito da escola suscitaram polêm i­
cas e, ainda hoje, esse pedagogo continua sendo p o n to de
referência nos debates a respeito das insuficiências do sis­
tem a escolar norte-am ericano: pessoa detestada pelos con­
servadores “ fu n d a m e n ta lis ta s ” , ele é c o n sid e ra d o pelos
re fo rm a d o re s - que preconizam um ensino “centrado na
criança” - com o um precursor e um a fonte de inspiração.
Nesses debates, os dois cam pos tendem a fazer um a leitura
equivocada da obra de Dewey, superestim ando sua influên­
cia e m inim izando os ideais dem ocráticos que se encontram
no âm ago de sua pedagogia.
184 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

7.1 Advento de um pedagogo docentes do ensino m édio e superior desse Escír


do. Q uando o presidente da recém -fundada Uni­
Jo h n Dewey nasceu em Burlington (Ver-
versidade de Chicago, W illiam Rainey H arper. ;
m ont), em 1859. Filho de com erciante, gra- convidou para a nova instituição, Dew ey in s is n
duou-se na U niversidade de V erm ont em 1879 e, para que sua nom eação incluísse a direção da
após um breve perío d o com o professor prim ário D epartam ento de Pedagogia, tendo conseguic:
na Pensilvânia e em V erm ont, retom ou seus es­ a criação de um a “escola experim ental” na q u a
tudos no D epartam ento de Filosofia da U niver­ suas ideias viessem a ser postas à prova. Durante
sidade Jo h n H opkins - prim eira instituição nos os dez anos passados em Chicago (1894-1904 .
Estados U nidos a organizar os estudos univer­ Dew ey elaborou os princí­
sitários com base no m odelo pios de sua filosofia e come­
alem ão; aí, sofreu a influência çou a vislum brar o tipo de
de George S. M orris, um idea­ escola em que seria possíve.
lista n eo-hegeliano. Ao o b te r aplicar tais diretrizes.
seu d o u to ra d o , em 1884, com
um a tese sobre “A psicologia
de K ant”, Dewey acom panhou 7.2 Pragmatismo e
M orris à U niversidade de M i- pedagogia
chigan, tendo sido seu sucessor
Ao longo da década de
na direção do D epartam ento de 1890, Dewey passou pro­
Filosofia, em 1889. gressivam ente do idealis­
D urante sua estadia em M i- m o p u ro para orientar-se
chigan é que Dew ey conheceu em direção ao pragm atism o
a futura esposa, Alice C hipm an, e ao naturalism o que vão
um a de suas alunas; ela chega­ John D ew ey im pregnar a filosofia de sua
ra à universidade depois de ter m aturidade. A partir de uma
psicologia funcional - tri­
sido professora, durante vários anos, em escolas
butária da biologia evolucionista de D arw in e
de M ichigan, e foi a pessoa que mais contou na
do pensam ento de outro pragm atista, William
direção que os interesses do m arido tom ariam no
Jam es - , ele com eçou a elaborar um a teoria do
final da década de 1880. Aliás, Dewey reconhe­
conhecim ento que questionava os dualism os que
ceu que ela havia insuflado “dinam ism o e con­
opunham a m ente ao m undo e o pensam ento
teú d o ” a seu trabalho, além de ter exercido um a
à ação, tendo im pregnado a filosofia ocidental
influência considerável sobre a form ação de suas desde o século XVII. Para ele, o pensam ento não
ideias pedagógicas (DEWEY, Jane, 1951: 21). é um aglom erado de im pressões sensoriais, nem
Após o casam ento, D ew ey com eçou a interes- a produção de algo designado por “consciência”,
sar-se ativam ente pelo ensino público e foi m em ­ tam pouco a m anifestação de um Espírito Abso­
bro fundador do Michigan Schoolm asters’ Club, luto, mas um a função m ediadora e instrum ental
do qual será um dos adm inistradores, tendo in ­ que se form ou para satisfazer as necessidades da
centivado, em particular, a cooperação entre os sobrevivência e do bem -estar da hum anidade.
7 John Dewey: aprender pela ação .■•-'V-r-

Essa teoria do conhecim ento enfatizava a nas quais o professor haveria de escrever as li­
“necessidade de com provar o pensam ento por ções sobre a civilização. Ao ingressar na escola, a
meio da ação se há a vontade de transform á-lo criança “já é intensam ente ativa e a incum bência
em conhecim ento” ; Dew ey reconheceu que essa da educação consiste em assum ir essa atividade
condição se estendia à p ró p ria teoria (MAYHEW e orientá-la” (DEWEY, 1899: 25). Ao iniciar sua
& EDWARDS, 1966: 464). Seus trabalhos sobre escolaridade, a criança traz consigo quatro “im ­
a educação tinham po r finalidade, sobretudo, pulsos inatos” - os “de se com unicar, de cons­
aprofundar as im plicações de seu instrum enta- truir, de procurar saber e de aperfeiçoar a form a
lismo para a pedagogia e testar sua validade m e­ de se ex p rim ir” - que são “os recursos naturais,
diante a experim entação. o capital a investir, cuja valorização condiciona o
Dew ey estava convencido de que num erosos crescim ento ativo da criança” (p. 30). A criança
problem as da prática educacional de seu tem po traz com ela tam bém os interesses e as ativida­
se deviam ao fato de estarem fundam entados em des de seu lar e do en to rn o em que vive; deste
uma epistem ologia dualista errônea - denuncia­ m odo, incum be ao educador a responsabilidade
da em seus escritos da década de 1890 sobre psi­ de usar essa “m atéria-prim a”, orientando as ati­
cologia e lógica m otivo pelo qual ele se p ro ­ vidades da criança para “resultados positivos”
pôs elaborar um a pedagogia baseada nas ideias (MAYHEW & EDWARDS, 1966: 41).
que defendia: funcionalism o e instrum entalis- Tal argum entação acabou levando Dewey a
mo. Tendo dedicado m uito tem po a observar o enfrentar tanto os partidários de um a educação
crescim ento dos próprios filhos, Dewey estava tradicional, “centrada no program a”, quanto os
persuadido de que a dinâm ica da experiência reform adores rom ânticos que defendiam um a
era sem elhante nas crianças e nos adultos: uns e pedagogia “centrada na criança”. Os tradiciona­
outros são seres ativos que aprendem m ediante listas, liderados po r W illiam Torrey H arris, C o­
o enfrentam ento de problem as que surgem no missário da Educação dos Estados Unidos, eram
decorrer das atividades que vierem a m obilizar favoráveis a um a instrução que destila, com m é­
seu interesse. O pensam ento é um instrum ento todo e de form a disciplinada, a sabedoria acum u­
a serviço tan to das crianças quanto dos adultos lada pela civilização: neste caso, o objetivo é o
para resolver os problem as da experiência; por program a de estudos que determ ina os m étodos
sua vez, o conhecim ento é o acúm ulo de sabe­ de ensino. A criança, po r sua vez, limita-se a “re­
doria engendrada no decorrer da solução desses ceber, aceitar; ela cum pria seu papel quando se
problem as. Infelizm ente, as conclusões teóricas m ostrava dócil e disciplinada” (DEWEY, 1902:
desse funcionalism o tiveram - com o constata o 276; trad. fr. PID O U X , 1913: 95). N o lado
próp rio Dewey - pouco im pacto na pedagogia oposto, os defensores da educação focalizada na
e os estabelecim entos escolares ignoravam essa criança, tais com o G. Stanley Hall e m em bros
identidade de natureza entre a experiência das proem inentes da N ational H erb art Society, argu­
crianças e a dos adultos. m entavam que o ensino das diversas disciplinas
Dewey afirm ava que as crianças não chega­ deveria subordinar-se ao desenvolvim ento n atu ­
vam à escola com o lousas em branco e passivas, ral e desinibido da criança. Para eles, a expressão
186 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

dos im pulsos espontâneos da criança é “o ponto 7.2.1 A utilização dos interesses e das
de partida, o centro, o objetivo” (p. 95). Essas atividades da criança
duas escolas de pensam ento travaram um acir­
rado com bate na década de 1890: os tradiciona­ É sobejam ente conhecida a crítica de Dewei
listas defendiam os conhecim entos adquiridos, contra os tradicionalistas pelo fato de não reLa-
com m uita dificuldade, ao longo de séculos de cionarem os tem as de estudo com as atividades
luta intelectual e consideravam que a educação da criança; em com pensação, seus ataques cor-
centrada na criança era caótica, anárquica, um a tra os partidários da educação centrada na criar -
rendição da autoridade dos adultos, enquanto ça - criticados po r não associarem os interesses e
os rom ânticos celebravam a espontaneidade e a as atividades da criança aos temas de estudo - sã:
m udança, além de criticarem os adversários por m uitas vezes silenciados. Alguns críticos da teo­
reprim ir a individualidade das crianças m ediante ria pedagógica de Dewey confundiram sua posi­
um a pedagogia tediosa, rotineira e despótica. ção com as dos rom ânticos, mas ele se diferen­
ciava claram ente dessas posturas. O perigo do
Para Dewey, esse debate era a m anifestação,
rom antism o, escreve ele, consiste em “tratar os
um a vez mais, de um dualism o pernicioso, con­
interesses e as capacidades da criança com o coi­
tra o qual ele se rebelou. Em sua opinião, era
sas significativas por si m esm as” (DEWEY, 1902:
possível resolver tal disputa, se os dois cam pos
280; trad. fr. PIDO UX , 1913: 102). M as seria
estivessem dispostos a
desastroso cultivar, tais com o são, as tendências
se desembaraçar da ideia funesta de que e os interesses das crianças. O bom educador
haveria uma oposição de natureza (em
deve ficar vigilante a fim de tirar partido des­
vez de uma diferença de grau) entre a
experiência da criança e os diversos sas tendências e desses interesses para orientar
temas que ela há de abordar no decor­ a criança em direção à sua plena realização nos
rer de seus estudos. Impõe-se chamar a tem as de estudo, sejam eles de natureza cientí­
atenção para o fato de que sua experi­ fica, histórica ou artística “porque os interesses
ência já contém, em si mesma, determi­ nada são além de atitudes em relação a experiên­
nados elementos - fatos e verdades - de
cias possíveis; nada têm de acabado, de com ple­
natureza semelhante aos que constituem
os estudos elaborados pela razão dos to; seu valor corresponde ao de um a alavanca”
adultos; e o que é ainda mais impor­ (p. 102). Os diversos ram os de estudo ilustram
tante [sic], impõe-se mostrar como ela a experiência acum ulada pela hum anidade; ora,
contém as atitudes, os incentivos e os esse é, precisam ente, o aspecto para o qual tende
interesses que haviam contribuído para
a experiência im atura da criança. E Dewey tira a
desenvolver e organizar os programas
ordenados de forma lógica. Por outro seguinte conclusão:
lado, no que diz respeito aos programas, Os fatos e as verdades que entram na
trata-se de interpretá-los como o resul­ experiência da criança, e aqueles con­
tado orgânico de forças que intervém tidos nos programas de estudo, consti­
na vida infantil, além de descobrir aí os tuem os termos inicial e final da mes­
meios de fornecer à experiência insufi­ ma realidade; estabelecer uma oposição
ciente da criança uma maturidade mais entre uns e outras é opor a infância à
rica (DEWEY, 1902: 277-278; trad. fr. maturidade do mesmo corpo vivo; é
PIDOUX, 1913: 98). afirmar que o movimento instintivo de
7 John Dewey: aprender pela ação 187

um processo vital e seu resultado final atividades im ediatas, d e te rm in a d o s pro b lem as


são antagônicos; é defender que a natu­ que, para sua resolução, exijam conhecim entos
reza e o destino da criança estão em luta teóricos e práticos da esfera científica, histórica e
entre si (DEWEY, 1902: 278; trad. fr.
artística. Com efeito, o program a de estudos está
PIDOUX, 1913: 99).
aí para lem brar ao pedagogo os cam inhos aber­
tos à criança no dom ínio da verdade, da beleza e
7.2.2 Os desafios a enfrentar pelo do bem, e para lhe dizer:
professor Fiquem vigilantes para realizar, cotidia-
namente, as condições que incentivem
A pedagogia de Dewey exige que o profes- o desabrochamento das capacidades ati­
4or execute um a tarefa extrem am ente difícil, ou vas dos alunos. A criança deverá reali­
seja, “reinserir os tem as de estudo na experiên­ zar seu próprio destino tal como este se
cia” (DEWEY, 1902: 285; trad. fr. PIDOUX, revela a vocês nos tesouros das ciências,
da arte e da indústria (DEWEY, 1902:
1913: 108). Os tem as curriculares, à sem elhança
291; trad. fr. PIDOUX, 1913: 118).
Je qualquer saber hum ano, são o p ro d u to dos
esforços do ser hum ano para resolver os proble­ Para ser capaz de ensinar dessa form a, ou
mas com que ele se depara em sua experiência; seja, orientar o desenvolvim ento da criança de
mas, antes de constituir esse conjunto ordenado m aneira não diretiva, convém que, segundo o
de conhecim entos, eles haviam sido abstraídos p ró p rio Dewey, o m estre seja um profissional
ia s situações que estavam na origem de sua ela­ bem qualificado, conhecedor abalizado da m até­
boração. Para os defensores da educação tra d i­ ria ensinada, form ado em psicologia da criança
cional, esse saber deve ser im posto sim plesm ente e gabaritado na utilização de técnicas destinadas
ã criança, em um a sucessão de etapas determ ina­ a pro p o rcio n ar os estím ulos necessários à crian­
das pela lógica desse corpus abstrato de certezas; ça para levá-la a integrar o tem a de estudo em
jra, apresentado dessa form a, o m aterial tem sua experiência de crescim ento. De acordo com
escasso interesse para as crianças e, além disso, a observação de duas educadoras - K atherine
não as instrui em relação aos m étodos de inda- Cam p M ayhew e A nna Cam p Edw ards - que
çação e de experim entação p o r interm édio dos trabalharam com Dewey, esse m estre deve ser
quais a hum anidade havia adquirido esse saber. capaz de ver o m undo com os olhos tanto da
Assim, o m estre é reduzido a recorrer a m oti­ criança, quanto do adulto.
vações da criança sem qualquer ligação com o À semelhança de Alice, a professora pri­
tema de estudo - tais com o o receio da criança mária tem de posicionar-se com as crian­
diante do castigo e da hum ilhação - para ten tar ças atrás do espelho e, com as lentes do
produzir nela um a aparência de aprendizagem . imaginário, ver todas as coisas com os
Em vez de im por, dessa m aneira, a m atéria de olhos e os limites da experiência delas;
estudos à criança - ou sim plesm ente deixar que no entanto, em caso de necessidade, ela
deve ser capaz de recuperar sua visão
d a a construa por si só, com o era preconizado
experiente e, com o ponto de vista rea­
pelos rom ânticos - , Dew ey solicitava aos educa­
lista do adulto, fornecer as referências
dores que integrassem a psicologia ao program a do saber e as ferramentas do método
de estudos, através da construção de um am bien­ às crianças (MAYHEW & EDWARDS,
te em que o aluno ten h a de enfrentar, em suas 1966: 312).
188 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

Dewey adm ite que a m aioria dos professores to com unitário é substituído po r “m otivações e
prim ários não possuem os conhecim entos teó ri­ norm as fortem ente individualistas” : m edo, em u­
cos e práticos indispensáveis para ensinar dessa lação, rivalidade, julgam entos de superioridade e
m aneira, mas considerava que eles eram capazes de inferioridade; p o r isso m esm o, “os mais fra­
de adquirir tal aprendizagem . cos perdem o senso de suas capacidades e acei­
tam um a posição de inferioridade persistente e
d u rad o u ra”, enquanto “os fortes são tentados a
7.3 Democracia e educação
se vangloriar po r serem os mais fortes” (p. 64,
H á quem , às vezes, atribua o qualificativo 65). Assim, Dewey afirm ava que, para fom entar
“p rogram a o c u lto ” à m odelagem da perso n ali­ o senso social das crianças e desenvolver seu es­
dade da criança, finalidade m oral e política da pírito dem ocrático, a escola deveria organizar-se
escola; e n tre ta n to , no caso de Dewey, esse as­ com o com unidade cooperativa. Se pretendem os
pecto de sua teo ria e de sua prática pedagógicas que a educação se to rn e um a preparação para a
não foi m enos explícito, em bora seja m uito m e­ dem ocracia, a escola deve se converter em “uma
nos radical, do que os o u tro s objetivos estabele­ instituição que seja, provisoriam ente, um lugar
cidos no p ro g ram a de estudos. D ew ey não hesi­ de vida para a criança, em que esta seja um m em ­
tava em afirm ar que “a form ação de d eterm in a­ bro da sociedade, ten h a consciência dessa filia­
do caráter é o único fundam ento v erdadeiro de ção e esteja disposta a dar-lhe seu con trib u to ”
um a c o n d u ta m o ra l”, nem em identificar essa (DEWEY, 1895: 224).
“c o n d u ta m o ra l” com o exercício dem ocrático A criação de condições favoráveis para a
(DEWEY, 1897b). form ação do senso dem ocrático na classe não
O indivíduo se realiza, de acordo com Dewey, é um a tarefa fácil: com efeito, tal disposição de
usando seus talentos peculiares, a fim de con­ ânim o não é algo que os m estres possam im por
trib u ir p a ra o bem -estar da c o m u n id ad e; p o r aos alunos, mas têm de criar um am biente so­
conseguinte, a função crucial da educação em cial propício a incentivar as crianças a assumir,
um a sociedade dem ocrática consiste em ajudar espontaneam ente, a responsabilidade de um a
a criança a adquirir o “c aráter” - conjunto de c o n d u ta m oral dem ocrática. O ra, esse tipo de
hábitos e v irtu d e s - que lhe p e rm itirá reali- vida, observava Dewey, “só existe quan d o o
zar-se plenam ente dessa form a. Ele considerava indivíduo consegue apreciar p o r si m esm o os
que, em seu conjunto, as escolas norte-am erica- objetivos adotados p o r ele e trab alh a com in ­
nas não cum priam tal tarefa; em sua m aioria, teresse e dedicação p ara alcançá-los” (DEWEY,
elas em pregavam m étodos com um a orientação 1897a: 77). D ew ey tin h a consciência de ser
dem asiadam ente “individualista” que obrigavam m uito exigente em relação aos professores e é
todos os alunos da classe a ler, sim ultaneam ente, p o r isso que, ao evocar seu papel e sua im p o r­
os mesm os livros e a recitar as mesmas lições. tância social, no final da década de 1890, vol­
Nessas condições, atrofiam -se os im pulsos so­ to u a rec o rre r ao evangelism o social, que ele
ciais da criança, e o m estre não pode tirar par­ tin h a ab an donado, qu an d o designa o docente
tido do desejo inato da criança “para dar, fazer, com o “o an u nciador do v erdadeiro Reino de
ou seja, servir” (DEWEY, 1897a: 64). O espíri­ D eus” (DEWEY, 1897b: 95).
C onform e dá a entender esse testam ento, ma, em vez de reprodução social, era necessário
a teoria educativa de Dewey está m uito m enos reconstruí-las com pletam ente. Tal era o objeti­
centrada na criança e mais no professor do que vo mais am bicioso de Dewey com o reform ador
se possa pensar. Sua convicção de que a esco­ da educação: transform ar os estabelecim entos
la, tal com o a concebe, inculcará nas crianças as escolares dos Estados Unidos em outros tantos
virtudes dem ocráticas procede da confiança de­ instrum entos de dem ocratização radical da so­
positada não tan to nas “capacidades prim itivas e ciedade norte-am ericana.
espontâneas da criança”, mas na habilidade dos
m estres para criar, na classe, um en to rn o p ro p í­
7.4 A escola de Dewey
cio a levar a criança a transform á-las em “hábitos
sociais, frutos de um a com preensão inteligente Em 1896, Dewey declarou que “a escola é
de sua responsabilidade” (p. 94-95). a única form a de vida social a funcionar na abs­
A fé de Dewey no professor transparece tam ­ tração e em m eio controlado, a ser diretam ente
bém na sua convicção, m anifestada na década de experim ental; além disso, se um dia a filosofia
1890, de que “a educação é um m étodo funda­ viesse a tornar-se um a ciência experim ental, seu
m ental do progresso e da reform a da sociedade” ponto de partida seria a construção de um a esco­
(p. 93). E havia certa lógica nessa profissão de la” (DEWEY, 1896a: 244). Ele chegou a Chicago
fé: na m edida em que a escola desem penha um com a ideia bem nítida do tipo de “escola labora­
papel decisivo na form ação da personalidade das tó rio ” que ele p ró p rio gostaria de im plem entar.
Em 1894, ele confiou à esposa:
crianças de determ inada sociedade, ela pode, se
é concebida com essa finalidade, transform ar de Tenho em minha mente, cada vez mais
presente, a imagem de uma escola em
m aneira fundam ental essa sociedade. A escola
que, no centro e na origem de tudo, es­
constitui, efetivam ente, um a espécie de caldo de teja alguma atividade verdadeiramente
cultura suscetível de influenciar realm ente o cur­ construtiva e a partir da qual o trabalho
so da sua evolução. De fato, se os professores se desenvolva sempre em dois sentidos:
desem penharem bem seu trabalho, qualquer re­ por um lado, a dimensão social dessa
form a haveria de se to rn a r praticam ente supér­ atividade construtiva; e, por outro, o
contato com a natureza que lhe fornece
flua: um a com unidade dem ocrática e coopera­
sua matéria-prima. Posso ver perfeita­
tiva acabaria po r em ergir diretam ente da classe. mente, em teoria, como a atividade de
O problem a é que, em sua m aioria, as escolas carpintaria instalada para construir uma
maquete de casa, por exemplo, venha a
foram concebidas não para transform ar a socie­
ser o centro de uma formação, por um
dade, mas para reproduzi-la. Com o dizia Dewey, lado, social e, por outro, científica -
“em todas as épocas, o sistema escolar dependeu tudo isso acompanhado de um treina­
sempre do tipo predom inante de organização da mento físico, concreto e positivo, da vis­
vida social” (DEWEY, 1896b: 285). Portanto, as ta e das mãos (DEWEY, 1894).
convicções esboçadas em seu credo pedagógico a A decisão incum bia, daí em diante, às a u to ­
respeito da escola e dos professores visavam não ridades universitárias, diante das quais Dewey
tanto o que era, mas o que poderia ser. Para que havia defendido os m éritos de um a escola que,
as escolas se convertessem em agentes de refor­ m antendo o labor teórico em contato com as
190 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

exigências da prática, constituiria o elem ento es­ diam no m ercado; as de 7 anos estudavam a vida
sencial de um D epartam ento de Pedagogia - “o na época pré-histórica em cavernas construídas
nervo de todo o sistem a”. Para tan to , conseguiu por elas próprias, enquanto as de 8, em um es­
o apoio de H arper, ativista firm em ente com pro­ paço mais afastado, estavam concentradas nas
m etido com a cam panha em favor da reform a aventuras dos navegadores fenícios, de Robin-
educacional de Chicago (DEWEY, 1896c: 434). son C rusoé e de outros exploradores posterio­
Em janeiro de 1896, a Escola Experim ental da res, tais com o M arco Polo, Fernão de M agalhães
Universidade de Chicago abria suas portas: ela e Cristóvão Colom bo. A história e a geografia
com eçou com 16 crianças e dois m estres; mas, locais ocupam a atenção das crianças de 9 anos
em 1903, já contava com 140 alunos e dava em ­ de idade, enquanto as de 10 estudavam a his­
prego a 23 professores prim ários, além de 10 tória colonial, m ediante a construção da réplica
assistentes graduados da universidade. A m aio­ de um côm odo da m oradia utilizada na época
ria dos alunos procedia de famílias de profissio­ dos pioneiros. O trabalho dos alunos da faixa
nais liberais e m uitos eram filhos de colegas do etária correspondente a 11 e 12 anos está menos
próprio Dewey. Bem rapidam ente, a instituição estritam ente concentrado em um período par­
ficou conhecida com o a “Escola de D ew ey”, ticular da história - m esm o que esta disciplina
já que as hipóteses testadas nesse “laboratório” continue a ser um com ponente im portante de
eram estritam ente as da psicologia funcional e seus estudos - e se organiza sobretudo em tor­
da ética dem ocrática de Dewey. no de experim entos científicos de anatom ia, ele-
trom agnetism o, econom ia política e fotografia.
Os alunos de 13 anos de idade que, p o r terem
7.4.1 As vantagens do centramento fundado um clube de debates, necessitavam de
temático em uma ocupação um lugar para reuniões, estavam envolvidos na
construção de um espaço de dim ensões respeitá­
N o núcleo do program a de estudos da Esco­
veis; aliás, esse projeto cooperativo irá m obilizar
la de Dewey figurava o que ele designava com o
alunos de todas as faixas etárias e, para m uitos,
“ocupação”, ou seja, “um m odo de atividade por
irá perm anecer o m om ento em blem ático da his­
parte da criança que reproduz um tipo de trab a­
tória da escola.
lho exercido na vida social, ou paralelo a ela”
(DEWEY, 1899: 92). Os alunos, divididos em C onsiderando que as atividades práticas que
onze faixas etárias, executavam um a grande va­ c o n stitu em essas “ o c u p a ç õ e s” têm p ro lo n g a ­
riedade de projetos centrados em diferentes ofí­ m entos que são, por um lado, o estudo científico
cios tradicionais ou contem porâneos. As crian­ dos m ateriais e processos utilizados p o r elas e,
ças mais jovens (4 e 5 anos de idade) estavam po r o u tro , seu papel na sociedade e na cultura, o
envolvidas em atividades que lhes eram fam ilia­ centram ento tem ático em um a ocupação fornece
res pelo fato de terem presenciado sua prática a oportunidade não só para a form ação m anu­
nas próprias casas ou entre os vizinhos: cozinha, al e a investigação histórica, mas tam bém para
costura, carpintaria. As crianças de 6 anos cons­ trabalhos em m atem ática, geologia, física, bio­
truíam um a granja com cubos, plantavam trigo logia, quím ica, artes plásticas, m úsica e idiomas.
e algodão, que colhiam , transform avam e ven­ N a Escola E xperim ental, de acordo com Dewey,
7 John Dewey: aprender pela ação

*2 criança vai à aula para fazer coisas: cozinhar, vidir a quadra de areia em vários cam­
costurar, trabalhar a m adeira e utilizar ferra­ pos destinados a receber as culturas de
mentas m ediante atos de construção simples. E, trigo, milho e aveia, além de prever a
localização da moradia e da granja,
"esse contexto e com o conseqüência desses atos,
as crianças usaram a régua de um pé,
se articulam os estudos: escrita, leitura, cálculo como unidade de medida, e começaram
a c .” (DEWEY, 1896a: 245). Uma com petência, a entender o que significava um quarto
tal com o a leitura, é adquirida quando a criança e uma metade; mesmo que as divisões
chega ao estágio em que ela reconhece a utilida­ não fossem exatas, eram suficientes para
permitir-lhes delimitar a granja. A medi­
de desse saber-fazer para a resolução dos p roble­
da que se familiarizavam com o uso da
mas que ela enfrenta nas atividades que fazem régua e aprendiam a manipular o meio
parte de sua “ocupação” . Segundo Dewey, “se pé, o quarto de pé e a polegada, tor-
ama criança com preende a razão pela qual tem nou-se possível esperar, e conseguir,
de adquirir determ inada com petência, tal aqui­ que elas fizessem um trabalho com maior
sição vai se to rn a r m uito mais fácil para ela. Por precisão... Para a construção dos pré­
dios da granja eram necessários quatro
conseguinte, os livros e a leitura são considera­ postes para as esquinas, além de seis ou
dos estritam ente com o ferram entas” (MAYHEW sete ripas da mesma altura. Ao medir as
& EDWARDS, 1966: 26). ripas, as crianças esqueciam frequente­
mente de manter o ponto de partida da
K a th e rin e C am p M ay h ew e A nna C am p
graduação da régua na extremidade do
Edw ards, que eram professoras da Escola Ex­ lado esquerdo da ripa de modo que as
perim ental, resenharam p o sterio rm en te, e de medidas tinham de ser refeitas duas ou
form a detalhada, essa notável experiência ed u ­ três vezes antes de obter uma medição
cativa, m ostran d o que D ew ey e seus colegas exata. Em seguida, o que havia sido fei­
to em um lado da casa, elas tiveram de
tinham conseguido, em grande p arte, a tra d u ­
repeti-lo, em seguida, no outro; com o
zir na prática a Teoria D ew eyana, algo que é treino, o trabalho ganhava, naturalmen­
confirm ado, aliás, pelos testem unhos de obser­ te, rapidez e precisão (MAYHEW &
vadores m enos diretam en te im plicados. Basta EDWARDS, 1966: 83-84).
citar aqui um único exem plo: os alunos de 6 Exem plos sem elhantes a esse ilustram com o é
anos, baseando-se na fecunda experiência em possível não só p artir do interesse da criança po r
atividades dom ésticas executadas na pré-escola, um a atividade concreta na qual ela está envolvi­
focalizaram seu trab alh o “nas ocupações úteis da (construção de um a m aquete de granja) para
do la r” . Eles vão construir, na q u ad ra com areia levá-la a adquirir conhecim entos em determ ina­
da recreação, a m aquete de um a granja e sem ear da m atéria (medidas e frações m atem áticas), mas
trigo no pátio da escola. À sem elhança do que tam bém fam iliarizá-la deste m odo com m étodos
se passava na m aioria das atividades de cons­ em píricos de solução de problem as, em que o
trução em preendidas na escola, a edificação da erro é um fator im portante da aprendizagem .
m aquete da granja perm itiu-lhes ap re n d e r algu­ A pedra angular da pedagogia de Dewey con­
mas noções de m atem ática: sistia em fornecer às crianças um a “experiência
No momento em que, para materializar de prim eira m ão” sobre situações-problem a que,
a produção agrícola, foi necessário di­ em grande parte, haviam sido criadas p o r elas
192 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

próprias. C om efeito, em sua opinião, “a m ente expressão da ética e da Teoria D em ocrática deakt
não consegue estar realm ente liberada enquan­ grande pedagogo. Ele tinha o costum e de alar­
to não houver em penho em criar condições que m ar: “A prioridade cabe à função social da edb-
obriguem a criança a participar ativam ente da cação” (MAYHEW & EDWARDS, 1966: 46~. j
construção personalizada de seus próprios p ro ­ A Escola de Dewey era, acim a de tudo, uma ex­
blemas e a colaborar na im plem entação dos m é­ periência de educação para a dem ocracia.
todos que lhe perm itirão resolvê-los - nem que De acordo com todos os testem unhos dispc- j
seja m ediante m últiplos ensaios e erros (DEWEY,
níveis, Dewey obteve um notável êxito na trans­
1903: 237).
form ação da escola-laboratório em um a comu­
Ao ler as descrições e resenhas da Escola nidade dem ocrática. As crianças participavam ài
E xperim ental, torna-se difícil entender com o al­ preparação dos projetos, cuja execução se fazú
guns críticos chegaram a acusar Dew ey p o r ser segundo um a divisão do trabalho do tipo coo­
0 paladino de um a educação progressista “sem perativo, caracterizada pelo rodízio freqüente
m etas”. N o entanto, Dew ey enunciou explici­ no exercício das funções de direção. Além disso,
tam ente os objetivos de seu program a de estu­ cultivava-se o espírito dem ocrático, não só entre
dos, aliás, visíveis im ediatam ente na prática co­ os alunos, mas tam bém entre os adultos que tra­
tidiana dos professores com quem trabalhava. À balhavam nessa escola. Dewey criticou severa­
sem elhança do mais rígido dos tradicionalistas, m ente o fato de que, nos estabelecim entos esco­
Dewey valorizava o saber acum ulado pela hum a­ lares, os professores não participassem de m odo
nidade, além de preconizar que, durante os pri­ algum das decisões que, no entanto, influencia­
m eiros anos de escolaridade, as crianças tivessem vam a condução do ensino público; reprovava,
acesso aos conhecim entos da ciência, da história em particular, aqueles reform adores que, tendo
e das artes; pretendia tam bém que elas ap ren ­ utilizado to d a a energia para que o controle das
dessem a ler, escrever, contar, pensar de m aneira escolas fosse retirado das m ãos de políticos cor­
científica e exprim ir-se com requinte. N o que se ruptos, acabavam p o r conferir um poder consi­
refere aos tem as de estudo, os objetivos peda­ derável, do tipo autocrático, aos diretores locais
gógicos de Dewey eram , em últim a análise, bas­ do ensino. Esses julgam entos m ostram perfeita­
tante convencionais e som ente seus m étodos se m ente até que p o n to Dew ey estava em penhado
apresentavam com o inovadores e radicais; mas, em levar a dem ocracia a superar o círculo estrei­
convencionais ou não, esses objetivos estavam to da política para estendê-la ao lugar de traba­
explicitam ente enunciados. lho. “O que significa dem ocracia - era a questão
que ele se form ulava - , a não ser o fato de que

1 A .2 Uma experiência de educação parao indivíduo deve dar sua opinião na determ ina­
a democracia ção das condições e dos objetivos de seu próprio
trabalho; e o fato de que, em últim a análise, a
Por mais im portante que tenha sido sua esco- atividade do m undo se realiza em m elhores con­
la-laboratório com o cam po de experim entação dições pela livre e m útua harm onização entre
para a psicologia funcional e para o pragm atis­ diferentes indivíduos do que pelo planejam ento,
m o de Dewey, ela foi ainda mais relevante com o organização e direção de algumas pessoas, por
7 John Dewey: aprender pela ação

mais com petentes e bem -intencionadas que elas cim entos escolares em poderosas instituições de
se-am?” (DEWEY, 1903: 233). N a sua Escola Ex- contestação, no cerne da cultura norte-am erica­
rtnmental, Dewey tentou im plem entar esse tipo na, ele tinha em com pensação um a visão m uito
ie dem ocracia no lugar de trabalho. O m esm o clara do que, em seu entender, deveriam ser as
sênero de organização orientava a tarefa tanto escolas em um a sociedade fundam entalm ente
dos m estres quanto dos alunos. Os professores dem ocrática e, não sem sucesso, tentou concreti­
-e reuniam , um a vez po r sem ana, para analisar e zar essa ideia na Escola Experim ental. C om toda
planejar o trabalho; e, apesar de serem levados a a evidência, essa escola não foi concebida segun­
atenuar, sem dúvida, suas críticas pela presença do um a perspectiva de reprodução social. Dewey
~3timidante de Dewey, eles desem penhavam um pretendia relacionar a escola com a vida social
papel ativo na elaboração do program a escolar. exterior, colocando atividades produtivas - as
“ocupações” - no âm ago de seu program a, mas
Dewey não tinha um a verdadeira estratégia
suprim iu deliberadam ente delas, tais com o eram
rara que os estabelecimentos escolares norte-ame-
praticadas na sociedade norte-am ericana, o que
ncanos, em geral, se tornassem em instituições
constituía um a de suas características essenciais:
favoráveis a um a dem ocracia radical. Apesar de
com efeito, vai retirá-las das relações sociais da
não pretender, nem esperar que os m étodos da
produção capitalista para colocá-las em um co n ­
Escola E xperim ental fossem seguidos de m anei­
texto cooperativo no qual se tornavam dificil­
ra estrita em outros lugares, ele alim entava a ex­
m ente reconhecíveis para aqueles que as exer­
pectativa de que sua escola viesse a ser não só
ciam no exterior. “N a nossa Escola, de acordo
ronte de inspiração para todos aqueles que se es-
com sua explicação, as ocupações clássicas exe­
rorçavam em transform ar o ensino público, mas
cutadas pelos alunos estão isentas de qualquer
tam bém cam po de exercício e centro de pesquisa
obrigação m ercantil. O objetivo não é o valor
para os professores e os especialistas partidários
com ercial dos produtos, mas o desenvolvim ento
da reform a. Procedendo desse m odo, ele m ani-
da autonom ia e da perspicácia sociais” (DEWEY,
restava tendência a subestim ar a constatação de
1899: 12). Isentas das vis preocupações utilitá­
que o sucesso da Escola de Dewey se devia ao
rias, as ocupações m anuais estavam organizadas
fato de que esta se m antinha afastada dos confli­
na sua Escola de tal form a “que os m étodos, o
tos, divisões e desigualdades que afetam a socie­
objetivo e a com preensão do trabalho estejam
dade em geral; com efeito, era difícil reproduzir
presentes na consciência de quem o executa, e
tal situação de isolam ento. C onvém reconhecer
que a atividade tenha sentido para o alu n o ” (p.
igualm ente que se tratava de um a escola com
16). O trabalho efetuado pelas crianças não era
reduzido núm ero de alunos, freqüentada p o r fi­
alienante: em nenhum a circunstância, era pos­
lhos de executivos abastados, em que o ensino
sível verificar o hiato entre m ão e cérebro que
era garantido p o r professores m otivados e bem
se tornava cada vez mais freqüente nas fábricas
qualificados, além de estarem em contato com
e oficinas do país. Dew ey qualificou, às vezes,
intelectuais de um a das m aiores universidades
sua Escola com o “sociedade em brionária”, mas
do país.
não se tratava, absolutam ente, de um em brião da
M esm o que Dewey não tivesse, pro p riam en ­ sociedade existente fora de seus m uros (p. 19);
te falando, um plano para converter os estabele­ longe de ser um a prom essa de reprodução da
194 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

Am érica industrial, ela prefigurava de preferên­ exterior, para apoiar os m ovim entos r e f o r m a i-
cia sua reconstrução radical. res no Japão, Turquia, M éxico, União Soviete* j
e China, países em que, sem dúvida, seu impac­
to foi m aior. Tendo chegado à China, em 1 9 U y
7.4.3 Uma breve existência
nas vésperas da em ergência do M ovim ento 4 ac
Essa com unidade - fundada po r Dewey - M aio, Dewey foi acolhido calorosam ente por
que p refig u ra v a o fu tu ro acabou te n d o um a num erosos intelectuais chineses que, de acord:
existência m uito breve e, ironia do destino, seu com a afirm ação de um historiador, “associa»
fim deveu-se à luta pelo controle da Escola Ex­ estreitam ente seu pensam ento à p rópria noçã:
perim ental po r parte dos que nela trabalhavam . de m odernidade” (KEENAN, 1977: 34).
C om efeito, Dewey e seus professores não eram As convicções dem ocráticas de Dewey aca­
proprietários de seu “ateliê” ; este pertencia à baram p o r levá-lo tam bém a se envolver ein
U niversidade de C hicago. Em 1904, o presi­ controvérsias com grande núm ero de educadc-
dente H arp er m anifestou sua preferência pelos res “progressistas”, inclusive com alguns que se
professores e funcionários técnico-adm inistrati- consideravam seus fiéis adeptos. Ele atacou c*
vos de um a escola fundada pelo coronel Francis “progressistas adm inistrativos” favoráveis a pro­
Parker (que havia se fundido com a Escola de gram as de ensino profissional nos quais ele via
Dewey no ano anterior), descontentes por te ­ um ensino classista que convertia a escola em
rem sido integrados na “Escola do Sr. e da Sra. um agente ainda mais eficaz para a reprodução
D ew ey”, além de recearem que, em particular, de um a sociedade não dem ocrática. “O ensine*
Alice Dewey decidisse prescindir de seus servi­ profissional que me interessa não é aquele que
ços. Q uando H arp er despediu Alice, Dewey de­ adapta o operário ao regime industrial existen­
mitiu-se e, quase sim ultaneam ente, aceitou um te; m inha paixão por esse regim e não chega a
posto na Universidade de C olum bia, onde per­ esse p o n to ”. Pelo contrário, e no prosseguim en­
m aneceu até o final de sua longa carreira. A per­ to de sua afirm ação, os norte-am ericanos deve­
da de sua Escola Experim ental deixou o cam po riam tender para “um tipo de ensino profissional
livre para que outros interpretassem , aplicassem que começasse p o r m odificar o sistem a indus­
e, m uitas vezes, distorcessem suas ideias peda­ trial existente para, finalm ente, transform á-lo"
gógicas; deste m odo, Dewey ficou privado de (DEWEY, 1915: 412). Dewey continuou tam ­
um extraordinário instrum ento para concretizar bém a se distanciar dos progressistas rom ânticos,
seus ideais dem ocráticos. centrados na criança e, na década de 1920 - em
um a declaração pública de um a rispidez inusi­
tada atribuiu a esse m étodo o qualificativo
7.5 O movimento progressista de
reforma de “realm ente estúpido” porque se lim itava a
deixar as crianças seguirem suas inclinações na­
Apesar de nunca mais ter conseguido o utra turais (DEWEY, 1926: 59). Enfim , na década
escola própria, Dewey continuou sendo um crí­ de 1930, ele chegou a se m anifestar contra os
tico m ilitante da educação norte-am ericana, até radicais adeptos do “reconstrutivism o social”,
o final de sua carreira. Aventurou-se tam bém , no cujo pensam ento estava, talvez, mais próxim o
7 John Dewey: aprender pela ação 195

d o seu, quando pro p u n h am reco rrer a p ro g ra­ tão grande respeito pela tradição e pelos tem as
mas de “contrad o u trin ação ” para im pedir um de estudo que acabou descontentando os ro m ân ­
ensino destinado a legitim ar um a ordem social ticos. O que perm ite o historiador H erb ert Klie-
opressiva. A contrapropaganda em preendida pe­ bard escrever que,
los radicais dem onstrava, em seu entender, falta apesar de sua estatura intelectual, de sua
de confiança na força das próprias convicções e reputação internacional e das numero­
na eficácia dos m eios pelos quais, supostam ente, sas honrarias que lhe foram prestadas,
haviam adquirido tais convicções; com efeito, Dewey não teve um número suficiente
não havia sido p o r doutrinação que eles tinham de verdadeiros discípulos para garantir
chegado às conclusões acerca dos defeitos da seu impacto no mundo da prática edu­
sociedade capitalista, mas p o r “um estudo in­ cativa (1986: 179).
teligente das forças e das condições históricas e M esm o que tivesse continuado a acreditar
presentes” (DEWEY, 1935: 415). Os dem ocratas que o professor era “o anunciador do verdadeiro
radicais deveriam acreditar na aptidão de seus Reino de D eus”, Dewey deve ter vivenciado um a
alunos para chegar às m esm as conclusões pelos profunda decepção ao constatar o desinteresse
mesmos m eios, não só p o r se tra tar de um p ro ce­ em relação a seus argum entos pedagógicos. M as,
dim ento mais dem ocrático, mas tam bém porque após a Prim eira G uerra M undial (1914-1918),
tais conclusões deveriam ser subm etidas à análise sua atividade m ilitante deixou de estar focaliza­
contínua que é inerente a esse tipo de educação. da na escola; com um a apreciação m enos ingê­
Se o método da inteligência deu resul­ nua do papel dessa instituição na reconstrução
tados no nosso caso - eis a questão que social, Dewey já não situava a sala de aula no
ele se formulava - por que havemos de
centro de sua revisão reform adora. O que, em
pensar que não funcionará no caso de
nossos alunos, nem irá engendrar neles sua m ente, havia sido o m eio essencial da dem o­
o mesmo entusiasmo e a mesma energia cratização da vida norte-am ericana se converteu
prática? (DEWEY, 1935: 415). em um recurso fundam ental, entre outros, e um
As críticas de Dewey contra outros reform a­ m eio de educação do público m anifestam ente
dores eram recebidas, em geral, com cortesia, secundário em relação a instituições mais aberta­
mas não chegaram a ser convincentes; foram ra­ m ente políticas. A p artir daí, Dewey reconhecia
ros aqueles que o seguiram no cam inho p roposto de bom grado que a escola, ao estar inextricavel-
por ele para “sair da confusão educativa”. Para m ente vinculada às estruturas de poder vigente,
a m aioria dos educadores, ele constituía um a sé­ constituía um dos principais instrum entos de re­
ria am eaça para os m étodos e tem as de estudo produção da sociedade de classes, característica
tradicionais. Além disso, as im plicações sociais do capitalism o industrial; p o r conseguinte, era
eram dem asiado radicais para os defensores da extrem am ente difícil transform á-la em um agen­
eficácia científica e não o eram suficientem ente te da reform a dem ocrática. Todos os esforços
para alguns adeptos da reconstrução social. En­ despendidos para convertê-la em alavanca de
fim, apesar de ter preconizado um program a de um a dem ocratização mais acentuada da socieda­
estudos revolucionário, baseado nos impulsos e de foram alvo das críticas daqueles que tinham
interesses das crianças, Dewey m anifestou um interesse em preservar a ordem social existente.
196 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

As lacunas da escola refletem e m antêm os defei­ fizer aliança com este ou aquele m ovim ento das
tos da sociedade com o um todo, e não podem ser forças sociais existentes” (DEWEY, 1934: 207);
corrigidos sem a luta pela dem ocracia de toda a contrariam ente ao que Dewey tinha tendência
sociedade. A escola vai participar da m udança a fazer ou tro ra, ela não pode ser considerada
social dem ocrática som ente “na m edida em que com o o veículo que perm ite se evadir da política.

Conclusão

D urante a década de 1950 - portanto, após sua m orte


Dewey foi objeto de violento ataque pelos adversários do
ensino progressista que atribuíram à sua filosofia da educa­
ção a responsabilidade p o r quase todas as lacunas do sistema
escolar público nos Estados Unidos. N o entanto, sua influ­
ência sobre as escolas norte-am ericanas foi bastante lim ita­
da. Deste m odo, seus críticos conservadores o assimilaram,
de form a equivocada, aos progressistas que, aliás, haviam
sido atacados pelo próp rio Dewey: mas, tratava-se de um
bode expiatório convencional para os “fundam entalistas”,
preocupados com o declínio do nível intelectual nas escolas
e com a am eaça que tal situação representava para um a na­
ção que se encontrava, então, em guerra fria contra o com u­
nismo. Após o lançam ento do satélite russo Sputnik - e de
acordo com a narrativa de dois historiadores do período em
questão - , “o crescente clam or contra o sistema educativo se
to rn o u um estrondo ensurdecedor. A indignação foi geral:
o presidente, o vice-presidente, os alm irantes, os generais,
os coveiros, os comerciantes, os engraxates, os bootleggers,
os agentes im obiliários, os contrabandistas, to d o s lamen-
tavam -se por não terem um pedaço de m etal em órbita em
volta da Terra, atribuindo essa tragédia aos sinistros discí­
pulos de Dewey que haviam conspirado para im pedir que o
pequeno Johnny aprendesse a le r” (MILLER & NOWAK,
1977: 254). Desde a década de 1950, variações sobre esse
tem a têm voltado, periodicam ente, a alim entar o debate so­
bre a situação do ensino público norte-am ericano, e cada
nova cam panha favorável ao reto rn o às “aprendizagens
básicas” é acom panhada por um ataque sistem ático contra
Dewey: seus instigadores - tais com o A. Bloom e E.D. Hirs-
ch em um recente livro que obteve grande sucesso - se em ­
7 John Dewey: aprender pela ação 197

penham , em geral, em apresentar Dewey com o um ro m ân ­


tico rousseauniano (BLOOM , 1987: 195; H IR SC H , 1987:
118-127).
Para concluir, digam os que - apesar de existir, sem dú­
vida, em cada distrito escolar norte-am ericano, pelo m enos,
um professor de ensino público que tenha lido Dewey e se
esforce por ensinar de acordo com seus princípios - , os crí­
ticos exageraram a influência exercida p o r esse pedagogo.
Sua herança reside não tan to em um a prática bem estabele­
cida, mas em um a visão crítica. A m aior parte das escolas es­
tão longe de serem “lugares extrem am ente interessantes” e
“vanguardas perigosas de um a civilização hum anista”, com o
teria sido o desejo de Dewey (1922: 334). N o entanto, para
quem pretenda precisam ente atingir essa m eta, a obra de
Dewey continua sendo um a preciosa fonte de inspiração.

Resumo

A concepção educativa de Dew ey - um dos mais im por­


tantes filósofos n o rte -am e ric an o s do século X X - resp al­
da-se, por um lado, em um a visão pragm atista da aprendi­
zagem (a criança aprende no m om ento em que executa suas
atividades porque, na ação, é que ocorre a form ação do p en ­
sam ento no ser hum ano) e, po r outro, em um a concepção
política (a educação e a escola constituem o crisol de um a
sociedade dem ocrática). Ele foi, po r conseguinte, um crítico
tan to das concepções tradicionais que consideravam a crian­
ça com o um ente passivo quanto das concepções rom ânticas
segundo as quais a criança deve aprender independentem en­
te dos saberes escolares. Ao opor-se a essas duas concepções,
que nada são além de soluções inventadas pelas gerações
anteriores para resolver os problem as com que haviam se
deparado, Dewey considera que a criança é intensam ente
ativa e que a educação deve apostar nessa atividade natural
para orientá-la na aprendizagem dos saberes. Além disso,
este pedagogo pretendia que a educação viesse a preparar
os alunos para viver em um a sociedade dem ocrática. Nesse
sentido, em seu entender, a educação deveria ser cooperati­
va e dem ocrática: os alunos e os professores devem partici­
par da vida escolar já que a opinião de cada um é essencial.
198 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

Ademais, essa educação para a dem ocracia pretende ser um a


crítica contra a escola norte-am ericana baseada no indivi­
dualism o, na submissão dos alunos aos m estres, na com pe­
tição, assim com o na divisão entre os “fortes” e os “fracos”.
A Escola criada por Dewey inspirava-se nesses princípios,
tendo-se to rn ad o um m odelo para vários estabelecim entos
escolares nos Estados Unidos. Graças à sua Escola Experi­
m ental, Jo h n Dewey conseguiu p ro p o r ao m undo escolar
determ inadas práticas pedagógicas inovadoras que continu­
am sendo aplicadas em nossos dias: o ensino cooperativo e
com unitário, o aprendizado po r projetos, um a concepção
dem ocrática do funcionam ento do estabelecim ento, assim
com o a valorização do papel dos professores e de sua p ro ­
fissionalização. Tais práticas pedagógicas pretendem ser uma
crítica contra os m odelos predom inantes de escolarização
vigentes na sociedade norte-am ericana, baseados na submis­
são da escola ao m ercado, na com petição e no consum o.

Questões

1) Por que m otivo Dewey se opõe tan to aos partidários


da educação tradicional quanto aos defensores da edu­
cação rom ântica, a qual corresponde ao que era qualifi­
cado, na época, com o a Educação Nova?
2) Em que sentido a concepção educativa de Dewey se
apoia em sua filosofia, o pragm atism o?
3) Q ual é o papel do professor na perspectiva de Dewey?
4) Segundo Dewey, a educação é um a preparação para a
dem ocracia. Explique essa tese.
5) Em que sentido a pedagogia de Dewey pretende ser
um a crítica da educação existente e, mais am plam ente,
da sociedade norte-am ericana de sua época?

Atividade de aprendizagem

Um grande núm ero de ideias de Jo h n Dewey exerceram


influência sobre os sistemas escolares contem porâneos. De­
m onstre, com suas palavras, a m aneira com o algumas das
ideias desse pedagogo continuam em ação nas correntes pe­
dagógicas atuais no âm ago do m undo escolar.
7 John Dewey: aprender pela ação 199

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Maria Montessori: a criança e sua educação*
Hermann Rõhrs

Objetivos de aprendizagem

Após a leitura deste capítulo, você deveria ser capaz:

• de descrever o papel do professor segundo a aborda­


gem de M aria Montessori;

• de explicar a razão de ser e as características do ma­


terial didático criado por Montessori;

• de mostrar em que aspecto a formação em medicina


de Montessori exerceu influência sobre seu método;

• de explicar o conceito de período sensível, proposto


por Montessori;

• de explicar seu conceito de “mente absorvente”.

* Este texto foi extraído de Perspectives - Revue trimestrielle d’éducation comparée, vol. XXIV, n. 1-2, mar.-jun./1994, p. 173-188.
Paris: Unesco/Bureau International d’Éducation.
202 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

Introdução

M aria M ontessori (1870-1952) é a figura de proa do


m ovim ento da Educação N ova. Existem poucos exemplos
de tal em preendim ento que visa instaurar um conjunto de
preceitos educativos de âm bito universal; além disso, raros
são aqueles que exerceram um a influência tão prep o n d eran ­
te e tão vasta nessa área quanto esta pedagoga. Essa uni­
versalidade é tan to mais surpreendente que, na fase inicial
de suas pesquisas, ela tinha concentrado seus esforços nas
crianças pequenas e só mais tarde am pliou o cam po de suas
investigações para incluir as crianças mais velhas e a família.
A prim eira infância era, em sua opinião, a fase crítica na
evolução do indivíduo, o período no decorrer do qual são
lançadas as bases de qualquer desenvolvim ento ulterior. Eis
p or que ela atribuía um alcance universal às observações que
podem os fazer sobre essa fase da vida. M aria M ontessori
foi tam bém exem plar no sentido em que se esforçou sem­
pre para conjugar teoria e prática: suas Casas das Crianças
e seus m ateriais didáticos dão testem unho dessa exigência.
N enhum outro representante do m ovim ento da Educação
N ova aplicou suas teorias em um a escala tão am pla; o pro­
gram a diversificado em preendido por ela, no plano interna­
cional, não chegou a conhecer algo sem elhante.
O mais notável é que o debate em to rn o de suas ideias
é tão apaixonado e continua suscitando tantas controvér­
sias quanto na época em que foram publicadas suas prim ei­
ras obras (em 1909, po r instigação de duas amigas m uito
próxim as, A nna M accheroni e Alice Franchetti); nos anos
seguintes, seus textos com eçaram a ser traduzidos nas prin­
cipais línguas do m undo. A série de conferências, de fácil as­
similação e estim ulantes, que ela proferiu no m undo inteiro
facilitou a difusão de suas ideias. [...]
A perm anência do interesse suscitado por seus trabalhos
não é devido, de m odo algum , a um desejo reverencioso
para proteger e preservar o passado, mas resulta de um au­
têntico espírito de pesquisa. Isso acontece po r dois m otivos:
em prim eiro lugar, o atrativo exercido pela personalidade
de M aria M ontessori, atração que sobrevive em sua obra e
confere a suas ideias um fascínio particular; em seguida, o
objetivo atribuído por ela a seu trabalho, ou seja, fornecer
um a base científica sólida, verificada constantem ente pela
experiência, à educação das crianças.
8 Maria Montessori: a criança e sua educação 203

8.1 Uma vida a serviço da infância Estados U nidos e no qual, pela segunda vez, ele
apresentou seu m étodo.
M aria M ontessori nasceu em 1870, em
Chiaravalle, p erto de A ncona, na Itália, e m or­ Inspirada pela experiência que tinha adqui­
reu em 1952 em N ordw ijk, na H olanda. Em rido na clínica em contato com crianças - obser­
1896, foi a prim eira m ulher, vadas p o r ela ao brincarem no
na Itália, a concluir m edicina chão com pedaços de pão po r
com um a tese sobre neuro- falta de brinquedos - e pe­
jDgia. Em seguida, trabalhou los exercícios desenvolvidos
durante dois anos com o as­ po r Séguin para aperfeiçoar
sistente na clínica psiquiátri­ as funções sensoriais, M aria
ca da U niversidade de Rom a, M ontessori decidiu dedicar-
tendo sido incum bida, em se aos problem as pedagógi­
particular, do estudo do com ­ cos. Em 1900, ela trabalhou
portam ento de um grupo de na Scuola Magistrale O rto-
ovens com reta rd o m ental. frenica, instituto destinado à
0 tem po passado com essas form ação dos educadores das
crianças perm ite-lhe consta­ escolas para crianças p o rta ­
tar que suas necessidades e doras de deficiência e com re­
>eu desejo de b rin c a r haviam tardo m ental. D epois de estu­
p erm an ecid o intactos, o que
dar pedagogia, ocupou-se da
1 levou a p ro cu ra r recursos M aria M ontessori
m odernização de um bairro
para educá-las. Foi nessa época
pobre de Rom a, San Lorenzo,
que ela descobriu as obras dos médicos franceses
encarregando-se da educação das crianças. Para
Bourneville, Itard e Séguin, assim com o a de
atender às suas necessidades, ela fundou um a
Pereira, espanhol que viveu em Paris, tendo co­
Casa das Crianças (Casa dei bam bini) na qual
nhecido Rousseau e D iderot. Ela adquiriu um
estas podiam aprender a conhecer o m undo e a
interesse específico pelos estudos de Itard - que
havia ten tad o civilizar a criança selvagem, e n ­ desenvolver suas aptidões para organizar a p ró ­
contrada nas florestas de Aveyron em 1798, es­ pria existência.
tim ulando e desenvolvendo seus sentidos - e de San Lorenzo foi o início de um a espécie
Edouard Séguin, aluno de Itard. Em geral, ela de m ovim ento de renascim ento que contribuiu
m anteve-se discreta sobre as fontes de sua ins­ para avivar sua fé na possibilidade de m elhorar
piração, mas em seus escritos descreveu de m a­ a hum anidade através da educação das crianças.
neira aprofundada os esforços despendidos para Em bora sua ação fosse baseada em princípios
conciliar suas teses com as de Séguin, principal­ científicos, M aria M ontessori não deixou de
m ente as que são expostas em seu livro Idiocy ab o rd ar a infância com o um a continuação do
j n d its treatm ent by the physiological m etb o d [A ato da criação. Essa com binação de diferentes
idiotia e seu tratam en to pelo m étodo fisiológi­ abordagens constitui o aspecto verdadeiram en­
co]1, publicado depois de ter em igrado para os te fascinante de sua obra: ao fazer experiências
e observações m eticulosas de acordo com um a
' MONTESSORI (1969). Sua relação com o professor Séguin
m etodologia científica, ela considerava a fé, a
e abordada, de forma aprofundada, por KRAMER (1977: 58) e
çualmente em HELLBRÜGGE (1977: 68). esperança e a confiança com o os m eios mais efi­
204 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

cazes de ensinar às crianças a independência e a extrem am ente bem -sucedida. Tendo sido en­
autoconfiança. As Casas das Crianças que foram carregada po r Talamo, o diretor da em presa de
criadas nos anos seguintes tornaram -se, às vezes, construção, de fundar um centro de jovens para
verdadeiros santuários para onde os educadores evitar que as crianças ficassem na rua enquanto
se dirigiam em peregrinação; elas constituíram os pais trabalhavam , ela realizou o “m ilagre da
sem pre m odelos que m ostravam com o resolver criança nova”, cuja “infância” enaltecida acaba­
os problem as pedagógicos. va po r influenciar, favoravelm ente, os pais. A
A reflexão e a m editação desem penharam “criança verdadeira” era a prova viva do p ro ­
um papel im portante tanto em sua vida pessoal, cesso contínuo de criação, de renascim ento e de
quanto em seu p rogram a educativo. R ecusan­ renovação: qualquer um que tivesse o desejo e o
poder de refletir seriam ente sobre a questão des­
do-se a adotar m étodos estranhos à sua aborda­
cobriria sua dim ensão profundam ente religiosa.
gem, rejeitando as contem porizações, ela tinha a
certeza de defender a causa de todas as crianças, M aria M ontessori foi um a das figuras autên­
de atender às suas necessidades, além de saber ticas da Educação N ova enquanto m ovim ento
transm itir sua m ensagem com inteligência, clare­ internacional. De fato, a reform a preconizada
za e determ inação. Apesar do rigor de sua lingua­ p o r ela não se lim itava a um a simples substitui­
gem, era considerada po r m uitos com o um a es­ ção m ecânica dos m étodos antigos p o r novos,
pécie de sacerdotisa dos direitos das crianças em supostam ente m ais eficazes. Além de reforma-
um m undo hostil. Seu destino pessoal (deu à luz tio - em seu sentido original de reorganização
a um filho natural) contribuiu certam ente p ara a e renovação da vida - , nenhum o u tro term o ex­
pressava m elhor o processo pelo qual ela se inte­
atm osfera de m istério que envolvia seu trabalho.
ressava fundam entalm ente.
M as é precisam ente através de sua atividade que
ela encontrou a m aneira de resolver esse proble­
ma de m odo exem plar (KRAMER, 1977). As influências da pedagoga
Seus colaboradores mais próxim os - Anna
M accheroni e, durante algum tem po, a pedagoga N ão é fácil definir a posição de M ontessori
norte-am ericana H elen Parkhurst - se dedicaram em relação aos outros partidários da Educação
totalm ente a essa tarefa. Seu filho e, mais tarde, N ova. Ao contrário da m aioria, ela foi m uito in­
seu neto, M ario M ontessori, m anifestaram tam ­ fluenciada p o r Rousseau. Vários trechos de seus
bém a m esm a dedicação; no entanto, tal com ­ livros assem elham -se a variações sobre tem as
rousseaunianos; além disso, sua crítica do m un­
prom isso era m otivado pela preocupação não de
do dos adultos que, a seus olhos, não levavam
m anter um a tradição familiar, mas de preservar
em conta as crianças, evoca tam bém a atitude de
um a herança bem mais am pla, ou seja, “a educa­
Rousseau. Ainda sob a influência desse filósofo
ção dos seres hum anos” (M O N TESSO RI, M a ­
é que ela com batia as amas de leite, as correias,
rio, 1977).
os voadores, as cintas protetoras e os andadores
utilizados para ensinar as crianças a andar m uito
8.2 Montessori e a Educação Nova cedo, chegando à seguinte conclusão:
E importante deixar a natureza agir o
A ação em preendida por M aria M ontesso­ mais livremente possível; assim, quanto
ri no bairro rom ano de San Lorenzo revelou-se mais livre for a criança em seu desenvol­
8 Maria Montessori: a criança e sua educação

vimento, tanto mais rapidamente e mais Ela foi influenciada tam bém p o r Ovide D e­
perfeitamente ela atingirá suas formas croly. Tanto suas vidas quanto suas obras apre­
e funções superiores (MONTESSORI,
sentam diversos pontos em com um : eles tinham
Mario, 1977).
praticam ente a m esm a idade (M ontessori tinha
E claro que ela não tinha estudado sistem a­ nascido em 1870 e Decroly em 1871), ambos
ticam ente as obras de Rousseau; no entanto, da estudaram m edicina e criaram instituições de en­
mesma form a que se apropriou de um bom núm e­ sino em 1907 - a Casa dei bam bini, em Rom a, e
ro de críticas contra a cultura e a sociedade de seu a École pour la vie par la vie [Escola para a vida
tem po, ela deve ter lido, pelo m enos, algumas pela vida], em Bruxelas. Pelo fato de pertencerem
partes de E m ílio , em qualquer caso, o prim eiro à associação N e w Education Fellowship, eles ti­
iivro. Assim, é difícil tam bém delim itar sua ati­ veram a oportunidade de se encontrar e discutir
tude relativam ente aos educadores - em particu­ com frequência. N o entanto, por ocasião de seu
lar, Dewey, Kilpatrick, D ecroly e Ferrier - que prim eiro encontro, cada um já tinha elaborado a
participavam do m ovim ento da Educação Nova. m aior parte de suas ideias, de form a que as n u ­
Em bora ela estivesse em contato com alguns de­ m erosas sem elhanças que podem os observar em
les no âm bito de suas atividades no seio da N e w suas abordagens são devidas, essencialm ente, ao
Education Fellowship, tal circunstância não re ­ fato de que am bos tinham estudado as obras de
sultou em nenhum a colaboração concreta; em Itard e de Séguin3.
suas obras, encontram os unicam ente a citação
O conceito fundam ental subjacente à obra
dos nom es de W ashburne e de Percy N u n n - em
pedagógica de M ontessori é o seguinte: as crian­
particular este últim o quando ela desenvolve seu
ças devem se beneficiar de um am biente ap ro ­
conceito de “m ente absorvente”.
priado no qual tenham a possibilidade de viver
Percy N u n n , que presidia na época a seção e aprender. A característica fundam ental de seu
inglesa da N e w E ducation Fellow ship, veio a program a pedagógico é que ele dá igual im por­
encontrá-la p o r ocasião do ciclo de co n ferên ­ tância ao desenvolvim ento interno e ao desen­
cias proferidas p o r ela em L ondres. Sua Teoria volvim ento externo, organizados de form a a se
de horm ê e de m n ê m ê 2 - desenvolvida no livro com pletarem .
E ducation: its data and first principies (N U N N ,
N o entanto, o fato de que algum a atenção
1920) - ajudou M aria M ontessori a elaborar
seja prestada à educação externa - considerada
sua concepção da m ente hum ana em desenvol­
pelos filósofos e pedagogos da escola idealista
vim ento, que determ ina o fluxo da existência
com o um a simples conseqüência do sucesso da
em constante interação com o am biente e, ao
educação interna - reflete a orientação científi­
fazê-lo, acaba ela p ró p ria p o r assum ir um a for­
ca de seu program a. Nesse p o nto, a influência
ma definida.
de Séguin foi certam ente decisiva, assim com o a
de Pereira, que tinha dem onstrado o papel dos
2. Mnêmê corresponde à memória, vestígio do desenvolvimen­
sentidos no desenvolvim ento da personalidade.
to das gerações anteriores que foi deixado no inconsciente da
aiança; por sua vez, hormé, do inglês hormic, segundo Percy 3. Essa hipótese estaria respaldada provavelmente em pesqui­
Nunn, significa força vital (cf. mais adiante, subtítulo 8.7, penúl- sas e na publicação dessa correspondência, tarefas que ainda
Smo parágrafo) [N.T.]. estão por executar.
206 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

A ideia de que é possível educar e transform ar os to M aria M ontessori enfatizava a abstração. E s a


seres hum anos m anipulando unicam ente os da­ últim a m anifestava igualm ente um a grande pre­
dos sensoriais que lhes são transm itidos - aliás, ocupação com o estádio experim ental; mas e b
ideia que D iderot havia analisado em sua Carta reconhecia, ao m esm o tem po, que é necessán;
sobre os cegos e em sua Carta sobre os surdos e incentivar, aprofundar ainda mais essas tendêr
os m udos, e que havia inspirado o program a de cias, esses centros de interesse por m eio de exer­
Rousseau no que se refere à educação sensorial - cícios, e que o sucesso dessa iniciativa depende d :
desem penhou tam bém um papel im portante nas despertar [éveil] do senso de responsabilidade nas
teorias de M ontessori. crianças. Eis o que ela trouxe de verdadeiram er-
te novo: não só levava em conta as tendências c
Para co m p reen d er plenam ente a p rofunda
os centros de interesse da criança - à semelhac-
originalidade das ideias de M ontessori é neces­
ça de vários defensores da Educação N ova qut
sário equipará-las com o m étodo desenvolvi­
baseavam sua ação apenas nesse princípio - , ma.?
do pelas irm ãs Agazzi. Os trabalhos de Rosa e
esforçava-se em incentivar nas crianças a auto-
C arolina Agazzi constituem um a das tentativas
disciplina e o senso da responsabilidade.
mais notáveis para fazer avançar a educação das
crianças pequenas. O interesse desses estudos
para nós, hoje, vem do fato de que ocorreram 8.3 As casas das crianças
no m esm o am biente em que M ontessori havia
elaborado suas ideias. As casas das crianças eram am bientes de vida
equipados especialm ente para atender às neces­
Desde 1882, Rosa Agazzi e sua irm ã dirigi­
sidades desse público; além disso, as crianças
ram um lar para crianças (II nuovo asilo), em
podiam transform á-los e aprim orá-los, exercen­
M onpiano (Bréscia), que é considerado com o a
do seu senso de responsabilidade. Nesses locais,
prim eira casa de crianças, criada na Itália (PAS-
tudo era adaptado às crianças, às suas atitudes e
QUALI, 1903). A ntecipando a abordagem de perspectivas próprias: não só os arm ários, as me­
M ontessori, Rosa Agazzi procurou intensificar e sas e as cadeiras, mas tam bém as cores, os sons
controlar o processo educativo, m odificando o e a arquitetura. A expectativa era a de que elas
am biente de vida das crianças pequenas (AGA- vivessem e se m ovim entassem nesse am biente
Z Z I, 1932). com o seres responsáveis, participando do traba­
M ontessori preconizava, para a fase inicial lho criador, assim com o das tarefas de funciona­
do processo educativo, o uso de m aterial didáti­ m ento, de m aneira a subir um a “escada” sim bó­
co, com posto de várias séries de objetos p a d ro ­ lica que conduzia à plena realização.
nizados. Por sua vez, Rosa Agazzi preferia que Liberdade e disciplina se equilibravam , e o
as próprias crianças reunissem objetos de sua princípio fundam ental era o de que um a não
escolha: suas experiências com o objeto eram , podia ser conquistada sem a outra. C onsiderada
assim, mais com pletas e o processo de abstração sob essa perspectiva, a disciplina - em vez de ser
só com eçava depois desse prim eiro estágio. N o im posta do exterior - era de preferência um de­
entanto, seria inexato afirm ar que a diferença safio a enfrentar para que a criança se tornasse
en tre as duas abordagens consiste em que as irmãs digna da liberdade. A esse respeito, M ontessori
Agazzi valorizavam a experiência direta, enquan­ escrevia o seguinte:
Atribuímos o qualificativo de disciplina­ a qual m arcava a passagem da educação “exter­
do ao indivíduo que é senhor de si e, n a ” para a educação “in tern a”.
por conseguinte, é capaz de dispor de si
mesmo ou de seguir uma regra de vida Em seus escritos, M ontessori não se cansa
(1969: 57). de sublinhar a im portância do procedim ento
A ideia central da autodeterm inação segun­ que consiste em desenvolver atitudes, em vez de
do a qual a liberdade só é possível se nos sub­ simples com petências. Em seu entender, a ativi­
m etem os às leis que descobrim os e adotam os - o dade prática deve criar um a atitude, m ediante a
cue Rousseau designava p o r “vontade geral” - contem plação: “A atitude vem a ser a da condu­
não é expressam ente form ulada em suas obras. ta disciplinada” (p. 105). Essa era, a seu ver, a
N a transição do século X IX para o século X X , a tarefa essencial a ser executada pelas Casas das
filosofia italiana era certam ente dom inada pelo Crianças:
pensam ento positivista, mas as tendências idea­ O pivô de tal construção da persona­
listas e neokantianas eram igualm ente represen­ lidade foi o trabalho livre, correspon­
dente às necessidades naturais da vida
tadas, principalm ente po r Alessandro Chiapelli,
interior; por conseguinte, o trabalho in­
B ernardino Varisco e B enedetto Croce. É pouco telectual livre comprova que ele é a base
provável que M ontessori tenha estudado seria­ da disciplina interior. A maior conquista
m ente esses filósofos; no entanto, ela levou suas das “Casas das Crianças” consiste em
crianças a participar ativam ente da arrum ação do obter crianças disciplinadas (p. 107).
am biente, das regras e dos princípios que o rien ­ Ela respalda essa afirm ação equiparando-a à
tavam o funcionam ento da casa; dessa m aneira, educação religiosa:
era feita justiça à ideia de autonom ia m oral. Eis o que leva a pensar nos conselhos
M as M ontessori foi ainda mais longe: assu­ preconizados pela religião católica para
miu sistem aticam ente as im plicações lógicas des­ conservar as forças da vida espiritual, ou
sas ideias, ou seja, em penhou-se em aplicá-las e seja, no período de “concentração inte­
rior”, da qual depende a possibilidade
colocá-las em prática nas situações da vida coti­
de dispor, em seguida, de “força moral”.
diana - aspecto negligenciado m uitas vezes pelos Pela meditação metódica é que a per­
educadores. O program a que ela havia elabora­ sonalidade moral adquire os potenciais
do com esse intento com preendia “exercícios de solidificação sem os quais o homem
no am biente cotidiano” ou, com o ela os havia interior, distraído e desequilibrado, não
qualificado na prim eira das conferências que pode ser seu próprio mestre, nem se de­
proferiu na França, “exercícios de vida prática” dicar a fins nobres (p. 104).
(1976: 105). E xistiam , p rin c ip alm e n te , ex er­ M anifestando nesse aspecto seu acordo com
cícios de paciência, de exatidão e de repetição, Rousseau, M ontessori considerava que “a aju­
todos destinados a fortalecer o poder de concen­ da fornecida aos fracos, idosos e doentes” era
tração. Era im portante que esses exercícios fos­ um dever im portante a ser cum prido na fase do
sem feitos, cotidianam ente, no contexto de um a desenvolvim ento pessoal em que as “relações
"tarefa” verdadeira, e não com o simples brinca­ m orais” definem e m arcam o com eço de um a
deiras ou passatem pos. Eles eram com pletados nova vida, enquanto pessoa m oral (1966: 58).
por um a prática da im obilidade e da m editação, Ela julgava que a adolescência é o p eríodo em
208 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

que essa etapa deve ser ultrapassada, mas, nas intelectual. O m elhor exem plo que podem os darj
Casas das Crianças, seus usuários se preparavam dessa situação é o exercício de encaixar sólidoc]
para essa fase de m últiplas m aneiras. As prim ei­ cilindros de diferentes tam anhos e cortes d e v e «
ras atividades a executar adquiriam , p o rtan to , ser introduzidos em cavidades adaptadas; uma;
um a im portância decisiva, no plano tan to m oral única solução é possível para cada cilindro e j
quanto físico para as fases seguintes de seu de­ assim, a criança pode apreender com seu erro
senvolvim ento. quando o cilindro desliza, mas não pode ser in­
O “perío d o sensível” da prim eira infância troduzido.
oferece a o p o rtu n id ad e única de incentivar um
desenvolvim ento real. M ontessori considerava
8.4 O material didático
a educação social com o um elem ento im p o rta n ­
te dessa prim eira fase, visto que a a u to d e term i­ O uso de m aterial didático baseava-se, entre
nação deve receber sua orientação de outrem outros, no princípio fundam ental de que as ati­
p ara que o indivíduo possa atingir a perfeição vidades deveriam ser m etodicam ente coordena­
en q u an to ser social. N o últim o capítulo de seu das, de m aneira que as crianças pudessem avaliar
livro A descoberta da criança, ela descreveu esse facilm ente seu grau de êxito enquanto as rea­
processo: lizavam: po r exem plo, solicitava-se às crianças
Nenhum coração sofre com o bem de para andar em cim a da linha de grandes círculos
outrem, mas o triunfo de alguém, fon­ traçados no chão e que form avam um a série de
te de encantamento e de alegria para desenhos interessantes, segurando um a vasilha
os outros, suscita frequentemente imi­ cheia até a borda de tinta azul ou verm elha; se
tadores. Todos têm um aspecto feliz e
a tinta transbordasse, elas podiam perceber que
satisfeito de fazer “o que podem”; caso
contrário, o que fazem os outros suscita seus m ovim entos não eram suficientem ente co­
uma inveja ou uma penosa emulação. A ordenados e harm oniosos. Da m esm a form a, to ­
criança pequena de três anos trabalha das as funções corporais eram desenvolvidas de
pacificamente ao lado de um menino de m aneira consciente.
seis; ela está tranqüila e não inveja o ta­
manho do mais velho. Todos crescem na Para cada um dos sentidos, havia um exer­
paz (1969: 333). cício cuja eficácia poderia ser ainda aum entada
O m aterial didático tinha igualm ente a fun­ pela elim inação das outras funções sensoriais:
ção de ajudar a criança a “crescer na paz” a fim po r exem plo, existia um exercício de identifica­
de que ela venha a adquirir um senso elevado de ção pelo toque de diferentes tipos de m adeira, o
responsabilidade. Esse m aterial, que constituía qual poderia tornar-se ainda mais eficaz ao ven­
um dos elem entos do “am biente p rep arad o ” das dar os olhos das crianças.
Casas das Crianças, era m etodicam ente conce­ Esses exercícios eram praticados em grupo e
bido e padronizado, de m aneira que, ao esco­ seguidos de um a discussão, o que fortalecia seu
lher livrem ente um dos objetos propostos para alcance do p o n to de vista dos aspectos sociais da
se ocupar, a criança se encontre posicionada em educação das crianças. E assim que as diferentes
um a situação previam ente determ inada e seja atividades eram destinadas a conjugar os respec­
conduzida, sem saber, a enfrentar seu desígnio tivos efeitos; com o M ontessori escreveu “para
8 Maria Montessori: a criança e sua educação 209

[que a criança] progrida rapidam ente, é neces­ gindo a maior conquista de que suas
sário que a vida prática e a vida social estejam mentes são capazes: o material abre
intim am ente m isturadas à sua cultura” (1966: à inteligência determinadas vias que,
nessa idade, seriam inacessíveis sem ele
38; 1972: 199).
(1969: 197-198).
Além de ter sido o posicionam ento de H elen Ao adotar essa abordagem , o m estre pode
Parkhurst, esse era, evidentem ente, o de M aria deixar o centro do processo educativo e atuar a
M ontessori, de quem era aluna: ela se esforçava
partir de sua periferia. Sua tarefa mais urgente
em desenvolver os aspectos sociais da educação, consiste em praticar um a observação científica e
em bora a preocupação essencial que orientava em pregar sua intuição para descobrir outras pos­
sua ação não tenha sido aquela que se inspirava
sibilidades e novas necessidades. O desenvolvi­
em determ inadas concepções educativas de o ri­
m ento das crianças deve ser dirigido, de m aneira
gem sociológica, concernentes a um a categoria responsável, de acordo com o espírito científico.
diferente de problem as. Tal esclarecim ento serve
de resposta aos que rejeitaram , de m aneira par­
cial, as ideias pedagógicas de H elen Parkhurst e 8.5 O fundamento científico da ação de
de M aria M ontessori, acusando-as de serem irre­ Montessori
m ediavelm ente individualistas4.
M ontessori foi um a das prim eiras peda­
O m aterial didático deveria agir “com o um a gogas a em preender a tentativa de fundar um a
escada”, para retom ar a expressão predileta de verdadeira ciência da educação. Sua abordagem
M aria M ontessori: ele deveria perm itir que as consistiu em instaurar a “ciência da observação”
crianças tom assem a iniciativa e fizessem p ro ­ (1976: 125). Ela exigia que os educadores e to ­
gressos na via de sua plena realização. Por outro dos os participantes do processo educativo rece­
lado, ele estava im pregnado de um espírito e de bessem um a form ação nesses m étodos, e que o
um a atitude intelectual específicos que, ao serem p róp rio processo educativo se desenrolasse em
transm itidos às crianças, deveriam m odelá-las. um quadro que perm itisse o controle e a verifi­
O material sensorial pode ser conside­ cação científica.
rado, desse ponto de vista, como “uma
A possibilidade de observar o desen­
abstração materializada”... Quando a
criança pequena se encontra diante do volvimento da vida psíquica na criança,
material, ela responde com um trabalho como se tratasse de fenômenos naturais
concentrado, sério, que parece extraído e de reações experimentais, transforma
do melhor de sua consciência. Dir-se-ia a própria escola em ação, em uma espé­
que, na verdade, as crianças estão atin­ cie de gabinete científico para o estudo
psicogenético do ser humano (p. 120).
4. Já abordei esse aspecto em trabalhos anteriores: RÕHRS, H. A arte fundam ental da observação exata -
lorg.) (1966). Schule und Bildung im internationalen Gesprãch -
considerada já po r Rousseau com o a mais im ­
Studien zur Vergleichenden Erziehungswissenschaft. Frankfurt:
Akademische Verl.-Ges, p. 57. • (1977). Die Progressive erzie- p o rtan te com petência exigida para ensinar - re­
rvngsbewegung. Verlauf und auswirkung der reformpãdagogik corre à precisão da percepção e da observação.
ri den USA. Hannover: Schroedel, p. 143. Cf. tb. OSWALD,
M ontessori im aginou um “novo tipo de educa­
P (1958). Das Kind im Werke Maria Montessoris. Mühlheim. •
BOHM, W. (1991: p. 86). d o r” : “Em vez da palavra, [ele deve] aprender o
210 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

silêncio; em vez de ensinar, deve observar; em vezes seguidas, tenta encontrar a cavidade que
vez de se revestir de um a dignidade orgulhosa corresponde a um pino em m adeira antes de
que deseja parecer infalível, deve revestir-se de direcionar, com alegria, sua atenção para outra
hum ildade” (p. 123). Esse tipo de observação atividade; no entanto, em nenhum lugar, é m en­
atenta à distância não é um a aptidão natural: é cionado seu m eio intelectual e social, nem seus
necessário aprendê-la “e ser capaz de observar progressos ulteriores.
é a verdadeira m archa rum o à ciência. De fato, É da m esm a form a que M ontessori trata
se não vemos os fenôm enos, é com o se eles não to d o tipo de fenôm enos, descobertas (éveils) e
existissem. Pelo contrário, a alm a do cientista é “explosões”. Se adotarm os seus próprios crité­
feita de interesse apaixonado pelo que ele vê. rios - ainda que estes sejam form ulados de m a­
Aquele que é iniciado a ver com eça a se interes­ neira im precisa e geral - para julgar o trabalho
sar, e esse interesse é a força m otriz que cria a científico e teórico que ela realizou no cam po da
m ente do cientista (p. 125-126). educação, não é de m odo algum garantido que
M ontessori concebeu um m étodo que seria esse julgam ento seja positivo. O sucesso de sua
qualificado, hoje, com o herm enêutico-em pírico; ação dependia de outros fatores: sua hum ilda­
no entanto, ela p rópria não conseguiu colocar de, sua paciência e (evocado com frequência) seu
em prática, in te g ralm e n te , um a única dessas poder de encantam ento diante da vida.
ideias em seu próp rio trabalho. Suas experiên­ Essa capacidade de im aginação, que trans­
cias careciam de um quadro teórico sólido e elas cende a observação exata, é de fato um m odo
não eram conduzidas nem avaliadas de form a a de vida filosófico; a despeito de todas as críticas
perm itir um a confirm ação objetiva. Suas descri­ que form ulou contra a filosofia e o ensino da
ções não estavam isentas de subjetividade e suas filosofia, ela m esm a adotou essa atitude. Em um
conclusões eram frequentem ente parciais ou, até trecho em que se debruça sobre a necessidade
m esm o, expressas de m aneira dogm ática. Apesar de p roporcionar aos professores um a experiên­
disso, ela se distinguia na criação de situações cia prática da pedagogia, ela escreve, a propósito
educativas, m esm o que estas, na m aior parte das [...] do papel do m icroscópio: “Eles sentiram ,
vezes, fossem m anifestam ente sobretudo a ex­ observando no m icroscópio, nascer essa emoção
pressão de sua personalidade irradiante e não feita de espanto que desperta a consciência e o
tanto o fruto de um a reflexão e de um a p rep a­ entusiasm o apaixonado pelos m istérios da vida”
ração rigorosas. Suas observações eram elabo­ (1976: 133).
radas com esm ero, segundo m étodos científicos É im p o rta n te lev arm o s em c o n sid eração
que garantiam sua objetividade, mas o essencial a a b ertu ra da sensibilidade de M ontessori aos
de seu trabalho dependia de um talento m uito “m istérios da vida” e, ao m esm o tem po, sua
pessoal, único, para m anipular e in terpretar os abordagem essencialm ente científica, sob pena
processos educativos. de ficarm os em aranhados nas contradições e ali­
Sua descrição dos fenôm enos educativos e as m entarm os a controvérsia sem pre acalorada em
conclusões que tirava deles devem ser conside­ relação ao valor e ao significado de sua obra; no
rados sob esta ótica. Ela descreve, po r exem plo, entanto, é necessário reconhecer que, no pressu­
um a m enininha que, durante quarenta e quatro posto de que nenhum aspecto tivesse sido negli­
8 Maria Montessori: a criança e sua educação

genciado, m esm o assim seria impossível elim inar estudarmos, por exemplo, a vida das
todas as divergências de opinião a seu respeito. plantas ou dos insetos na natureza, te­
mos uma ideia aproximada da vida das
Algumas tom adas de posição e conclusões plantas ou dos insetos no mundo intei­
de M aria M ontessori assem elham-se mais às de ro. Ninguém conhece todas as plantas;
Pestalozzi, em seus m om entos filosóficos, do no entanto, basta ver um pinheiro para
que à análise objetiva de alguém diplom ado em conseguir imaginar como vivem todos
medicina. M as é precisam ente essa am plitude os pinheiros (p. 80).
de visões que confere a pujança profética a um N a m esm a ordem de ideias, ela escreveu em
grande núm ero de seus escritos; aliás, tal aspec­ o u tro lugar: “Ao encontrarm os um rio ou um
to nem sem pre está isento de am bigüidade e é o lago, será necessário ver todos os rios e todos
que explica sua grande popularidade no m undo os lagos do m undo para saber do que se trata?”
inteiro, tan to na índia quanto na E uropa. Sua Ao em itir essa ideia e form ulando-a desse m odo,
influência era m aior quando ela estava presen­ ela se m ostra surpreendentem ente próxim a de
te, proferia conferências e m inistrava cursos, e Pestalozzi. A sem elhança deste pedagogo, ela
encontrava um grupo de discípulos fervorosos, aconselha a não negligenciar as form as de per­
decididos a viver e m anter viva sua doutrina cepção direta. “A vista concreta das árvores em
(SCHULZ-BENESCH, 1962: 15). um bosque, com toda a vida que acontece em
volta delas, não pode ser substituída por ne­
nhum a descrição ou imagem de qualquer livro”
8.6 A Teoria da Percepção
(1966: 44-45).
Além de ter aperfeiçoado um m étodo siste­ Em seu entender, é fundam ental obter a “co­
m ático de desenvolvim ento das faculdades per- operação da atenção in te rio r”. É po r isso que ela
ceptivas, M aria M ontessori elaborou um a Teoria se esforçava em estruturar a base m otivacional
da Percepção que tem num erosos pontos em co­ do m aterial didático de tal m aneira que ele es­
mum com a abordagem de Pestalozzi. Assim, no tivesse em contato com a esfera de consciência
que diz respeito ao m aterial didático, ela notou da criança. C onvém notar que M ontessori ex­
que não é necessário que “a atenção das crianças plicava esse processo com parando-o com um ato
seja retida p o r objetos quando com eça o delicado
de fé, processo sem elhante que, no entanto, se
fenôm eno da abstração” (1976: 80). Ela p reten ­
produz em outro nível: “N ão basta [...] ver para
dia que seu m aterial didático fosse concebido de
crer; é necessário crer para v e r”. Escreveu, igual­
form a a perm itir transcender a situação concreta
m ente, mais adiante: “É debalde que se explica
e im ediata, favorecendo a abstração. “Ao não in­
ou, até m esm o, que se faz ver um fato, p o r mais
centivarem a generalização, esses m ateriais cor­
rem o risco, com suas ‘arm adilhas’, de am arrar a extraordinário que ele seja, se não existe a fé.
criança p o r m eio de verdadeiros vínculos à terra. Em vez da evidência, é a fé que leva à apreensão
Se isso ocorre, a criança perm anece ‘confinada da verdade” (p. 216-217).
no círculo vicioso da futilidade’” (p. 80). Ela conseguiu incontestavelm ente estabele­
M aria M ontessori escreve: cer um vínculo dessa form a de fé, que é conhe­
No seu conjunto, o mundo repete, mais cim ento interior e visão aprim orada, com sua
ou menos, os mesmos elementos. Se concepção de ciência.
212 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

8.7 O pleno desenvolvimento pela n u n ciar e, em seguida, reco n q u istar progressi­


atividade independente vam ente p ara a plena realização de si; com o to ­
dos os indivíduos são solidários, eles só podem ,
Um dos conceitos básicos do sistema educa­ p o rta n to , chegar a essa p len a realização na in­
tivo de M aria M ontessori é a “atividade inde­ terd ep en d ên cia. Esse processo é inteiram ente
pen d en te”. “Um indivíduo é o que é, não por consciente, exige a m obilização - e, ao m esm o
causa de seus m estres, mas pelo que ele mesmo tem po, o fortalecim en to - de to d as as p o ten ­
conseguiu executar”. Em o u tro contexto, che­ cialidades do indivíduo. Essa p len a realização
gou até m esm o a introduzir a ideia de “autocria- de si conduz, afinal de contas, à autoeducação,
ção”, que ela aplicava não som ente à percepção que é a verdadeira finalidade da educação. A
sensorial e ao intelecto, mas tam bém à co o rd e­ reflexão, a concentração m editativa, assim como
nação de todos os aspectos hum anos do desen­ o esforço intenso, são indispensáveis para tentar
volvim ento da personalidade. resolver os problem as suscitados pelo m aterial
Para ser bem -sucedido, esse processo tem de didático.
se desenrolar na liberdade, a qual deve ser acom ­ Chegam os, assim, ao que M aria M ontessori
panhada forçosam ente pela disciplina e pela res­ entendia p o r “m ente absorvente” que constitui,
ponsabilidade. As crianças são dotadas de um a juntam ente com “norm alização”, um dos concei­
com preensão intuitiva das form as de desabro- tos fundam entais de seu sistema.
cham ento de sua personalidade pela atividade Em co n fo rm id ad e com sua term in o lo g ia
independente. de inspiração m édica, ela atribuía às crianças
As crianças parecem ter a sensação de o qualificativo de “em briões intelectuais” ; des­
seu crescimento interior, a consciência te m odo, ela sublinhava que, p o r um lado, as
de suas aquisições, ao se desenvolverem crianças estão envolvidas em um processo de
a si mesmas. Elas manifestam exterior­ desenvolvim ento e, p o r o u tro , o desenvolvi­
mente, por uma expressão de alegria,
m en to tan to intelectual quanto físico ocorre de
o que se produziu nelas de ordem mais
elevada (1976: 92-93). m aneira paralela. As crianças são, desde o co­
m eço, seres dotados de inteligência; no entanto,
N a m aior parte dos exem plos que forneceu
durante o prim eiro estágio de desenvolvim ento,
p a ra ilustrar essa ideia, M ontessori fala da g ran ­
após o nascim ento, o aspecto físico predom ina,
de satisfação das crianças pelo desabrocham en-
ainda que as necessidades fundam entais só pos­
to de sua personalidade, alcançado p o r elas de
sam ser satisfeitas se o ser intelectual que está
m aneira independente. Assim, tirava a conclu­
na sua origem é reconhecido e aceito. “Desde
são de que
o seu nascim ento, p o rtan to , a criança pequena
essa tomada de consciência, cada vez será cuidada, considerada antes de tudo com o
mais profunda, favorece a maturidade.
um ser dotado de vida psíquica” (M O N TESSO ­
Se damos a uma criança o sentimento
de seu valor, ela se sente livre e seu tra­ RI, 1972: 61).
balho deixa de ser um peso (1966: 40). A educação das crianças deve ser conduzi­
C onsiderada sob essa perspectiva, a liberda­ da de m aneira equilibrada desde o com eço; caso
de é aquilo a que se deve, em prim eiro lugar, re ­ contrário, as prim eiras im pressões produzem
8 Maria Montessori: a criança e sua educação

m odos deform ados ou falseados de com preen­ que lhe agrada, mas nos dispor a colabo­
são, de expectativa e de com portam ento que, rar com a ordem da natureza, com uma
em seguida, hão de perpetuar-se. Além de serem de suas leis, segundo a qual esse desen­
volvimento se efetua pelas experiências
gravadas perm anentem ente na m ente das crian­
próprias da criança (MONTESSORI,
ças, essas prim eiras impressões engendram a im ­ 1972: 82-83).
plem entação de estruturas de desenvolvim ento,
A “m ente absorvente” é, ao m esm o tem ­
de esquemas, em função dos quais todas as expe­
po, a capacidade e a vontade de aprender. Isso
riências ulteriores são enfrentadas e assimiladas.
quer dizer que o intelecto é o rien tad o em d ire­
Desde o nascim ento, as crianças estão n atu ­ ção aos acontecim entos do m undo circu n d an ­
ralm ente abertas ao m undo. Por isso, elas cor­ te, em harm onia com esses acontecim entos, de
rem constantem ente o risco de se perder, dife­ tal m odo que, em relação à diversidade, os as­
rentem ente dos anim ais que têm um estoque de pectos que têm um valor educativo diferem de
reações instintivas que lhes garantem um desen­ acordo com cada caso particular: “ [...] em todas
volvim ento apropriado; em com pensação, os as crianças, o desenvolvim ento físico precede as
animais não são livres porque a liberdade não é aventuras da vida” (p. 69). O im p o rtan te é que
um estado natural, mas um a condição a ser c o n ­ as im pressões recebidas e a a b ertu ra m ental se­
quistada. “O ser h u m an o , d ife ren te m e n te dos jam concom itantes, de form a que os im perativos
animais, não tem m ovim entos coordenados fixos; do processo de aprendizagem correspondam às
ele próp rio deve construir tu d o ” (p. 67). Sob sensibilidades e às tendências naturais de cada
esse aspecto, podem os encontrar certa analogia fase do desenvolvim ento.
entre as ideias de M aria M ontessori e a an tro p o ­
Vinculada estreitam ente a esses conceitos an­
logia m oderna: aliás, Anthropologia pedagógica
tropológicos está a ideia de “períodos sensíveis” :
(1910) é a prim eira obra que ela consagrou a
trata-se de períodos de m aior receptividade do
esse tipo de questões.
ponto de vista da aprendizagem p o r interação
Ao falar da “vida psicoem brionária”, ela re­ com o entorno. Segundo essa teoria, existem pe­
corre a um a analogia com o “em brião físico” a ríodos determ inados durante os quais a criança
fim de sublinhar que o m undo intelectual do in­ é naturalm ente receptiva a algumas influências
divíduo deve ser construído tam bém progressi­ do entorno que a ajudam a dom inar certas fun­
ções naturais e a atingir um a m aior m aturidade:
vam ente p o r m eio de im pressões e experiências.
p o r exem plo, existem períodos sensíveis para o
O entorno - e a m aneira com o ele é organizado
aprendizado da linguagem, o dom ínio das rela­
para desem penhar sua função educativa - é, p o r­ ções sociais etc. Se lhes consentim os a atenção
tanto, tão im portante quanto a alim entação do que convém , eles podem ser explorados para
corpo durante o período pré-natal. prom over períodos de aprendizagem intensa e
O primeiro passo da educação consiste eficaz; caso contrário, as possibilidades p ro p o r­
em prover a criança de um entorno que cionadas p o r eles são perdidas para sempre.
lhe permita desenvolver as funções que
lhe foram atribuídas pela natureza. Isso O desenrolar harm onioso do desenvolvimen­
não significa que tenhamos o dever de to in terio r e ex terio r pode en g en d rar igualm en­
dar-lhe satisfação e deixá-la fazer tudo o te um a independência mais consistente:
214 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

Se nenhuma síndrome de regressão se germ e desse ser; suas esperanças eram tão gran­
revela, a criança manifestará tendências des que ela estava convencida de que esse era o
muito claras e muito fortes em dire­
cam inho da salvação. Ela acreditava igualm ente
ção à independência funcional [...] Em
na renovação e na conquista da perfeição:
cada indivíduo está em ação uma força
vital que o impele a procurar a plena Para que seja possível seu advento,
realização de si. Percy Nunn atribuía a salvação começará pelas crianças,
a essa força o qualificativo de hormé já que elas são as criadoras da huma­
(MONTESSORI, 1952: 77). nidade. As crianças estão investidas
de poderes desconhecidos que podem
Tal posição explica igualm ente o m otivo
ser as chaves de um futuro melhor. Se
pelo qual M ontessori nutria tanta expectativa queremos verdadeiramente uma reno­
em um a reform a da educação conform e a suas vação autêntica, então o desenvolvi­
ideias. Para ela, a educação do “hom em novo” mento do potencial humano é a tare­
deveria com eçar com a criança que carrega o fa que deve ser atribuída à educação”
(MONTESSORI, 1952: 52).

Conclusão

Essa fé no potencial hum ano - fortalecido ainda pela


“m ente absorvente” ao serem utilizados os m étodos peda­
gógicos apropriados - é um a das pedras angulares da Teoria
da Educação, de M aria M ontessori. O segundo ponto im ­
p o rtan te é a vontade de exercer influência sobre esse p ro ­
cesso com um espírito de responsabilidade científico, além
de descobrir os pontos fracos e os m om entos decisivos do
desenvolvim ento da personalidade a fim de orientá-lo em
m elhores condições. Segundo M ontessori, esse processo,
em vez de ser linear, é de preferência dinâm ico, pontuado
de “explosões” - descobertas (éveils), revelações, transfor­
mações, sínteses criativas - que o levam a novos níveis de
evolução, cuja natureza não pode ser pressentida p o r nós.
Ela escreve a esse respeito: “O desenvolvim ento é um a série
de nascim entos sucessivos” (1952: 16). Sua p rópria vida e
a evolução de suas ideias foram m obilizadas p o r encontros,
inspirações e experiências de renascim ento; seus encontros
com pessoas cujas preocupações lhe eram próxim as foram
frequentem ente mais determ inantes do que a adesão a teo­
rias estabelecidas. Sua grande produtividade se explica, em
últim a análise, pela ação do princípio “hôrm ico” na sua vida
e no seu pensam ento. Ela pretendeu exercer sobre o m undo
certa influência ao com binar harm oniosam ente a teoria e a
prática. Tendo procurado na prática a confirm ação de suas
teorias e tendo elaborado sua prática em conform idade com
os princípios científicos, ela atingiu assim a perfeição: essa
é a razão do sucesso alcançado pelas concepções educativas
de M aria M ontessori.

Resumo

M aria M ontessori é, ao m esm o tem po, a pioneira e a


figura de proa do m ovim ento da Educação N ova. Sua for­
m ação inicial em m edicina e sua e x p e riê n c ia clínica le­
v a ram -n a a privilegiar tanto a observação sistem ática das
crianças quanto a teorização a partir dos dados coletados por
ela. Nesse sentido, acalentou o projeto de conciliar a teoria
com a prática, além de ter concebido o desenvolvim ento do
intelecto da criança no âm bito de um a interação constante
com seu entorno. Para ela, p o rtan to , era fundam ental p ro ­
porcionar às crianças um en to rn o apropriado no qual elas
tivessem a possibilidade de viver e aprender. Foi assim que
ela adaptou- o m obiliário (mesas, cadeiras, arm ários) e a ar­
quitetura de suas Casas das Crianças. Ela criou, igualm ente,
um m aterial didático padronizado, autocorretivo, graduado
e inspirado na vida cotidiana. M ediante esse m aterial, ela vi­
sava levar a criança a tornar-se ativa e independente. A obra
de M ontessori perm anece ainda bem viva em nossos dias e
seu m étodo é utilizado em num erosos países. Seus esforços
podem ser associados, incontestavelm ente, às prim eiras ten ­
tativas para fundar um a verdadeira ciência da educação.

Questões

1) Descreva o papel do docente segundo a abordagem


de M ontessori e dem onstre em que sentido esse papel
corresponde às preocupações da pedagogia nova.
2) O m aterial didático criado p o r M ontessori responde
a algumas de suas m etas, além de apresentar caracterís­
ticas particulares. Identifique as razões pelas quais ela
criou esse m aterial fornecendo-lhes tais características.
216 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX

3) M ontessori era m édica po r form ação. Em que sentido


essa form ação parece ter influenciado seu m étodo?
4) M ontessori criou os conceitos de “período sensível” e
de “m ente absorvente”. Descreva o sentido e a am plitu­
de desses conceitos.
5) O autor do artigo - o alem ão H erm ann R õhrs - pro­
põe a ideia de que M ontessori se inscreve na esteira de
Rousseau. Explique esse p o n to de vista.

Atividade de aprendizagem

M ontessori foi não só um a grande pedagoga, mas tam ­


bém se esforçou em conferir um fundam ento científico e
teórico à sua atividade educativa. Explicite as contribuições
da autora nesse plano.

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Montessori-Pàdagogiku und die Erziehungs proble-
17
A pedagogia de amanhã
Maurice Tardif
Clermont Gauthier

Objetivos de aprendizagem

Após a leitura deste capítulo, você deveria ser capaz:

• de identificar as principais linhas de força que atra­


vessam e estruturam a pedagogia contemporânea;

• de compreender o conceito de profissionalização do


ensino;

• de formular uma crítica em relação ao pluralismo


pedagógico.
424 Parte I As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia

Introdução

O presente capítulo serve de conclusão ao conjunto des­


ta obra. Todavia, em vez de se em p en h ar - com o é habi­
tual - em um procedim ento recapitulativo, ele propõe al­
gumas pistas de reflexão prospectiva e antecipatória sobre a
pedagogia de am anhã. Tais pistas se esforçam em destacar,
a p artir da história da pedagogia apresentada nos capítulos
precedentes, as linhas do futuro.
Para onde se dirige a pedagogia? De que m odo esse
am plo e fecundo dom ínio de ideias e práticas evoluirá nas
próxim as décadas e no decorrer do século XXI? Entre as
correntes de ideias, as concepções pedagógicas e as teorias
educativas existentes atualm ente, quais são aquelas que hão
de impor-se a m édio e longo prazos? Q ue novas práticas
pedagógicas, que novas instituições, que novos atores, que
novos dispositivos de form ação irão em ergir nos próxim os
decênios? C om o será elaborada a abordagem da aprendiza­
gem e do ensino no decorrer deste século que mal começou?
Q ual será a figura do professor? Q uem será a criança do fu­
turo? Assistiremos ao surgim ento de um novo Rousseau atri­
buindo-se a tarefa de repensar, de alto a baixo, sua natureza?
Se nossa pretensão consiste precisam ente em evitar qual­
quer tipo de futurologia, as respostas para essas questões
não constituem um a tarefa fácil; talvez, até m esm o, seja algo
francam ente impossível. De fato, na pedagogia assim como
em todos os dom ínios fundam entais da atividade hum ana, o
futuro depende, com toda a certeza, em parte, do passado
e do presente que já o m odelam , mas tem a ver igualm ente
com a liberdade, a criatividade e a energia ativa dos seres hu­
m anos. As crianças nascidas hoje são portadoras de iniciati­
vas imprevisíveis. Vamos educá-las para que se familiarizem
com nosso m undo de adultos e venham a apropriar-se dele
progressivam ente; mas ignoram os o que elas farão desse
m undo e de que m odo irão transform á-lo. Uma única coisa
parece certa: elas irão construir algo de novo baseando-se na
herança que vamos transm itir-lhes.
17 A pedagogia de amanhã

17.1 As linhas de força da pedagogia fim da Educação. Em vez disso, ela é um espaço
cultural, intelectual, institucional e pragm ático
Será que o futuro da pedagogia é com pleta­ que é colocado constantem ente em tensão po r
m ente im penetrável para nós, sendo inútil p re­ diferentes ideias (ou ideologias) que esbarram
tender antecipá-lo? A resposta é negativa porque entre si, se m isturam , se opõem e se im bricam
a liberdade dos seres hum anos nascidos hoje e um as nas outras, com o se tratasse de um m osaico
que hão de nascer am anhã será verossim ilm ente m ovente. Essas ideias tam bém não flutuam no
sem elhante à nossa. Sem nada de absoluto, ela vazio: em cada época e em cada sociedade, elas
será um a verdadeira liberdade hum ana, ou seja, são carregadas po r pessoas, grupos, instituições,
lim itada, concreta, com plexa e difícil, um a liber­ práticas educativas; suscitam paixões, debates,
dade suscetível de ser rejeitada ou endossada, lutas, às vezes, latentes, outras vezes, abertas.
negada ou assum ida, mas que deverá ser exerci­ Pensemos, p o r exem plo, no ensino dos sofistas
tada em função do peso do passado - de tudo o que se opôs à educação grega tradicional, nos
que foi realizado pelas gerações precedentes - e pedagogos hum anistas que esbarraram na esco-
das tendências que, de m odo durad o u ro , m ode­ lástica, na Reform a Protestante contestada pela
lam já o presente e, po rtan to , o futuro próxim o. C ontrarreform a Católica, no construtivism o que
N este aspecto, lem brem os que a prim eira e enfrentou o em pirism o, na Educação N ova que
principal lição decorrente dos capítulos desta se opôs à pedagogia tradicional. Em suma, se é
obra é que a longa história da pedagogia já está, verdade que, em cada época e em cada socie­
em grande parte, realizada. Assim, pouco im por­ dade, é possível detectar ideias e práticas peda­
ta o grau de liberdade que acreditam os possuir, gógicas dom inantes, estas existem apenas com o
essa história com mais de 2.00 0 anos não pode co n trap o n to a outras correntes pedagógicas que
ser refeita, nem desfeita. É necessário, p o rta n ­ procuram incansavelm ente se afirmar. Todas
to, contar com ela e basear-se nela para pensar e essas tensões, todos esses choques de ideias re­
antecipar o futuro. N o fundo, em pedagogia as­ velam que a educação, o ensino e a pedagogia
sim com o em outras áreas, o que se designa por são realidades hum anas, sociais e culturais da
antecipação do futuro nada é além de um exer­ mais elevada im portância. E, p o rtan to , norm al
cício invertido de reflexão histórica: antecipar que elas suscitem desafios, debates, oposições no
o futuro consiste em procurar no passado as li­ âm ago das sociedades.
nhas de força que atravessam e estruturam nosso Se procuram os antecipar o futuro da peda­
presente, a p artir das quais é possível, p o rtan to , gogia, não basta, portanto, identificar as linhas
pressentir, po r hipótese, que elas hão de exercer de força - que, tendo atravessado o passado e o
efeitos a longo prazo sobre nossos descendentes presente, hão de m arcar, verossim ilm ente, o fu­
e sobre os descendentes de nossos descendentes. tu ro - , mas é necessário igualm ente vislum brar as
O u tra lição a tirar desta obra: tais linhas de tensões em torn o das quais essas linhas vão con­
força nada têm de hom ogêneo, nem de contí­ tinuar a se entrelaçar. Eis, po rtan to , sem nenhu­
nuo. A história da pedagogia não é um trem de ma pretensão profética e com toda a m odésda
ideias que avança em linha reta; tam pouco um a intelectual, algumas dessas linhas de força que,
longa cam inhada m ecânica para o Progresso sem em nosso entender, continuam sendo portadoras
426 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia

de conteúdo pedagógico nas próxim as décadas. tuições p ro fundam ente racionalizadas: os do­
C onsiderada isoladam ente, cada um a dessas li­ centes seguem os program as, perseguindo obje­
nhas possui, sem dúvida, sua coerência interna: tivos que foram fixados p o r Estados que foram
é sua convergência no cerne de um a tram a co­ aconselhados p o r peritos, além de que n um ero­
m um - a pedagogia do futuro - que irá engendrar sas regras e norm as enquadram seu trabalho; os
novos avanços e, por isso m esm o, novas tensões. saberes escolares e os program as são divididos
em etapas, e sua progressão é rigorosam ente
prevista; os alunos devem ad q u irir conhecim en­
17.1.1 O racionalismo tos racionais, tais com o a gram ática, a m atem á­
O racionalism o é um a das principais linhas tica, a tecnologia, a história e a geografia. Além
de força da tradição educativa ocidental. Ele ser­ disso, a educação con tem p o rân ea continua vi­
ve de referência constante aos filósofos clássicos sando, em grande p arte, a form ação de pessoas
e aos teóricos m odernos: os prim eiros (Sócra­ racionais, ou seja, capazes de pensar p o r si mes­
tes, Platão, Rousseau etc.) definem , de saída, o m as e cujas ideias e ações estejam apoiadas em
hom em com o um ser racional, enquanto os se­ raciocínios e conhecim entos válidos. Em suma.
gundos se esforçam sobretudo em racionalizar a ontem com o hoje, a racionalidade constitui um
educação, em torná-la mais eficaz e mais científi­ valor central de nossa educação.
ca, em suma, mais “racional”. Tudo isso m ostra que o racionalism o se tor­
A ideia básica do racionalism o, cujos p ri­ nou, neste início do século XX I, um quadro m en­
m eiros alicerces foram lançados pelos filósofos tal que serve de referência simbólica e discursiva
gregos da A ntiguidade, é que a educação deve para o conjunto dos agentes escolares, além de
basear-se nas “luzes da razão”, no m ínim o, neste um sistema de práticas institucionalizadas em or­
triplo sentido: prim eiram ente, a educação deve ganizações, rotinas coletivas, atitudes e com pe­
favorecer o desenvolvim ento do pensam ento ra ­ tências. Com o quadro m ental, ele define as re­
cional no educando (suas capacidades de argu­ gras de produção e de com unicação dos discursos
m entação, sua lógica, seu raciocínio, seu espírito educativos, assim com o seus limites e seu valor:
crítico, seus conhecim entos etc.); em segundo qualquer discurso a respeito de ou na escola será
lugar, a pedagogia deve respeitar a natureza ra ­ aceitável e discutível com a condição de se apre­
cional do aluno e tratá-lo, não com o um a coisa sentar com o racional. Com o sistema de práticas,
a m odelar ou um anim al a adestrar, mas com o ele regulariza e orienta as organizações e as ati­
um fim, diria Rousseau, ou seja, com o um valor vidades escolares em função de m odelos raciona-
absoluto; enfim , a pedagogia deve apoiar-se em listas de ação: a burocracia, a ação p o r objetivos,
saberes educativos racionais, em vez de m itos, as atividades planejadas, o ensino po r program as,
crenças, preconceitos, rotinas ou sentim entos. a perícia dos professores, o ensino eficaz etc. As
A origem filosófica dessas ideias é eviden­ atividades e projetos “irracionais” serão, então,
te. E n tretan to , no deco rrer dos últim os sécu­ denunciados, criticados, suprim idos.
los, elas acabaram im pregnando, aos poucos, a Pelo fato de que o racionalism o está no âm a­
educação e a pedagogia. Assim, nossos am plos go de nossa civilização, de nossas ciências e de
sistem as educativos co n tem porâneos são insti­ nossas tecnologias, de nossos Estados e de nossas
17 A pedagogia de amanhã 427

os d o ­ instituições, tudo leva a crer que, ao longo do sé­ de nossa sociedade contem porânea. N o século
to obje- culo XX I, ele continuará im pregnando as ideias XVII, ela com eçou a se separar da filosofia e da
e foram e as práticas pedagógicas. N o entanto, essa racio­ religião para se transform ar, aos poucos, em um
um ero- nalização da educação e da pedagogia com porta em preendim ento autônom o; desde então, tem
d ho; os certo núm ero de tensões e desafios. C om efeito, conhecido um a seqüência de sucessos, em par­
vididos os capítulos precedentes enfatizaram o pluralis­ ticular, ao aliar-se à tecnologia e à indústria. N o
am ente m o das concepções da razão educativa: de Só­ século XIX, tais sucessos culm inaram na ideia
;cim en- crates a Rousseau, de Freinet a Freire, da peda­ das ciências hum anas e, posteriorm ente, de um a
latem á- gogia tradicional do século XVII às pedagogias ciência da educação. Com o vimos na terceira
a. Além construtivistas de nossos dias, constata-se que parte desta obra, diversas psicologias tentaram ,
inua vi- todas as concepções pedagógicas pretendem ser sucessivam ente, definir-se no século X X com o a
pessoas racionais quando, afinal, elas divergem , às vezes, ciência que serve de base à educação: o behavio-
si mes- profundam ente no que diz respeito à sua visão rism o, o construtivism o, o socioconstrutivism o,
da pedagogia, do aluno e do professor. Tudo isso o cognitivism o etc.
idas em
m ostra que não existe consenso relativam ente à
i suma, Com o será possível, então, vislum brar a
natureza de um a pedagogia verdadeiram ente ra ­
itui um evolução de um a ciência da educação no século
cional. Assim é que, no decorrer do século XX,
XXI? Entre as m últiplas tendências atuais, um a
num erosos pedagogos denunciaram os exageros
i se to r­ parece se destacar com mais vigor: a fusão p ro ­
da racionalização da pedagogia escolar, opondo-
ro men- lhe, p o r exem plo, a liberdade (Neill), os senti­ gressiva da psicologia cognitiva com a n eurolo­
scursiva m entos ou as em oções (Rogers, Freud), a ativi­ gia. Essa fusão significa que o estudo do pensa­
ilém de dade espontânea da criança (M ontessori) etc. m ento hum ano pode apoiar-se, daqui em diante,
; em or- Além disso, observa-se que a racionalização de em bases biológicas, neurológicas, até mesmo,
com pe- nossos sistemas escolares tem m últiplos efeitos físico-químicas. Em nossa opinião, trata-se sem
e as re- perversos entre os quais: um a pesada burocracia, dúvida algum a de um cam inho de futuro na m e­
tscursos a m ultiplicação dos regulam entos e dos c o n tro ­ dida em que as teorias do desenvolvim ento da
í valor: les, a perda de autonom ia dos professores diante criança, da aprendizagem , da m em ória, do ra­
Dia será dos program as e das diretrizes cada vez mais de­ ciocínio, da linguagem etc., poderão basear-se de
se apre- talhadas, a influência crescente dos sociólogos, form a cada vez mais consistente em fundam en­
psicólogos, ortopedagogos, docim ólogos, tecnó­ tos em píricos, sólidos e verificáveis, em vez de es­
•ráticas,
logos etc., sobre a educação. Enfim, o que se de­ peculações teóricas. Além disso, no decorrer das
r as ati-
signa atualm ente po r “racionalização” consiste, últim as duas décadas, essas novas teorias per­
aciona-
na m aior parte das vezes, em um a subordinação m itiram renovar consideravelm ente algumas de
ijerivos,
excessiva da educação à econom ia, o que corre o nossas concepções a respeito da aprendizagem .
eramas,
risco, afinal de contas, de desnaturar o potencial Por exem plo, sabem os atualm ente que a criança
etc. As
em ancipador da razão educativa. de peito possui já um repertório de com petências
então,
intelectuais e com unicacionais m uito mais am ­
plo e recheado do que era possível pressentir na
io âma- 17.1.2 A ciência da educação
época de Piaget. N o m esm o sentido, os trabalhos
as e de A ciência é a form a m oderna dom inante do recentes em neuropsicologia enfatizam a relati­
: nossas racionalism o. Ela constitui um a linha de força va plasticidade do cérebro hum ano, inclusive no
428 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia

adulto: a aprendizagem de novos conhecim entos de em ancipação, em vez de atividades com base
e de novas com petências se traduz pela criação científica, enquanto outros - é o caso de Vygotsky e
de novas redes de relações entre os neurônios. Bruner - vão considerá-las, antes de mais nada.
Algumas pesquisas sobre a m em ória perm itiram , com o atividades sociais ou culturais. Eles de­
igualm ente, elaborar a Teoria da Carga C ogniti­ fendem a ideia de que a pedagogia é, acima de
va (TCC) que dem onstra a eficácia e a ineficácia tudo, um a atividade orientada p o r valores e.
de determ inados procedim entos pedagógicos. p o rtan to , não pode ser inteiram ente científica:
Todavia, convém confessar que alguns desses em sua opinião, a pedagogia nunca será um a tec­
novos conhecim entos, apesar de serem extrem a­ nologia. Daí, o questionam ento relativam ente à
m ente estim ulantes, ainda estão longe de serem contribuição das ciências para a pedagogia tem
aplicados no m undo escolar e, em particular, nas ocorrido com frequência e de form a um tanto
salas de aula. De m aneira geral, o século X X nos superficial.
ensinou, através da sucessão das diversas psico­
logias, que as teorias e os conhecim entos cientí­ 17.1.3 A escola
ficos têm dificuldade em im pregnar a esfera da
pedagogia escolar. Com efeito, quando se faz o O u tra linha de força da história da pedago­
balanço das contribuições dessas psicologias para gia no decorrer dos últim os séculos reside, in-
a educação no século passado, o resultado é de­ contestavelm ente, em sua form a escolar que se
veras decepcionante. Os psicólogos têm escrito im pôs no século XVII. A escola tornou-se um a
m uito sobre a educação, mas são raras as ideias instituição dom inante da M odernidade. N o iní­
que, de form a real e duradoura, se im puseram cio, lim itada ao O cidente, a escola estendeu-se
nas práticas dos professores. Q uem sabe se elas posteriorm ente pelo m undo inteiro e todos os
são inaplicáveis pelo fato de não terem sido con­ países acabaram p o r adotá-la com o institui­
cebidas em ligação direta com as realidades do ção básica para a educação das novas gerações.
ensino na classe? De fato, a m aior parte das psi­ Com o será a evolução desta am pla instituição no
cologias têm concebido a aprendizagem em um a decorrer das próxim as décadas?
perspectiva clínica, canhestram ente individual e Lem brem os que, no decorrer dos últim os
subjetiva: elas têm m ostrado interesse por com ­ séculos, o controle da escola se to rn o u em um
preender sobretudo o pensam ento da criança e verdadeiro cam po de batalha social. N o começo,
não tanto sua atividade coletiva em classe, atra­ a escola m oderna surgiu com o m ovim ento das
vés de suas interações com o professor e os sa­ reform as religiosas que m arcaram o cristianism o
beres a aprender. Além disso, diferentem ente da europeu a p artir do século XVII. Em seguida, ela
biologia ou da quím ica, a psicologia não chegou tornou-se um alvo de luta entre as com unidades
a se unificar com o ciência, incluindo a área das religiosas que a controlavam e a em ergência dos
ciências cognitivas que continuam sendo p e r­ novos poderes estatais. N o final do século XIX,
m eadas po r diversas correntes científicas. as diversas Igrejas deixaram de oferecer resistên­
Tudo isso levou alguns pedagogos - tais cia aos Estados que, assim, estenderam seu con­
com o Freire e Freinet - a conceber a educação trole sobre a escola: esta converteu-se em uma
e a pedagogia com o ações políticas e atividades instituição nacional a serviço da sociedade e de
17 A pedagogia de amanhã

seus cidadãos. E ntretanto, o m onopólio do Esta­ de ordem será cada vez mais contestada. Essa
ise
r e do sobre a escola foi am plam ente contestado ao contestação, em parte, carregada pelos partid á­
da. longo do século X X , não só pelos grupos religio­ rios da Educação N ova, radicaliza-se na segun­
de- sos, mas tam bém por pessoas e grupos favoráveis da m etade do século X X com a dem ocratização
de a um a instituição escolar privada. escolar que traz em seu bojo novos desafios as­
e, Por trás dessas diversas tentativas de c o n tro ­ sociados à heterogeneidade dos alunos e à di­
íca: le político da escola surgem questões fundam en­ versidade de suas necessidades, assim com o de
tec- tais que m antêm toda a sua atualidade. C om o a suas origens sociais, culturais, religiosas, étnicas
te à educação dos seres hum anos é considerada um e lingüísticas. Em suma, a pedagogia do controle
tem bem , um valor central de nossa m odernidade, e da ordem - ou, dito por outras palavras, a pe­
mto quem deve controlar esse bem e tom ar a decisão dagogia da autoridade absoluta - é abandonada.
de distribuí-lo aos m em bros da sociedade? Será Com essa dem ocratização, instaura-se um a nova
que a educação é um bem com um , cuja respon­ ordem dos valores pedagógicos: respeito pela
sabilidade deve ser assum ida pelo Estado que criança, diferenciação do ensino e acatam ento
garante a justa distribuição? Esse bem pertence­ das diferenças, adaptação às necessidades diver­
rá aos indivíduos, em particular, às famílias que sificadas dos alunos, valorização de sua au to n o ­
ago-
são os principais responsáveis pela educação dos m ia, de sua atividade, de sua liberdade e de seus
, in-
filhos? Será que esse bem pode ser dividido em interesses, consideração p o r suas perspectivas e
le se
um a parte pública e um a parte privada, com o é representações etc. M esm o assim, a escola conti­
um a
o caso em vários países? As crenças religiosas - nua sendo um a instituição coletiva que se dirige
>iní-
que, po r definição, são individuais, até m esm o, a um grande núm ero de indivíduos, cujo percur­
;u-se
pessoais - terão seu lugar na escola, um a insti­ so de longos períodos - quase sem pre, acim a de
» os
tuição pública, neutra neste aspecto? É m uito um a década - é gerenciado po r ela. A tualm en­
ritui-
provável que, no decorrer do século XX I, essas te, a pedagogia escolar parece encontrar-se em
çóes.
questões venham a dom inar a cena educativa; um a fase de evolução com plexa que está longe
io no
além disso, as respostas que lhes forem forneci­ de ter chegado a seu term o: tendo-se separado,
das hão de exercer um a influência considerável em parte, dos antigos m odelos de ordem e de
rimos
sobre a pedagogia escolar. autoridade, ela procura levar em consideração a
n um
N o entanto, a m aneira com o se fará a evo­ diversidade dos alunos e a com plexidade do ato
neço,
lução da escola não se lim ita a esse desafio de pedagógico no âm ago de um a escola dem ocráti­
o das
controle político. Com efeito, com o vimos no ca, assim com o instruir, educar e preparar para a
lism o
capítulo 4, a escola do século XVII com eça por vida um grande núm ero de educandos. Às vezes,
la, ela
ser concebida com o um a instituição dom inada essa evolução conduz os professores a realizar a
dades
po r um a lógica de ordem . A pedagogia, inspira­ q uadratura do círculo!
ia dos
. XIX, da profundam ente pela religião e po r um a visão Enfim, em relação à escola do futuro, m ere­
sistên- m ecanicista do m undo, define-se então com o a ce ser sublinhada esta últim a evolução. D uran­
u con- arte de controlar as crianças, os saberes escola­ te m uito tem po, a escola ficou confinada em si
n um a res e os m estres nas salas de aula. Todavia, no mesm a po r ter o m onopólio dos saberes oficiais
le e de decorrer dos séculos subsequentes, essa lógica ou form ais, isto é, saberes que todos os cidadãos
430 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia

deveriam obrigatoriam ente adquirir para obter 17.1.4 A criança


sua plena cidadania. Além disso, ela detinha um a
Com frequência, ouve-se dizer que o século
autoridade legítim a sobre esses saberes: som en­
XX foi o “século da criança” pelo fato de que.
te a escola e os professores podiam transm iti-los
anteriorm ente, esta nunca havia suscitado tam a­
aos alunos, assim com o avaliar a aprendizagem
nha atenção po r parte dos adultos e dos peda­
destes últim os, conferindo-lhes certificação, n o ­
gogos. O pensam ento de Rousseau e de outros
tas, diplom as. O ra, com as novas tecnologias da
pensadores da pedagogia no século XIX é, em
inform ação e da com unicação (TIC), a escola
parte, responsável po r essa situação, em harm o­
está mais aberta na m edida em que os saberes
nia com a transform ação das famílias, cuja pro-
se divulgam com um a rapidez e em volum e cada
genitura era cada vez mais reduzida e cada vez
vez m aior, superando, contornando, até m esm o,
mais preciosa. Em seguida, num erosos psicólo­
distorcendo o ensino prodigalizado pelos profes­ gos - tais com o Freud e Piaget - m ostraram que
sores nas salas de aula. Ademais, as TIC im preg­ o desenvolvim ento da criança segue um trajeto
nam tam bém a escola e a classe: nos próxim os particular (ela não é um adulto em m iniatura)
decênios, a presença física dos alunos na classe e exerce um a influência determ inante sobre sua
continuará sendo necessária, por exem plo, no vida de adulto. Enfim , o século X X foi m arcado
ensino m édio? N ão estarem os nos dirigindo para pelo reconhecim ento dos direitos da criança: di­
novas práticas pedagógicas essencialm ente virtu­ reito de aprender, direito de crescer de acordo
ais em que os professores hão de se com unicar com seu ritm o, direito de ser respeitada pelos
po r internet com os alunos? M as, se um a parte adultos etc. Todos esses m ovim entos em favor da
das aprendizagens cognitivas pode ser inform a­ infância perduram e alguns se am pliaram . Che-
tizada, o que se passará com os saberes - m uitas gou-se, inclusive, a criar organism os, cuja missão
vezes, inform ais, que constituem a base da socia­ consiste em proteger as crianças contra os even­
lização dos alunos - e com as dim ensões afetivas tuais abusos dos próprios pais/mães, o que era
inerentes a qualquer relação pedagógica (apoio, inconcebível há apenas algum as décadas!
ajuda, com preensão, escuta, retroação, reforço É evidente que essa valorização da criança
etc.)? Para além das TIC, na evolução atual da m odificou sua relação com o professor. A ideia
escola, é necessário, sem dúvida, ver certa crítica de que este é um m estre a quem se deve obe­
contra o m onopólio escolar sobre os saberes e a decer, praticam ente, desapareceu! N o mesmo
qualificação: será norm al que a escola e o suces­ sentido, a ideia de que o aluno deve escutar pas­
so escolar fixem o destino de tão grande núm ero sivam ente o professor é contestada atualm ente.
de indivíduos? N ão seria possível aprender em N ossas ideias m odernas sobre as crianças se con­
outros lugares e de form a diferente? A pedago­ jugam com liberdade, atividade, interesse espon­
gia escolar conseguirá esgotar, p o r si só, todo tâneo, respeito, autonom ia etc. Afinal de contas,
o potencial da pedagogia do futuro? Será que dá a im pressão de que, para alguns especialistas,
esta deve ficar restrita eternam ente às relações a criança é a verdadeira força m otriz da relação
professor/alunos na classe? É provável que essas pedagógica: tudo com eçaria, passaria e term ina­
questões venham a se to rn a r mais incisivas nas ria nela porque ela é quem aprende, com preende
próxim as décadas. e se desenvolve.
17 A pedagogia de amanhã 431

N o entanto, a verdadeira relação pedagógica o docente tem acesso à posição de m estre da


é forçosam ente triangular: ela coloca face a face classe e de grupos de alunos. Ele ocupa assim um
0 século os alunos, um professor e saberes a adquirir. Em posto central no âm ago das novas instituições es­
de que, que m edida a extrem a atenção concedida, daqui colares que se desenvolvem no decorrer dos sé­
lo tam a- culos subsequentes. N os nossos dias, os sistemas
em diante, à criança não am eaçaria desarticular
as peda-
essa relação triangular? N ão teríam os passa­ escolares - m esm o que eles se tenham tornado
e outros
do sub-repticiam ente de um a criança passiva e gigantescas instituições de Estado a serviço de
X é, em
obediente para um a criança que exige de nós a milhões de alunos (44 m ilhões nos Estados Uni­
1 harm o-
satisfação de todos os seus caprichos? Será que dos, 16 m ilhões na França, 3 m ilhões no C anadá
u ja pro-
os saberes a adquirir (as m atérias e program as etc.) - continuam a apoiar-se no trabalho de pro ­
:ada vez
escolares) devem ser, forçosam ente e sem pre, re­ fessores nas classes com seus alunos. O trabalho
psicólo-
construídos pela criança? Será que sua m ente é de docente representa, p o rtan to , um a linha de
ram que
um eterno recom eço que deve reconstruir a par­ força na evolução da pedagogia no decorrer dos
a trajeto
tir da estaca zero a aprendizagem de nossa velha últim os séculos.
iniatura)
cultura ocidental? Em suma, teríam os passado D urante m uito tem po, o trabalho de docen­
obre sua
de um extrem o para outro? te foi confundido com o de clérigo porque seu
marcado
ança: di- Em vez de tom ar partido em favor de um a m ister dependia da vocação e sua identidade
: acordo m archa à ré, de um reto rn o às antigas virtudes pertencia am plam ente ao m undo religioso. Suas
da pelos católicas de obediência e de passividade das virtudes m orais, a obediência aos superiores, sua
favor da crianças, trata-se aqui de nos questionar a res­ autoridade junto dos alunos eram mais im por­
m . Che- peito do lugar da criança na futura dinâm ica tantes que seus conhecim entos intelectuais e suas
a missão pedagógica. Entre um a pedagogia da ordem e com petências profissionais. N o século X IX , na
os even- um a pedagogia displicente [laisser-faire], entre E uropa, o m estre religioso vai ceder progressiva­
que era um a educação feita de submissão da criança e m ente seu lugar ao m estre laico; no século XX,
>i
t. o utra baseada unicam ente nas atividades espon­ esse processo de laicização prosseguiu na A m éri­
i criança tâneas da criança, não deveríam os abrir espaço, ca do N orte e na Am érica Latina.
. A ideia nas próxim as décadas, para um a pedagogia que Todavia, a passagem do m estre religioso
cve obe- volta a reconhecer às crianças o direito de des­ para o professor laico não m odifica fundam en­
m esm o cobrir e controlar conhecim entos graças à ação talm ente as práticas, nem a identidade docen­
utar pas- m ediadora de um docente? te. Até m eados do século X X , os professores
alm ente. perm anecem ainda próxim os do m odelo da vo­
s se con- cação, no m ínim o, na escola prim ária, a única
17.1.5 O docente
e espon- acessível à m aior parte das crianças. Esse m o­
e contas, C om o vimos no capítulo 1 desta obra, a edu­ delo acaba sendo fortalecido, desde o século
cialistas, cação é tão velha quanto a hum anidade, enquan­ X IX , pela fem inização do ensino que perm ite
i relação to o ensino - com o função especializada - é mais às autoridades políticas e educativas valorizar o
term ina- recente, já que rem onta, no O cidente, à Grécia que elas designam p o r virtudes fem ininas tra d i­
ipreende Antiga. Todavia, som ente com a em ergência da cionais: obediência, am or pelas crianças, senso
escola m oderna, em to rn o do século XVII, é que do dever, asseio, m aternagem etc. Segundo essa
432 Parte lil As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia

visão, o ensino não exige realm ente conheci­ um a força de expansão m undial, propagando-se
m entos, nem com petências especializadas: as prim eiram ente aos outros países anglo-saxões
professoras - a respeito das quais existe a cren ­ (Canadá, A u strá lia , G rã -B re ta n h a etc.) e, na
ça de que possuem p o r instinto “a arte de e d u ­ se q ü ên c ia, à E uropa e à América Latina. Atual­
car crianças” - aprendem frequentem ente seu m ente, quase todos os program as de form ação
ofício na p ró p ria sala de aula, p o r experiência e de docentes afirm am ter a missão de form ar pro ­
im itação das professoras tarim badas, en q uanto fissionais - aliás, noção que é diferente de acor­
sua form ação se lim ita a rudim entos e, em vá­ do com o país.
rios países, a um certificado de bons costum es. C om o será possível proceder à apresenta­
N o fundo, enquanto a escola se desenvol­ ção de um a expansão tão rápida? N a realida­
ve em grande escala durante a prim eira m eta­ de, a profissionalização dos diferentes ofícios e
de do século X X - à sem elhança em parte ao form ações é um a tendência antiga que, há mais
que ocorre com as grandes indústrias na mesm a de um século, m arca profundam ente o m undo
época - , o docente perm anece vinculado a um a do trabalho na sua totalidade; não se trata, por­
visão artesanal de seu trabalho: possuindo talen­ tanto, de um fenôm eno peculiar ao ensino. N o
to para ensinar, basta-lhe, pensa ele, um pouco decorrer do século X X , num erosos grupos de
de form ação livresca porque o resto, tudo o que trabalhadores (peritos, profissionais de todas as
é im portante, irá aprender po r experiência em áreas - engenheiros, m édicos, advogados, psicó­
contato direto com os alunos. Ainda m elhor: logos etc. - adm inistradores, gestores e quadros,
diferentem ente dos operários da indústria que técnicos de alto nível etc.) envolveram -se em um
devem trabalhar em colaboração ao longo de in­ vigoroso processo de racionalização das respec­
term ináveis cadeias de m ontagem , o docente vê tivas atividades, esforçando-se p o r formalizá-las
o aspecto artesanal de sua profissão fortalecido com a ajuda de regras. Estas acabaram sendo
p o r seu isolam ento na classe. N a realidade, ele objetivadas em discursos, deontologias, éticas,
não tem necessidade dos outros professores para padrões de “boas práticas”, referenciais de com­
executar o essencial de seu trabalho. Assim, à petências etc. Tal racionalização foi acom panha­
m aneira de um artesão, ele sente-se autônom o e da pela edificação de bases de conhecim entos
responsável pela totalidade de sua obra: ensinar. específicos para cada grupo; estes últim os foram
N o entanto, essa visão artesanal da form ação integrados em cursus universitários a fim de te­
dos docentes e de seu trabalho cede tam bém o rem seu fundam ento em saberes científicos. Uma
lugar, p o r volta da década de 1980, a um a nova grande parte da expansão das universidades no
concepção do ofício a que se atribui o qualifica­ século X X resulta justam ente desse am plo m o­
tivo de profissionalização. vim ento de racionalização do trabalho e de pro ­
C om parativam ente à vocação, a profissiona­ fissionalização das form ações. Portanto, a partir
lização do ensino se caracteriza, por um lado, dos anos de 1980, observa-se que o ensino entra,
por seu aspecto recente e, por outro, por seu po r sua vez, no m ovim ento.
em basam ento norte-am ericano. A profissiona­ M as o que significa, concretam ente, profis­
lização com eça, em m eados dos anos de 1980, sionalizar a form ação dos docentes? N os últim os
nos Estados Unidos e vai adquirir rapidam ente 25 anos, todos os trabalhos de pesquisa, tanto
17 A pedagogia de amanhã 433

d ose europeus quanto norte-am ericanos - em pé de 17.2 A (ou as) pedagogia(s) de amanhã
axões igualdade com os enunciados de políticas p ro ­
Q ual será o conteúdo da pedagogia de am a­
e, na mulgadas na m aior parte dos países ocidentais - in­
nhã? C om base nas considerações precedentes,
Vrual- sistem sobre os mesmos elementos que podem ser
podem os pensar que irá prosseguir o processo
aação considerados com o os ideais que devem orientar
de racionalização, que a ciência será convoca­
r pro- as reform as da form ação:
da com um a frequência cada vez m aior, que a
acor-
1) realçar seu nível cultural, integrando-a na criança será observada de form a cada vez mais
universidade; m inuciosa, que a relação m estre-aluno será ana­
ienta- lisada de form a cada vez mais detalhada, que as
2) enriquecer seus conteúdos pela incorpora­
alida- tecnologias vão ocupar um espaço cada vez mais
ção dos resultados da pesquisa, em p articu­
áo s e am plo e que os prom otores de inovações peda­
lar, na psicologia, pedagogia e didática;
mais gógicas de to d a a espécie vão torná-las cada vez
undo 3) reservar um m aior espaço para a form a­ mais atraentes para encontrar quem esteja inte­
, por- ção prática e estreitar seus vínculos com os ressado em adotá-las. O que parece ser crucial
>. N o outros com ponentes dos program as; é que, no contexto da globalização, a educação
os de 4) avaliar não mais unicam ente os conheci­ é percebida, mais do que nunca, com o um im ­
ias as m entos dos estudantes, mas sobretudo sua po rtan te vetor de desenvolvim ento econôm i­
>sicó- com petência em aplicá-los no ensino; e, en­ co e social. E por isso que os grandes estudos
idros, com parativos, no plano internacional - com o o
fim,
n um program a Pisa da O cde - , têm desencadeado tal
5) valorizar um a visão reflexiva do ensino repercussão na população que os governos não
spec-
que venha a culm inar em práticas inovadoras podem perm anecer indiferentes a esses resulta­
lá-las
a serviço da aprendizagem dos alunos. dos. A classificação precária de um Estado acaba
endo
Em princípio, se esses elem entos são im ­ dando m unição aos reform adores, enquanto a
ticas,
plem entados de m aneira eficaz, eles deveriam posição de outro país entre os m elhores induz
com -
conduzir, em últim a análise, à form ação de n o ­ a com preender as razões desse sucesso. Os Esta­
inha-
dos pretendem , p o rtan to , adotar sistemas esco­
entos vas gerações de docentes mais profissionaliza­
lares de qualidade, o que implica, em particular,
oram dos, dispondo de conhecim entos científicos e
a prática de um ensino de qualidade. C om o dizia
le te- de com petências práticas já com provadas para
Com enius, deve-se ensinar “um m aior volume
Uma exercer seu ofício, estando orientados, ao m es­
de conhecim entos, de form a mais rápida e ade­
es no m o tem po, po r um a ética baseada na qualidade quada”. C om o atingir tal objetivo sem procurar
m o- da aprendizagem dos alunos. Todavia, a histó­ a aplicação das m elhores m aneiras de fazer, sem
pro- ria das últim as décadas m ostra que esse m ovi­ visar o reconhecim ento das práticas pedagógicas
>artir m ento de profissionalização está longe de sua exem plares? Uma das vias interessantes que, no
ntra, conclusão e que sua im plem entação suscita um decorrer das últim as décadas, foram adotadas -
grande núm ero de resistências, inclusive, entre e, sem dúvida, serão m antidas - tem a ver com
rofis- os docentes: seu desenvolvim ento constituirá, o esforço de avaliar, na classe, o im pacto dos
im os sem nenhum a dúvida, um a linha de tensão nos procedim entos pedagógicos e didáticos sobre a
canto próxim os decênios. aprendizagem dos alunos. C om essa condição é

mm
434 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia

que o ofício de docente poderá, enfim , profissio- gens pedagógicas se elas não oferecem determ i­
nalizar-se e sair dos lim ites do senso com um , da nadas garantias de sucesso. Preferim os pensar
vivência, da intuição e das experim entações sem que o princípio de abertura deve ser adotado a
qualquer controle. posteriori, ou seja, que devem ser incentivadas
todas as abordagens pedagógicas que tenham
Para alguns autores, a m anutenção da plu­
dem onstrado previam ente sua eficácia; eis o
ralidade das abordagens pedagógicas é um a es­
que é um a ressalva im portante. A pedagogia do
pécie de princípio m oral que deve enquadrar a
futuro poderá assumir, p o rtan to , várias facetas,
profissão; em sua opinião, identificar as boas
mas estas últim as terão sido objeto de avaliação
práticas pedagógicas seria contrariar o princípio
relativam ente à sua eficácia. N o que diz respeito
de abertura às diversas abordagens. Parece-nos,
às pedagogias do futuro próxim o, parece que se
pelo contrário, que se trata de um a atitude e rrô ­
trata de pedagogias sistemáticas, estruturadas e
nea no sentido em que é abrir espaço a priori a
explícitas, cuja aplicação tem obtido resultados
um princípio pedagógico que não pode adquirir
convincentes; ora, o mais razoável é orientar-se
sentido a não ser a posteriori-, m anter o princípio
nessa direção. C om o nem todas as possibilidades
do pluralism o pedagógico a priori é afirm ar que
no plano pedagógico estão esgotadas, outras m a­
estam os de acordo para prom over todas as pe-
neiras de dar a aula hão de aparecer, sem dúvida,
dagogias, até m esm o aquelas que não forneçam
nos anos vindouros; neste caso, convirá avaliar
necessariam ente bons resultados! É difícil com ­
criteriosam ente seus efeitos sobre a aprendiza­
preender a pertinência de defender tais aborda­
gem e a conduta dos alunos.

Conclusão

Com o vimos nesta obra, o século X X terá sido uma opor­


tunidade sem precedentes de experim entações pedagógicas
em todos os sentidos. Foi um a verdadeira era dourada da pe­
dagogia, com a seguinte ressalva: verificou-se um encontro
entre o m elhor e o pior. Q uando a experiência se revela como
positiva, os jovens são seus beneficiários; no entanto, quando
os prom otores de m étodos lançam no m ercado produtos de
qualidade duvidosa, os danos acabam atingindo infelizmen­
te as crianças. É por isso que, nos próxim os anos, será im­
portante verificar previam ente a qualidade dos “produtos”,
procurar saber se, a despeito dos discursos dos bons falantes,
as abordagens propostas passam pelo teste da qualidade. De
fato, trata-se de adotar um a espécie de princípio de precaução
que é a expressão de nossa responsabilidade em relação àque­
les que haviam corrido um risco por nossa causa: as crianças.
Se esta obra der sua contribuição, por mais m odesta que seja,
nesse sentido, ela terá um alcance considerável.
17 A pedagogia de amanhã

determ i- Resumo
s pensar
dotado a C om o conclusão da obra - A Pedagogia, teorias e p rá ti­
rntivadas cas da A ntiguidade aos nossos dias - , este capítulo p ro p õ e
tenham pistas de reflexão sobre o fu tu ro da pedagogia. Em vez de
a; eis o um a leitura do fu tu ro , à sem elhança do que é feito p o r
gogia do alguns autores diante de um a bola de cristal ou da b o rra
5 facetas, de café, trata-se so b retudo de um a tentativa, com a aju­
ivaliação da de nossos conhecim entos do passado e do presente, no
: respeito sentido de discernir as linhas de força que ap aren tem en ­
ce que se
te estão a desenhar-se. E ntre essas linhas, o racionalism o
ruradas e
serve de q u ad ro de referência aos discursos e às práticas
esultados
educativas institucionalizadas. Do m esm o m odo, a ideia de
rientar-se
um a ciência da educação - respaldada em dados em píricos
bilidades
utras ma- oriundos, em particular, da neurologia e da psicologia cog­
a dúvida, nitiva, mas em ligação com o co n tex to da classe - parece
rá avaliar d e sp o n tar no ho rizo n te de m aneira cada vez m ais consis­
prendiza- tente. Além disso, é claro que a form a escolar - no m ínim o,
tal com o é conhecida atualm ente - passará p o r um a de-
sestabilização cada vez m aior em decorrência do im pacto
das novas tecnologias. N ossa análise a respeito da criança
e de sua relação com o professor c o n tin u ará sendo objeto
ima opor- de preocupações pelo fato de que as T IC ocuparão um es­
dagógicas paço cada vez m ais am plo. Enfim , a pedagogia de am anhã
ida da pe- deverá apoiar-se - e m ais do que o correu até aqui - na
encontro pesquisa. N o passado, houve a pretensão frequentem ente
rela com o de p rom over grandes revoluções pedagógicas q uando, de
quando form a mais m odesta, pequenos passos dados com m aior
xlutos de segurança teriam p erm itido à hum anidade d ar saltos de
ifelizmen- m aior am plitude.
, será im-
>rodutos”,
Questões
s falantes,
idade. De 1) Por que m otivo o racionalism o pode ser considerado
precaução com o um a das principais forças da tradição educativa?
ição àque-
2) Q ual é a m udança, entre o século XVII e nossos dias,
s crianças,
no papel a desem penhar pelo mestre?
i que seja,
436 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia

3) O que se entende por profissionalização dos docentes?


4) Quais são as principais tensões, até m esm o, contra­
dições, que m arcaram a evolução da pedagogia desde o
século XIX?
5) N este início do século XX I, quais são as principais
tendências que parecem se desenhar na evolução das ci­
ências da educação?

Atividade de aprendizagem

A origem de nossa escola atual rem onta a vários sécu­


los. O ra, no dealbar do século X X I, tudo leva a crer que a
escola, enquanto instituição social fundam ental, está fadada
a subsistir. N o entanto, ela parece estar subm etida a ten­
sões im portantes, algumas das quais anunciam , sem dúvida,
m udanças de considerável am plitude. A luz deste capítulo,
identifique e explique as principais tensões que irão se ma­
nifestar.

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