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H P
10-07797 CDD-370
Objetivos de aprendizagem
Introdução
Eis o que verem os neste capítulo que com porta três par
tes. A prim eira, essencialmente recapitulativa, visa apresentar
o significado geral do Renascim ento em relação à Antigui
dade greco-rom ana e à Idade M édia. N a segunda parte, si
tuam os o contexto histórico-social e ideológico do Renasci
Vd. V
*Mm
pois de explicitar certo núm ero de generalidades quanto aos
instrum entos do saber, aos program as de estudos, às insti
tuições de ensino etc., apresentam os as grandes concepções
educativas; lem bram os especialm ente os elem entos essen
ciais daquilo que D urkheim (1969), na sua obra L’évolution
pédagogique en France, designa com o a corrente enciclopé
dica de Rabelais e com o a corrente hum anista (ou literária)
de Erasmo.
3.1 Recapitulação e significação geral Depois, em 476 d.C ., quando o Im pério Ro
do Renascimento m ano do O cidente se desfaz, pouco a pouco, sob
o efeito conjugado das m igrações germ ânicas, da
N os dois capítulos a n te rio re s, estudam os
crise econôm ica e da im potência da sua adm i
a A ntiguidade grega a p artir da descoberta do
nistração, a vida política, cultural e intelectual
pluralism o das culturas, dos estilos de vida e
passa po r profundas reviravoltas. O pluralism o
das m aneiras de educar. Vimos igualm ente que
antigo dá lugar a um a nova unidade cultural que
os gregos elaboraram um a nova form a política -
dom ina o O cidente durante toda a Idade M é
a dem ocracia - e um novo tipo de discurso, a
dia: o cristianism o. U nidade, pois, particular
filosofia. Ao acaso de um encontro ou nas as-
m ente visível no plano religioso, mas tam bém
sembleias públicas, p o r ocasião de conferências
brilhantes ou em pequenos grupos, os gregos no plano educativo m arcado pela em ergência
se interrogavam , entre outros assuntos, sobre o da escola com o “am biente m oral organizado”
destino da C idade, sobre a felicidade e a virtude, (DURKHEIM , 1969). A educação escolar está a
sobre os valores e a educação. C om o as form as serviço da fé e da Igreja; além disso, os textos
de educação e suas finalidades são num erosas, gregos e latinos são m inuciosam ente escolhidos
qual é a m elhor e, principalm ente, qual deve ser em função de sua concordância com a ortodoxia
privilegiada? Os gregos abordaram esses proble cristã. Form a dom inante da consciência grega e
mas elaborando concepções educativas racio rom ana, o politeísm o se dissolve sob a ação do
nais, form as gerais de educação que fecundaram m onoteísm o religioso triunfante. De agora em
o O cidente, desde Rom a até hoje - com o as dos diante, há som ente um único e verdadeiro Deus,
sofistas, de Platão, de Sócrates e de Aristóteles. um único Ser Suprem o, no qual se concentram e
78 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
se reúnem todas as m anifestações da cultura hu abriga o Deus todo-poderoso, e o m undo visível
m ana - a arte, a ciência, a política, o pensam en das coisas, o hom em se descobre capaz de consti
to, o am or etc. E, com o o ser hum ano foi criado tuir para si um a cultura e de ocupar o seu centro;
à imagem de Deus, deve tender a assemelhar-se pelo rápido progresso das ciências e das técnicas,
a Ele com todas as suas forças e com toda a sua ele tom a posse da natureza e aum enta o seu sen
alma. A inspiração profunda, assim com o a única tim ento de poder. Assim sendo, em vez de ade
fonte e o derradeiro objetivo do hom em , é Deus, rir a m odelos supra-hum anos ou de imitá-los,
alicerce único e pedra angular do universo. trata-se de considerar o hom em tal com o é, em
Esquem atizando ao extrem o, podem os dizer sua natureza terrestre, com o valor e, ao m esm o
que o hom em do Renascim ento deixou de se ins tem po, fonte de valores, “sim ultaneam ente fon
pirar em Deus ou no Cosm o para estabelecer as te e alvo da educação” (JOLIBERT, 1987: 54).
suas regras ou os seus m odelos de conduta; o Para retom ar, de relance, Protágoras de Abdera:
m undo do hum ano já não está subordinado ao “o hom em é a m edida de todas as coisas” . E é
m undo divino, supra-hum ano. A originalidade p o r isso que a educação se to rn a tão necessária
p rofunda do Renascim ento, mais do que o seu ao hom em ; ela consistirá em realizar aquilo que,
reto rn o à Antiguidade ou a sua crítica da religião nele, é especificam ente hum ano.
e da escolástica, reside, segundo Jolibert (1987:
53), na inserção do hom em num universo de di
3.2 O contexto histórico-social e
m ensões infinitas: “Se o universo é considerado
ideológico do Renascimento
com o infinito, então não há mais lugar garanti
do, não há mais essência hum ana fixada desde 3.2.1 As grandes correntes de
toda a eternidade” . Assim, observa ele, todo o pensamento
esforço consiste em definir um m odelo hum a
no que um a ação educativa esclarecida deverá H abitualm ente, distinguem -se três grandes
realizar. E a Utopia, de T. M ore, A cidade do correntes de pensam ento na renovação das ideias
sol, de Cam panella, ou a Abadia de Thélèm e, de da época: a renovação religiosa, o m ovim ento
Rabelais são outras tantas utopias “político-pe- hum anista, o pensam ento científico e técnico. A
dagógicas” que tentam “representar um futuro prim eira conduz à R eform a Protestante, à qual
organizado, em que o hom em encontra um lugar responde a C ontrarreform a C atólica; o segundo
definido mais além das angústias e das incertezas traduz o esforço de redescobrim ento da A nti
de um presente sem p o n to de sustentação” (JO- guidade greco-rom ana; e o terceiro leva ao de
LIBERT, 1987: 54). senvolvim ento de saberes técnicos e científicos
(JOLIBERT, 1987). É nessa ordem que vamos
A cultura do Renascim ento tem seu centro
apresentá-los na presente seção.
de gravidade no papel que ela atribui à n a tu re
za, em geral, e ao ser hum ano em particular, na
busca de valores e de m odelos de vida. O hom em
A R eform a e a C ontrarreform a
se to rn a um m odelo para si m esm o, autor de sua
p rópria imagem e criador de um m undo do qual Entre m eados do século XIV e o início do
é responsável. Entre o m undo invisível, onde se XV, um a série de abalos afetam o edifício m edie-
vai: a G uerra dos Cem Anos (1337-1453); a ter nião definitiva da Igreja R om ana do O cidente: o
rível peste negra2 de 1348 e dos anos seguintes, protestantism o4.
i f x dizim a cerca da m etade da população euro- Esse im pulso religioso da Reform a, que fun
peía; o grande cisma do O cidente (1378-1417), da o protestantism o, se caracteriza, na origem ,
çae enfraquece irrem ediavelm ente o poder, o pela sua vontade de reto rn ar à verdade prim eira
prestígio e a autoridade da Igreja. Essas revira- dos textos sagrados, elim inando todas as form as
í : tas desestabilizam profundam ente a Europa, de m ediação entre Deus e o crente.
rem odelando-a nos planos político, dem ográfi A liberdade que Lutero reivindica para
co. religioso e cultural. o crente é unicamente a liberdade de en
trar diretamente em relação com Deus,
De grande alcance político, religioso e p ed a sem nenhum intermediário humano, por
gógico, a R eform a de L utero m ergulha as suas meio da leitura e da mediação da Palavra
'iiz e s no cisma do papado do O cidente. Pela divina. Deste modo, Lutero substitui a
autoridade da tradição e da hierarquia
im plitude da crise - e, principalm ente, pela in
católicas pela autoridade infalível da pa
capacidade de a Igreja resolver o conflito que a lavra escrita, da Bíblia literalmente infa
.nlacera - , um dano irreparável é causado ao seu lível (SPENLÉ, 1967: 13).
rrestígio e à sua autoridade. Lem brem os breve V alorizando e intensificando assim a relação
m ente os fatos. pessoal do hom em com Deus, elim inando as m e
A R eform a de L utero3 encontra na Alem a diações que ligam cada ser hum ano ao C riador,
nha o terreno propício para a sua propagação. o protestantism o aum enta o sentim ento de res
Afixando as suas 95 teses na p o rta do castelo de ponsabilidade do hom em para com o m undo e o
W ittenberg (1517), Lutero declara, num gesto exorta a obedecer, na conduta da sua vida, a um a
m oral estrita e rigorosa. O protestante obtém a
dram ático, o seu projeto de libertar-se da au
sua salvação pessoal agindo com rigor; sua cons
toridade pontificai e de restabelecer a verdade
ciência interior lhe dita a boa conduta, aquela
da m ensagem evangélica na sua pureza original.
que ele deve adotar em todas as circunstâncias
Nasce, assim, um a religião nova, selando a desu
da sua vida.
Para deter a onda de protestos que afluem de
2. Esse mundo que se prepara para viver a grandeza do Re
toda parte, mas principalm ente para reagir com
nascimento é também, segundo Le Goff (1975), um “mundo
selvagem”, um mundo de epidemias, de mortalidade infantil, de firm eza contra os esforços dos reform ados na
tome e subalimentação crônicas, um mundo em que a vida se A lem anha, a proliferação do m ovim ento fora de
assemelha à morte.
suas fronteiras e a constituição de um a Igreja da
3. A revolta de Lutero começa com a querela das indulgências
(uma indulgência é a remissão das penas temporais cabíveis
Inglaterra separada de Rom a, a Igreja Católica,
para pecados cometidos, concedida pela Igreja depois desses pela voz do Papa Paulo III, convoca um concilio
pecados terem sido perdoados). O fiel que dava uma esmola no ano de 1545, na cidade de Trento, na Itália.
para as obras da Basílica de São Pedro em Roma recebia uma
indulgência. Na Alemanha, essa prática toma o aspecto de uma
Os trabalhos do concilio serão, para a Igreja, a
verdadeira atividade comercial, além de sustentar o fausto do
arcebispo de Mogúncia, Albert de Hohenzollern, que se apropria 4. A Reforma teve vários focos, notadamente Calvino em Gene
da metade das doações. Daí a revolta de Lutero, que considera bra (o calvinismo), Henrique VIII na Inglaterra (o anglicanismo),
va inaceitável comercializar a salvação. Zwínglio na Suíça e Knox na Escócia.
80 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
ocasião de condenar severam ente o protestantis gos que encontram refúgio na Itália, acarreta a huxna
mo e refazer a sua integridade m oral; são ad o helenização da cultura latina e europeia. Prim ei ieiiz.
tados alguns decretos a fim de regulam entar a ram ente a península, depois os outros países da aiegrí
vida da Igreja, a com eçar pelos bispos até chegar E uropa com eçam a estudar a cultura e a língua é vive
aos fiéis. A arte será tam bém controlada, e sur gregas. Devem os dizer que, exceto pelo ensino peias
gem m uitas ordens religiosas, garantindo assim a do grego pelo eru d ito C risóloras no stu d iu m dessa
difusão do catolicism o: a Congregação do O ra de Florença desde 1397, o grego continua sen
tório de São Filipe N eri, a O rdem dos Irm ãos do, em geral, m uito mal conhecido no O cidente
de São João de Deus, os Carm elitas de Santa Te (GARIN, 1968). Sem dúvida, em decorrência Renas
resa e a C om panhia de Jesus de Santo Inácio de das cruzadas, foi possível redescobrir Aristóteles m os j
Loyola. através da tradução de suas obras pelos com en pcrcsu
taristas árabes, mas as riquezas da filosofia e da do cng
ciência gregas perm anecem encerradas no segre
O hum anism o
do da sua língua. O exílio dos eruditos gregos Y in o !
O hum anism o5 varia segundo o lugar, o m o provoca a eclosão de um a corrente neoplatônica de ma
m ento histórico, os hom ens e suas obras, mas no na escola italiana; pela transform ação da ideia de ara
seu plano mais geral ele traduz o esforço n o tá do “Belo” e a redescoberta da estética grega, “a se mte
vel - talvez, sem igual na história - de tom ada cultura ia renascer mais um a vez, ou, antes, o he- escaíai
de consciência do hom em po r si m esmo. O hu lenism o fecundaria a cultura latina e europeia” «ytntc
m anism o encontra seus prim eiros ecos na obra (M A RG OLIN, 1981a: 26). le d i i
de Petrarca, que canta a liberdade do hom em , os O hom em não é o que existe de mais adm i
1958:,
valores espirituais, o am or e a felicidade da A n rável sobre a Terra? - dizia Pico delia M irandola, NLa
tiguidade reencontrada, e se irradia através das inspirando-se tam bém nas fontes árabes. Assim,
idades até o fim do século XVI, desde a Itália a ação e a reflexão de hom ens, tais com o Ficino, a e n tra
até a França, a E uropa do N o rte - a Inglaterra, Erasm o, Rabelais, M ore, M ontaigne, Da Vinci, express
os Países Baixos, os países germ ânicos - e de M ichelangelo e tantos outros, não teriam consis
pois para a Península Ibérica, Portugal, a E uropa tido em definir um m odelo de perfeição hum a escnta.
C entral e O riental: a H ungria, a Boêmia, a Polô na - intelectual, m oral, estético - cujas fontes de
nia (M A RG OLIN, 1981a). inspiração estão na A ntiguidade greco-rom ana? Dm
Um acontecim ento capital m arca o rápido M as o que procuravam esses hom ens e o que te •orço d
desenvolvim ento do hum anism o e a am pliação riam encontrado na Antiguidade? i
da cultura ocidental: a tom ada de C onstantino- Essencialm ente, valores e m odelos estéticos
pla em 1453 pelos turcos otom anos. Esse acon que expressam a beleza do hom em e do m undo.
tecim ento, que im plica a fuga dos eruditos gre N a p intura e na escultura, os artistas hum anistas
do Renascim ento representam a plenitude das
5 O termo data apenas da segunda metade do século XIX.
Contemporâneo de Burckhardt (1860), Voigt (1859) é o primeiro
form as hum anas, a força, a graça, o equilíbrio e a
aulor a associá-lo ao Renascimento. O termo italiano umanista harm onia. Eles extraem tam bém da Antiguidade
acarece certamente no século XV, mas designa o professor de
um a concepção renovada da felicidade hum ana,
Temática e de retórica, ofício que nem todos os humanistas ha-
. a rr exercido, como observa Margolin (1989: 728). ligada agora à realização de si na com unidade
3 O Renascimento e a educação humanista 81
num ana e na natureza: ser feliz, hum anam ente pela retórica, pelo comentário dos auto
jeliz, com o Rabelais, é levar um a boa-vida e ser res (poetas e prosadores), e cuja finali
.ilegre; é tam bém gostar de beber, sorrir, com er; dade própria consistia em permitir que
é viver no am or das coisas e dos seres. O gosto os rapazes adquirissem a sua humanitas,
isto é, se tornassem homens no sentido
pelas ciências e pelas técnicas faz parte tam bém
pleno da palavra, combinando estreita
dessa concepção da felicidade, assim com o a
mente um ideal de conhecimento e um
curiosidade pela natureza e o am or ao conheci
ideal de ação (MARGOLIN, 1981a: 9).
m ento. Fascinados pela natureza, os hom ens do
Renascim ento são m enos teóricos e contem pla O hum anism o desem penhou, pois, o papel
tivos (com o os gregos) e mais observadores, em- de um vigoroso m ovim ento de reestruturação
piristas e inventores. Assim, suas ciências são as da im agem do hom em e do m undo. M ovim ento
do engenheiro e do m ecânico. Em um a carta que histórico e força sociocultural que repercutem
dirige a Ludovico Sforza, o M o uro, Leonardo da nas obras, na ação e no pensam ento dos p ró
Vinci se apresenta, insistindo nos seus talentos prios humanistas, essa corrente propõe um ideal
de m ecânico e de engenheiro “mais do que nos de realização hum ana, que transform a cada h o
de artista, e vemos em seus m anuscritos que ele m em no artífice da sua vida, servindo-se dos re
íe interessava tanto po r aviões, anem ôm etros, cursos da sua vontade e da potência criadora da
escafandros, m etralhadoras, tanques de guerra, sua inteligência.
quanto pelo problem a da com posição do quadro
'Leda e o cisne’ ou do núm ero áu reo ” (FAURE, O rápido desenvolvim ento da ciência e da
1958: 50). técnica
M as, na A ntiguidade, os hum anistas do Re
C om esse tem a, abordam os um a das chaves
nascim ento encontram , acim a de tudo, o am or
essenciais do universo m ental dos hum anistas do
à cultura e à civilidade, ou seja, a cultura que
Renascim ento. Realm ente, pela ciência e pela
expressa o ideal do letrado, do hom em de cul
técnica, a grande Ideia de Progresso, tão estreita
tu ra clássica dom inando as línguas, a palavra e a
m ente ligada à civilização europeia, tom a conta
escrita, tal com o Erasm o, para quem nada é mais
das m entes. E a Ideia coincide com o sonho de
adm irável do que o discurso.
um a mathesis universalis, que substitui a visão
Duas expressões latinas designam esse es
antiga e qualitativa da m atéria pelo reino do
forço de ressurgência da cultura greco-rom ana6:
quantitativo; além disso, as noções de substância
studia hum anitatis e litterce humaniores:
e de qualidade dão lugar às de tem po, espaço,
[Trata-se de] um conjunto de disciplinas massa e energia. A form a geom étrica rechaça a
cuja base era constituída pela gramática, antiga form a substancial (Aristóteles). Por sua
vez, o universo não é mais do que um a grande
6. “[Esforço] que vai da tradução pura e simples (do grego para geom etria expressa em núm eros: “ [...] o M u n
o latim), à imitação, à adaptação, ao comentário, às edições
do inteiro é objeto de m ensurações e cálculos,
críticas e anotadas, às transposições de todo tipo; tais opera
ções serão exercidas por um mestre, um aluno ou um artista e pode ser explicado p o r um a série de relações
apaixonado pelos símbolos patinados pelo tempo” (MARGO- m atem áticas” (M OUSNIER, 1993: 35).
LIN, 1989: 728).
82 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
lont- e a finalidade da natureza. Como pode pouco mais tarde, pela França e pela Ingla
m ou o homem satisfazer a sua função na na terra. Fenôm eno grandioso em que o h o
>zam tureza? Pela Arte, isto é, pela prática,
pelo desenvolvimento ou pela inven m em europeu tom a consciência de si m esm o
enta ção das técnicas (BRETON; RIEU & através do olhar do O u tro , em que ele ex
i em TINLAND, 1990: 34). perim enta a am pliação do seu conhecim ento
i. O do globo em sua finitude esférica, o episódio
abre dos grandes descobrim entos m arca tam bém
>09- 3.2.2 As grandes experiências de
a tom ada de consciência progressiva de que
íRE, descentramento no Renascimento
a E uropa, em vez do centro, é um a parte do
Longe de ser um a im itação servil da A nti m undo.
uta- guidade, o Renascim ento procede a um a relei- • A descoberta, capital e decisiva, de que a
ms- tura dos m odelos antigos à luz da sua p rópria
Terra não está imóvel no centro do universo,
eza, situação histórica. Período de renovação geral e
mas gira em to rn o de si m esm a, descreven
re- de m udanças profundas, o Renascim ento in tro
do um a órbita em to rn o de um astro, com o
te a duz cada hom em na experiência de um m undo
os outros planetas. Revolução fundam ental
de erodido pela perda das balizas costum eiras e das
referências habituais. Instala-se um a nova cultu que arruina as bases da teologia geocêntrica,
EU a representação de um cosm o finito e acaba
ra que ainda não tem nom e, mas apresenta as
r-se do. O hom em entra assim num universo de
características daquilo que cham am os hoje de
i se dim ensões infinitas (JOLIBERT, 1987).
pluralism o (SIMARD, 1988). Abre-se daí em
fim
diante um espaço em que o sentido do m undo e • A descoberta da tipografia - “revolução
oe da vida já não é inteiram ente dado pela coletivi técnica m ental e social de conseqüências in
la- dade, pela família, pelos costum es, pelas heran
calculáveis” (M A RG OLIN, 1981a: 26) - que
& ças ou tradições a que se pertence; um espaço em
aum enta o acesso à cultura para um m aior
ào que o sentido é construído entre as convicções
núm ero de indivíduos. A cultura se difunde;
go recebidas e a experim entação individual, e que
ela se desloca da cultura escolástica para um
os perm anece aberto à incerteza relativa, “à crítica,
ao livre-pensam ento, à deliberação, em suma, à o utro tipo de cultura, que perm ite a cada um
do
Razão” (SIMARD, 1988: 26). Quais são as p ro ultrapassar o horizonte fechado, onde fica
vas m arcantes, as experiências de descentram en confinado pelas suas determ inações prim ei
to em relação à tradição judaico-cristã que, es ras. O bservem os tam bém que Rabelais, em
za
u- tendidas p o r quase três séculos, trabalham para seus textos, foi um dos prim eiros a tom ar
io desfazer as referências habituais de identificação em préstim os à cultura ou à “tradição n a rra
da e para m odificar em profundidade a consciência tiva p o p u la r”.
tre e a cultura do hom em europeu?
• O advento do protestantism o, que desfaz
ar
• Em prim eiro lugar, o episódio dos grandes a unidade cristã e desloca a cultura para o u
e,
m descobrim entos - da América, da África, da tros centros de difusão, notadam ente a Ale
í- Ásia, do O ceano Pacífico - inaugurados pela m anha, a Suíça (em particular, G enebra com
Espanha (Cristóvão C olom bo, em 1492) e Calvino) e a Inglaterra; Rom a deixa de ser o
Portugal (Vasco da G am a, em 1497) e um único centro da cultura europeia.
84 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
*m tante é Erasm o (1469-1536), encarna o ideal im pressionante: tendo ficado, ao princípio, sob
do hom em letrado, o ideal da grande cultura li a tutela de velhos m estres que utilizam m éto
terária8. Vamos estudá-las apenas sob o ângulo dos ultrapassados, G argântua pode, em segui
das finalidades educativas e dos program as de da, desenvolver-se, graças à ação penetrante de
estudos, ten d o a preocupação de enfatizar suas um p receptor hum anista que com eça po r livrar
Semelhanças e suas divergências. M as, prim eira o aluno dos estragos constatados, antes de sub
m ente, algum as observações de ordem geral de m etê-lo a “m étodos racionais e m odernos” (LA
vem ser feitas. ZARD, 1993: 194).
no até o fim do século XIV N a base dessa tran s precisão de um a palavra, “a que convém em tal
form ação na m aneira de educar as crianças, na circunstância psicológica ou social, em tal m o
origem dessa cultura nova, há um m esm o cuida m ento, na presença de tal auditório etc.” (MAR
do, um a m esm a preocupação - segundo observa G O LIN , 1981a: 94). A form ação do o rador está
G arin (1968) - , ou seja, “de form ar a juventude na base da pedagogia hum anista. E pela im itação
ajudando-a a suscitar ela p ró p ria as suas energias dos Antigos que cada um pode descobrir p o r si
naturais, mas sem condicioná-la, sem forçá-la m esm o “a grande regra de agradar e com over”
no interior de quadros e de fórm ulas congela (p. 96). O orador, segundo o coração e o espíri
das”. Assim, a ação de um m estre obsequioso, to dos grandes pedagogos hum anistas, deve se
sim pático e benevolente é, de longe, preferível propor, a exem plo do orator de Cícero ou de
aos m étodos de um m estre distribuindo golpes Q uintiliano, um triplo objetivo que vai além
de palm atória. da simples retórica: docere (ensinar), delectare
De V ittorino da Feltre a Jo h n C olet, de Jean (agradar), movere (comover) (p. 96).
Vives a Johannes Sturm , ou de Erasm o a R abe
lais, encontra-se o m esm o respeito às crianças, O program a geral dos estudos
um a autêntica preocupação em não p ertu rb ar a
sua alegria e a sua serenidade, em adaptar o ensi De V ittorino da Feltre (1378-1446) a Jo h a n
no à idade do aluno, um vibrante apelo à am iza nes Sturm (1507-1589), para cobrir aproxim ada
de confiante, à afeição e à escuta entre professor m ente um século e m eio de educação hum anista,
e aluno. o program a de estudos apresenta, evidentem en
te, variações. N a Casa giocosa de V ittorino da
Feltre, po r exem plo, o esporte e as atividades ao
A form ação de um o rad o r
ar livre ocupam um lugar que não será o mesmo
C om o lem bra M argolin (1981a), a form ação no program a de Erasm o; o estudo do latim , da
do o rad o r é o objetivo prim eiro dos hum anistas retórica e da Bíblia se alterna com os jogos - li
da E uropa no século XV O orador, no espírito terários, coletivos ou esportivos - e tam bém não
dos hum anistas, não se lim ita ao eclesiástico, ao é rara, ao lado dos copistas gregos ou dos m ate
o rad o r político ou judiciário, mas diz respeito m áticos, a presença de músicos e de artistas fa
a todos aqueles cuja vida profissional consiste mosos. N o caso de Rabelais, para citar um outro
em convencer os outros pela ação da palavra exem plo, a ciência ocupa um lugar que não é o
ou da escrita. Para os hum anistas - particular que lhe dá Erasm o.
m ente Erasm o, inspirando-se nos seus m estres Os jovens aos quais se dedicam os pedagogos
Q uintiliano e Cícero - , trata-se de desenvolver hum anistas têm entre 10 e 15 anos. N em p o r isso
o mais possível, de dom inar no mais alto grau, se deixa de educar a criança pequena. Já que se
o que eles designam pela expressão copia ver- tra ta de realizar um m odelo hum ano, é m elhor
borum . A form ação do o rad o r com preende não com eçar a educação desde a mais tenra idade.
só a m ultiplicidade dos recursos - jogos de pala Sobre esse tem a, Erasm o escreve o De pueris ins-
vras e de sentido, sinônim os, figuras de estilo tituendis (1529), consagrado à prim eira infân
mas tam bém a precisão da linguagem , a força e a cia (entre três e quatro anos), a fim de iniciar a
3 O Renascimento e a educação humanista 87
criança nos rudim entos da língua, dos núm eros, os clássicos consistiu então realmente
da escrita e assim p rep arar a sua aprendizagem em levá-los a tomar consciência da co
munidade humana na sua evolução e na
das boas letras e do latim . Uma o utra obra, De
sua unidade.
civilitate m orum puerilium (1530), é um verda
deiro m odelo de civilidade infantil. Tudo está
ali; da m aneira de lim par o nariz à de saudar o A educação das meninas
professor e com portar-se à mesa, de com o agir
A revolução cultural que caracteriza o Re
nos jogos e na igreja.
nascim ento repercute tam bém na situação social
Voltando aos jovens de 10 a 15 anos - e sem da m ulher. Afinal, observa M argolin (1981b),
excluir o interesse crescente p o r outras discipli ela contribuiu para dim inuir a distância que se
nas, tais com o a história, a geografia e as ciências parava a m oça do rapaz, a m ulher do hom em .
naturais - o program a de estudos não chegou a M as a educação, apesar desse progresso n o tá
ser substancialm ente rem anejado. De novo, va vel, continua sendo um a prerrogativa masculina.
mos citar Jean-C laude M argolin (1981a: 82): C om o regra geral, m esm o nas classes abastadas,
O currículo dos estudos não foi consi as m eninas ficam em casa enquanto os m eninos
deravelmente modificado no período freqüentam o colégio9.
do humanismo triunfante e conservou o
Sobre essa questão, as opiniões de Vives, de
quadro tradicional do trivium e do qua-
drivium, isto é, o ciclo dos estudos de Erasm o ou de Rabelais não são diferentes. Vi
gramática, retórica e lógica, seguido do ves, p o r exem plo, em bora se declare favorável
ciclo da aritmética, da música, da geo à educação das m eninas, concorda com as ideias
metria e da astronomia, que constituíam habituais sobre a m odéstia que convém às m u
juntas as sete artes liberais.
lheres, sobre a inutilidade social de lhes dar um a
M as no currículo dos estudos, as disciplinas form ação avançada ou sobre a incapacidade fe
que form am o ciclo do trivium ocupam um lu m inina de rivalizar com os hom ens em questões
gar preponderante. O estudo das línguas grega e científicas. A sem elhança de um grande núm ero
latina está no centro da form ação hum anista, e de outros hum anistas da época, é para cum prir
é nesse tesouro recuperado que cada hom em en o seu papel de boa cristã, boa esposa e boa mãe
contra o cam inho para a sua hum anidade, com o que ele prepara a m oça, e se ele consente em dar
é lem brado p o r Eugênio G arin (1968: 95): um a educação científica e política mais séria às
Estudar os antigos significa adquirir jovens das famílias nobres - ele pró p rio foi pre-
uma consciência histórica e crítica cada ceptor da princesa M aria, filha do rei H enrique
vez mais aprimorada, tornar-se capaz de VIII e de C atarina de Aragão - , quanto ao resto,
julgar a si mesmo e ao outro, abraçar as ele as confina ao despertar do espírito da criança,
vastas dimensões do mundo dos homens
à solicitude e à ternura, de m odo a lhes inculcar
e do seu desenvolvimento, compreender
que a humanidade constitui uma socie “um a sensibilidade m oral e afetiva” (M ARGO-
dade ao mesmo tempo múltipla e uni
tária, progredindo em um esforço que 9. “Alcalá é a primeira cidade europeia a abrir uma escola para
se prolonga no tempo e triunfa sobre o meninas já no início do século XVI. E só em 1574 as Ursulinas
fundam em Avignon uma escola feminina” (MARGOLIN, 1981b:
espaço. [...] Educar os jovens segundo
182).
88 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
LIN, 1981a: 90-91). Para Vives com o para Eras novas e a pressão exercida po r um a burguesia
m o, só algumas m ulheres possuem um a erudição m ercantil favorecem , notadam ente no norte da
excepcional, talentos notáveis: a filha mais velha Itália, a criação de instituições novas e a ado
de T. M ore, M argaret; a italiana C assandra Fe- ção de práticas pedagógicas inovadoras. C onsti
dele; as irm ãs Pirckheim er; as m oças da família tuem -se escolas que voltarão as costas aos velhos
de eruditos holandeses, os Canter. m étodos m edievais ainda largam ente difundidos
nas universidades. Em Florença, M ilão, Veneza
ou Ferrara, grandes m estres ensinam os studia
As instituições de ensino
hum anitatis aos filhos das grandes famílias. N a
Um a visão excessivam ente ráp id a sobre o verdade, a educação superior é não só privilégio
R enascim ento seria suscetível de nos dar a im dos hom ens, mas apanágio dos mais ricos.
pressão de que se trata da idade de ouro da h u Se a universidade continua sendo a criação
m anidade, um período de luz que sucede às tre original da Idade M édia, o colégio é a grande
vas m edievais10, um oásis de opulência intelectu novidade do Renascim ento do século XV quan
al e m aterial no qual se deleitavam sem distinção to às instituições escolares. O colégio existia na
todos os m em bros da sociedade. Para o banque Idade M édia; assistiu-se à sua em ergência, des
te do R enascim ento, todos estavam convidados. de o século XIII, mas sob um a form a m odesta e
M as isso é um a conclusão apressada, pois esse com o lugar de alojam ento destinado a um núm e
m undo continua sendo essencialm ente rural e ro lim itado de alunos pobres. O ensino começa
pobre; “o m undo das cidades é um m undo bri a ser m inistrado no século XIV, mas no século
lhante, mas excepcional” (LE GOFF, 1975: 77). seguinte, com o é sublinhado por D urkheim , “a
Apesar do laço que une a criação das escolas às revolução chega a seu term o ” (1969: 130). “Os
lutas político-religiosas, a escola de aldeia, para alunos encontraram nos colégios, além de um
todos e p o r toda parte, ainda não existe nessa lugar para viver e de um alojam ento, o ensino
época (M A RG OLIN, 1981b). N o que se refere reclam ado p o r eles, deixando de ter necessidade
ao ensino elem entar, este ainda é assum ido por de sair; estabelecia-se assim o princípio do in
congregações religiosas, tanto entre os p ro tes te rn a to ” (p. 130). E o advento dos colégios que
tantes quanto entre os católicos. Em virtude da transform ará profundam ente o ensino secundá
ligação pessoal que une o hom em a Deus, do di rio. Im pregnadas dos princípios educativos n o
reito de cada-hom em de in terpretar as Sagradas vos - o estudo prático dos Antigos, o respeito ao
Escrituras, os protestantes são os prim eiros a fa aluno, a em ulação, o diálogo entre professor e
zer grandes esforços para a criação de escolas e a aluno - , essas instituições form am os hum anistas
escolarização das massas. que ocuparão as mais altas funções civis e eclesi
É, antes, nas cidades, que se deve procurar ásticas na Europa.
verdadeiras inovações educativas. A efervescên Finalm ente, quanto ao ensino superior, apa
cia das ideias, o im pulso de correntes culturais recem três grandes instituições hum anistas, três
faróis intensos da vida intelectual da época: o
10. A historiografia recente se encarregou de reabilitar a Idade
colégio trilíngue de Louvain (latim, grego, h e
Média, revelando-nos a sua diversidade, a sua originalidade pro
funda e a sua fecundidade criadora. braico), criado por Jerônim o de Busleiden com
3 O Renascimento e a educação humanista 89
lesia o estím ulo de Erasm o; o de Alcalá de H enares na pseudônim o de Alcofribas Nasier, que ele publi
e da Espanha; e, enfim , o dos “Leitores da realeza” ca a sua prim eira obra, Pantagruel (1532), con
ado- de Paris, o atual Collège de France, fundado em denado posteriorm ente em 1535 pela Sorbonne.
nsti- 1529 p o r Francisco I, po r ins N os últim os anos da sua vida,
lhos tigação do hum anista francês torna-se padre em M eudon,
idos Guillaum e Budé. perto de Paris, onde m orre no
neza ano de 1553. Além de obras
udia eruditas, são dele o Gargân-
3.3.2 Rabelais ou a tua (1 5 3 4 ), o Terceiro livro
, Na
corrente enciclopédica
égio (1546), o Q uarto livro (1548)
Em muitos aspectos, a obra e o Q uinto livro (1564).
ação de Rabelais reflete a sua vida:
inde inapreensível, m últipla, des As finalidades educativas
uan- co n certan te. T endo com eça
a na do p o r ser m onge francisca- Com o vimos, Rabelais cri
des no, depois beneditino e padre tica a velha educação esco-
ita e secular, o célebre m édico se lástica, seus m éto d o s e seu
ime- duplica aqui de um fervoro R a be lais form alism o. Para ilustrar da
neça so hum anista, e o escrito r é m aneira mais nítida o anta
culo acom panhado por um grande viajante. N ão há gonism o que o opõe aos doutores da Sorbonne,
1, “a consenso nem sobre a data nem sobre o lugar ele serve-se de um c o n tra ste im pressionante.
“Os Lem brem os que o seu personagem G argântua,
preciso do seu nascim ento. Teria nascido em
um filho de G randgousier (G rande G oela), é prim ei
1483 na Touraine, em C hinon, no lugar den o
isino ram ente instruído por um d o u to r em teologia.
m inado La D evinière, propriedade do seu pai,
dade Rabelais narra:
o advogado A ntoine Rabelais. Pouco sabemos
) in- da sua infância passada provavelm ente na terra Efetivamente, recomendaram-lhe um
grande doutor sofista, chamado Mestre
que natal, nem dos seus prim eiros anos de estudo. Thubal Holopherne, que lhe ensinou
ndá- Filho de burgueses, supõe-se que recebe inicial tão bem o abecedário que ele o recitava
no- m ente o ensino do cursus studiorum - o trivium de trás para a frente, de cor, aprendi
o ao e depois o quadrivium - segundo m étodos anti zado que lhe custou cinco anos e três
meses. Depois, leu a G ram ática de
or e gos, que ele irá ridicularizar mais tarde nos seus Donatus, o Facet, o Théodolet, e Alain
istas escritos. Provavelm ente noviço nos franciscanos em suas Parábolas, o que levou treze anos,
:lesi- de La Baum ette, em fins de 1510, ele deixa essa seis meses e duas semanas (RABELAIS.
O rdem pela dos B eneditinos quando a Sorbon- Gargantua, cap. 14, 1973: 81).
apa- ne proíbe os autores gregos, em 1523. Por volta Vêm depois os M odos da significação, com
três de 1530, Rabelais deixa a vida m onástica e vai os com entários de H eurtebise, de Faquin, de
a: o para M ontpellier estudar m edicina, e é em n o T ropditeux e outros, sem esquecer o Alm anaque,
, he- vem bro de 1532 que o vem os em exercício na até a m orte do p receptor em questão. O u tro ve
com Santa Casa de Lyon. Aliás, é nessa cidade, sob o lho “gagá” o substituiu, o M estre Jobelin Bridé,
90 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
que lhe leu o Grécise, o D outrinai, as Partes, o que é hum ano é negligenciado: as brincadeiras,
Q u id e vários outros livros. Sob o efeito dessa as atividades físicas, as artes e os ofícios, as lín
rotina, G argântua sentia seu corpo se enfraque guas, as ciências profanas e religiosas, a história
cer, enquanto sua m ente ficava entulhada com e a literatura. N a fam osa carta que G argântua
todas essas tolices. escreve ao seu filho Pantagruel, então estudante
Então seu pai percebeu que sem dúvida em Paris, à qual voltarem os depois, encontra-se
nenhuma ele estudava muito e dedicava o m esm o frenesi pelo saber.
a isso todo o seu tempo; apesar de tudo O que Rabelais procura nessa busca alegre
não progredia em nada e, pior ainda,
e apaixonada é a erudição total, o saber absolu
estava ficando maluco, bobo, distraído
to, um saber enciclopédico que abarca todos os
e destrambelhado. Por queixar-se disso
a Sir Philippe des Marais, vice-rei de dom ínios da atividade hum ana. De fato, o saber
Papeligosse, soube que seria preferível libera, enquanto a ignorância aprisiona. A educa
não aprender nada do que aprender tais ção rabelaisiana aspira a form ar um hom em com
livros com tais preceptores, pois o saber pleto, a desenvolver no aluno, por m eio de m éto
destes era apenas asneira e sua sabedoria dos eficientes e racionais, todas as capacidades da
se limitava a bobices, embrutecendo os sua pessoa, as suas qualidades tanto físicas quan
nobres e bons espíritos e fazendo mur
to m entais. Abre-se um a vida nova, abundante e
char a flor da juventude (RABELAIS.
generosa, um a vida autêntica e verdadeira, que
Gargantua, cap. 5, 1973: 82).
perm ite a cada hom em levar suas potencialidades
Depois de longas discussões, designaram Po-
ao auge do seu desenvolvim ento.
nócrates para o ofício de preceptor de Gargântua.
Provavelmente, é por isso que o ideal ra-
C onstatando em seu aluno os malefícios dos belaisiano se encarna em gigantes. E que
m étodos antigos, Ponócrates lhe adm inistra o só gigantes têm porte para realizá-lo. O
heléboro de A nticyre, a fim de lim par-lhe o cére gigante é o modelo popular do super-ho-
mem, do homem superior ao homem
bro “de to d a corrupção e de todo vício”. Expres
médio (DURKHEIM, 1969: 211).
sa em term os de m edicina, purgativos e lavagens,
é a ideia de um novo nascim ento, de um a volta Tal visão do hom em , da educação e do sa
à natureza, um a ideia que percorre todo o Re ber não poderia tolerar as coações, os limites e
nascim ento sob form as diversas (GARIN, 1968). a coerção. Tudo o que atrapalha ou é obstáculo
aos desejos e às necessidades do hom em , tudo
N a escola de Ponócrates, G argântua se ins
o que reprim e a livre expansão das suas capa
trui de m odo a não perder um a única h ora do seu
cidades e a sua m archa gloriosa para o saber, é
dia. O program a de estudos11 a que é subm etido
contrário à natureza do hom em . Rabelais aspira
dosa habilm ente a educação do corpo e a educa
a “um a sociedade em que a natureza, liberada
ção intelectual, o lazer livre e a frequentação dos
de toda coação, pode desenvolver-se com to d a a
Antigos, os diálogos com os eruditos e o contato
liberdade” (DURKHEIM , 1969: 210). N aturam
direto com a natureza. O que logo im pressiona é
sequere: seguir a natureza; essa é a sua divisa.
o caráter “gargantuesco” do program a - nada do
Esse ideal de um a sociedade livre e perfeita se
realiza na Abadia de Thélèm e. Sem horários e
11. Cf. o livro de Rabelais: Gargantua, 1973, cap. 23, p. 106-117. sem m uralhas, o único regulam ento dessa abadia
3 O Renascimento e a educação humanista 91
cabe inteiro nesta breve fórm ula: “Faça o que lhe fortificar os músculos. Além dessa educação físi
a prouver”. ca rigorosa, a arte da cavalaria, para defender a
Faça o que lhe aprouver, porque as casa e proteger os amigos, figura tam bém no pla
pessoas livres, bem-nascidas, bem-edu- no de educação de Rabelais. Essa arte consiste,
cadas, vivendo em boa sociedade, têm no essencial, em lições de equitação para guiar o
naturalmente um instinto, um estímulo
cavalo, no m anejo das arm as, da lança, da espa
que elas chamam de honra e que as afas
ta do vício (RABELAIS. Gargantua, cap. da, do m achado, da adaga e do punhal, ou ainda
57, 1973: 203). em lições de caça ao cervo, ao cabrito-m ontês,
ao urso, à corça, ao javali.
Faça o que lhe aprouver, pois a natureza, in
teira e sem restrição, é boa e generosa. “É, com o Q u a n to à form ação in telectu al, esta visa,
se vê, essa convicção da bondade fundam ental com o dissemos, o enciclopedism o. E toda a ci
da natureza que está na base do realism o de Ra- ência do seu tem po que o aluno deve adquirir,
belais”, lem bra D urkheim (1969: 210). Com o pois só o conhecim ento integral da ciência o p re
esse ideal se traduziu em educação no âm bito de encherá com a soberana felicidade. Se há um a
um program a de estudos? capacidade que Rabelais quer desenvolver na sua
plenitude é a faculdade cognitiva.
O homem só realiza plenamente a sua
O program a de estudos
natureza se empurrar os limites do seu
conhecimento para tão longe quanto
Com o já foi m encionado, a exaltação da
possível, se alargar a sua consciência de
faculdade de conhecer se destaca tan to no p ro
modo que ela abrace o universo. Ele só
gram a de estudos de G argântua quanto na céle é verdadeira e absolutamente feliz no
bre carta que este envia ao seu filho Pantagruel, estado de exaltação em que se encon
então estudante em Paris. O que im pressiona tra a inteligência que possui a verdade;
im ediatam ente é o caráter enciclopédico do p ro é nas alegrias da embriaguez científica
que ele deve procurar a suprema beati-
grama. Rabelais estabelece o plano de um a edu
tude (DURKHEIM, 1969: 220).
cação de gigante, que visa um saber universal.
Assim, para Rabelais, com o aliás tam bém para Q uando o abade de Thélèm e, F. Jean des En-
Erasmo, o m estre deve possuir um a ciência uni tom m eures, se aventura com Panúrgio à procura
versal, ter percorrido todo o círculo do saber. da felicidade, é um a ilha longínqua onde se eleva
Program a denso, com pleto e am bicioso, que va um tem plo dedicado à “Divina G arrafa” que lhes
mos exam inar de m odo sum ário nestas páginas. revela o segredo da felicidade. D a garrafa m iste
N as atividades cotidianas de G argântua, a riosa um a única palavra escapa: beber... beber, e
educação física ocupa um lugar im portante. Três beber ainda, no rio da ciência, até o êxtase su
ou quatro horas po r dia de exercícios físicos d u prem o do espírito.
rante as quais ele deve aprender todos os espor N a carta enviada a Pantagruel, G argântua
tes: jogos com bola, natação, navegação, escala recom enda-lhe que aprenda as línguas: a com e
da; ele deve igualm ente subir nas árvores, correr, çar pelo grego, com o quer Q uintiliano; depois
saltar, lançar, gritar para exercitar os pulm ões, o latim , o hebraico, o caldeu e o árabe para ler
e praticar ginástica para desenvolver o corpo e as Sagradas Escrituras. Recom enda-lhe tam bém
92 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
que form e o seu estilo com Platão, para o grego, do m undo. Assim, à mesa ou no cam po, o con
e com Cícero, para o latim (RABELAIS. Panta- tato com as coisas é cuidadosam ente equiparado
gruel, 1973, cap. 8). Aqui im põe-se um a breve aos textos que tratam delas. É um a característica
observação. Ao contrário de Erasm o, com o ve de Rabelais insistir no processo contínuo que vai
rem os, o interesse do ensino das línguas para do livro até a vida, e da vida até o livro (GARIN,
Rabelais, especialm ente o latim e o grego, não 1968). Para com pletar essa form ação intelectual,
se deve a nenhum a preocupação estética. C om o G argântua recom enda ao filho que faça tam bém
nota D urkheim (1969), é com o erudito que ele o estudo dos mais belos textos do direito civil, a
se aproxim a dos Antigos. A A ntiguidade não é, releitura dos livros dos m édicos árabes, gregos e
segundo Rabelais, um instrum ento ou um m o latinos, dos talm udistas e dos cabalistas; enfim,
delo de cultura estética ou de elegância literária, que freqüente as pessoas letradas de Paris e de
“mas um a m ina de conhecim entos positivos” outros lugares.
(apud D U RK HEIM , 1969: 216). Rabelais com
Uma educação estética e um a educação para
põe assim o seu program a sem considerar o valor
os diferentes ofícios se acrescentam ainda a esse
literário da obra. E os Trabalhos de H esíodo ou
program a já m uito sobrecarregado. N os dias de
as Geórgicas de Virgílio têm seu lugar, aqui, ao
chuva, de fato, Pantagruel se inicia nas artes da
lado de Teofrasto, de D ioscórides, de M arinus,
p intura e da escultura, depois vai visitar os o u
de O piano e de Pólux. Pantagruel deve tam bém
rives, os ferreiros, os m oedeiros, os lapidadores
instruir-se nas artes liberais e nas ciências m ate
de pedras preciosas, os relojoeiros, os tipógrafos
m áticas: música, geom etria, aritm ética e astro
e tantos outros.
nom ia, excluindo-se en tretan to a astrologia divi
natória e a arte de R aim undo Lúlio (a alquimia). Finalm ente, Rabelais preconiza um a educa
A ciência ocupa, nesse program a, um lugar ção m oral e religiosa, pois “ciência sem cons
preponderante. Atenção! N ão a ciência form a- ciência é só ruína da alm a”. D urante algumas
lista da dialética da Idade M édia, nem a futura horas po r dia, Pantagruel deve ler as Sagradas
ciência experim ental, mas o conhecim ento po Escrituras: o N ovo Testam ento e as Epístolas em
sitivo das coisas do m undo, o conhecim ento da grego, o Antigo Testam ento em hebraico. E, to
natureza, do hom em .
dos os dias, ele se entrega a Deus e se recom enda
E quanto ao conhecimento da natureza, à sua clemência.
quero que te dediques com aplicação:
que não ignores os peixes de todos os Mas - pelo fato de que, segundo o sábio
mares, rios e nascentes; que nada te seja Salomão, Sabedoria não entra em alma
desconhecido entre os pássaros do céu, malevolente e ciência sem consciência é
as árvores, arbustos e moitas das flores só ruína da alma - deves servir, amar e
tas, as ervas da terra, os metais escon temer a Deus, além de depositar nele to
didos no ventre dos abismos, as pedras dos os teus pensamentos e toda a tua es
preciosas de todos os países do Oriente perança; e por uma fé alimentada na ca
e do Sul (RABELAIS. Pantagruel, 1973, ridade, deves estar unido a Ele, de modo
cap. 8: 248). que nunca te separes dele pelo pecado.
[...] Presta serviço aos teus próximos e
M as o texto de um autor antigo vem com ple ama-os como a ti mesmo (RABELAIS.
tar esse contato direto do aluno com a realidade Pantagruel, 1973, cap. 8: 248).
3 O Renascimento e a educação humanista 93
Esse plano de educação p roposto po r Ra lita: em prim eiro lugar, com o secretário do bispo
belais, esse ideal e essa aspiração profunda pelo de Cam brai, Flenrique de Berghes; depois no
saber universal, ele próp rio - e vários outros Colégio de M ontaigu, em Paris; e, em seguida,
autores, tais com o Ramus, Alberti, Ficino, Leo percorrendo toda a Europa, desde a Inglaterra
nardo da Vinci - vai realizá-lo e encarná-lo no (em 1499) - onde conhece Thom as M ore, futuro
mais elevado grau. C onhecia todas as línguas, chanceler de Flenrique VIII e futuro m ártir - até
cuja aprendizagem era recom endada po r ele; Louvain (em 1502), onde contribui para fundar
era m édico, jurisconsulto e teólogo, conhecia o Colégio das Três Línguas, passando pela Itá
tudo sobre a A ntiguidade e possuía um sólido lia (de 1506 a 1509) - Turim, Bolonha, Veneza,
conhecim ento da ginástica, das artes e ofícios Roma. Finalm ente, vive de novo na Inglaterra,
do seu tem p o , com o é com provado p o r sua entre 1509 e 1514. N o ano de 1522, deixa de
obra (DURKH EIM , 1969). N o plano individu finitivam ente a H olanda e se instala em Basiléia,
al, com o nos lem bra D urkheim (1969: 218), ele cidade onde m orre em 1536. Suas ideias sobre a
era o que são as sociedades europeias no tem po educação são expostas nas seguintes obras: An-
do Renascim ento: está em plena juventude. E o tibarbaros (1520), D e ratione studii (1512) e De
próprio da juventude consiste em “ignorar tudo pueris (1529). É autor tam bém do célebre livro
o que é balizas e lim ites” (p. 218). Elogio da Loucura (1511); de um a obra sobre a
civilidade infantil, De civilitate m orum puerilium
3.3.3 Erasmo ou a corrente literária (1530); e de várias obras eruditas sobre filologia
e teologia, nas quais tenta reconciliar a sabedoria
Erasm o teve um destino curioso: nascido de antiga com o cristianismo.
pais não casados, em 28 de outubro de ano incer
to, provavelm ente 1469, tornar-se-á o príncipe
As finalidades educativas
do hum anism o, um pacifista atuante e um arden
te defensor do cristianism o. Educado em um a Desde os seus prim eiros anos de estudo em
família da pequena burguesia holandesa, Erasmo Steyn - escreverá então com G érard C orneille
deixa poucas lem branças da sua prim eira infân um a apologia contra os bárbaros - , Erasm o p re
cia. Em 1476, entra para a Escola Peter W inckel, para um a diatribe, o seu Antibarbaros. Os “bár
em G ouda, e depois para a escola capitular de baros” aqui são, de um lado, aqueles que se to r
Utrecht, com o corista, em 1477. De 1478 a 1483, naram “incultos e deform ados” ao receber um a
freqüenta a célebre escola dos Irm ãos da Vida educação escolástica e, por o utro, seus professo
Com um , em Deventer. E ali que se encontra com res. H alkin, na sua obra intitulada, Erasme par-
Rudolf Agrícola, então paladino do hum anism o m i nous, escreve (1987: 32): “Os bárbaros que
nos Países Baixos. Aos 17 anos, Erasm o fica ór Erasm o com bate são incultos e deform ados. A
fão. Alguns anos depois, em 1486 ou 1487, entra educação escolástica substituíra os autores anti
para o m osteiro dos cônegos regulares de Santo gos pelos com entários, pelas glosas e sumas. Ela
Agostinho em Steyn, perto de Gouda. O rdenado ensinava m uitas vezes um program a de estudos
sacerdote em 1492, inicia um a vida errante atra nocionais e superficiais, em que o argum ento de
vés da Europa, um a vida de hum anista cosm opo autoridade ocupava um lugar indevido”.
94 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
N o seu plano de estudos, Erasm o exige do núm ero de indivíduos fique livre desse encar
m estre um a ciência universal. go. “M eu desejo é que um só hom em leia todas
Dito isso [ele se refere aos conselhos de as obras dos Antigos a fim de poder dispensar
Quintiliano sobre os métodos de instru todos os outros de fazer o m esm o” (ERASMO,
ção], todo aquele que quiser dar a ou 1992: 451).
trem algum ensino, terá todo o cuidado
de fornecer imediatamente ao seu aluno Trata-se de um a diferença fundam ental que o
os melhores conhecimentos; mas aquele separa de Rabelais: só o m estre deve saber tudo
que quer ensiná-los da melhor maneira para poupar o aluno da obrigação de aprender
deverá, necessariamente, ser onisciente; tudo. O conteúdo da lista estabelecida po r Eras
ou se isso não é permitido a um espírito
mo é m in u c io sa m e n te e sc o lh id o . O p rim e iro
humano, que ele conheça pelo menos os
elementos principais de cada disciplina lugar cabe a Luciano, o segundo a D em óstenes,
(ERASMO, 1992: 448). o terceiro a H eró d o to . Entre os poetas, encon
tram os Aristófanes, H om ero e Eurípides. Entre
M ais à frente, ele indica com precisão:
os latinos, ele com eça p o r citar T erêncio, Plau-
Para isso, não me contentarei com aque
to em algum as de suas com édias, e depois V ir
les dez ou doze autores12 mencionados
acima, mas exigirei o círculo completo gílio, H o rá c io , C ícero e C ésar; e com estes o
do saber, a fim de que aquele que se pre tra b a lh o está com pleto. Pela escolha m inuciosa
para para um ensino elementar esteja a dos seus autores e pela frugalidade do seu p ro
par de tudo (ERASMO, 1992: 448). gram a, Erasm o se d istin g u e um a segunda vez
De preferência, recom enda Platão e A ristóte das exigências exageradas de Rabelais. N a verda
les para a filosofia; A gostinho, de, deve-se procurar alhures as
Crisóstom o, O rígenes, Jerôni- finalidades do seu program a.
mo, Am brósio e Basílio para Para Erasm o, efetivam ente, a
a teologia; H om ero e Ovídio ciência não é um bem em si
p a ra a m itologia; P om pônio com o para R abelais, m as um
M ela, Ptolom eu e Plínio para a m eio a serviço de um a e d u
cosm ografia (geografia); e de cação c o m p le ta m en te literá
pois o estudo da astrologia, da ria. C om o se trata de form ar
história e das ciências naturais. o gosto do aluno, não há ne
M as se o m estre é obrigado a cessidade de um conhecim ento
possuir tal conhecim ento, não enciclopédico. Atingimos aqui a
é para vertê-lo na sua totalida finalidade profunda da educa
de na cabeça do aluno. Em ou ção erasmiana: form ar um ho
tros term os, se ele atribui esse m em de bom -senso e de bom
im enso fard o a um a pessoa, gosto, capaz de discorrer oral
E rasm o
é p ara p e rm itir que o m aior m ente e por escrito.
A faculdade de discorrer,
12. Erasmo se refere aqui a autores gregos e latinos, tais como
tanto no oral quanto no escrito, é aquela que de
Homero, Eurípides, Aristófanes, Hesiodo, Luciano, Virgílio, Cí
cero. vemos desenvolver antes de qualquer outra. O
3 O Renascimento e a educação humanista 95
que ele cham a de orationis facultas, a faculda se corretam ente é adquirida principalm ente pelo
de verbal - a arte po r excelência é a arte de contato e pela conversação com aqueles que se
discorrer, de desenvolver um a ideia num a língua expressam em um a língua apurada, e pela leitura
correta, e principalm ente em um a língua fluida, assídua dos autores eloqüentes. Para tirar o m aior
elegante e bela, apropriada ao tem a. A faculdade proveito dessas leituras, Erasmo recom enda es
verbal é tam bém a arte de analisar o pensam en tudar Lorenzo Valia, “que escreveu da m aneira
to, de dispor os seus elem entos em um a ordem mais refinada sobre a elegância da língua latina”
conveniente; em suma, é a arte de falar bem , de (ERASMO, 1992: 445). Esse conselho de Erasmo
escrever bem e de discorrer bem em qualquer nos introduz em o u tra novidade.
circunstância. A língua latina m encionada pelo hum anista
Não há nada, diz ele, de mais admirá holandês não é a língua viva dos escolásticos da
vel e de mais magnífico do que o dis Idade M édia, côm oda e prática, mas sem valor
curso (oratio) quando, rico de ideias e
educativo; é um a língua expurgada de suas escó
de palavras, ele flui abundantemente
como um rio de ouro (ERASMO, apud rias, um a língua literária altam ente educativa. O
DURKHEIM, 1969: 225). latim que Erasm o introduz pela prim eira vez no
ensino é o latim clássico do século de Augusto,
N a educação erasm iana, a faculdade privile
o latim com o língua m orta. Já que não se trata
giada é a literária, em vez da faculdade de conhe
de conhecer tudo, mas de form ar bem o gosto
cer, com o vimos com Rabelais.
do aluno, um a antologia será m inuciosam ente
preparada em função da elevação m oral do au
O program a de estudos to r e do seu m érito literário. E a erudição, do
lado do m estre, está aqui a serviço da explicação
Já que se trata de form ar hom ens capazes de
literária. D urkheim (1969: 228) nos lem bra: “A
expressar-se bem , oralm ente e por escrito, já que
erudição, longe de ser um fim em si, está, pois,
se trata de form ar hom ens de bom gosto e de
a serviço de um a o u tra cultura; é um m eio de
bom -senso, devemos ensinar aos jovens as gran
explicação literária” .
des obras do passado. De fato, nessas obras resi
dem não só um a língua rica e bela, mas tam bém É po r isso que a literatura ocupa tal lugar
tudo o que é digno de ser conhecido. O ra, só as no plano de educação de Erasm o: é a disciplina
línguas grega e latina dão acesso a esse tesouro. mais altam ente educativa, enquanto as ciências
Em conseqüência, Erasm o recom enda consagrar naturais, a história e a geografia lim itam -se a de
ao estudo das gram áticas grega e latina um fervor sem penhar um papel subsidiário.
igual. Entre os gram áticos gregos, Teodoro Gaza Além disso, com Erasm o, aparece um con
atinge o prim eiro lugar e, no segundo, C onstanti- junto de exercícios escolares que serão a base do
no Lascaris; entre os gram áticos latinos, o prim ei ensino na França posteriorm ente. Em prim eiro
ro é D iodem o e depois N icolau Perotti, pelo seu lugar, a explicação literária dos textos substi
zelo até nos m enores detalhes. M esm o reconhe tui a expositio dos escolásticos. Ela consiste em
cendo a necessidade da gram ática, Erasm o quer enfatizar a beleza e as curiosidades literárias do
que o núm ero de suas regras sejam tão reduzido texto, em sublinhar a sua elegância, os seus arca
quanto pertinente, pois a aptidão de expressar- ísmos e os seus neologismos, assim com o os tre
96 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
Rabelais Erasmo
Dimensão crítica Crítica da escolástica, que ele julga arcaica, Crítica da escolástica que ele julga arcaica,
superada, ineficaz, por dirigir-se apenas à superada, ineficaz, por dirigir-se apenas à
inteligência verbal. inteligência verbal.
Concepção básica Concepção naturalista que repousa sobre a Concepção cultural, civilizada, centrada nos
ideia de que, à semelhança da natureza, o prazeres delicados e nos refinamentos da vida
homem é também bom e generoso. civilizada e culta.
Qualidades humanas Energia, paixão, força, expansão, livre Elegância e polidez, refinamento do espírito,
dominantes expressão, que se exprimem em atividades bom gosto e bom-senso, autodomínio e boas
intensas, em ações em que o homem se volta maneiras.
para o mundo da natureza.
Princípios educativos, • A educação deve favorecer a livre expressão • A educação deve favorecer a imitação e a
finalidades e ideal e a livre expansão de todas as faculdades aprendizagem dos melhores modelos de cultura
educativo humanas: é preciso formar homens completos e de civilidade.
(cabeça e corpo).
• Ela deve formar um intelecto perspicaz, o
• Contra a disciplina, contra tudo o que refreia, bom gosto e o bom-senso, a capacidade de
cria limites e reprime. expressar-se bem, tanto oralmente quanto por
escrito.
• 0 ideal rabelaisiano: o homem que
desenvolveu ao máximo todas as suas • 0 ideal erasmiano: o homem de intelecto
faculdades, o Gigante. A ciência não é nada perspicaz, culto e refinado.
mais do que o grande saber, o desenvolvimento
máximo de todas as capacidades humanas.
Papel do mestre A erudição é um fim em si. 0 mestre deve A erudição não é um fim em si, mas um meio de
saber tudo, a fim de ser capaz de ensinar tudo explicação literária. 0 mestre deve saber tudo para
ao aluno. poupar ao aluno a obrigação de aprender tudo.
de polida, rica e benevolente se oferecia então à É po r isso que, para desenvolver o gosto e o
visão de todos, com o um m odelo relativam ente refinam ento, a A ntiguidade greco-rom ana e seus
perfeito: escritores aparecem a Erasm o com o os educado
[...] Era o mundo da nobreza. [...] E a res por excelência das sociedades (1992: 233).
polidez das cortes que Erasmo se pro
põe a difundir no seu De civilitate; é A presentam os sucessivam ente as duas gran
o que ele nos diz já no começo do seu des concepções educativas que dom inam o sé
tratado. O jovem Eudêmon, produto da culo XVI: um a representada p o r Rabelais, que
nova educação, nos é apresentado como encarna o ideal do erudito, enquanto a o u tra é
um jovem pagem. E o que é a Abadia de
representada p o r Erasm o, que personifica o ide
Thélème senão uma sociedade de gen-
tis-homens e gentis-donas, mas onde a al do fino letrado. Vamos encontrar, no Q uadro
nobreza intelectual está em um plano 3.1, um a breve com paração que retom a os p rin
semelhante ao da nobreza de sangue? cipais elem entos desta apresentação.
(DURKHEIM, 1969: 232-233).
Conclusão
Resumo
DURKHEIM, É. (1969 [Publicação original em 1938]). ______(1981b). Uéducation à Pépoque des grands hu-
Eévolution pédagogique en France. 2. ed. Paris: Fayard manistes” - Vol. 2: de 1515 à 1815. In: MIALARET,
[Em português: (2002). A evolução pedagógica. Porto G. & VIAL, J. (org.). Histoire mondiale de Véduca-
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ERASMO (1992). Le plan des études. Paris: Robert ______(1965). Érasme par lui-même. Paris: Seuil.
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Hachette. intellectuel de Jean Pic de La Mirandole. Quebec:
Presses de 1’Université Lavai.
4
O século XVII e o nascimento da pedagogia
Clermont Gauthier
Objetivos de aprendizagem
Introdução
4.1 Alguns marcos para compreender ofício, que não se com para a nenhum o u tro no
o caminho percorrido seio das sociedades tradicionais: o de docente.
O ofício dos sofistas, ao contrário, po r exem plo,
Já percorrem os boa parte do cam inho. Va ao dos artesãos, não prepara para nenhum outro
mos rever os seus principais m arcos para nos im
ofício preciso. C om o se sabe, o artesão, com o
pregnarm os m elhor do respectivo conteúdo.
o ferreiro, aprende o seu trabalho po r im itação
N os capítulos precedentes, vimos que toda e repetição, em contato com o u tro artesão, que
sociedade educa, no sentido em que transm ite às por sua vez tam bém o aprendera de outro m estre
gerações jovens um a tradição, costum es, m anei e assim p o r diante. Esses ofícios, de certa form a,
ras de fazer. N a verdade, para J. M oreau, toda fazem parte da tradição. Ao contrário, o ofício
sociedade, m esm o aquela dita tradicional, exer de sofista, em vez de m ostrar aos outros um ofí
ce um a função educativa ao transm itir, de m odo
cio aprendido por im itação e repetição, consis
m ais ou m enos consciente, “as suas instituições e
te, de preferência, em ajudar o o u tro a aprender
as suas crenças, seus conceitos m orais e religio
a pensar. O ra, pensar é um a atividade que não
sos, seu saber e suas técnicas” (MOREAU, 1966:
se aplica a um a única ocupação, mas a todos os
1). Essa transm issão se faz de m aneira inform al,
problem as da vida. G randes viajantes, os sofistas
>em que ninguém seja oficialm ente designado
para essa tarefa. Ela se realiza de m odo anônim o encontraram m atéria de reflexão em tudo o que
por um a espécie de integração e am álgam a dos estava à sua volta; questionaram a tradição, in
diversos ingredientes - tais com o valores, costu terrogaram os fundam entos da verdade, da justi
mes e hábitos - no crisol social. ça, da beleza, da política e da educação. Eles re
fletiram no que poderia ser um hom em instruído,
O utro aspecto é que, se todas as sociedades
isto é, aquele que tivesse atingido o m áxim o da
educam , nem todas ensinam , necessariam ente. O
sua plenitude (Paideia).
ensino com eça realm ente com os gregos: os p ri
meiros que se separam da tradição e questionam D eve-se n o tar, e n tre ta n to , que, apesar de
a natureza, a sociedade. Região de encruzilhada, tere m in v en tad o o ofício de do cen te, de terem
a Grécia é um espaço de m igração dos hom ens. ensinado, os gregos não refletiram sistem atica
Vários estrangeiros ali perm anecem regularm en m ente no ensino, nas m aneiras de organizar a
te, vários gregos viajam por to d a a parte nas classe e transm itir os conhecim entos. N a verda
regiões vizinhas, de m odo que não será surpre de, não encontram os entre eles nenhum tratado
endente ver que esse povo viveu, sem dúvida, de pedagogia. A república, de Platão (1966), é
o pluralism o de m aneira trágica. Efetivam ente, mais um tratad o sobre a educação em geral do
o contato dos gregos com os outros povos, as que um a obra sobre a m aneira precisa de ensi
outras culturas e as outras tradições, teve com o nar e de organizar a classe. Se os gregos não es
conseqüência incitá-los a refletir sobre a sua p ró creveram tratados de pedagogia, é porque sem
pria tradição, e p o rta n to sobre a sua visão da dúvida não sentiram necessidade disso. M esm o
verdade, da justiça, da beleza, de governar a ci se falamos de escola entre os gregos, devem os
dade e da educação da juventude. lem brar que ela é algo com pletam ente diferente
Os sofistas dão início a essa reflexão. Com o dos vastos edifícios repletos de alunos de hoje.
prim eiros professores, eles exercem um novo Por exem plo, o núm ero m áxim o de alunos na es
104 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
cola de Isócrates, célebre na época, não passava magistro seja de Santo Tomás de Aquino (1983) naliza*
de nove, e a m édia era de cinco ou seis. Com tão ou de Santo A gostinho (1988) - são escritos no memb
poucos alunos, principalm ente rapazes reunidos singular, isto é, abordam a questão da educação progri
em to rn o de um m estre, não há razão de pensar num a perspectiva de preceptorado (um m estre m enu
em verdadeiros problem as de disciplina, tão es com o seu discípulo) e não visando esclarecer, TRLN
treito e pessoal era o contato entre professor e para um professor, a m aneira de organizar o seu Ei
alunos. Assim, não era necessário refletir sobre a ensino com um grupo. N ão será surpreendente morrM
pedagogia com o tal, pois ensinar, em um contex constatar que “o ato essencial e o regim e norm al manií
to de “p re c e p to ra d o c o le tiv o ” com o esse, não da pedagogia m edieval será a leitura (lectio)” sobre
provocava m uitos problem as de organização. (PARÉ; BRUNET & TREMBLAY, 1933: 111). mas c
N ão é, pois, surpreendente a afirm ação de M ar M ais ainda, parece que na Idade M édia não se grane
rou (1948: 221) segundo a qual essa pedagogia é encontra nenhum a reflexão sistem ática sobre a õcar
rotineira e elem entar. Ensinar se lim itava então a m aneira de ensinar. os ItH
decom por o conteúdo e a transm iti-lo; isso não Assim, entre a reforma carolíngia com dar a
exigia habilidades pedagógicas especiais. A que seus ‘capitulares’, aliás muito primitivos,
e os primeiros regulamentos universi
le que sabia ler tin h a a possibilidade de im p ro
tários de Paris ou de Bolonha depois
visar-se m estre-escola. Veremos que tu d o será de 1200, apesar de certa uniformidade
m uito diferente no século XVII. de programa e de método, encontra
mo-nos em um período de improvisa
Vimos tam bém que o ensino e a escola são
ção, de iniciativa, de mobilidade, em que
duas coisas distintas: pode-se, p o rtan to , ensi as influências soberanas e gerais dos pa
nar, m esm o sem escola. N a verdade, só na Idade pas, dos concílios, dos príncipes e dos
M édia aparece a escola. Esta se define, segundo imperadores, são de ordem moral mais
D urkheim (1969), com o um am biente m oral or do que institucional, e se expressam em
exortações mais do que em regulamen que
ganizado, isto é, reúne sob o m esm o teto vários
tos, do ponto de vista seja administra aux:
m estres que trabalham com o m esm o objetivo: tivo, ou relativamente à matéria e aos riad
converter os alunos ao cristianism o. M as, assim métodos de ensino (PARÉ; BRUNET & recc
com o durante a A ntiguidade, a pedagogia ainda TREMBLAY, 1933: 56).
a ed
não era a principal preocupação da escola na Ida Pode-se, pois, afirm ar que os procedim entos gera
de M édia. Os grandes pedagogos desse período pedagógicos são pouco desenvolvidos na Idade dos
(por exem plo, A belardo e Santo Tomás), com o M édia, pois cobrem apenas algum as facetas do Rai
tam bém os da A ntiguidade, são antes de tudo ensino, tais com o ler, copiar, aprender de cor, uni
pensadores que lecionam : em vez de se lim itarem com entar os autores clássicos. N ão se encon diri
a ensinar um saber produzido po r outros, eles tram nem deveres nem sistem a de em ulação pcw
ensinam o saber que criam. Até se poderia afir (D U R K H EIM , 1969: 303). Além disso, esses de
m ar que eles são pedagogos p o r acidente, p o r processos pedagógicos se lim itam em prim eiro nis
que ensinam e exercem a sua “arte pedagógica” lugar e principalm ente ao conteúdo e servem à soè
com m uito talento. M as não se encontram tra ta lógica da disciplina a ensinar. Enfim , esses p ro q™
dos de pedagogia na Idade M édia. Os textos que cessos são m uitas vezes im provisados, e não fa gr*
poderiam equiparar-se a isso - pensam os no De zem parte de um regim e uniform e e institucio un
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 105
nalizado. Estão ligados às iniciativas de certos Em suma, querem os observar que, apesar das
m em bros do clero, e não são o resultado de um várias aquisições no cam po da educação a partir
progresso in stitu cio n al que e n q u a d ra e sedi dos gregos, passando pela Idade M édia e pelo
m enta os m odos de fazer (PARÉ; BRUNET & R enascim ento, ainda não houve pedagogia no
TREMBLAY, 1933: 56). sentido estrito da palavra. N a verdade, as socie
Enfim, vimos que o Renascim ento foi um dades tradicionais educaram seus povos, sem te
m om ento im portante na história tan to da h u rem im plem entado reflexão pedagógica, ensino
m anidade quanto da educação. V ários discursos ou escola. Tendo inventado o ensino, os gregos
sobre a educação foram redigidos nessa época, não fazem a reflexão pedagógica avançar. Do
mas tinham o defeito de lim itar-se à doutrina, às m esm o m odo, a Idade M édia deu nascim ento à
p-andes finalidades; visavam principalm ente cri escola, mas não fez progredir a reflexão sobre
ticar a escolástica. Preocupavam -se pouco com a pedagogia. Os pensadores do Renascim ento
os meios de ensino, com as m aneiras precisas de favoreceram o fim da Idade M édia e da esco
dar aula. lástica, mas não tinham igualm ente preocupação
Certamente, os grandes humanistas do pedagógica. Só no século XVII aparecem um dis
século XVI - Erasmo, Budé, Rabelais curso e um a prática form alizados que podem ser
e, mais tarde, Montaigne - lançaram qualificados de “pedagogia”.
muitas ideias novas na área pedagógica.
Mas, apesar de terem conseguido arrui O objetivo deste capítulo consiste em m os
nar a filosofia escolástica, eles não che tra r que o século XVII traz algo de novo na p rá
garam a exercer, sobre as próprias insti tica do ensino: o m étodo, isto é, a pedagogia.
tuições de ensino, uma influência direta Por pedagogia entendem os aqui a codificação de
(HUBERT, 1949: 48).
certos saberes próprios ao docente, isto é, um
Pensemos po r um instante em M ontaigne, conjunto de regras, de conselhos m etódicos que
que escrevia na to rre do seu castelo de Borde- não devem ser confundidos com os conteúdos a
iu x ; apesar de ter sido classificado pelos histo ensinar, cuja form ulação visa o m estre para que
riadores entre os grandes pedagogos, é forçoso o aluno aprenda um acervo m aior de conheci
reconhecer que ele escreveu m uito pouco sobre m entos, mais depressa e em m elhores condições.
i educação, e sua produção é um a crítica m uito
jieral. Assim, é norm al constatar que os discursos
io s grandes pedagogos do R enascim ento, com o 4.2 A pedagogia em duas ilustrações
Rabelais, Erasm o e M ontaigne não têm função
Para ter um a boa ideia do tem a que vamos
utilitária. Escritos po r um a elite que não ensina,
explorar neste capítulo, exam inem os para co
dirigem-se em prim eiro lugar a essa elite e res
pondem às suas preocupações: as ideias. Em vez m eçar duas ilustrações1. N elas encontram os o
de discursos de docentes encarregados de adm i
nistrar grupos de alunos em um a classe, trata-se 1. A pintura de A. van Ostade encontra-se no Museu do Louvre,
sobretudo de reflexões gerais sobre a educação, em Paris; por sua vez, a segunda ilustração é de Giovanni Ga-
que se inscrevem - exatam ente com o entre os gliardi e representa João Batista de La Salle e a primeira escola
dos Irmãos, na Rue Princesse, em Paris. Por amável autoriza
gregos e os intelectuais da Idade M édia - em ção da Casa Generalícia dos Irmãos das Escolas Cristãs, em
um a perspectiva de preceptorado. Roma.
106 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
essencial daquilo que procuram os dem onstrar. O contraste entre duas ilustrações da mesma
Ambas pertencem ao século XVII e m ostram o época, o século XVII, sobre o m esm o tem a - en
ensino nas classes da época. A prim eira se inti sinar - , é estranho e im pressionante. E com o se
tula O mestre-escola e foi pintada por Van Os- um a reviravolta das m entalidades tivesse ocorri
tade (Figura 4.1), enquanto a segunda m ostra os do sobre a m aneira de fazer a escola. Ao docente
Irm ãos das Escolas Cristãs trabalhando em um a “n atu ral” da prim eira ilustração, que aprendeu
classe (Figura 4.2). As duas obras apresentam pela im itação dos seus m estres de ou tro ra, su
um contraste im pressionante. A p intura de Van cede o outro docente, m etódico e organizado,
O stade m ostra um velho m estre, com a palm a que edificou em piricam ente um novo “saber-en-
tória na m ão, interrogando um aluno po r vez, sinar” que cham arem os aqui de pedagogia. En
enquanto um a quinzena de outros, de idades sinar necessita, doravante, além do dom ínio uni
variadas, se dedicam a todo tipo de ocupações, cam ente do conteúdo a transm itir, a instalação
brincam ou brigam . O local, um a espécie de p o de um a série de dispositivos que vamos explorar
rão, é sujo e está com pletam ente em desordem . mais adiante neste capítulo. Essas m udanças não
Em contrapartida, a o u tra ilustração m ostra ape apareceram da noite para o dia, mas são o resul
nas parcialm ente um a classe, na qual crianças tado do efeito com binado de vários fatores que
da mesm a idade e do m esm o sexo2 estão de uni convém examinar.
form e, sentadas em seus lugares, cada um a com
um livro na m ão, concentradas em executar uma
tarefa dirigida pelo m estre a todos sim ultanea
4.3 Alguns fatores que influenciaram
m ente. Vê-se, na parede, um m apa-m úndi entre o aparecimento da pedagogia e suas
duas imagens sacras dispostas sim etricam ente e, conseqüências
diante dos alunos, encontra-se João Batista de
4.3.1 Os fatores
La Salle em com panhia de dois outros mestres.
Apesar do núm ero im ponente de crianças nessa A Reforma Protestante
classe - p ro v a v e lm e n te em to rn o de 70 a lu
Em 1517, M a rtin h o L utero (1483-1546),
nos a ordem , a lim peza e a calm a parecem rei
teólogo e religioso alem ão, afixa as suas 95 te
nar. O Q uadro 4.1 nos perm ite perceber m elhor
ses nas p o rtas do castelo de W ittenberg, para
a diferença entre essas duas ilustrações.
p ro te sta r no tad am en te co n tra a venda das in
dulgências. C om o sabem os, as indulgências ti
nham p o r função g aran tir a rem issão das penas
2. Em seu Traité de l ’éducation des filies (Tratado da educação
a que estavam sujeitos os cristãos que haviam
das moças), Fénelon (1651-1715) defendia a posição de que
elas recebessem uma educação à semelhança do que ocorria pecado. Assim, a recitação de preces e a assis
com os rapazes. Na contramão das ideias de seu tempo, ele tência aos ofícios religiosos, p o r exem plo, da
era a favor de que a mulher fosse instruída porque isso fortifi
vam indulgências que perm itiam aos pecadores
cava a fragilidade de sua mente e ajudava a encarregar-se, em
melhores condições, da administração da família, do bem-estar abreviar a sua potencial perm anência no p u r
do esposo e da educação dos filhos. Entretanto, foi apenas no gatório. O ra, um dom inicano alem ão de nom e
século XX que as moças tiveram a real possibilidade de receber
Tetzel se to rn a ra célebre graças ao com ércio das
uma educação semelhante à dos rapazes e, mesmo assim, tal
prática ocorreu de maneira variável segundo os países. indulgências... que ele vendia com a finalidade
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia
>46),
5 te-
para
is in-
as ti-
>enas
viam
issis-
, da-
lores
pur-
lome
a das
dade
108 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
0 método • Ensino individual e modo ocupacional. • Ensino coletivo (simultâneo) e modo funcional.
• Sem método. • Metódico.
• Desordem. • Ordem absoluta.
0 mestre • 0 mestre é pobre (deve fazer outra coisa • 0 mestre apenas ensina: é um profissional.
para ganhar a vida).
O saber do mestre • 0 saber docente se define pelo conteúdo • 0 saber docente difere do conteúdo a ensinar.
a ensinar. Aquele que sabe ler pode
• Ensinar é mais do que ministrar um conteúdo, é
ensinar a ler.
também organizar o ambiente total da classe.
Os alunos • Crianças de idade variável e sexo • Crianças pequenas (mesma idade e mesmo sexo).
diferente.
• Muitas crianças.
• Poucas crianças na classe.
• Crianças agrupadas fazendo juntas a mesma coisa
• Crianças fazendo várias coisas diferentes ao mesmo tempo.
individualmente.
• Roupas das crianças: o uniforme.
• Roupas da época: diversificadas.
A classe • 0 local serve para outra coisa; espécie • 0 local serve unicamente para o ensino. Local
de depósito de loja. especializado (exemplo: mapas, carteiras).
• Não há quadro. • 0 quadro de leitura aparece com o ensino simultâneo.
Relação professor- • Relação do tipo crueldade/afeição, bater/ • Relação do tipo humilhação/recompensas; o “castigo”.
alunos abraçar; correção física: a palmatória.
• Relação racional: escala graduada das recompensas
• Relação Im pulsiva”. e das punições, distância afetiva, exclusão da relação
afetiva.
de prosseguir a construção da Basílica de São consciência, e não mais segundo os ensinam en
Pedro em Rom a. Isso significava, no fim das tos da Igreja. Para o protestantism o, m ovim ento
contas, que os ricos podiam co m p rar o céu, e religioso proveniente da influência de Lutero,
L utero se opôs a isso energicam ente. O p ro te s cada indivíduo deve ter a capacidade de inter
to de L utero m arcou o início de um m ovim en pretar as Escrituras. É preciso, pois, suprim ir os
to m uito im p o rtan te, a R eform a, que resultou interm ediários e não deixar a autoridade papal
num cism a da Igreja. interpretá-las no lugar de cada um.
N o essencial, L utero afirm ava que, em m até Se a tipografia não tivesse sido inventada,
ria de fé, só as Sagradas Escrituras têm au to rid a é provável que as ideias de L utero não teriam
de, e não o papa. Segundo essa doutrina, Deus tido tanta repercussão em tão pouco tem po, e,
concede ao hom em a sua Palavra (pela Bíblia) ao invés de tom ar a form a de um m ovim ento de
e a sua G raça (pela fé). O hom em vive a sua fé reform a em escala europeia, elas seriam apenas
e recebe a Palavra divina na intim idade da sua um a revolta passageira.
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 109
Já que agora todos podiam in terpretar as Es nas escolas católicas. O s católicos m antinham
crituras, tornava-se pois essencial traduzir a Bí um a atitude principalm ente defensiva, assegu
blia nas línguas nacionais. L utero traduziu, p o r rando-se de que os m estres nas paróquias fos
tanto, a Bíblia para o alem ão. E ntretanto, m esm o sem autênticos católicos (PARIAS, 1981, t. II:
que exista um a tradução da Bíblia na língua do 257). E n tretan to , po sterio rm en te, no fim do
país, é preciso ainda que as pessoas possam lê-la! século XVI, os católicos ad o taram um a atitude
Assim, L utero enfatizou a necessidade de educar mais ofensiva, pois perceberam que não bastava
o povo e pediu a criação de escolas elem entares p regar e ouvir confissões; era necessário esta
para todas as crianças: belecer um instru m en to ainda mais eficaz para
[...] O direito, para cada cristão, de dom inar as almas. Em conseqüência, eles fun
interpretar as Sagradas Escrituras não daram tam bém escolas.
pode dispensar a obrigação do ensino
para todos. E preciso que cada um seja Levados pelo exemplo dos protestantes
capaz de ler os textos e de compreender e preocupados em vencê-los no seu pró
a doutrina, tomada diretamente em sua prio terreno, os católicos se veem impe
fonte (HUBERT, 1949: 44). lidos a utilizar a leitura como meio de
evangelização (PARIAS, 1981, t. II: 21).
O protestantism o foi, pois, um m ovim ento
determ inante na criação das escolas e na esco O exem plo mais eloqüente é a form ação da
larização das massas. Parias (1981, t. II: 252) com unidade dos jesuítas. Estes, soldados de Je
indica que, a p artir do m om ento em que os p ro sus Cristo, form ando um a milícia religiosa e d o
testantes com eçaram a construir suas igrejas, eles cente, um a com unidade que pronuncia um voto
providenciaram tam bém a construção de escolas de fidelidade ao papa, tinham p o r missão com
da sua confissão. bater o protestantism o fora dos m osteiros, isto é,
Devem os n o tar que, nessa época, a imensa no m undo. Os jesuítas queriam dar à palavra do
m aioria da população não sabe ler nem escrever. C risto o lugar que ela tinha antes do advento do
N a verdade, em bora o cristianism o seja um a re protestantism o. Q ueriam dar ao cristianism o um
ligião erudita, a população aprendeu principal poder ofensivo que lhe fazia falta, não lim itando
m ente os seus ritos, e não as Escrituras, exceto a religião a um papel reativo às diferentes here
quanto à elite e ao clero, que se encarregavam sias, mas introduzindo (e enraizando) a religião
de ensiná-las. A Igreja estava aberta a todos (po desde cedo no coração das crianças.
bres e ricos) para o conhecim ento das Escrituras, O que suscitou a Ordem dos Jesuítas
mas, para isso, era necessário destinar-se a um a foi a necessidade sentida pela cato-
vocação religiosa. O papa, p o r m eio do clero, licidade de deter os progressos sempre
ensinava à população, mas esta perm anecia anal mais ameaçadores do protestantismo.
Com uma extraordinária rapidez, as
fabeta, em sua grande m aioria.
doutrinas de Lutero e de Calvino ga
nharam a Inglaterra, a Alemanha quase
A C ontrarreform a C atólica toda, a Suíça, os Países-Baixos, a Suécia,
uma grande parte da França. Apesar de
N o início, a R eform a P rotestante não teve todas as ameaças que fazia, a Igreja se
grande efeito sobre a organização do ensino sentia impotente e começava a temer
110 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
que o império do mundo lhe escapas ou, com sua m ãe, na colheita e no cultivo da ho r
se definitivamente. Foi então que, para ta. Evidentem ente, as crianças eram am adas, mas
deter e combater a heresia em melho essa afeição não correspondia necessariam ente a
res condições, se fosse possível, Inácio
um a consciência da especificidade da infância,
de Loyola teve a ideia de recrutar uma
que fizesse com que a criança fosse distinguida
milícia religiosa de um gênero comple
tamente novo. Ele compreendera que do adulto (ARIÈS, 1973: 177). Ariès defende a
tinham passado os tempos em que se sua tese com o exem plo das m iniaturas do século
podia governar as almas do fundo de XII, em que as crianças eram representadas nuas
um claustro. [...] era preciso constituir e m usculosas com o adultos, e tam bém pelo fato
um exército de tropas ligeiras [...]. A de que estavam vestidas com o adultos (p. 53).
Companhia de Jesus foi esse exército Segundo ele, isso é um sinal de que elas são con
(DURKHEIM, 1969: 267).
sideradas com o adultos de tam anho reduzido, e
O s jesuítas ab riram m u ito s colégios que não com o crianças dotadas de um a psicologia e
conheceram um a grande fama. Por exem plo, de um a identidade próprias.
contavam -se na França cerca de 300 colégios
N o século XVI, começa-se a perceber que,
de jesuítas em 1600 e, no fim do século XVIII, por si só, a infância é um a fase da vida, mas ela é
seu núm ero elevava-se a mais de 1.500. Vários considerada um a fonte de divertim ento. Esse pe
grandes espíritos, com o Descartes, foram educa ríodo seria o da “denguice” ; na família, a criança
dos em colégios jesuítas. Assim, a clivagem entre é então considerada com o um brinquedo encan
católicos e protestantes acarretou a criação de tador. E m im ada, mas isso não acarreta neces
escolas. sariam ente ações precisas, orientadas para a sua
educação. Um pouco mais tarde, no século XVII,
O novo sentimento em relação à infância a infância se to rn a um a verdadeira preocupação
m oral. Sua leviandade (sua desordem , seu vício,
Entre os fatores que influenciaram o nasci seu pecado) deve ser corrigida. A infância é vis
m ento da pedagogia, deve-se m encionar tam bém ta durante essa época com o um período negati
o aparecim ento de um novo sentim ento em re vo da vida, que deve ser objeto de tratam ento.
lação à infância no século XVII. Realm ente, a Esse trabalho de cura da infância é assum ido po r
infância torna-se então um a preocupação m oral agentes exteriores à família, os religiosos.
para o adulto. Mas no século XVII aparece um novo
sentimento da infância, que vem do
Segundo Ariès (1973), a visão da infância e,
exterior, dos homens de Igreja, preo
po r conseguinte, o com portam ento dos adultos
cupados em policiar os costumes. Eles
em relação às crianças, varia ao longo das épocas. se tinham tornado também sensíveis
Segundo esse autor, esse sentim ento pela infân ao fenômeno outrora negligenciado da
cia não existia na sociedade medieval. A criança, infância, mas negavam-se a considerar
desde a mais tenra idade, um a vez superado o essas crianças como brinquedos encan
tadores, pois viam nelas frágeis criaturas
risco de m ortalidade infantil, se m isturava aos
de Deus, que tinham necessidade de ser
adultos; pertencia à sociedade dos adultos. Com preservadas e, ao mesmo tempo, corri
seu pai, tomava parte nas atividades agrícolas gidas (ARIÈS, 1973: 185).
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 111
hor- Tratava-se, pois, diz Ariès, do início de um (DÉMIA, s.d.) e que era preciso educá-los “pelo
, mas sentim ento sério e autêntico em relação à infân estabelecim ento dos catecism os e da disciplina
nte a cia3. Já não era possível, deste m odo, aceitar a le das escolas” (CHARTIER; CO M PÈRE & JU-
ncia, viandade da infância. Pelo contrário, era preciso LIA, 1976: 60); caso contrário, a ordem social
;uida corrigi-la. D aí o confinam ento das crianças em seria perturbada. Essa posição era m uito diferen
ide a instituições que substituíam a família. Sente-se, te daquela do Renascim ento, segundo a qual a
;culo pois, a necessidade de criar escolas, para respon escola era principalm ente reservada para a elite
nuas der a esse novo sentim ento m oral em relação à e não era verdadeiram ente útil no plano social.
' fato infância. Em bora a tese de Ariès tenha usufruído Lem brem o-nos de que, para Rabelais, era im por
53). de elevada reputação durante os anos de 1970, tante saber enquanto a ignorância era algo de
con- ela foi razoavelm ente m odificada posteriorm en m au, mas segundo tal postura tratava-se de um a
do, e te (BIDON, 1991). M as um fato perm anece: a valorização do saber pelo saber, e não do saber
gia e im portância m oral atribuída à educação da in em vista de um a utilidade qualquer. Do mesmo
fância no século XVII que, conjugada com o u m odo, no Renascimento, a educação do povo não
tros fatores, estim ulou a educação das crianças e era valorizada, enquanto, de acordo com um a
que,
a criação de escolas. opinião com o a de Dém ia (s.d.), retom ada por
ela é
■e pe- João Batista de La Salle (1951), percebe-se que ela
iança O problem a u rb an o pode ser tam bém um a questão que afeta o povo, e
ícan- que toda a sociedade ganha com a instrução. Essa
O novo olhar m oral sobre a infância incen nova visão da utilidade social da escola teve, pois,
eces-
tivou, sem dúvida, os notáveis das cidades a se com o efeito favorecer a educação do povo e, por
a sua
preocupar com a juventude turbulenta e a querer conseguinte, a criação de escolas.
CVII,
corrigir essa situação indesejável. N a verdade,
>ação
nessa época, os jovens desocupados se tornavam ,
rício,
para os burgos, um problem a cada vez mais im 4.3.2. Os efeitos desses fatores
é vis-
portante. Esses jovens eram cada vez mais num e
-gati- O efeito com binado dos quatro fatores m en
rosos, vagando pelas ruas, m endigando, ro u b an
ento. cionados precedentem ente (a Reform a Protestan
do, causando escândalo ou m edo entre os habi
o por te, a C ontrarreform a Católica, o novo sentim en
tantes. Foi então que apareceu um a nova ideia.
to em relação à infância e o problem a urbano
Charles Dém ia (s.d.) declarou que abrir um a
novo causado pelos jovens) se traduziu, po r um lado,
escola era fechar um a prisão. Essa tese é m ui
m do p o r um aum ento notável do núm ero de alunos
preo- to im portante, porque, pela prim eira vez, argu-
com a chegada à escola dos filhos do povo, das
. Eles m enta-se sobre a utilidade social da escola. Com
crianças errantes e das mais jovens e, p o r outro
síveis efeito, Dém ia tinha observado que os jovens de
do da lado, por um aum ento do núm ero de escolas.
Lyon, especialm ente os filhos do povo, “estavam
iderar Efetivam ente, C hartier, C om père e Julia (1976)
na últim a libertinagem , p o r falta de instrução”
ncan- sublinham que, no norte da França e na região
aturas de Ile-de-France [região m etropolitana parisien
de ser 3. É preciso notar, entretanto, que uma preocupação com a in se], no século XVII, quatro paróquias entre cin
corri- fância ainda não é uma teoria: a primeira verdadeira grande Teoria
da Infância será elaborada por Rousseau, no século XVIII.
co tinham um a escola. M ais ainda, esse fenôm e
112 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
no não se lim ita à França, mas engloba toda a e sólido proveito [...] (COMENIUS,
Europa: 1952: 31).
Essa marcha para a escola se torna uma O u ainda:
corrida em massa no primeiro terço do A fim de aliviar de alguma forma aque
século XVII. [...] Tal solicitude em re les que estão nesse trabalho, dando-lhes
lação aos estudos se verifica no espaço certa facilidade para ensinar com menos
europeu (CHARTIER; COMPÈRE & dificuldade e em menos tempo o que
JULIA, 1976: 294). a juventude deve saber sobre os seus
C om o exem plo, os autores m encionam que Primeiros Princípios (BATENCOUR,
1669, prefácio).
é, entre 1575 e 1625, que se encontra na Polônia
a m aior densidade de escolas paroquiais urbanas Isso significa que ensinar a grupos de crian
e rurais, além de se instalar um a prim eira rede ças era difícil e que o m estre tinha de enfrentar
de colégios e de academ ias jesuítas. Também m uitos problem as de disciplina, de m otivação,
na Inglaterra, as associações em favor das esco de organização da classe etc. Assim, bem mais do
que o dom ínio do conteúdo, essa tarefa exigia A a
las atingem o apogeu e, na França, os colégios
a instalação de um verdadeiro sistema de regras a h a nu
dos jesuítas têm um a popularidade crescente e
e procedim entos, sistema que devia englobar a riâcava
acolhem mais de 4 0 .0 0 0 alunos (CHARTIER;
totalidade da vida da classe. im iq i
CO M PÈRE & JULIA, 1976: 294).
nas (Cl
É para resolver esses problem as de ensino
E n tre tan to - e esse é o essencial da nossa 67). D«
que os m estres-escolas em preenderam a busca de
tese - se há m uito mais crianças de idades d i conteú*
soluções. A solução consiste naquilo que cham a
ferentes que freqüentam a escola durante perí dom ím
m os aqui de pedagogia, isto é, o estabelecim ento
odos de tem po mais longos, isso não deixa de receber
de um m étodo e de procedim entos detalhados e
criar problem as pedagógicos porque, até então, um co«
precisos para dar aula. Esses processos implicam
era utilizada um a pedagogia no singular, isto é, e apren
a consideração da organização do tem po, do es
um a pedagogia em que o m estre recebia sucessi Os que
paço, dos conteúdos a serem vistos, da gestão
vam ente os alunos (que são poucos na sua classe) aqueles
disciplinar; em suma, trata-se de um m étodo que
e em que o único saber pedagógico verdadeira o u tro n
rege a totalidade da vida escolar, dos m icroacon-
m ente estabelecido consistia em conhecer a m a tecim entos aos aspectos mais gerais, da chegada
téria ensinada. O ra, a chegada de um m aior nú dos alunos à sua saída, do prim eiro ao últim o dia
m ero de crianças à escola, com frequência mais do ano letivo.
assídua, torna-se o revelador da insuficiência dos
O que é, p o rtan to , a pedagogia? E um dis
m étodos de ensino, com o m ostram algumas de
curso e um a prática de ordem que visam con
clarações de autores da época:
trapor-se a toda form a de desordem na classe. A
A Barca da nossa didática dirigirá a sua questão pedagógica se to rn a então: com o ensi
proa e a sua popa à procura e à desco Mx
nar a grupos de crianças (do povo), durante um rem p n
berta do método que permitirá aos do
centes ensinar menos e aos estudantes período contínuo, em determ inado local e fazen
meçam
aprender mais; às escolas ter menos ba do de m odo que elas aprendam um acervo m aior
percebe
rulho, menos problemas, menos traba de conhecim entos, mais depressa e em m elhores
já não I
lho inútil e mais lazeres, mais prazeres condições?
precisai
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 113
Nós, pessoalmente, temos a audácia de do, com eçou-se a com preender que o ensino é
prometer uma “Grande Didática”, que um ofício especializado, que exige a form aliza
ro dizer, um tratado completo da arte
ção e a aprendizagem de um código. Atribui-se a
de ensinar tudo a todos. E de ensinar de
Charles D ém ia um a das prim eiras tentativas de
tal modo que o resultado seja infalível.
E de ensinar depressa, isto é, sem sus form ação de m estres (MARC, apud AVANZINI,
citar nenhuma aversão nem dificuldade 1981: 250). Dém ia, que se inspirou abundante
entre os alunos e os mestres, mas, antes, m ente na obra de Jacques de Batencour (1669),
com um extremo prazer para ambos. E criou o prim eiro organism o francês de form a
de ensinar solidamente, e não superfi ção de m estres, em 1678. Os Irm ãos das Escolas
cialmente e com palavras, mas promo
Cristãs, com unidade exclusivam ente consagrada
vendo os alunos a uma verdadeira cul
tura científica, literária e artística, aos ao ensino, estabeleceram tam bém um a form ação
bons costumes, à piedade (COMENIUS, rigorosa de seus noviços. Os jesuítas, p o r sua
1952: 33). vez, se tornaram célebres pela excelente form a
A aplicação de um m étodo de ensino cam i ção dada aos m em bros de sua com unidade que
nha junto com a form ação dos m estres, pois ve- se destinavam ao ensino. Nesses dois casos, ins-
rificava-se um grande núm ero de queixas sobre taurou-se um a ordem verdadeira nas classes: seja
a má qualidade dos m estres das escolinhas urba entre os jesuítas ou entre os Irm ãos das Escolas
nas (CHARTIER; CO M PÈRE & JULIA, 1976: Cristãs, todas as classes se assem elhavam , inde
pendentem ente de estarem situadas na França,
67). De fato, ensinar era apenas um a questão de
na N ouvelle-France (Canadá) ou em outro lugar.
conteúdo, que se lim itava a exigir do m estre o
dom ínio da m atéria sem que ele fosse obrigado a
receber um a form ação. O docente aprendia com 4.4 A pedagogia como novo saber
um colega, ou, em geral, era deixado a si m esm o metódico sobre o ensino nas escolas
e aprendia na prática (PARIAS, 1981, t. II: 277).
Os que exerciam tal ofício eram m uitas vezes 4.4.1 Um método inspirado na natureza
aqueles que não tinham conseguido encontrar
Ensinar é mais do que sim plesm ente adm i
outro trabalho.
nistrar um conteúdo, dividi-lo em seqüências
[...] daí uma estranha mistura de ope
e transm iti-lo; é tam bém preocupar-se com o
rários, ex-soldados, domésticos sem em
educando. O ensino im plica um m ovim ento em
prego, inválidos de guerra. Ou então
são pessoas extremamente jovens que direção ao outro, o aluno, para com preendê-lo,
se improvisam mestres-escolas, para ter apoiá-lo, dar-lhe aquilo de que ele precisa. Isso
tempo de procurar um verdadeiro ofí supõe, pois, um m étodo que vai além das sim
cio (SNYDERS, 1971: 301). ples considerações a respeito da m atéria, e que
M as, a partir do m om ento em que ocor se interessa p o r aquele a quem o m estre se dirige.
rem problem as de ensino e certos docentes co E nquanto o ensino se aplicava a algum as crian
meçam a refletir sobre seu ofício, a codificá-lo, ças sim ultaneam ente e de m aneira episódica, não
percebeu-se que apenas o dom ínio do conteúdo havia problem as propriam ente ditos, pois o m es
já não bastava e que a aprendizagem do ofício tre estava suficientem ente p erto dos seus alunos
precisava de um a form ação específica. N o fun para ajustar-se, se necessário, e gerir os eventuais
114 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
problem as. M as a p artir do m om ento em que o E, um pouco mais adiante, ele indica o se CSZX3
aluno deixa de ser conjugado no singular e se guinte:
to m a um grupo perm anente, tudo m uda e é en [Seria necessário tentar] dar às escolas
tão que há razão de p ro cu rar um m étodo para uma organização tal que ela seja, em to
gerir esse coletivo. N este caso, o subtítulo da dos os pontos, tão precisa quanto a de
obra de C om enius (1952) é revelador. N a verda um relógio (p. 79).
- doan
de, “ensinar tu d o a to d o s” im plica não se lim itar M ais ou m enos na m esm a época, os católi
ao conteúdo, nem trabalhar segundo o m odo de cos, com J. de B atencour (1669), C. Dém ia (s.d.)
preceptorado, mas fazer com que “to d o s” te e os jesuítas seguem a m esm a orientação. Por
nham acesso ao conteúdo, independentem ente exem plo, vem os B atencour (1669: 8) afirm ar
de suas diferenças individuais. C om enius esboça que “tu d o o que é de Deus é segundo a o rd em ”.
já um program a com pleto de pedagogia que só Em suma, o m étodo na pedagogia se inspira
se conjuga no plural e exige um m étodo: a apli então na natureza e esta, obra divina, é perfei
cação de um a ordem cuidadosam ente elaborada, ta aos olhos dos pedagogos do século XVII: in
a fim de garantir que os alunos aprendam um teiram ente organizada, sem acaso. A pedagogia,
acervo m aior de conhecim entos, mais depressa e com o m étodo inspirado na natureza, ten ta assim
em m elhores condições. conjurar a desordem sob todas as suas form as. E
Para os pedagogos do século XVII, a natureza do m étodo vem o sucesso; e, de acordo com a essa
nos dá o m étodo. Vemos nisso, sem dúvida, a in pretensão de C om enius, um resultado infalível. exa
fluência das ideias do Renascim ento. M as é p re Esse é, pois, o grande ideal pedagógico que des. e h
ciso com preender que se trata de um a natureza se estabelece no século XV II e seu sucesso é en escoíinh.
bem “sobrenatural” . R ealm ente, para Ratichius tão indiscutível. Efetivam ente, Snyders (1971: alunos n
[Wolfgang Ratke (1571-1635)], é preciso respei 289) atribui precisam ente ao m éto d o o sucesso cola do *
tar a obra de Deus, a natureza, e agir segundo da pedagogia dos jesuítas que se elaborou no ndual r«
ela. O ra, esta é essencialm ente harm oniosa. Por século XVII: cada vez
conseguinte, a natureza fornece um m étodo. O caráter mais evidente dos colégios do sua próp
A natureza, inimiga da desordem, se es século XVII, e uma das causas do su
força para ordenar tudo para que tudo cesso obtido pelos jesuítas, foi o esfor
seja normalmente ensinado e aprendido ço para fazer com que uma juventude
de maneira rápida e precisa (RATICHIUS, turbulenta vivesse de maneira metódica.
apud RIOUX, 1963: 249).
D o m esm o m odo, para C om enius (1952:
4.4.2 As características do método
76), é preciso seguir a ordem da natureza:
Se procuramos saber em virtude de que Vim os que a p edagogia é essencialm ente O en
força o universo, composto de partes m éto d o , isto é, o rd em e c o n tro le m inuciosos que não
tão distintas, se mantém no seu ser, de to d o s os elem en to s da classe. E xam inem os menos »
constatamos que é unicamente pela or no funda
agora em d etalh e a natureza desses m ecanism os
dem, que é a justa disposição das coisas
de controle. E preciso com preender que alguns que as a
no espaço e no tempo [...]. E por isso
desses processos de controle podem ter apare jam agra
que alguém disse que a ordem é a alma
das coisas. cido em épocas anteriores, mas o que nos pare existe a p
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 115
0 se- ce especialm ente im portante é a sua aplicação, e particularm ente dos filhos do povo; as classes
ao m esm o tem po e de m odo sistem ático, e seu são pois mais num erosas. Segundo com entários
icolas efeito conjugado, que deu nascim ento ao que se de J. de B atencour (1669: 49), padre católico
m to- convencionou cham ar de pedagogia. que ensina em Paris, suas classes podiam agru
a de par cerca de cem alunos. H á, pois, mais crian
ças que freqüentam as escolas e, p o r isso, um a
O dom ínio do grupo: o ensino sim ultâneo
itóli- m aior possibilidade de agrupá-las de acordo
(s.d.) Em prim eiro lugar, o ensino sim ultâneo im com o seu nível. C om um a classe de cem alunos
Por plica que o m estre possa ver o conjunto do gru é difícil im aginar que o m estre receba cada um
rmar po de alunos de um só golpe de vista, a fim de deles sucessivam ente para interrogá-los. Pres
em ”, m antê-lo sob controle em m elhores condições. sionados pelas exigências de um contexto novo,
spira Situando-se diante da classe, diante dos alunos, os m estres não têm o utra escolha senão inovar.
;rfei- muitas vezes sobre um pequeno degrau cham a Relata-se que até m esm o os quadros de leitu
l: in- do tribuna, o m estre pode dar a sua aula, suas ra nas paredes da sala de aula estão em relação
ogia, instruções a todos os seus alunos, para a execu com o desenvolvim ento desse m étodo sim ultâ
issim ção do m esm o trabalho e, com um simples olhar, neo (CHARTIER; C O M PÈRE & JULIA, 1976:
as. E controlar o funcionam ento do grupo. M esm o 130). Além disso, para que o ensino sim ultâneo
>m a que essa form a de ensino já estivesse presente, se concretize, é preciso que cada criança dis
vel. por exem plo, na Idade M édia, nas universida ponha de um exem plar do m esm o livro, e não
1que des, ela não se encontrava verdadeiram ente nas apenas o m estre, com o ocorria anteriorm ente;
í en- escolinhas, talvez porque o reduzido núm ero de isso só foi possível com a invenção da tipografia,
971: alunos não a justificasse. Efetivamente, o mestre-es- p o r interm édio da qual o livro se to rn a cada vez
:esso cola do século XV ou XVI ensinava de m odo indi m enos um objeto de luxo, com o era no tem po
i no vidual recebendo em sua m esa os alunos, um de de Carlos M agno, época em que o consideravam
cada vez, enquanto os restantes se ocupavam por com o um vaso precioso ornado de diam antes. O
ys do sua p rópria conta. livro se to rn a um objeto de consum o usual. Um
d su- m aior acesso à escrita m odificou assim a m anei
O mestre interroga uma das crianças sob
sfor- a ameaça da palmatória; durante esse ra de ensinar. C om o ensino sim ultâneo, tem os
imde tempo, os outros, de todos os sexos e de agora um a alternativa séria para p ô r fim à escola
dica. todas as idades, dispersos pelos quatro desorganizada e ruidosa, ilustrada pelo quadro
cantos, brincam ou escrevem, leem ou de Van O stade.
brigam uns com os outros (CHARTIER;
COMPÈRE & JULIA, 1976: 111).
A gestão do tem po
ente O ensino sim ultâneo supõe vários elem entos
osos que não estavam reunidos anteriorm ente, pelo N a escola, o m estre deve gerir o em prego
m os m enos no que se refere aos anos iniciais do ensi do tem po. O horário é cuidadosam ente p rep a
m os no fundam ental. Em prim eiro lugar, ele im plica rado de m odo que, desde a chegada dos alunos
guns que as crianças com as mesmas capacidades se até a sua saída, não há nenhum tem po m orto
>are- jam agrupadas. Isso é agora possível, depois que no dia. As atividades se sucedem rapidam ente:
>are- existe a preocupação com a educação da infância en trad a, prece, refeição, aulas, m issa, catecis
116 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
Enfim, fazem-se também estimativas para de ser lida) etc. Por exem plo, no que diz respeito à
term inar a relação ideal espaço/número de alunos, escrita:
as ilustrações a afixar, a dim ensão dos bancos [Depois de aprender a segurar correta
etc. (p. 119). Por exem plo, B atencour (p. 138) mente a pena], é preciso posicionar o
faz as seguintes recom endações: corpo de quem escreve de tal maneira
que não esteja nem excessivamente in
As mesas devem ser postas no lugar mais
clinado sobre o papel, nem ereto de
claro da escola, ficando cada extremida
mais, mas em um agradável meio-ter-
de delas perto da janela, de modo que
mo: para isso, ele observará que o braço
as crianças tenham o lado esquerdo vol
esquerdo esteja pousado confortavel
tado para essa janela. Cada aluno deve
mente sobre a mesa, e que o peso do
dispor de quatorze polegadas [cerca de
corpo esteja inteiramente apoiado nele,
35cm] para o seu lugar, se tiver talhe mé
a fim de aliviar o braço direito, que assim
dio; se é pequeno, doze [cerca de 30cm],
ficará mais livre para escrever sem in
se é grande, dezesseis [cerca de 40cm].
cômodo. E preciso manter o corpo reto
Também é necessário que nem todas as
diante do papel, não se inclinando nem
mesas tenham altura igual, mas que haja
para a direita nem para a esquerda, mas
parte delas mais altas e parte mais bai
apenas abaixando ligeiramente a cabe
xas, a fim de que as crianças se assentem
ça e os ombros para a escrita. O bra
comodamente, para que escrevam bem.
ço direito deve estar sobre a mesa até
Com todas essas recom endações quanto à o meio do intervalo que existe desde a
organização do lugar, vem os que o local da ponta dos dedos até o cotovelo. Que o
classe se to rn a um espaço especializado, cujo ar resto do corpo, notadamente o estôma
go, não esteja apoiado sobre a mesa, a
ranjo serve a fins precisos. Estam os bem longe não ser ligeiramente, pois, além de ser
da confusão ilustrada p o r Van O stade. desgraciosa, essa postura poderia cau
sar grandes dores no estômago, e é pre
ciso tomar cuidado quanto a isso [...]
A direção da criança (BATENCOUR, 1669: 199-200).
sairão de suas classes e da escola dois a fica que se deve com eçar a ler, p arar de ler etc. O
dois, cada um tendo o seu companhei sino, no exterior e nos corredores, assim com o
ro, que lhe será dado pelo mestre. Os a cam painha, na classe, têm essa m esm a função.
alunos sairão de seus lugares em ordem,
Esses instrum entos garantem a ordem m antendo
deste modo: o mestre faz sinal ao pri
meiro de um banco para que se levante, o silêncio. As atividades se sucedem sem perda
esse aluno sairá do seu lugar, sem cha de tem po. O m estre pode tam bém fazer sinais
péu, de braços cruzados e, ao mesmo com o corpo:
tempo, aquele que lhe foi dado como
Para mandar recitar as orações, o mes
companheiro [...]. Os alunos, estando
tre juntará as mãos. Para fazer repetir as
fora da classe, deixarão de rezar em voz
respostas da Santa Missa, ele baterá no
alta, e caminharão em silêncio e em or
peito. Para mandar repetir o catecismo,
dem, uns atrás dos outros (LA SALLE,
fará o sinal da Santa Cruz (LA SALLE,
1951: 111).
1951: 126).
Até a volta a casa se faz sob a responsabi
lidade dos “deciários”, oficiais da classe que se
A conduta
ocupam da conduta dos alunos nas ruas.
N o interio r da classe, os deslocam entos dos Além da postura e dos deslocam entos da
alunos se efetuam discretam ente e em silêncio. criança, as escolas do século XVII exercem um
Até se tom a o cuidado de precisar com o os alu verdadeiro sistema de vigilância. A base desse
nos devem proceder para fazer as suas “necessi sistema consiste em nunca deixar o aluno so
dades” : ao sair, o aluno pega um a varinha p en zinho e fazer com que ele seja sem pre vigiado,
durada na parede e a devolve ao seu lugar quan m esm o sim bolicam ente. Esse sistema se com põe,
do voltar (DÉMIA, s.d.). Isso evita que o m estre em prim eiro lugar, de dispositivos de vigilância
fale inutilm ente e que a classe seja perturbada. que podem ser utilizados pelo m estre. B atencour
N enhum aluno pode ir ao banheiro se a varinha (1669) fala de prever, na arquitetura escolar,
não estiver pendurada em seu lugar. Igualm ente, um a pequena janela, cham ada “gelosia”, de onde
para dim inuir o vaivém na classe, recorre-se aos seria possível vigiar os alunos do exterior sem ser
oficiais distribuidores e coletores de papel, que visto. Pensamos tam bém na cátedra elevada, cha
se encarregam , com o seu nom e indica, da execu m ada “trib u n a”, que perm ite ver todos os alunos
ção dessas tarefas (LA SALLE, 1951: 223). com um só olhar. Depois, a vigilância tam bém
pode ser feita pelos oficiais da classe, isto é, po r
Além disso, instaura-se um a série de sinais
alunos especialm ente designados para tom ar
que perm item a execução de tarefas, m antendo
nota do nom e dos contraventores e denunciá-los
o silêncio. Esses sinais perm item um a seqüência
ao m estre. Eles constituem os alcaguetes oficiais,
ordenada entre as atividades ou os deslocam en
aqueles que de certa form a substituem o m estre
tos. Um estalo, dois estalos com o “sinal”4 signi
na ausência deste.
4. “O sinal tradicional se compõe de duas hastes de madeira M ais ainda, o sistema de vigilância se refina
dura: uma é grossa, mais volumosa na extremidade, e a outra a tal p o n to que se recorre ao próp rio Deus. “O
é fina e está presa a essa extremidade por uma cordinha. Abai
olho de Deus te vê” ; “Deus te vigia”. É aqui que
xando e depois soltando a haste fina, ela golpeia a extremidade
áa grossa, emitindo um pequeno estalo” (LA SALLE, 1951: 125). vemos aparecer o que cham am os de vigilância
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 119
simbólica perm anente, pelo jogo das imagens Falou-se m uito da crueldade na escola durante
sacras, ilustrando, entre outros tem as, Jesus cru a Idade M édia. Aqui, recom enda-se ao m estre
cificado, o Julgam ento Final e o inferno. B aten que não se deixe levar pelas suas em oções. Se ele
cour (1669: 52) diz que a im agem do inferno pune, deve fazê-lo sem cólera nem paixão, com
serve para dar m edo às crianças quando com e distanciam ento, com um a seriedade de pai, diz
tem um a falta, e a do paraíso as estim ula à virtu La Salle (1951). O castigo corporal não é abolido,
de. A vigilância vai ainda mais longe nos colégios mas agora é a últim a m edida de um a série gradual
dos jesuítas, onde a confissão perm ite conhecer de castigos. N o século XVII, prefere-se substituir
os segredos dos alunos. Em suma, inspeciona-se os castigos corporais por penitências que visam
não só o exterior, mas tam bém verifica-se um a hum ilhar o aluno: chapéu de asno, banco da de
introm issão no interior; a alm a é perscrutada, sonra, latomias (prisão na Antiguidade), banco
a intim idade mais profunda é devassada. Esse é dos ignorantes ou ainda cópias de textos.
om form idável sistema de intim idação cuja eficá [O lugar do asno] onde se porá um pe
cia foi largam ente reconhecida. queno ancinho com feno, um velho pe
daço de rédea de cavalo, onde se porão
Para m elhor dirigir a conduta dos alunos, além
os preguiçosos; e até deve haver pendu
do sistema de vigilância, m odificou-se a estrutura rado acima um velho boné de papelão
dos castigos e das recom pensas. A ideia básica é com grandes orelhas de papelão que
nitroduzir a racionalidade nessas práticas: serão pregadas nele, que se deve enfiar
O mestre dispensará com prudência e na cabeça dos preguiçosos, uma peque
precaução o elogio e a repreensão. Não na placa quadrada de madeira, onde se
prodigará as recompensas ao acaso e pintará a figura de um asno e um pe
sem medida. [...] E principalmente ele queno prego para suspendê-lo. Haverá
se absterá de mostrar ódio ou aversão algum velho farrapo de lã para servir de
àquele a quem dirige uma repreensão ou arreio nas costas do asno e aquele que
uma acusação [...] (JOUVENCY, 1892: for posto nesse lugar será revestido com
89). essas belas vestimentas de asno e o pas
searão pela escola, com uma vassoura
Passava-se da relação crueldade/afeição para na mão e preso pelo braço ao ancinho
2 relação hum ilhação/recom pensa. N essa pers no lugar do asno, durante o tempo que
pectiva, Jouvency (1892: 87) declara: o mestre achar conveniente e o fará
vaiar por todos os alunos (CHARTIER;
Observou-se, em nossas regras, com mui COMPÈRE & JULIA, 1976: 119, citan
ta sabedoria e verdade, que se consegue do BATENCOUR).
muito mais com as crianças pelo medo
da desonra do que pelo medo dos casti Do m esm o m odo, as recom pensas não são as
gos [...]. E por isso que um mestre sen mesmas. Ao invés de se dedicar a m anifestações
sato deve se limitar ao uso desses dois de afeição, a gestos amistosos, o m estre não deve
meios, o elogio e a repreensão. deixar-se dom inar pela paixão do m om ento, mas
N o que se refere às punições, os culpados recom pensar com racionalidade. Ele m antém
« o punidos, mas os castigos m udam de form a. certa reserva no seu entusiasm o para sublinhar
Ès penas são graduadas segundo a gravidade o bom com portam ento dos alunos. As recom
i o delito, e tom am um c a rá te r de hum ilhação. pensas são graduadas: po r exem plo, há um a or-
118 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
sairão de suas classes e da escola dois a fica que se deve com eçar a ler, p arar de ler etc. O sm bóln
dois, cada um tendo o seu companhei sino, no exterior e nos corredores, assim com o sacras, i
ro, que lhe será dado pelo mestre. Os aâcadc
a cam painha, na classe, têm essa m esm a função.
alunos sairão de seus lugares em ordem,
Esses instrum entos garantem a ordem m antendo cour (1
deste modo: o mestre faz sinal ao pri
meiro de um banco para que se levante, o silêncio. As atividades se sucedem sem perda serve p
esse aluno sairá do seu lugar, sem cha de tem po. O m estre pode tam bém fazer sinais tem um
péu, de braços cruzados e, ao mesmo com o corpo: de. A vj
tempo, aquele que lhe foi dado como dos jea
Para mandar recitar as orações, o mes
companheiro [...]. Os alunos, estando
tre juntará as mãos. Para fazer repetir as os segn
fora da classe, deixarão de rezar em voz
respostas da Santa Missa, ele baterá no não só
alta, e caminharão em silêncio e em or
peito. Para mandar repetir o catecismo, intromi
dem, uns atrás dos outros (LA SALLE,
fará o sinal da Santa Cruz (LA SALLE,
1951: 111). a innm
1951: 126).
Até a volta a casa se faz sob a responsabi um fon
lidade dos “deciários”, oficiais da classe que se cia foi I
A conduta
ocupam da conduta dos alunos nas ruas. Par
N o interior da classe, os deslocam entos dos Além da postura e dos deslocam entos da do sisa
alunos se efetuam discretam ente e em silêncio. criança, as escolas do século XVII exercem um dos cas
Até se tom a o cuidado de precisar com o os alu verdadeiro sistema de vigilância. A base desse introdi
nos devem proceder para fazer as suas “necessi sistema consiste em nunca deixar o aluno so
dades” : ao sair, o aluno pega um a varinha p en zinho e fazer com que ele seja sem pre vigiado,
durada na parede e a devolve ao seu lugar quan m esm o sim bolicam ente. Esse sistem a se com põe,
do voltar (DÉMIA, s.d.). Isso evita que o m estre em prim eiro lugar, de dispositivos de vigilância
fale inutilm ente e que a classe seja perturbada. que podem ser utilizados pelo m estre. Batencour
N enhum aluno pode ir ao banheiro se a varinha (1669) fala de prever, na arquitetura escolar,
não estiver pendurada em seu lugar. Igualm ente, um a pequena janela, cham ada “gelosia”, de onde
para dim inuir o vaivém na classe, recorre-se aos seria possível vigiar os alunos do exterior sem ser Pa-
oficiais distribuidores e coletores de papel, que visto. Pensamos tam bém na cátedra elevada, cha a rela»
se encarregam , com o seu nom e indica, da execu m ada “trib u n a”, que perm ite ver todos os alunos pecnv;
ção dessas tarefas (LA SALLE, 1951: 223). com um só olhar. D epois, a vigilância tam bém
pode ser feita pelos oficiais da classe, isto é, po r
Além disso, instaura-se um a série de sinais
alunos especialm ente designados para tom ar
que perm item a execução de tarefas, m antendo
nota do nom e dos contraventores e denunciá-los
o silêncio. Esses sinais perm item um a seqüência
ao m estre. Eles constituem os alcaguetes oficiais,
ordenada entre as atividades ou os deslocam en
aqueles que de certa form a substituem o m estre
tos. Um estalo, dois estalos com o “sinal”4 signi
na ausência deste.
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4. 'O sinal tradicional se compõe de duas hastes de madeira M ais ainda, o sistema de vigilância se refina
sáo pi
dura: uma é grossa, mais volumosa na extremidade, e a outra a tal ponto que se recorre ao próprio Deus. “O
é fina e está presa a essa extremidade por uma cordinha. Abai
olho de Deus te vê” ; “Deus te vigia”. É aqui que
As pe
xando e depois soltando a haste fina, ela golpeia a extremidade do de
da grossa, emitindo um pequeno estalo” (LA SALLE, 1951: 125). vemos aparecer o que cham am os de vigilância
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 119
simbólica perm anente, pelo jogo das imagens Falou-se m uito da crueldade na escola durante
sacras, ilustrando, entre outros tem as, Jesus cru a Idade M édia. Aqui, recom enda-se ao m estre
cificado, o Julgam ento Final e o inferno. B aten que não se deixe levar pelas suas emoções. Se ele
cour (1669: 52) diz que a imagem do inferno pune, deve fazê-lo sem cólera nem paixão, com
serve para dar m edo às crianças quando com e distanciam ento, com um a seriedade de pai, diz
tem um a falta, e a do paraíso as estim ula à virtu La Salle (1951). O castigo corporal não é abolido,
de. A vigilância vai ainda mais longe nos colégios mas agora é a últim a m edida de um a série gradual
dos jesuítas, onde a confissão perm ite conhecer de castigos. N o século XVII, prefere-se substituir
os segredos dos alunos. Em suma, inspeciona-se os castigos corporais por penitências que visam
não só o exterior, mas tam bém verifica-se um a hum ilhar o aluno: chapéu de asno, banco da de
introm issão no interior; a alm a é perscrutada, sonra, latomias (prisão na Antiguidade), banco
a intim idade mais p rofunda é devassada. Esse é dos ignorantes ou ainda cópias de textos.
um form idável sistema de intim idação cuja eficá [O lugar do asno] onde se porá um pe
cia foi largam ente reconhecida. queno ancinho com feno, um velho pe
daço de rédea de cavalo, onde se porão
Para m elhor dirigir a conduta dos alunos, além
os preguiçosos; e até deve haver pendu
do sistema de vigilância, m odificou-se a estrutura rado acima um velho boné de papelão
dos castigos e das recom pensas. A ideia básica é com grandes orelhas de papelão que
introduzir a racionalidade nessas práticas: serão pregadas nele, que se deve enfiar
na cabeça dos preguiçosos, uma peque
O mestre dispensará com prudência e
na placa quadrada de madeira, onde se
precaução o elogio e a repreensão. Não
pintará a figura de um asno e um pe
prodigará as recompensas ao acaso e
queno prego para suspendê-lo. Haverá
sem medida. [...] E principalmente ele
algum velho farrapo de lã para servir de
se absterá de mostrar ódio ou aversão
arreio nas costas do asno e aquele que
àquele a quem dirige uma repreensão ou
for posto nesse lugar será revestido com
uma acusação [...] (JOUVENCY, 1892:
essas belas vestimentas de asno e o pas
89).
searão pela escola, com uma vassoura
Passava-se da relação crueldade/afeição para na mão e preso pelo braço ao ancinho
a relação hum ilhação/recom pensa. Nessa pers no lugar do asno, durante o tempo que
pectiva, Jouvency (1892: 87) declara: o mestre achar conveniente e o fará
vaiar por todos os alunos (CHARTIER;
Observou-se, em nossas regras, com mui COMPÈRE & JULIA, 1976: 119, citan
ta sabedoria e verdade, que se consegue do BATENCOUR).
muito mais com as crianças pelo medo
da desonra do que pelo medo dos casti Do m esm o m odo, as recom pensas não são as
gos [...]. E por isso que um mestre sen mesmas. Ao invés de se dedicar a manifestações
sato deve se limitar ao uso desses dois de afeição, a gestos amistosos, o m estre não deve
meios, o elogio e a repreensão. deixar-se dom inar pela paixão do m om ento, mas
N o que se refere às punições, os culpados recom pensar com racionalidade. Ele m antém
são punidos, mas os castigos m udam de form a. certa reserva no seu entusiasm o para sublinhar
As penas são graduadas segundo a gravidade o bom com portam ento dos alunos. As recom
i o delito, e tom am um c aráter de hum ilhação. pensas são graduadas: por exem plo, há um a or
120 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
dem de “dignidade” nos lugares dos alunos que Além de ter estabelecido um sistema de vi
serão atribuídos a cada quinze dias àqueles que gilância e um a nova estruturação das penas e
os m erecem (BATENCOUR, 1669: 234). O m es das recom pensas, os pedagogos do século XVII
tre pode tam bém atribuir pontos de “diligência”, im plem entaram um verdadeiro sistema de em u
cuja contabilidade conserva num grande livro lação, cujo prim eiro passo consiste em confiar
(p. 35). Pode tam bém distribuir livros com o re responsabilidades aos oficiais. B atencour (1669:
com pensa (recom pensa extraordinária), figuras 69) indica o sentido dessa função da seguinte
piedosas ou figurinhas de gesso e finalm ente, na m aneira:
m aioria das vezes, sentenças impressas em gran Para conduzir bem um Reino, um exér
des caracteres (LA SALLE, 1951: 145). Em suma, cito, uma Cidade, uma família, é preciso
que haja ordem. E aquele que é o Chefe
as práticas am plam ente difundidas de recom pen
deve se servir de diversos Oficiais que
sa e de punição por gestos am istosos e castigos mantêm com ele uma relação de subor
corporais são substituídas por um sistema racio dinação. É o que se deve praticar exa
nal que controla os exageros afetivos pela aplica tamente em uma escola, onde o mestre
ção de gratificações e de sanções graduais. que é o chefe deve se servir de seus alu
nos, que o ajudarão não só a conduzir
Os pedagogos do século XV II in stau ram seus companheiros, mas ainda a levá-los
tam bém um a série de registros (ou catálogos) eles próprios até a perfeição da Virtude
“bem estabelecidos” para “m anter a ordem nas e da ciência, por emulação [...] Como o
escolas” e que se acrescentam ao sistema de vigi desígnio do Mestre em relação às crian
ças consiste em conservar a ordem na
lância. João Batista de La Salle (1951: 132) m en
escola, ele cria oficiais: o que servirá
ciona seis deles: em prim eiro lugar, o catálogo para levá-los por emulação, entre uns e
de recepção, no qual são escritos os nom es de outros, a se comportarem bem, já que
todos os alunos adm itidos na escola, do início esses ofícios só serão dados àqueles que
os tiverem merecido por seu trabalho
ao fim do ano; em segundo lugar, o catálogo das
ou por sua Virtude; além disso, estes
m udanças de lição, que perm ite an o tar a lição hão de ser substituídos, de tempos em
onde está cada aluno na escrita, na aritm ética tempos, a fim de dar coragem a cada um
etc.; em terceiro lugar, o catálogo das ordens de para aspirar a isso, por sua piedade e sua
lição, que perm ite m anter em dia todos os n o diligência.
mes dos alunos por ordem de lição; em quarto A lista dos oficiais é longa; inclui in te n d e n
lugar, o catálogo das boas e más qualidades dos tes, explicadores, vigilantes, leitores, recitado-
alunos, que perm ite traçar o retrato pessoal de res de preces, oficiais de escrita, encarregados
cada criança, sua personalidade, seu co m p o rta da tin ta e do pó secante, v arredores, carrega
m ento; em quinto lugar, o catálogo do banco, dores de água, p o rteiro s, tesoureiros, visitan
que perm ite registrar os atrasos e ausências dos tes, p o rta-ro sário s, p orta-aspersórios, sineiros,
alunos que se sentam no m esm o banco; em sex inspetores, observadores, d istribuidores e cole
to lugar, o catálogo dos visitantes dos ausentes, tores de papel. O sistem a de em ulação se exer
preenchido pelos “oficiais visitantes” que vão até ce tam bém pela com petição entre os alunos.
a casa dos alunos, indagando a causa da ausência A com petição pode fazer-se no in te rio r de um
dos alunos. grupo designado p ara o m esm o banco, onde o
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia 121
prim eiro lugar é reservado para o m elhor aluno A form ação cristã
e assim p o r diante até o últim o. M as ela foi le
Desde a Idade M édia, a escola tem um a fun
vada até a sua m ais alta expressão pelos jesuítas,
ção de conversão religiosa. Trata-se de influen
que in tro d u ziram sistem aticam ente a co m p eti
ciar profundam ente os alunos, de elevar a sua
ção entre os alunos em suas classes. São esclare
alm a, de instruí-los corretam ente sobre as verda
cedoras as declarações de Jouvency (1892: 87),
des da religião. A escola do século XVII não m o
que defende a necessidade de estabelecer lutas
difica essa função original; ela continua visando
entre os alunos:
m odelar um bom cristão, crente e fiel praticante.
Que nenhum deles [os alunos] por exem
É a mesm a ideia, tanto para os católicos quanto
plo, leia sozinho o seu dever; ele deve ter
para os protestantes. Os m estres-escolas, com o
um rival que esteja pronto a corrigi-lo,
pressioná-lo, combatê-lo, alegrar-se com vimos, são um dos instrum entos fundam entais
o seu insucesso. Do mesmo modo, não da Reform a e da C ontrarreform a. Os tratados
se pode proveitosamente interrogar al de pedagogia - tendo sido escritos, na m aioria,
guém isoladamente; é necessário que por religiosos - reservam um grande espaço ao
haja um antagonista que o levante se ele ensino da religião. Em geral, a ênfase se faz sobre
tropeça nas respostas, que o substitua três vertentes da form ação cristã: o catecism o, a
se ele hesita, e fale em seu lugar se ele
missa diária e as preces.
permanecer em silêncio. Faça-se com
que uma classe superior enfrente uma
classe inferior; escolham-se combaten O dom ínio dos rudim entos
tes nos dois campos; estabeleçam-se jui
zes; convidem-se espectadores, seja da É in te re ssa n te ver com o a p arecem novas
casa, seja do exterior, e quanto a estes ideias sobre o ensino da leitura. M uitas vezes, os
últimos, escolham-se, se possível, pes alunos com eçam aprendendo a ler em latim e, em
soas ilustres.
seguida, em francês, o que é recom endado, aliás,
por Batencour (1669). N os colégios dos jesuítas,
A organização dos saberes tudo se faz igualm ente em latim. É preciso dizer
que o latim é a língua da Igreja e que nele não há
Essa form a de organização é, evidentem ente, nenhum a sílaba m uda, o que facilita a sua apren
a mais antiga e a mais difundida. Já que a escola dizagem. Em contrapartida, no século XVII, co-
sem pre foi organizada em to rn o dos saberes a meça-se a favorecer cada vez mais a aprendiza
transm itir, a organização desses saberes é objeto gem da leitura em língua m aterna. João Batista
de especificação e form alização há vários sécu de La Salle (1951) declara que é mais fácil e mais
los. Em prim eiro lugar, o territó rio dos saberes útil aprender prim eiro o francês, que não tem o
a transm itir foi destrinçado. Para as escolinhas, defeito de ser um a língua m orta.
três ordens de saberes foram assim delim itadas: Nesses séculos em que não se pode contar
em prim eiro lugar, a form ação cristã; em segun nem com o telefone nem com o rádio, nem com
do lugar, o dom ínio dos rudim entos (ler, escre a televisão, nem com algum processo de grava
ver, contar); e, em terceiro lugar, o aperfeiçoa ção, a escrita assume um a im portância capital.
m ento dos costum es, a civilidade. E preciso, pois, ser capaz de escrever e de es
122 Parte A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
crever bem, no sentido de dom ínio da caligra É preciso dizer que, para os cristãos, o visível
fia. O s tratados de pedagogia contêm mil e um a é a imagem do invisível, o corpo reflete a alma.
precisões sobre a postura geral do corpo, sobre Assim, encontra-se um a série de conselhos e pre
com o segurar a pena, sobre as técnicas de aparar ceitos quanto à aparência, às roupas, ao riso, à
as penas de ganso etc. Simplificaram-se m uito, m aneira de com er, de lim par o nariz etc. Por
apesar de tudo, as técnicas de escrita dos m estres exem plo, cruzar os braços é sinal de preguiça,
escritores que as tornavam não só em um ofício, encarar é sinal de im pertinência etc. São, pois,
mas tam bém em um poder (para escrever a letra dispositivos de c o n tro le da afetividade. Trata-
M era preciso dom inar suas doze com ponentes). se de conter os sentim entos excessivos e evitar
C ontar é a últim a aprendizagem escolar e ela qualquer exagero.
se faz sem pre em ligação com a vida cotidiana. N ão só o territó rio do saber a transm itir
Ensina-se a co n ta r com fichas ou com ou tros foi dividido em três grandes regiões, mas cada
objetos fam iliares. E n tre ta n to , a m aio ria das região foi dividida em m últiplas partes, repar
crian ças d eix am a escola an tes de a d q u irir tal tidas sobre um a escala que será aprendida, co
aprendizagem . m eçando pela parte mais simples até chegar à
mais com plexa. Essa divisão do saber cam inha
junto com a divisão do tem po. Distinguem-se,
O aperfeiçoam ento dos costum es: a civilidade
p o r exem plo, várias etapas na aprendizagem da
A partir do sucesso do livro de Erasm o sobre leitura. B atencour (1669) enum era seis, Démia
a civilidade, esse tem a teve um a voga inquestio (s.d.) sete e La Salle (1951) nove. N o interior
nável. Desde o século XVI, a civilidade se to r dessas grandes divisões há to d a um a série de mi-
nou um tem a escolar (CHARTIER; CO M PÈRE croetapas a atravessar, de m odo que a trajetó
& JULIA, 1976: 137). João Batista de La Salle ria do saber escolar a dom inar se desenha com o
(1951) escreveu um a versão cristã. Para ele, o es um a longa escadaria.
tudo da civilidade perm ite, prim eiro, com pletar João Batista de La Salle (1951) esboça, po r
a aprendizagem da leitura, mas tam bém e p rin exem plo, um a ideia dessa ordem geral para a
cipalm ente “ensinar as regras de um a m oral cris aprendizagem da leitura:
tã ” (CHARTIER; CO M PÈRE & JULIA, 1976:
Mapa do alfabeto: 2 meses. Mapa das
137). Ao passo que o u tro ra as regras de civilida sílabas: 1 mês. Silabário: 5 meses, dos
de eram reservadas à elite, ao m undo da corte, quais iniciantes, 2 meses; médios, 1
agora, com a R eform a Católica, a aprendizagem mês; avançados, 1 mês. Soletração no
da civilidade se to rn a acessível ao m aior núm ero primeiro livro: 3 meses (1 mês em cada
de pessoas. ordem). Soletração e leitura no segundo
livro: 3 meses (1 mês em cada ordem).
Ao lado do catecismo e da pregação, Apenas leitura no segundo livro: 3 me
sua aprendizagem é um dos meios para ses (1 mês em cada ordem). Leitura no
eliminar os maus costumes, civilizar terceiro livro: 6 meses (2 meses em cada
uma sociedade ainda violenta e contro ordem). Leitura em latim no Saltério:
lar os exageros perigosos da afetivida- 6 meses (2 meses em cada ordem).
de (CHARTIER; COMPÈRE & JULIA, Leitura na Civilidade: I a ordem, 2 me
1976: 138). ses; 2a ordem, enquanto continuarem
4 O século XVII e o nascimento da pedagogia
a freqüentar a escola (LA SALLE, apud não a prim eira tentativa de sistem atização da p e
CHARTIER; COMPÈRE & JULIA, dagogia e da didática” (COM ENIUS, 1952: 18).
1976: 118). Os católicos tam bém se m anifestam . Jacques de
Batencour (1669) redige A escola paroquial ou
4.5 O século XVII marca o a maneira de ensinar bem nas escolinbas-, João
aparecimento de uma nova ordem Batista de La Salle (1951) publica a C onduta das
escolar escolas cristãs; e os jesuítas m arcam a época com
a sua Ratio studiorum (Program a e regulam ento
Com o acabam os de ver, os m estres do sé dos estudos da C om panhia de Jesus).
culo XVII foram então obrigados a solucionar
Fato novo, esses tratados de pedagogia não
novos problem as, que até então não ocorriam
são obra de um a elite intelectual sem ligação
com tanta acuidade. Eles passaram para o papel
com o ensino. Ao contrário, para escrever tra
suas ideias que assum iram a form a de tratados
tados de pedagogia tão precisos sobre a m aneira
de pedagogia. A originalidade desses textos, sua
de ensinar, era preciso ter-se em penhado pesso
im portância e sua repercussão nos fazem dizer
alm ente na prática do ofício durante vários anos;
que a pedagogia é obra do século XVII. N a ver
são discursos pedagógicos construídos no terre
dade, se existia o cuidado de dar tantas diretivas
no da classe, por docentes experientes e para d o
aos m estres, foi porque o ensino se tinha to rn a
centes. Esses pedagogos explicitam o seu saber
do um a preocupação, e exigia um saber m etó
pedagógico, seu saber na ação, fruto de m uitos
dico específico. A im portância desse século no
anos de experiência de ensino. Todos os tratados
plano pedagógico é raram ente enfatizada, pelo
m encionam esse elem ento capital. E, po r exem
fato de parecer bem m enos brilhante com parado
plo, o caso de J. de Batencour (1669, prefácio),
ao Renascim ento (Rabelais, Erasm o, M ontaigne)
padre e professor de carreira:
ou ao Século das Luzes (Rousseau, D iderot, Vol-
Eu estava convencido de que não seria
taire). Entretanto, é realmente no século XVII que
inútil dar parte ao Público daquilo que o
se encontra o m aior núm ero de indicações precisas uso e a experiência me ensinaram nesse
para os docentes a respeito da organização do ensi Exercício.
no na classe; e que se elaboram os primeiros enun
E, mais ainda, as palavras de La Salle, em
ciados de um saber pedagógico, saber que se situa
1706, no prefácio da sua Conduta das escolas
em um nível diferente das doutrinas, das concep
cristãs:
ções teóricas, tal como as encontram os expostas,
Essa Conduta só foi redigida em forma
por exemplo, nas obras de Erasmo e de Rabelais.
de regulamento depois de um grande
Os pedagogos do século XVII procuraram , número de conferências com os Irmãos
antes, organizar a prática escolar. Assim, os p ro deste Instituto, os mais antigos e mais
testantes, sob o estím ulo de Ratichius (RIOUX, capazes de fazer bem a escola, e depois
de uma experiência de vários anos...
1963), produzem um a Introdução geral à didá
tica ou arte de ensinar. M ais tarde, C om enius É tam bém o caso dos jesuítas que, depois de
(1952) escreve A grande didática - Tratado da trin ta anos de prática das instruções de Inácio
arte universal de ensinar tudo a todos; segundo o de Loyola, coordenam e fixam os resultados da
seu autor, essa obra será “um a das prim eiras se sua experiência em um docum ento que se to rna
124 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
célebre, mais conhecido com o nom e de Ratio fidelidade segundo as diretivas dos fundadores
Studiorum (DURKHEIM , 1969: 275). com o lem bra, po r exem plo, La Salle (1951, p re
Fundam entalm ente, com o vimos, esse novo fácio) na C onduta das escolas cristãs:
saber pedagógico posto em prática tem com o Os superiores das casas deste Instituto
objetivo elim inar o acaso e a desordem , fonte de e os inspetores das escolas se aplica
rão a aprendê-lo bem (isto é, o livro da
pecado, regulando cada aspecto do ensino. Tudo
Conduta das Escolas) e a dominar per
é previsto, calculado, cronom etrado. Essa peda feitamente tudo o que ali está encerra
gogia, tan to do lado católico quanto do p ro tes do, e procederão de modo que os mes
tante, quer subm eter os corpos e as almas aos tres não falhem e observem exatamente
bons costum es, fazendo de cada criança um indi todas as práticas que ali são prescritas,
víduo civilizado, instruído e cristão. até as menos importantes, a fim de pro
porcionar, por esse meio, uma grande
É p o r isso que os tratados de pedagogia do ordem nas escolas, uma conduta bem
século XVII nos parecem fundadores de um a regulamentada e uniforme nos Irmãos
nova ordem . Eles são assim o sinal m anifesto de que serão encarregados de aplicá-las, e
um a nova preocupação e inauguram um m étodo um fruto considerável para as crianças
para dar aula. Esses tratados são concebidos para que ali serão instruídas.
definir as ações do m estre no seu ensino a grupos C onsequentem ente, nada se parece mais com
de crianças do povo. N ão se lim itam a conselhos um colégio dos jesuítas do que um outro colégio
para uso de um preceptor, num a perspectiva in dos jesuítas, ou um a escola dos Irm ãos das Esco
dividual; ultrapassam a lógica do conteúdo com o las Cristãs do que um a o u tra escola dos Irm ãos
sem pre ocorrera, e vão mais longe do que um a das E scolas C ristãs. A p e d ag o g ia assim in sti
crítica teórica, com o fizeram os hum anistas do tu íd a se constitui pouco a pouco com o tradição.
Renascim ento. Esses tratados de pedagogia sis As habilidades dos m estres são depois transm iti
tem atizam procedim entos de ensino e definem das a seus sucessores que, po r sua vez, as legam
com pletam ente a relação com o o u tro (o grupo), àqueles que os sucedem . Assim se cristaliza p ro
a fim de garantir em m elhores condições a sua gressivam ente um código uniform e dos saber-fa
instrução e a sua educação. zer, um a tradição pedagógica com posta de um
O m étodo para ensinar a pedagogia, instau conjunto de respostas, prescrições, ritos quase
rado no século XVII, se difundiu com bastante sagrados a reproduzir.
Conclusão
ores Posteriorm ente, estes serão transm itidos aos novatos que,
pre- p o r seu turno, pretenderem exercer o ofício de professor.
Desde então, assiste-se tan to ao nascim ento da pedago
tuto gia quanto da constituição de um a tradição pedagógica. Essa
lica-
m aneira de fazer a escola será exportada para a Am érica e
o da
para o m undo inteiro. H á quem diga que o livro de Jac-
per-
rrra- ques de Batencour (1669) era utilizado em Nouvelle-France
nes- (Canadá). E sobejam ente conhecida a irradiação dos jesuítas
enre p o r to d o o planeta. São as com unidades religiosas docen
iras, tes que, principalm ente, dissem inaram esse novo saber-fazer
pro- que chegou até nós.
mde
bem
lãos
Resumo
e
vças Aventamos a hipótese de que a pedagogia surgiu no sé
culo XVII. Efetivam ente, no decorrer desse período, parece
om ter nascido um a nova preocupação: a de saber com o dar
gio aula. Vários fatores concorrem para a em ergência desse fe
co nôm eno: a reform a iniciada p o r L utero, a réplica católica,
ãos a preocupação m oral com a infância, assim com o um novo
sri- questionam ento a respeito da utilidade da escolarização na
ão. m anutenção da ordem social. O efeito conjugado desses fa
liri- tores im plica o crescim ento do núm ero de alunos e de esco
am las; tal aum ento suscita um a reflexão consciente e ap rofun
ro- dada sobre a organização com pleta da classe para resolver
novos problem as de ensino.
ía-
im Assim sendo, trata-se de enunciar um m étodo preciso
ase e procedim entos detalhados e exatos de ensino. Todas as
dim ensões da prática educativa são abordadas em função do
controle e da gestão - grupo-classe, tem po, espaço, conduta
e postura do aluno, conteúdos de saber, form ação dos m es
tres - e subm etidas a um a codificação estrita e detalhada.
Assiste-se a um a divisão dos saberes em três grandes te rri
tórios, cada um com suas subdivisões. A em ulação se to rna
um a noção im portante da educação no século XVII, e a classe
se transform a em um sistema fechado para a realidade ex
terior. A parecem os tratados pedagógicos e a form ação dos
m estres. Em suma, a pedagogia com o prática de ordem e de
controle assinala o início de um a tradição, não provisória,
mas que se perpetuará no tem po.
126 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
Questões
Atividade de aprendizagem
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Institutio Studiorum Societatis Jesu. Paris: Hachette.
5
O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau
Stéphane Martineau
Objetivos de aprendizagem
Introdução
5 1 O século XVIII: o Século das Luzes instalado desde o R enascim ento; ele é tam bém e
principalm ente a sua radicalização. N a verdade,
Esta prim eira seção apresenta o Século das o Século das Luzes levará até o extrem o lim i
-azes - período em que Jean-Jacques Rousseau te, ao m esm o tem po, as possibilidades críticas
Tr-eu - e evoca as razões pelas quais esse século do ser hum ano diante das ideias preconcebidas
recebeu tal denom inação. e dos poderes estabelecidos, e a valorização da
razão e do individualism o. Em suma, se a cultura
5 1.1 O advento do século XVIII m oderna se constituiu no Renascim ento graças
ao discurso hum anista, a sociedade m oderna,
Vimos nos capítulos anteriores que aquilo por sua vez, nasceu no século XVIII. Essa socie
que se convencionou cham ar de M odernidade dade m oderna fornecerá à cultura proveniente
começa na época do Renascim ento. Esse período do Renascim ento as bases m ateriais, políticas e
i e transição da história do O cidente é m arcada sociais necessárias para a sua encarnação em ins
pela em ergência do discurso hum anista. Esse dis tituições duradouras.
curso é p o rta d o r dos elem entos fundam entais da
cultura m oderna, notadam ente a crítica da reli-
cião e a valorização da razão e da cultura. Será a 5.1.2 O que é o Século das Luzes?
seqüência do século XVI o qual é, de certa for
N a Europa, o século XVIII foi atravessado
ma, o século do hum anism o, corrente de pensa por um m ovim ento de um a considerável am pli
m ento que desem penhará um papel dom inante dão: a Filosofia das Luzes {Aufklãrung, segundo
30 discurso dos ideólogos e dos filósofos. o te rm o alem ão). Vários personagens célebres
Q uanto ao século XVII, época das reform as lhe são associados: na França, M ontesquieu e
e contrarreform as, é, de preferência, um tem po Voltaire; na Inglaterra, N ew ton e Locke; na Ale
de reação e de busca de concessões diante das m anha, W olff e Lessing. Até K ant foi influencia
rmmerosas reviravoltas originadas pelo Renas do po r esse m ovim ento.
cim ento. E justam ente nesse m om ento que se M as, nesse contexto, o que representa, pois,
instaura a pedagogia - que pode ser definida su a palavra “Luzes” ? Significa o triunfo da razão,
m ariam ente com o um discurso sobre a m aneira da racionalidade. M as, em que dom ínios se ve
de organizar o ensino na classe - e, por isso mes rifica esse triunfo? Três cam pos da atividade h u
mo, que se m odelam as bases de um a tradição m ana são particularm ente atingidos pela Filoso
pedagógica. Por exem plo, na França, seja entre fia das Luzes: a ciência, as artes e a técnica. Cada
os jesuítas, seja entre os Irm ãos das Escolas Cris um desses dom ínios deverá, consequentem ente,
tãs, procura-se antes de tudo codificar as práticas pôr-se a serviço do progresso e da felicidade da
dos docentes, a fim de responder ao novo desa hum anidade. Fundam entalm ente otimistas, os ato
fio p roposto pelas escolas urbanas, que acolhem res desse século acreditam então que o progresso
agora um grande núm ero de alunos. e a felicidade podem ser literalmente construídos
N o que se refere ao século XVIII, convém graças à razão.
desde já precisar que este não é apenas o p ro lo n E ntretanto, convém precisar im ediatam ente
gam ento de to d o o m ovim ento de m odernização que se trata aqui de um a razão diferente daquela
132 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
que se encontrava entre os gregos ou os cristãos. De tudo isso, evidencia-se certo núm ero de
Na verdade, entre os últim os, a razão designa elem entos que caracterizam o Século das Luzes.
va um a realidade objetiva independente do h o Vamos exam iná-los um a um , a fim de apreender
mem. Assim, da A ntiguidade até o século XVIII, bem as particularidades desse período. Isso nos
o m undo é racional em si (as Ideias platônicas) perm itirá situar m elhor o pensam ento de Rous
ou concebido e orquestrado por um criador ra seau em sua época, ao m esm o tem po nos aspec
cional (Deus, na religião católica). tos em que é tributário ao contexto e naqueles
A p a rtir do século XVIII, o axiom a funda que ele oferece com o radical novidade.
m ental é m ais ou m enos o seguinte: to d a reali
dade, m aterial ou m oral, é analisável. Para co
5.1.3 A razão como faculdade crítica
nhecer essa realidade, basta decom pô-la de tal
m odo que se possa perceber cada um dos seus C om o m encionam os acima, na Filosofia das
elem entos, até m esm o os m ais sim ples; depois, Luzes, a razão se opõe à fé, à autoridade e à igno
reco m p õ em -se esses e le m en to s seg u in d o um rância. E quem diz oposição diz necessariam ente
p lan o lógico; o que dá com o resultado um sis
crítica; a razão pretende, pois, ser um a faculda
tem a racional. A razão se to rn a, em sum a, um a
de crítica. Através dessas diferentes oposições,
faculdade subjetiv a esp ecificam en te h u m an a.
a razão hum ana afirm a assim o seu direito de
A gora, não é m ais o m undo que é racional, mas
raciocinar livrem ente. C onsiderem os um após o
o ser hu m an o que, p o r isso m esm o, desem pe
outro os três objetos da crítica.
nha o papel de p ad rão de m edida daquilo que é,
ou não, racional. A Filosofia das Luzes assinala, Os capítulos precedentes dem onstraram cla
com evidência, um a ru p tu ra com as ideologias ram ente que, a partir do fim do Im pério Rom a
do passado. no, a Igreja desem penhou um papel prim ordial
na preservação da cultura. Única instituição ain
M as que ideologia anim a o Século das Luzes?
da sólida, ela soube, na Idade M édia, conservar
Os pensadores e filósofos dessa época opõem a
as aquisições mais preciosas da civilização. En
razão à fé, à autoridade e à ignorância. C ontra
tretan to , com o frequentem ente acontece no caso
a tradição e a tutela do poder, herdadas dos sé
de instituições que exercem um vasto poder, a
culos anteriores, eles pretendem devolver ao ser
hum ano a sua liberdade, um a liberdade que se Igreja acabou po r ser percebida com o um en
caracteriza pelo “livre-exam e” - o qual pode ir trave à liberdade de expressão, um freio para a
mesmo até o ceticismo - e um a atitude crítica. pesquisa e para o questionam ento científico, em
Por exem plo, inspirada no m étodo científico, resum o, um freio para a razão. Assim, a oposição
a exigência de rigor intelectual se traduz, entre à fé se m anifestará contra as verdades religiosas
outros aspectos, no dom ínio da exegese, pela e, po r conseguinte, contra a p ró p ria Igreja. Efeti
substituição da ciência sagrada tradicional pelas vam ente, a Filosofia das Luzes afirm a claram ente
ciências religiosas. Isso significa que, no século que o hom em pode construir um a ideia racional
XVIII, a razão se to rn a não só um a faculdade do m undo independentem ente da religião. Por
humana, mas tam bém representa um valor dese tanto, o ateísm o, pelo m enos e n tre os in telec
jável, inseparável da procura da liberdade. tuais, se difunde pouco a pouco no O cidente.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 133
A razão se opõe tam bém aos poderes políti fornecer esses instrum entos. N ote-se aqui que a
cos. Assim com o a Igreja, esses poderes são vis instrução já não consiste, com o ocorreu m uitas
tos com o a expressão de certo obscurantism o. vezes no passado, em aprender sim plesm ente a
N o século XVIII, a E uropa ainda é governada ler, para ter acesso direto às Sagradas Escrituras.
por reis; os hom ens e as m ulheres vivem, na Trata-se, antes, de instruir-se, p o r um lado, para
m aioria, sob um regim e m onárquico. O ra, esses conhecer o m undo (neste ponto, o século XVIII
regimes “de direito divino” repousam sobre o ar prolonga o Renascim ento: pensam os im ediata
bítrio (geralm ente o do rei). Por isso m esm o, não m ente no program a enciclopédico de Rabelais)
podem garantir as liberdades individuais. E essas e, por o u tro , para ser capaz de controlar esse
liberdades, com o vimos, são fundam entais para m undo, m odelá-lo à vontade e, principalm en
os filósofos das Luzes; daí a sua oposição a es te, superá-lo pela crítica (neste aspecto, o século
ses regimes, e o desejo de vê-los substituídos po r XVIII vai mais longe do que o Renascim ento).
outros, que respeitem mais o livre-pensam ento.
Finalm ente, a razão se opõe à ignorância. 5.1.4 A razão como realidade positiva
M arch ando de m ãos dadas, a Igreja e o p o d er
m onárquico reduziram , d u ran te m uito tem po, A razão é certam ente discurso crítico diante
o povo a um nível de cu ltu ra extrem am ente da fé, da autoridade e da ignorância. Aliás, se
baixo. D iante dessa ignorância, a razão eleva a ela se limitasse a essa função crítica, isso já teria
cham a das Luzes. N ão é, pois, su rp reen d en te representado um a enorm e contribuição para a
que os filósofos dessa época valorizem a educa história do O cidente. M as não é assim. Longe
ção e a instrução. Segundo eles, cada indivíduo de confinar-se apenas à crítica das instituições
deve ter a posse de certa q u antidade de v erd a existentes, a razão se m anifestou com o realidade
des, a fim de ser capaz de co n stru ir um a ideia positiva. Esse aspecto positivo da razão se tra d u
pessoal sobre as coisas e os acontecim entos que ziu de duas m aneiras diferentes: os direitos do
lhe dizem resp eito 2. indivíduo, assim com o os direitos coletivos e a
O século XVIII está impregnado pela fé universalidade do gênero hum ano.
na unidade e na imutabilidade da razão. O individualism o m oderno nasce realm en
A razão é una e idêntica para todo sujei te no século XVIII. A afirm ação dos direitos do
to pensante, para toda nação, toda épo
indivíduo é a sua expressão mais eloqüente, no
ca, toda cultura (CASSIRER, 1966: 41).
sentido em que eles se baseiam na ideia de que
Em bora todos possuam a razão, nem todos
todos os seres hum anos possuem a faculdade
dispõem dos instrum entos para exercê-la ade de raciocinar e que, po r conseguinte, todos são
quadam ente. Esta será a tarefa da instrução: iguais diante da razão.
Aliás, em seu discurso sobre a razão, os filó
2 Entretanto, convém precisar que os pensadores das Luzes
sofos das Luzes vão além dos direitos do indiví
desdenham, geralmente, a instrução do povo. Sua representa
ção da educação pode ser qualificada de elitista. Por exemplo, duo, para refletir sistem aticam ente sobre o direi
-a França, só com a revolução de 1789 a educação nacional se to dos povos de se governarem p o r si m esm os e
tomará uma preocupação central e englobará também as ca
decidir o seu destino. Se todos os seres hum anos
nadas mais pobres da população (cf. JACQUET-FRANCILLON,
1995: 79-88). são iguais, segue-se que a vontade geral de todos
134 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
os indivíduos deve ser o critério sociopolítico bá a possibilidade de controle sobre o m undo so fatos, uh
sico. Assim, as decisões referentes à coisa pública cial. N este aspecto, ele já não se reduz ao puro então tra
devem necessariam ente ser tom adas por todos e conhecim ento sem objetivo prático, tal com o se das coisa
não apenas pelo rei, pelos nobres ou pela Igreja. podia encontrar ainda no Renascim ento. Em vez Assim, é
Reconhecem os aqui, evidentem ente, o princípio de conhecer sim plesm ente o m undo, trata-se de rer, prep.
motor de to d o regim e dem ocrático. conhecê-lo para dom iná-lo e dobrá-lo à vontade
hum ana. Nesse sentido, o século XVIII contém
o germ e do espírito técnico que, em nossa época, 5.1.6 O
5.1.5 O século do progresso e da ciência tem as suas grandes horas de glória.
N a é]
Apesar de tudo, essa ideologia do progresso um lugar
O século XVIII vê a ideologia do progresso
não se baseia sobre um a pura quim era. Bem ao Luzes” aí
difundir-se p o r todas as cam adas da sociedade.
contrário, ela se enraíza num fato real: os p ro do século
Esse progresso se apoia na ideia de que a razão
gressos das ciências da natureza que são o núcleo
não serve apenas para conhecer o m undo, mas o século
duro do racionalism o. O corre que, ao contrário
tam bém para agir sobre ele. Em vez de procurar te-se, de :
da religião e da filosofia, a ciência é capaz de
atingir o absoluto das coisas, trata-se sim ples sofos e, ei
efetuar verdadeiros progressos, no plano tanto
m ente de conhecer a sua natureza pela ex p eri p reponde
dos conhecim entos teóricos quanto das técnicas.
ência. Em outros term os, a razão não é um sis pensa que
Esse progresso seria, po r natureza, um a contri
tem a fechado, m as aquilo que em erge dos fatos, ra francês
buição positiva para o ser hum ano e a socieda
em conseqüência da observação destes, do seu de. Essa visão otim ista se acom panha de um a da Europa
conhecim ento. orientação norm ativa que atribui um a direção N a ve
O poder da razão não é romper os li particular ao progresso. Efetivam ente, com o no tenham dí
mites do mundo da experiência para século XVII, as ideias de unidade e de ciência pagação d
abrir-nos uma saída para o mundo da ainda são, no século XVIII, com pletam ente in- de m odo ,
transcendência, mas ensinar-nos a per
tercam biáveis. Assim, o progresso proveniente de constru
correr com toda a segurança este mun
da ciência será percebido unicam ente com o um a piraram fc
do empírico, a habitá-lo comodamente
(CASSIRER, 1966: 47). procura de unidade.
e filósofos
A ordenação racional, a dominação racio ceses consi
É preciso com preender que o racionalism o do
nal do dado é impossível sem uma rigoro listas e críi
Século das Luzes é orientado para a vita activa - e
sa unificação (CASSIRER, 1966: 57).
não para a vita contem plativa com o na escolás Jo h n Locfc
tica da Idade M édia isto é, para as realidades O m étodo, a observação e a aplicação técni 1727) e D;
ca caracterizam a ciência, a qual se to rn a o m o
terrestres, para o m undo real, para a vida ati M as q
delo geral aplicável diretam ente não só ao estu
va e prática. Além disso, ao contrário do século contem poi
do da natureza, mas tam bém à análise, à previsão
XVII, o século X V III vê a raz ã o n ã o co m o um tratava-se i
e ao controle das dim ensões sociais e culturais
con teú d o determ inado de conhecim entos, p rin quentavam
do m undo hum ano. Efetivam ente, o ideal m e
cípios, verdades; mas, antes, com o um a espécie os poderos
todológico da razão - p o rtan to , da ciência e do
de energia, um a força que se percebe com pleta pretensão c
progresso - se encontra nas ciências físicas (ou
mente apenas na sua ação ou nos seus efeitos. dem o crátk
ciências da natureza): p artir dos fatos detecta
O progresso significa, pois, não só a possi dos po r observação e m ostrar suas ligações, isto que eles re
bilidade de ação sobre a natureza, mas tam bém é, construir um a representação “sistêm ica” dos dos jornalií
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau
indo so- fatos, indo do particular para o geral. Só resta eram “hom ens da m ídia”, “hom ens públicos” que
ao puro então transpor esses elem entos para a conduta assumiam a tarefa de divulgar os princípios da Fi
com o se das coisas políticas, econôm icas, educativas etc. losofia das Luzes. Esses filósofos dispunham de
. Em vez Assim, é possível para qualquer sociedade que um a arm a temível: a Enciclopédia ou Dicionário
ata-se de rer, preparar e dirigir o seu p ró p rio progresso. com entado das ciências, das artes e dos ofícios\
vontade obra publicada sob a direção de D iderot4 e cujo
[ contém “discurso prelim inar” foi redigido por D ’Alem-
5.1.6 O século dos filósofos
>a época, bert5. Essa enciclopédia tinha por fim reunir em
N a época de Rousseau, a filosofia ocupava um a única obra o conjunto dos conhecim entos e
irogresso um lugar tão im portante que a corrente dita “das das ideias adquiridos até aquele dia.
Bem ao Luzes” acabou dando o seu nom e ao conjunto
: os pro- do século. Assim, com razão, pode-se qualificar
0 núcleo 5.1.7 A consolidação da economia de
o século X V III de século dos filósofos. Assis
:ontrário mercado
te-se, de fato, ao reinado incontestável dos filó
capaz de sofos e, entre eles, os franceses ocupam um lugar Nessa época, assiste-se tam bém à propaga
n o tanto
preponderante. Isso não surpreende, quando se ção de um m odo de produção baseado em uma
técnicas,
pensa que, durante esse m esm o período, a cultu econom ia de m ercado. A partir do Renascim en
ia contri-
ra francesa se afirm a com o a cultura dom inante to, o capitalism o m ercantil - substituindo a an
socieda-
da E uropa, que serve de m odelo para as outras. tiga organização proveniente do feudalism o - ti-
. de um a
nha-se afirm ado com o o sistema essencial para
1 direção N a verdade, em bora os filósofos franceses
a riqueza das nações europeias (pensam os im e
com o no tenham desem penhado um papel capital na p ro
diatam ente no com ércio com a África e com a
le ciência pagação da Filosofia das Luzes, eles não devem,
A m érica6). E ntretanto, esse tipo de capitalism o
nente in- de m odo algum , receber to d o o crédito. Longe
aveniente de construir a partir do nada, suas obras se ins
om o um a 3. Encyclopédie ou Dictionnaire Raisonné des Sciences, des
piraram fortem ente em vários grandes cientistas
Arts et des Métiers: publicação dirigida por Diderot entre 1751
e filósofos ingleses. Dos escritos destes, os fran e 1772 e inspirada em uma obra similar do inglês Chambere
ação racio- ceses conservaram os ideais racionalistas, sensua- (1729), cujo objetivo consistia em divulgar os progressos da ci
ima rigoro- ência e do pensamento em todos os domínios.
listas e críticos. Seus principais inspiradores são
S: 57). 4. Denis Diderot (1713-1783) foi um escritor e um filósofo fran
John Locke (1632-1704), Isaac N ew ton (1642-
cês, considerado por seus contemporâneos como o “filósofo por
ção técni- 1727) e David H um e (1711-1776). excelência”.
-na o mo- 5. Jean Le Rond d’Alembert (1717-1783) foi escritor, filósofo
M as quem eram esses filósofos franceses,
5 ao estu- e matemático. Cético em matéria de religião e em metafísica,
contem porâneos de Rousseau? Essencialmente, defensor da tolerância, expôs no seu “Discours préliminaire" da
à previsão
tratava-se de viajantes, ensaístas e críticos. Fre Encyclopédie a filosofia natural e o espírito científico que presi
culturais diam a essa obra.
qüentavam a nobreza, a burguesia; em resum o,
ideal me- 6. Ao longo do século XVIII, um único setor econômico era ver
os poderosos deste m undo. E ntretanto, tinham a
rncia e do dadeiramente próspero: o comércio de além-mar. Os barcos
pretensão de falar em nom e do povo e dos ideais partiam da Europa carregados de mercadorias de todo tipo (te
físicas (ou
s detecta- dem ocráticos. Em certo sentido, pode-se dizer cidos, armas etc.), faziam escala na África, a fim de trocar o
seu carregamento por escravos negros que, em seguida, eram
ições, isto que eles representavam o equivalente de alguns
transportados para a América, de onde os barcos voltavam com
mica” dos dos jornalistas da atualidade, na m edida em que açúcar e rum.
136 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
se transform a, pouco a pouco, sob a influência é geralm ente m uito baixo e um a grande parte
decisiva de num erosas descobertas técnicas que dos cam poneses vivem constantem ente à beira
perm item aum entar a produção (por exem plo, da miséria. Essa situação se explica, em parte,
as m áquinas de te c e r7). A ssistim os e n tã o , no pela falta de transporte terrestre econôm ico, rá
m eio urbano, ao nascim ento das prim eiras m a pido e preponderante (no século XIX, a ferrovia
nufaturas, ancestrais das fábricas. virá dim inuir consideravelm ente o problem a).
Esse m ovim ento continua no século XVIII, Por exem plo, é extrem am ente difícil transportar
que serve, de certa form a, de introdução para a rapidam ente o trigo das regiões produtoras para
era da industrialização, cujo triunfo virá no sé aquelas que não o produzem . C onsequentem en
culo seguinte. Pela sua ideologia do individualis te, para a grande m aioria da população, a ativi
m o, da razão e do progresso, o século XVIII ins dade econôm ica só ocorre localm ente.
taura um discurso capaz de legitim ar a ascensão Evidentem ente, essa insuficiência crônica de
da classe burguesa, cujos interesses estão estrei transporte provoca um a paralisia da indústria.
tam ente ligados ao rápido desenvolvim ento do Se os têxteis ocupam o prim eiro lugar nas trocas
novo m odo de produção presente nas grandes de m ercadorias, não é em função das necessida
cidades. des reais, mas apenas em função da leveza dessa
E é a Inglaterra que lidera. R ealm ente, o su m atéria, que to rn a mais fáceis o seu transporte
cesso do capitalism o, a m onopolização do p o e a sua distribuição. Em contrapartida, os m i
der econôm ico pela burguesia e a industrializa nerais e os combustíveis continuam a ser quase
ção serão m ais rápidos nesse país. D o seu lado, intransportáveis por via terrestre. Além disso, as
a França levará tem po para “to m ar o tre m ”, longas caravanas de carretas às quais se recorre
n o tad am en te em razão de um a distribuição da para o transporte dos víveres essenciais (com o o
população que favorece m uito os m eios rurais sal) exigem investim entos elevados.
(econom ia principalm ente agrícola), das esco Em conclusão, digam os que no século XIX as
lhas de certos dirigentes (a m on arq u ia e a n o conseqüências da instauração do m odo de p ro
breza não veem im ediatam ente o interesse do dução capitalista serão m uitas, e às vezes dram á
sistem a capitalista) e dos distúrbios políticos (a ticas para as cam adas mais pobres da população.
Revolução, o Im pério, a R estauração etc.). M as Vamos citar algumas: o aum ento da capacidade
com o se apresenta, pois, a paisagem econôm ica de produção; a criação lenta, mas inevitável, de
do século XVIII? um m ercado de consum idores; o êxodo m aci
N a época de Rousseau, as bases da econom ia ço dos trabalhadores do cam po para os grandes
ainda são essencialm ente agrícolas; de fato, esse centros urbanos; fenôm eno ligado ao preceden
setor de atividade ocupa cerca de 80% da p o te, o aum ento da m obilidade geográfica e social;
pulação (BRUNET, 1990: 119). O nível de vida a generalização do sistema salarial, que resulta
todavia em um a extrem a pobreza do povo; a as
7. A fim de aumentar a produção e responder à demanda cres
censão irresistível dos valores m aterialistas (que
cente do comércio, a indústria têxtil recorre cada vez mais às terão seu apogeu na segunda m etade do século
máquinas. Por suportar melhor o trabalho mecânico, o algodão XX ); a consolidação da burguesia com o classe
acaba substituindo a lã como produto têxtil de primeira impor
tância dom inante no plano econôm ico.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 137
5.1.8 O século das reviravoltas políticas e 1783, essa independência foi reconhecida pela
das revoluções Inglaterra.
A Revolução Francesa é realm ente um a revo
O século XVIII passou p o r num erosas re
lução do povo contra os privilégios da nobreza e
viravoltas. E vid en tem en te, pensam os logo na
o arbítrio da m onarquia absoluta8. Ela im plicou
G uerra dos Sete Anos, que opõe, entre outros,
vastas transform ações na sociedade francesa: já
a Inglaterra e a França (1757-1763) e da qual o
não é o rei, mas a nação inteira que detém a so
C anadá é um dos m otivos. Além disso, as guer
berania. O regime m onárquico não existe mais e
ras e os conflitos assolam todo o territó rio do
dá lugar à república; os poderes legislativo, exe
Velho C ontinente: p o r exem plo, a conquista das
cutivo e judiciário são agora separados.
regiões do Báltico (1689-1726) e do M ar N e
gro (1762-1796) pelos russos, que expulsam os Essas duas revoluções, ocorridas com alguns
turcos; a guerra de sucessão da Polônia (1733- anos de intervalo, são verdadeiram ente a origem
1738); a guerra de sucessão da Áustria (1740- das principais instituições das nossas sociedades
:~48) ; as divisões da Polônia entre a Rússia e a atuais. Por exem plo, ambas enfatizam o papel in
Áustria (a prim eira em 1772, a segunda e a ter dispensável do Estado na afirm ação e na p ro te
ceira entre 1793 e 1795). ção dos direitos privados e públicos, assim com o
a im portância do caráter laico das instituições
O século no qual viveu Jean-Jacques Rous-
públicas.
seau foi m arcado tam bém p o r duas revoluções
im portantes que m udaram o curso da história do
Ocidente: a Revolução A m ericana (1776-1783) 5.2 Jean-Jacques Rousseau: o
e a Revolução Francesa (1789). personagem e sua obra
lia e exerce vários ofícios. Aos vinte anos, fica Em 1756, Rousseau passa algum tem po na em
conhecendo M adam e de W arens, que se to rn a casa de M adam e d ’Épinay, não longe da floresta dige ub
então a sua benfeitora. É na casa desta que ele de M ontm orency. Ali, pode trabalhar com cal francês.
se dedica à leitura e se inicia ao latim e à m ú ma. E ntretanto, essa calm a será curta, pois já em Soa
sica. Em 1741, com 29 anos, instala-se em Pa 1762 a publicação do E m ílio desperta o ódio dos m divid
ris e lá conhece D iderot. Alguns anos depois, seus inimigos. Rousseau, então, tem de fugir da tico vir
em 1750, sua obra in titu lad a Discurso sobre as França. Prim eiro, chega ao seu país de origem , a Rousse
ciências e as artes lhe p ro p o rc io n a um suces Suíça, depois refugia-se na Inglaterra, junto ao o indn
so fortem ente m isturado com escândalo. Essa filósofo H um e, com quem não tard a a se desen Com o
p rim eira publicação é apenas o início de um a tender. Uma vez acalm ados os espíritos dos seus caracre
longa controvérsia em to rn o da sua obra. Assim, inim igos, volta a Paris, onde com põe suas últi nascen
porque Rousseau denuncia a sociedade da sua mas obras, principalm ente As confissões. se prol
época, seus escritos posteriores lhe atraem m ui tende-
tos inim igos (entre o u tros, Voltaire) e lhe valem 5.2.2 As contribuições intelectuais de que a <
m uitos dissabores com os poderes públicos. Rousseau para o seu século conseq
nação
Os elem entos biográficos precedentes p erm i
Ev
tem que o leitor faça certa ideia do personagem
te do i
que foi Jean-Jacques Rousseau. E ntretanto, a fim
rios as
de apreender bem a im portância desse filósofo, é
as tara
preciso exam inar a diversidade dos seus campos
brilha)
de interesse que incluem tanto a política, a lite
oêncL
ratura e a m úsica quanto a educação.
em si
C om o verem os depois, Rousseau é um dos ção. a
fundadores do pensam ento político m oderno. portai
C om a sua obra Do contrato social ou Princípios puro.
do direito político, preconiza a igualdade de to servir
dos os seres hum anos e funda a ordem política contr
sobre a ideia de contrato feito entre os cidadãos. a sen
Esse contrato social resultaria das vontades par mesqi
ticulares, unidas em um a vontade geral. um c
Rousseau é tam bém um inovador em m a menu
téria de lite ra tu ra , assim com o um c o m p o si para
to r e teórico da m úsica. N o cam po da escrita, rer à
cria um gênero literário novo: a autobiografia. A
Nesse gênero, suas obras principais serão D eva O cid
neios de um passeante solitário e As confissões. tra d i
Jean-Jacques Rousseau N o que se refere à m úsica, com põe um a ópera O COI
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 139
em 1752, in titu lad a O adivinho da aldeia e re m ano, o que significa dizer que o saber não é
dige um tra ta d o teórico, Carta sobre a m úsica apenas diferente da ignorância, m as lhe é tam
francesa (1753). bém superior (com o o conhecim ento é bom em
Suas num erosas obras o m ostram com o um si m esm o, o “e ru d ito ” é pois m elhor do que o
individualista, um teórico da liberdade e um crí ignorante). O ra, para Rousseau, o conhecim en
tico virulento das ideias da m oda. Individualista, to só é bom na m edida em que o ser hum ano é
Rousseau o é sem dúvida algum a, pois para ele bom . Em últim a análise, ele afirm a que não há
o indivíduo é o fundam ento da ordem social. nenhum a ligação d ireta entre a ciência e a ética.
Com o teórico, defende que a liberdade é um a
característica p ró p ria a to d o ser hum ano: todos 5.2.3 Chaves para a compreensão da sua
nascem livres e iguais. Essa liberdade individual obra
se prolonga com o liberdade coletiva, e assim, es
tende-se a to d a a sociedade. Isso eqüivale a dizer Jean-Jacques Rousseau é um hom em de con
que a soberania é inalienável e indivisível e que, tradições, de paradoxos, que procura a liberdade
consequentem ente, os poderes devem ser a em a e a felicidade para o indivíduo, que hesita sem
nação do corpo social. pre entre a autonom ia individual e a suprem acia
da sociedade. E tam bém um hom em ressentido,
Evidentem ente, Rousseau é um representan
te do seu século, mas tam bém o criticará em vá convencido de ser vítim a de um a perseguição
rios aspectos. Por exem plo, denuncia vivam ente sistem ática, um hom em que procura o paraíso
as taras do m odernism o, o lado som brio e m enos p erd id o feito da “tra n sp a rê n c ia recíp ro ca das
brilhante do progresso. Segundo ele, a razão, a consciências, [da] com unicação total e confian
ciência e o progresso são boas coisas, mas não te ” (STAROBINSKI, 1971: 19).
em si mesmas. N a realidade, é a pureza do cora A sucessão de vários fracassos confirm a a
ção, a consciência reta, que verdadeiram ente im sua convicção profunda de que a sociedade do
portam . Se o indivíduo não possui um coração século XVIII é basicam ente má. Essa convicção
puro, então o progresso, a ciência e a razão não explica em boa parte o seu projeto de descobrir a
servirão à felicidade da hum anidade. M uito pelo origem da infelicidade dos seus contem porâneos,
contrário, eles podem até tornar-se instrum entos elaborando um a história do ser hum ano (especu
a serviço das paixões doentias e dos interesses lativa e não baseada na análise de docum entos
m esquinhos. Logo, Rousseau não acredita em concretos) que insiste na sua bondade anterior.
um conhecim ento que fornecesse autom atica Em vários aspectos, o pensam ento de Rousseau
m ente a sabedoria. Ao invés de confiar na razão se situa, por isso m esm o, na contram ão do dis
para guiar a conduta hum ana, ele prefere recor curso elaborado pelos filósofos das Luzes.
rer à retidão m oral. Tendo sofrido com a sociedade, Rousseau a
Assim, ele se opõe à filosofia d o m in an te no julga, pois, globalm ente nociva para o ser hum a
O cidente, desde a época da G récia Antiga. Essa no. Por conseguinte, m ostra em particular sua
tradição se baseia, efetivam ente, na ideia de que desconfiança em relação ao conjunto das carac
o conhecim ento m elhora a natureza do ser h u terísticas próprias dessa sociedade, da qual a Fi
140 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
losofia das Luzes se faz, de algum a form a, o eco. 5.2.4 Discurso sobre a origem e os
Assim, para corrigir os excessos possíveis da fria fundamentos da desigualdade entre os
lógica proveniente do reinado absoluto da razão, homens (1755)
ele lhe opõe as vias do coração e do sentim ento.
Esta obra quer ser nada m enos do que um a
E tam bém , às enganosas aparências m undanas,
história da hum anidade. E ntretanto, não se trata
ele prefere a verdade interior dos seres.
de um a pesquisa científica. N a verdade, Rous
D epois das denúncias dos sintom as do m al seau propõe um a interpretação da história que
social que se en co n tram no Discurso sobre as é apenas verossímil, mas capaz de fornecer um a
ciências e as artes e no Discurso sobre a origem explicação da infelicidade que aflige os seres h u
e os fu n d a m en to s da desigualdade entre os h o m anos. Essa história se divide em três períodos
m ens, Rousseau elabora as suas soluções no Do principais.
C ontrato Social, ou Princípios do direito p o líti
O prim eiro é o do hom em da natureza, que
co e no E m ílio ou Da Educação. É claro que é
se pode definir com o um “anim al pré-sociável” :
com pletam ente ilusório p rete n d er que o ser h u
vive sozinho, não dispõe de nenhum a linguagem
m ano possa re to rn a r ao estado de natureza. É,
e é anim ado unicam ente pelo am or a si mesmo.
pois, através de um salto no escuro que se pode
Esse hom em satisfaz suas necessidades im ediata
reco m p o r artificialm ente as qualidades p e rd i m ente, a p artir dos recursos que a natureza lhe
das. Esse salto passa pelas instâncias políticas e fornece. D otado da capacidade de transform ar-se
educativas, que devem resp o n d er tan to quanto em função das circunstâncias (a perfectibilida-
seja possível à n atu reza p ro fu n d a do indivíduo, de), adaptou-se às m odificações do seu am bien
m odelando as suas ações respectivas sobre essa te, reunindo-se aos seus sem elhantes para criar
natureza. as prim eiras sociedades. Esse reagrupam ento era
D urante a sua vida, Rousseau foi alvo de necessário para a sobrevivência da espécie.
violentos ataques em razão do seu antirraciona- O segundo período se caracteriza pela aqui
lismo e da sua aparente hostilidade em relação sição do conjunto das diferentes qualidades p ró
ao progresso. Isso não im pedirá Kant de adm irar prias aos hum anos: a piedade (prim eiro senti
profundam ente esse pensador da liberdade indi m ento adquirido pelo hom em da natureza), a
vidual. Aliás, a sua visão antropológica antecipa linguagem, o pensam ento. Vive em total h arm o
as de H egel e M arx e, no século XX, a etnologia nia, ao m esm o tem po com os m em bros da socie
irá evocá-lo com o um dos seus mais em inentes dade e com a natureza que o cerca. Essa é, para
precursores. Acrescentem os que a sua obra Do Rousseau, a verdadeira Idade de O uro da hum a
Contrato Social, ou Princípios do direito político nidade, im pregnada de transparência.
constitui, ainda hoje, um elem ento inevitável da M as esse estado de graça não perdurou. Efe
reflexão política. tivam ente, a desigualdade física entre os indiví
A fim de apreender m elhor o seu pensa duos (fenôm eno natural) acarreta um a deterio
m ento, vamos agora lançar um olhar sobre duas ração com pleta das relações e a perversão das
obras im portantes de Rousseau, que estão estrei qualidades hum anas. Com eça então o terceiro
tam ente ligadas ao E m ílio. período, o da sociedade do parecer. N essa so-
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 141
Essa afirm ação acarreta certo núm ero de conse dam ental e prim eiro. Esse princípio prim eiro a
qüências, não só para o ensino de m atérias, tais que Rousseau faz alusão é a natureza. A tarefa
com o a geografia ou a m atem ática, mas tam bém da educação será justam ente realizar esse retor
para o ensino da religião. De fato, com o dizem no “e restaurar no indivíduo-criança, enquanto
D urozoi e Roussel (p. 292): ele ainda não está m odificado pelo seu am biente
[A pedagogia de Rousseau demonstra] a social, a espontaneidade do julgam ento e do sen
inutilidade de uma educação prematura tim en to ” (OTTAVI, 1995: 20).
(pois a criança é incapaz de compreendê-la)
Vimos anteriorm ente que os valores veicu
e [preconiza] o acesso a Deus apenas pe
las vias do coração [...] independente lados por Rousseau são o individualism o, a li
mente dos textos e intermediários consa berdade e a bondade do coração. A educação
grados - o que acarretará a condenação representa, pois, para ele, um m eio de sair da
da obra pelo arcebispo de Paris. história e retom ar o ser hum ano em seu esta
Do m esm o m odo que o Discurso sobre a ori do natural (retorno involutivo). Nesse sentido,
gem. e os fundam entos da desigualdade entre os a educação, para Jean-Jacques Rousseau, é um
homens, o E m ílio faz parte de um a história con m eio político. Isso significa que, com a ajuda da
jectural. Aliás, a obra é estreitam ente associada educação, o autor do Em ílio quer prom over uma
ao Contrato social (os dois livros são publicados reform a profunda do indivíduo, tom ando-o tal
no m esm o ano) já que propõe um program a com o ele é no seu estado de natureza original.
educativo adaptado a um a verdadeira sociedade C onsequentem ente, essa natureza desem penha
política. Rousseau quis enunciar um a filosofia, um duplo papel: ao m esm o tem po origem e m o
form ular um discurso contínuo sobre o hom em , delo10. Rousseau quer reform ar a sociedade, que
sobre suas origens, sua história, suas institui se to rnou má e pervertida, po r ter se afastado
ções. O E m ílio é um a psicologia genética sobre demais da natureza. C riar um ser hum ano “na
a qual se apoiam um a ped ag o g ia, um a relig ião tu ral” pela educação é, nesse sentido, criar um
(ou “re lig io sid a d e ”) e um a política (STARO- indivíduo livre, que poderá m udar a sociedade
BINSKI, 1971: 321-322). (uma revolução social não se faz sem um a revo
lução educativa).
5.3.2 A educação como política: É preciso com preender bem que, na sua óti
natureza-cultura ca, a natureza hum ana é po r essência um estado
de perfeição. E a sociedade que faz o indivíduo
Frequentem ente, Rousseau é acusado de ser sair desse estado: o que se traduz m uitas vezes,
ingênuo, tendo concebido um utópico paraíso segundo Rousseau, por um a degradação m oral
perdido onde o hom em , em estado natural, seria da sociedade e dos seus m em bros. A im perfeição
totalm ente bom. N a verdade, essa não é a ideia vem da inadequação entre os desejos e a natureza
que o anim ava. O sentido do seu pensam ento real do sujeito. O ra, justam ente, a sociedade faz
é, de preferência, que o desenvolvim ento deve
necessariam ente fazer um reto rn o involutivo so 10. O ser humano “natural” é não só o do início da humanidade,
bre algo de “arcaico”, no sentido p ró p rio da raiz mas também o ser humano na sua pureza, aquele cujas virtudes
morais não foram alteradas pelas influências nefastas da socie
grega arkhe, isto é, voltar a um princípio fun dade. A origem indica o modelo a seguir.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 143
~^scer desejos inapropriados à natureza dos seres te. Por quê? Porque o ideal, para qualquer ser
iu m an o s. É por isso que, se querem os evitar a hum ano, consiste em estar plenam ente ad apta
corrupção do indivíduo, é preciso m odelar a edu do à sua sociedade (am biente). Essa adaptação
cação sobre a natureza (a natureza é um m odelo se verifica tanto pelo equilíbrio estreito existente
porque ela é estado de perfeição). Fato im portan- entre as suas necessidades e os m eios de que ele
o ser natural que ainda não foi corrom pido dispõe para realizá-las quanto no equilíbrio en
pela sociedade é precisam ente a criança. tre as suas diferentes faculdades e os desejos que
E ntretanto, Rousseau não afirm a que o adul- o habitam . Essa é a condição da felicidade.
K> deva se m odelar sobre a criança. Sua afir Rousseau c o n sta ta que seus c o n te m p o râ
mação é sim plesm ente que a criança é um ser neos habitam um m undo corrom pido, que não
hum ano em estado de natureza, isto é, não des- os to rn a felizes. C om desejos ilim itados que não
naturado pela sociedade. Por outras palavras, a aprenderam a controlar, eles se sentem mise
criança representa o ser hum ano m enos m odifi ráveis. Para m odificar essa decadência m oral,
cado pela ação socializadora da cultura; p o rta n Rousseau im aginou um a sociedade (no Contrato
to , está mais próxim o da natureza que o adulto, social) e um indivíduo (no Em ílio) plenam ente
e mais perfeito, considerando que a natureza é adaptados um ao outro.
percebida com o um estado de perfeição. Para Para to rn ar o ser hum ano feliz é preciso pôr
conservar essa pureza, convém educar a criança um freio aos seus desejos. Essa lim itação deve
segundo sua natureza de criança, ou seja, con vir da natureza e não da cultura, pois só as coa
siderar a natureza com o guia. Por isso m esm o, ções da natureza podem ser realm ente sentidas
é preciso conhecer a natureza da criança. Nesse com o um a necessidade. Assim, pela educação,
sentido, Rousseau vai elaborar um a verdadeira a criança será levada a sentir a necessidade das
teoria da infância, identificando cinco estágios coisas, a fim de que ela se to rne mais tarde um
Je desenvolvim ento (voltarem os posteriorm ente ser totalm ente adaptado ao seu m eio. Em outras
a esse ponto). palavras, educada segundo a natureza, a criança
Se a natureza representa um estado de per- aprende a necessidade das coisas e não o arbítrio
reição, nem por isso o indivíduo deixa de viver dos hom ens. Tornando-se adulta, ela será feliz,
em sociedade (é um ser social, dirão os sociólo pois terá feito a experiência dos limites fixados
gos); por conseguinte, ele não pode ser deixado pela p rópria natureza. Terá assim aprendido a
no estado de natureza. Além de se adaptar ao seu refrear os seus desejos.
ambiente natural, ele deve adaptar-se ao seu am
biente social; p o r isso, é preciso educá-lo. M as
essa educação, se desejamos que ela faça com
5.3.3 Os princípios na educação
que o hom em e a m ulher sejam realm ente felizes,
rousseauísta
deve conciliar natureza e cultura. Uma leitura atenta do Em ílio perm ite deduzir
Essa conciliação será conseguida pela educa dois princípios fundam entais na educação: o ho
ção da criança segundo a sua natureza de criança. m em não é um meio, mas um fim; quanto ao ou
Em resum o, o educador terá com o tarefa form ar tro princípio, é preciso redescobrir o hom em na
um indivíduo em harm onia com o seu am bien tural. Vamos analisá-los de form a mais detalhada.
A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
O homem não é um meio, mas um fim seres hum anos para a da natureza, pois ela é a
única sobre a qual não se tem nenhum controle
Para os pedagogos que precederam Rousseau,
(além disso, ela é a mais geral, e Rousseau procu
todos os princípios de educação tinham como ca
ra justam ente form ar um ser hum ano “inteiro” e
racterística querer form ar o hom em em vista
não um indivíduo para tal tipo de sociedade ou
de algum a coisa. Por exem plo, educava-se com
tal época particular). R ecorrendo ao m odelo da
o objetivo de to rn a r o hom em sensato, crente,
natureza, a pedagogia pode escapar ao arbítrio
para fazer dele um cidadão, um erudito, um le
e ter um objeto de conhecim ento, um objeto de
trado etc. A educação utilizava o hom em de ta
observação, m atéria de um a ciência sobre a qual
m anho reduzido (a criança) com o um m eio para
ela poderá se basear.
atingir um objetivo, realizar um m odelo.
N a ótica de Rousseau, a situação deve m udar
Redescobrir o homem natural
radicalm ente. Ele não trata o hom em e a crian
ça com o m eios, mas, antes, com o fins absolutos. Em suma, à sociedade e à cultura, Rousseau
Para ele, a educação não deve procurar form ar opõe o estado de natureza: as duas prim eiras são
um tipo de hom em ou de m ulher em particular, corrom pidas, enquanto a segunda é pura.
mas o hom em e a m ulher em sua p rópria essên Toda a nossa sabedoria consiste em pre
cia. É po r isso que, ao longo da obra, Rousseau conceitos servis; todos os nossos costu
procura constantem ente afastar o acidental, o mes são apenas sujeição, mal-estar e coa
variável, a fim de encontrar o essencial. A edu ção. O homem civil nasce, vive e morre
cação deve perm itir e favorecer a form ação do na escravidão: quando nasce, é enfiado
em uma fralda; quando morre, é fecha
pró p rio ser hum ano, o ser hum ano tal com o ele
do em um caixão; enquanto ele con
é na sua natureza profunda. Esse indivíduo livre
serva a figura humana, é acorrentado
e único é ao m esm o tem po desejo, necessidade, pelas nossas instituições. (ROUSSEAU,
paixão, razão, sentidos e intelecto. 1966: 43)
A realização desse objetivo passa po r três Segundo ele, deve-se a d o ta r a atitu d e de não
tipos de educação: aquela que vem da natu re in terferir e deixar a n atu reza ser o que ela é (a
za (desenvolvim ento das faculdades e órgãos); natureza é um m odelo, um guia que o pedago
aquela que vem dos hom ens (usos desse desen go deve seguir). A educação não deve superpor
volvim ento); e aquela que vem das coisas (a ex à criança um a cultura com o segunda natureza
periência pessoal sobre os objetos). artificial, mas deixar a criança se desenvolver
A pedagogia deve harm onizar esses três ti livrem ente, sem entravar o seu desenvolvim en
pos de educação. Para isso, o ser hum ano deve to. C om o se deu a en te n d e r an terio rm en te, a
saber que ele não tem nenhum controle sobre educação deve im itar a n atu reza e seguir o de
a natureza e m uito pouco sobre as coisas. Só a senvolvim ento natu ral da criança em to d o s os
educação dos hom ens e das m ulheres está ao seu pontos de vista: afetivo, moral, intelectual. Assim,
alcance. A ação educativa deve, po r conseguinte, p o d e rá nascer um hom em m elhor em um a so
orientar a educação das coisas e a educação dos ciedade m elhor.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 145
5.3.4 As leis na educação rousseauísta ral. Existe aqui um a inversão de ideias absoluta
m ente capital.
D epois de term os apresentado os dois p rin
Para Rousseau, a criança tem um a natureza
cípios fundam entais da pedagogia de Rousseau,
vamos indicar com precisão as leis psicológicas que lhe é própria e é diferente da natureza do
em que repousa esse sistema. Sem mais com en adulto. E assim que hoje Rousseau recebe legi
tários, vam os expor aqui, de m odo esquem ático, tim am ente o título de descobridor da infância
as três leis e seus corolários. com o estado fundam ental da vida, estado dis
tin to da existência adulta. C om essa tese funda
1) Prim eira lei psicológica: A natureza fixou
m ental nasce to d a a pedagogia m oderna que se
as leis necessárias ao desenvolvim ento da
criança. baseia não sobre um conhecim ento daquilo que
- C orolário pedagógico da prim eira lei: a criança deve ser quando for adulta, mas, antes,
O docente deve respeitar a m archa da sobre aquilo que ela é (um conhecim ento da sua
evolução m ental da criança. natureza própria).
• a idade das necessidades (o estágio infan aliás, esse processo repousa, essencialm ente, na
til); observação direta e na experim entação. Trata-se,
• a idade do desenvolvim ento dos desejos efetivam ente, de fornecer à criança as ferram en
e dos sentidos (a idade da puerilidade, indo tas necessárias para que ela possa conhecer por
até os 12 anos); si m esm a (a aprendizagem po r si m esm o, através
da observação e da experim entação, é a condição
• a idade do senso com um ou a idade da ra
indispensável para que o aluno utilize plenam en
zão (o estágio interm ediário, isto é, dos 12 te a sua razão). As ferram entas de conhecim ento
aos 15 anos); são, nesse pon to , m uito mais im portantes do que
• a idade dos sentim entos (o período da ad o os próprios conhecim entos. O que eqüivale a di
lescência, isto é, dos 15 aos 20 anos); zer que, em educação, a qualidade predom ina
• a idade do casam ento, da vida de trabalho, sobre a quantidade.
da parentalidade e do exercício dos direitos Lembrem-se sempre de que o espíri
do cidadão (a m aturidade, após os 20 anos). to da minha instituição não é ensinar
à criança muitas coisas, mas impedir
A educação deve resp e ita r esses estágios. que, em seu cérebro, entrem ideias que
N esse sentido, Rousseau pode ser visto com o não sejam justas e claras (ROUSSEAU,
um dos precursores da psicologia dos estágios do 1966: 220).
desenvolvim ento que, no século XX, será con Além disso, a pedagogia rousseauísta adota o
sideravelm ente aprofundada, notadam ente por princípio de que é mais im portante form ular um
Piaget. juízo bem fundam entado do que dispor de um
am plo conhecim ento. A observação e a experi
m entação visarão, pois, desenvolver a capacida
A criança ativa e responsável pela sua educação
de de julgam ento do aluno.
Segundo a tese de Rousseau, a criança, à se
m elhança do adulto, é livre e essa liberdade deve
O objetivo da educação: formar um ser
ser respeitada. Isso significa que o seu papel na
humano livre
educação não deve se resum ir ao de um ser pas
sivo, que recebe o conhecim ento do exterior. D o que foi dito acim a decorre que, para
M uito ao contrário, o educador deve fazer dela Rousseau, o objetivo da educação não é p reen
um ser ativo, cuja ação contribui fundam ental cher a cabeça das crianças com mil e um a coisas
m ente para a sua p ró p ria form ação. inventadas e im aginadas pelos adultos. Trata-se
Por isso m esm o, o papel da educação não m uito mais de favorecer o seu livre desabrochar
é reduzir a criança a um a atitude passiva, mas, natural. O que se deve form ar não é um tipo de
antes, servir-se da sua atividade natural - por hom em em particular, mas o próp rio hom em ,
exem plo, suas b rin cad eiras, suas ex p lo raçõ es um “inteiro un itário ”, isto é, um indivíduo livre
sensoriais, seus interesses, suas necessidades - e responsável.
com o base do seu processo educativo (apren Em suma, o objetivo derradeiro da educação
dizagem). Assim, para Rousseau, a criança deve é forjar um hom em livre. O ra, o hom em pode
ser ativa durante o processo de aprendizagem ; tornar-se livre, com a condição de ser tratado
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 147
com o um ser livre desde o nascim ento. Nesse a natureza é um estado de perfeição; logo ela
sentido, para o a u to r do E m ílio, a liberdade não é boa em si mesma). N o estado de natureza, o
se aprende, mas se desenrola na atividade h u indivíduo é m oralm ente inocente (bom); conse
mana. E p o r isso que é preciso deixá-la ser. N ão quentem ente, não se deve estragar essa inocente
se pode ensinar a ser livre, pois a liberdade está bondade com um a ação arbitrária fundada em
inscrita na p rópria natureza do ser hum ano. preconceitos próprios a um a época específica. A
criança deve evoluir em um m undo puram ente
físico, sem m oral.
Uma maneira de educar: a educação negativa
N a perspectiva de Rousseau, o papel do edu
O que é a educação negativa? Para responder cador consiste principalm ente em proteger seu
a essa pergunta vamos dar a palavra a Rousseau aluno contra os malefícios da sociedade, contra
1966: 149): “Jovem m estre, anuncio-lhe um a
as influências nefastas da cultura e seu cortejo de
arte difícil, ou seja, governar sem preceitos e fa
corrupções e preconceitos11. N este ponto, lem
zer tudo sem fazer n ad a”. A verdadeira ideia da
brem os que, para ele, a sociedade é c o rru p to
educação negativa se encontra nessa frase, resu
ra da natureza hum ana quando, no com eço do
mida nesse simples convite do filósofo. Assim,
E m ílio, declara: “Tudo é bom ao sair das mãos
quando se fala de educação negativa, faz-se re-
do A utor das coisas, tudo degenera entre as mãos
rerência a um a educação em que o indivíduo e a
do hom em ” (ROUSSEAU, 1966: 35).
sociedade são excluídos, em proveito da natu re
za; um a educação que recusa as opiniões e a m o Se o pedagogo deixa a natureza agir, nem por
ral; um a educação em que o m estre não produz isso fica reduzido a um papel totalm ente passivo.
nenhum a ação inform ativa, pois a aprendizagem N a verdade, seguindo escrupulosam ente a n atu
deve vir da experiência das coisas e não do co reza, ele escolhe ao m esm o tem po o conteúdo
nhecim ento pelas palavras. C item os novam ente (experiências e observações) e o m om ento p ro
o autor do Emílio: pício para adm inistrá-lo.
Torne o seu aluno atento aos fenômenos Já que o contraditório de toda posição
da natureza; logo ele se tornará curioso; falsa é uma verdade, o número de verda
mas, para alimentar a sua curiosidade, des, assim como de erros, é inesgotável.
nunca se apresse em satisfazê-la. Situe Existe, pois, uma escolha nas coisas que
as questões ao seu alcance e deixe que se deve ensinar, assim como no tempo
ele as resolva. Que tudo o que sabe, em propício para aprendê-las (ROUSSEAU,
vez de depender do que lhe foi dito, seja 1966: 213).
o resultado do que compreendeu por si Isso não exclui que a criança deva fazer suas
mesmo; que ele não aprenda a ciência,
próprias experiências.
mas a invente (ROUSSEAU, 1966: 215).
É po r isso que a criança deve ser capaz de se
A educação negativa à m aneira de Rousseau
expressar com a mais total liberdade. Por conse
deixa a natureza agir. A criança aprende pela
guinte, Rousseau propõe isolá-la da fonte nega
sua própria experiência diante das coisas. Logo,
nada de discurso teórico ou moral. Para Rousseau,
11. Por exemplo, o educador Rousseau leva o seu aluno Emí
a m elhor m oral é aquela que vem diretam ente
lio ao campo, a fim de subtraí-lo às numerosas distrações da
da natureza (é preciso lem brar que, para ele, cidade.
148 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
tiva representada pela sociedade dos adultos. A Mestre, poucos discursos; mas ensine a
educação ideal se faria sob a form a de precep- escolher os lugares, os tempos, as pes
soas e depois dê todas as suas lições com
torado. O que significa isso? O educador e seu
exemplos, e fique certo do seu efeito
aluno estarão continuam ente na presença um do (ROUSSEAU, 1966: 301).
outro. O único m estre da criança será o seu edu
cador e este terá apenas um único aluno. Aliás, Não me canso de repetir: em todas as li
a relação professor-aluno não se reduzirá a um a ções dos jovens, sirva-se da ação, em vez
simples interação pedagógica, mas oferecerá dos discursos; que eles evitem aprender
tam bém um a forte dim ensão afetiva. nos livros tudo aquilo que pode ser en
sinado pela experiência (ROUSSEAU,
R ousseau e la b o ro u , p ois, um a ped ag o g ia 1966: 328).
ativa (a criança participa inteiram ente do p ro Em resum o, a pedagogia de Rousseau pode
cesso de aprendizagem ), concreta (ela recorre à ser qualificada com o negativa, na m edida em que
observação), essencialm ente utilitária (ela prepa propõe intervir o m enos possível junto à criança,
ra para a vida entre os m em bros da sociedade), a fim de deixá-la fazer as suas próprias experiên
centrada na experim entação e não no estudo li- cias. O desafio a enfrentar pelo educador con
vresco ou nos discursos m agistrais (são as coisas siste não só em afastar a corrupção oriunda da
e não os discursos que devem falar porque as p ri sociedade (a fim de que a natureza possa se reali
m eiras, ao contrário dos segundos, têm a força zar em toda a sua beleza), mas tam bém em criar
da necessidade). Através dos diferentes estágios no aluno o gosto pela instrução. Assim, longe de
do seu desenvolvim ento, a criança aprende dire im por os seus desejos, o educador deve levar o
tam ente, no contato com as coisas e não com p a aluno a desejar aprender p o r si m esm o. E p re
lavras ou ideias. É assim que a sua razão natural ciso que a criança tenha prazer em instruir-se:
p o d erá se desenvolver saudavelm ente, evitando “O talento de instruir é fazer com que o discípu
lo tenha prazer com a instrução” (ROUSSEAU,
a contam inação pelos preconceitos.
1966: 323). É com essa condição que o m estre
Evitem mostrar à criança tudo o que ela
poderá dizer: “missão cum prida”.
não possa ver. Enquanto a humanidade
for quase estranha para ela, sendo inca
paz de elevá-la ao estado de homem, re
baixem para ela o homem ao estado de 5.3.6 Uma comparação entre a
criança. Pensando naquilo que lhe pode pedagogia do século XVIII e o
ser útil em outra idade, falem-lhe ape pensamento educativo proposto por
nas daquilo cuja utilidade ela vê desde Rousseau
agora (ROUSSEAU, 1966: 238).
Antes de concluir este capítulo, e com a fina
lidade de ressaltar a radical novidade das ideias
Em vez de lhe ensinar uma verdade, tra
ta-se sobretudo de lhe mostrar como se de Rousseau, vamos com parar agora, no Q uadro
deve proceder para descobrir sempre a 5.1, a pedagogia do século XVIII e o pensam ento
verdade (ROUSSEAU, 1966: 267). educativo pro p o sto por Jean-Jacques Rousseau.
5 O pensamento educativo de Jean-Jacques Rousseau 149
A concepção da criança ou A criança deve imitar o mais possível A criança é o seu próprio modelo. Ela é
do educando o adulto, que é o seu modelo. No naturalmente boa e livre. Ela é até melhor do que o
plano educativo, a criança é, pois, adulto, pois este é corrompido pela civilização.
um simples meio cujo fim reside no
adulto.
A concepção do mestre ou O mestre constitui o polo importante 0 mestre constitui o polo secundário da relação
do docente e ativo da relação pedagógica. pedagógica. Deve estar a serviço da criança. O
A criança deve, essencialmente, saber nasce da criança.
escutar. 0 saber flui do mestre para
o aluno.
Conclusão
Resumo
Atividade de aprendizagem
Jacques
A filosofia de R ousseau influ en cio u p ro fu n d a m en te
em me-
to d as as concepções da educação nos séculos X IX e XX,
antexto
incluindo o sistema de ensino im plantado no Quebec: por
- Nesse
exem plo, em 1969-1970, o Conseil Supérieur de 1’Educa-
isamen-
•senta o tion (CSÉ) do Q uebec publicou seu R elatório Anual in titu
es e da lado, L’activité éducative [A atividade educativa]. Este Rela
ia - ga- tório exprim ia o espírito da época e, em ideias, traduzia as
□usseau profundas orientações pedagógicas da “Revolução Tranqüi
lizado a la” (cf. cap. 11 - As pedagogias abertas do Q uebec, 11.8).
152 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
Objetivos de aprendizagem
Introdução
reconhecem os na tradição a sedim entação dos infância e que fazem com que, geralm ente, cada
gestos que precederam , a conservação e a perpe m estre ensine, em parte, com o foi ensinado.
tuação dos usos anteriores. Uma tradição encerra M as o uso não é tudo, pois um a tradição
certos com portam entos vindos do passado, p ro transform a igualmente as m aneiras de fazer. Com
move m odelos de conduta. Em segundo lugar, efeito, B atencour (1669) fala tam bém da ex
toda tradição deve adaptar progressivam ente as
periência ou, po r outras palavras, daquilo que
suas m aneiras de fazer aos novos contextos. Uma
ele acrescentou pessoalm ente com o adaptação
tradição não se lim ita a reproduzir sim plesm ente
e m odificação dos usos, considerando as novas
os com portam entos, mas vai transformá-los pouco (
condicionantes ligadas ao contexto da sua épo
a pouco. Em terceiro lugar, é preciso sublinhar
ca, condicionantes que não existiam antes dele
o aspecto prescritivo da tradição, no sentido em ío o d
ou estavam pouco presentes: um ensino prim á
que ela é mais um reservatório de respostas do jp b c
rio m inistrado a grupos de crianças oriundas do
que um conjunto de perguntas que necessitam rern
povo. Escreveu a sua obra para m ostrar bem a
de explicações. Efetivam ente, um a tradição diz qoes
natureza das m udanças que ele próp rio havia in
o que fazer; ela não tem com o função questionar
troduzido na m aneira de fazer a escola no seu
as coisas. Enfim , em quarto lugar, os com porta Com
tem po. Do m esm o m odo, observa-se que a pe
m entos se tornam gradualm ente rituais e adqui dadx
dagogia dos Irm ãos das Escolas Cristãs, tal como
rem um status quase sagrado. tra n s
está registrada na C onduta das escolas cristãs,
A pliquem os, agora, à pedagogia essas carac é o resultado das contribuições respectivas dos eaab
terísticas da tradição. Supom os que a pedagogia
usos e das experiências. João Batista de La Salle
colas
apareceu no século XVII, no m undo ocidental todon
(1951) assinala esse aspecto no seu prefácio:
cristão, porque pensam os, evidentem ente, que Amei
Esta Conduta só foi redigida em forma
houve conservação de certos usos ancestrais
de regulamento depois de um grande G
q u an to ao que convinha fazer para ensinar nas número de conferências com os Irmãos S3S d
escolas. A creditam os tam bém que esses costu deste Instituto, os mais antigos e mais ta. ui
mes foram m odificados, a fim de responder às capazes de bem fazer a escola; e depois
mane
exigências dos novos contextos. Batencour, po r de uma experiência de vários anos; nada
mnits
exem plo, no prefácio da sua Instrução metódica foi escrito sem uma apurada negocia
ção e experimentação, além de terem Por e
para a escola paroquial, redigida para as escoli-
sido previstos, tanto quanto foi possí ver n
nbas (1669), ilustra de m aneira interessante estas vel, os erros ou as más conseqüências à apn
duas características da tradição, a conservação e desse texto. lo de
a adaptação: “Eu estava convencido de que não prátK
Os caracteres prescritivos e sagrados da tra
seria inútil dar parte ao Público daquilo que o uso
dição encontram a sua ilustração, mais um a vez, então
e a experiência me ensinaram neste Exercício”.
no prefácio da Conduta das escolas cristãs-. g ó g i-
Por “uso”, Batencour entende a tradição à sua
Os superiores das casas deste Instituto e
volta, que o habitava e lhe ditava as m aneiras de
os inspetores das escolas se dedicarão a
fazer para ensinar pela im itação, mais ou m enos aprendê-lo bem (o livro da Conduta) e 6. 1.2
consciente, dos m estres que ele conhecera. Ele a dominar perfeitamente tudo o que ali
V;
retom a pois as m aneiras de fazer a escola que viu está encerrado, e procederão de modo
no seu am biente, que ele viveu provavelm ente na que os mestres não falhem e observem m ún*
6 Da pedagogia tradicional á pedagogia nova T~
exatamente todas as práticas que ali es cham ar de extrem idade de um continuum de
tão descritas, até as menos importantes, ideias e de práticas pedagógicas. Se situássem os
a fim de proporcionar, por esse meio,
o ensino m útuo sobre um eixo tendo em um dos
uma grande ordem nas escolas, uma
conduta bem regulamentada e uniforme seus polos “a o rd em ” e no o u tro “o acaso”, ele
nos Irmãos que serão encarregados de estaria no extrem o lim ite, do lado da “o rd em ”,
aplicá-las, e um fruto considerável para enquanto, por exem plo, Neill e sua pedagogia
as crianças que ali serão instruídas (LA libertária (cf. cap. 9) estaria no lado oposto. N a
SALLE, 1951: 6). verdade, o ensino m útuo em prega um discurso
O saber-fazer dos Irm ãos, registrado na C on e um a prática de controle mais ou m enos ini-
duta das escolas cristãs, verdadeiro código de gualados na história da educação. Nesse ponto,
conduta no sentido estrito da palavra, foi pois ele constitui um controle pedagógico verdadei
iplicado às suas escolas. Além disso, o código foi ram ente excessivo. A ordem pedagógica inci
'eproduzido em seus m enores detalhes, sem ser piente, que esquadrinhava to d a a vida escolar no
questionado, com o se contivesse a resposta defi século XVII, parece quase m oderada quando a
nitiva para todas as am bigüidades. Em resum o, a com param os com a ordem que se instala com o
Conduta das escolas cristãs cristaliza as respostas ensino m útuo no século XIX.
.ladas pelos Irm ãos no seu ensino e acaba por Quais são a natureza, os princípios, as m oda
transform á-las em um a tradição. Assim, todos os lidades de organização dessa nova abordagem ?
estabelecim entos de ensino dos Irm ãos das Es O sistema de ensino m útuo surge nas escolas p ri
colas Cristãs são sem elhantes, com o ocorre com m árias no fim do século XVIII, na Inglaterra. É
todos os colégios jesuítas, estejam situados na destinado a alfabetizar o m aior núm ero possível
América, na E uropa ou em qualquer outro lugar. de alunos ao m elhor custo e nos m elhores prazos
Graças ao trabalho das com unidades religio (LESAGE, 1981: 241). Esse m étodo foi sistem a
sas docentes, um a tradição pedagógica se insta tizado por Bell e Lancaster. Posteriorm ente, teve
la, um a espécie de dispositivo de repetição da um sucesso im portante na França, p o r volta de
m aneira de fazer a escola que se perpetua, sem 1820. O ensino m útuo esteve em uso, em quase
muitas m odificações, até o início do século XX. todo o m undo, no C anadá inglês e até m esm o no
Por exem plo, é preciso esperar até 1837 para Q uebec; Joseph-François Perrault, em particular,
ver na C onduta um a justificação relativam ente o utilizou e estim ulou a sua im plantação. Entre
à aprendizagem da leitura, da escrita e do cálcu 1815 e 1820, na França, contavam -se 1.000
lo de m aneira sucessiva e não sim ultânea; essa escolas m útuas, que reuniam cerca de 150.000
prática ancestral não fora, pois, contestada até alunos, enquanto as escolas dos Irm ãos das Es
então (PROST, 1968: 118). Essa tradição peda colas Cristãs instruíam apenas 5 0 .0 0 0 crianças
gógica atinge o seu apogeu com o ensino m útuo. (LÉON, 1971: 342). Ao contrário do m odo si
m ultâneo, em que o m estre é o agente do ensi
no, o princípio básico do ensino m útuo é que a
6.1.2 O ensino mútuo
própria criança se encarrega de ensinar aos seus
Vale a pena exam inar o sistema de ensino colegas. C om o indica a palavra “m ú tu o ” (“m o-
m útuo, porque ele constitui o que poderíam os nitorial system ”, em inglês), as crianças ensinam
158 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
um as às outras. M ais precisam ente, algumas, se ensino querem aplicar à escola os m étodos de w pecx
mais talentosas, se tornam m onitoras dos seus divisão do trabalho em vigor na indústria nas man-dan
colegas mais fracos. cente, a fim de reduzir os custos da instrução exlad-a
N esse p rim e iro p rin cíp io enxerta-se um (LEON, 1971: 368). C oncretam ente, nas esco a mmdi
segundo: a econom ia. E fetivam ente, é preciso las regidas pelo sistema de ensino m útuo, encon- ea se 3&
in stru ir um a m u ltid ão de crianças ao m esm o tra-se um único m estre para ensinar a um grupo ■ icrio r
custo que um pequeno núm ero (BALLY, 1819: que pode ir até mil alunos, e até acima desse nú Asa
277). Devem os dizer que na França, assim com o m ero nas grandes cidades; entretanto, a m édia CBifimei
na Inglaterra, alguns autores com eçam a tom ar se situa em to rn o de 250 alunos. Tal sistema só
consciência do valor econôm ico da educação p o pode existir e funcionar eficazm ente se estiver
cálculo
pular: baseado sobre a aplicação de um a ordem abso
oc->c qi
luta. E por isso que afirm am os que ele participa
A moralidade do povo e a manutenção «cr 1.00
da ordem social não são os únicos moti de um a preocupação com a ordem sem elhante
poc 5 d
vos que exigem uma educação popular. àquela que estava em vigor 200 anos antes, além
mo. O a
A agricultura, as artes mecânicas, as fá de ser o prolongam ento da tradição pedagógica
■HTUÇC
bricas e todos os tipos de indústria te do século XVII.
rão vantagens com ela, e não contribui o roesnr
rão menos para o bem-estar e a fortuna Exam inem os essa hipótese e vejamos em que estrado
dos indivíduos do que para a força e a sentido esse sistema é o aperfeiçoam ento dos td&áno
prosperidade do Estado (LASTEYRIE, procedim entos de controle já estabelecidos dois págnus
1819: 47). séculos antes. Prim eiro, de um ponto de vista ge
H hezss
H á um a vontade de educar o povo, mas ral, notam os que um discurso de ordem em ana
éoi ahn
sabe-se perfeitam ente que essa educação custa dessa concepção.
aodicid*
caro e, com o a escolaridade não é gratuita, tem- O mestre deve, pois, dar a sua atenção
se to d o o interesse em estim ular o ensino m útuo, especial a todos os objetos de detalhe O e
e estabelecer um regulamento fixo de ptsner-ü
fórm ula m uito mais econôm ica do que qualquer
tal modo que a sua execução caminhe «íe cíassi
outra. Por exem plo, decide-se que, já que os li
sozinha, e, por assim dizer, sem que se cdco n
vros se deterioram rapidam ente e custam caro
perceba. Aqui, a ordem reina por toda ■de-se ei
sobretudo para os alunos pobres, é preferível a parte, mesmo nos menores objetos: a n u i co
utilizar quadros em que se afixam os textos. Da a cesta, as penas, os livros, os quadros;
m esm a form a, papel e penas são trocados por tudo tem o seu lugar, tudo foi classifi
ie zelai
ardósias e lápis de xisto, m uito mais econôm i cado, situado na sua posição; nada é
arbitrário. É nesse sentido que se inter nroções
cos. Nesse espírito, o C onde de Lasteyrie (p. 26)
preta o quadro que se vê nas nossas ins (BALLY
elogia a escola de Lancaster (1811) que utiliza tituições, com estas palavras: “Um lugar
Esíl!
apenas um livro para mil crianças! para cada coisa e cada coisa em seu lu
gar” (BALLY, 1819: 195). neo
Enfim , adota-se um princípio de eficiência
imelÈx
que decorre das necessidades de econom ia e visa M ais ainda, o conde de Lasteyrie (1819: 6),
od
“taylorizar” a instrução. C ertam ente não é por no seu m anual de ensino m útuo, chega mesmo
1981: 2
acaso que o ensino m útuo surge na Inglaterra, a utilizar a m etáfora do exército para descrever
o nível
país da revolução industrial. Os prom otores des o sistema: “Cada classe é com andada, ensinada,
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova
A disciplina é baseada, com o antes, num sis m antinham a tradição do ensino “em sucessão”,
tem a de recom pensas e de sanções. C om o tudo no qual era preciso saber ler antes de escrever.
é hierarquizado em oito níveis p o r m atéria, cada Essa organização envelhecida a carretav a um a
criança sabe onde está situada e conhece o ní perda de tem po considerável, além de suscitar
vel superior que pode atingir. A em ulação se tédio e rejeição no aluno (PROST, 1968: 118).
m antém , pois, facilm ente. As recom pensas são O ensino m útuo era, segundo os seus partid á
m uitas vezes bilhetes, trocados po r dinheiro ou rios, mais eficaz e mais econôm ico. Supunha-se
p o r um prêm io no fim da semana. Escreve-se que a aprendizagem era mais rápida porque as
aos pais para inform á-los sobre os progressos do crianças eram agrupadas segundo o seu nível,
seu filho; este pode tam bém levar para casa um a porque aprendiam todas as m atérias ao mesmo
m edalha de m érito. As presenças, as ausências, o tem po e porque, com os m onitores, não havia
progresso escolar e o com portam ento são m inu perda de tem po (BALLY, 1819: 281). E ainda,
ciosam ente registrados em livros que perm item substituindo os livros p o r quadros, o ensino m ú
anotar a evolução da conduta dos alunos. As p u tuo perm itia econom ias apreciáveis.
nições, por sua vez, são cuidadosam ente descri
Por que essa abordagem declinou? N a Fran
tas em 18 categorias. Essas escolas m útuas ins
ça, o clero católico, apoiado pelos m onarquistas
tauram um júri por interm édio do qual os alunos
(os “ultras”), tem ia a propagação de um m étodo
infligem a si mesm os sanções po r seus delitos.
inglês e protestante. Preferia o m étodo de ensino
A hum ilhação ainda está presente, mas os p ro
cedim entos são mais sofisticados. Por exem plo, dos Irm ãos das Escolas Cristãs. D epois de m ui
encontram os em prim eiro lugar: “A criança que tos conflitos entre partidários dos dois clãs, os
lê pior dá o seu lugar àquela que lê m elh o r”. E m onarquistas levaram a m elhor (1820-1828) e
no décim o quinto lugar: “São am arrados em um favoreceram as escolas das congregações, o que
poste quando são excessivam ente indóceis, ou acarretou um a dim inuição de m etade das esco
desobedecem form alm ente ao m estre” (BALLY, las m útuas (GON TA RD, 1981: 256). Depois, a
1819: 189). Assinala-se que na Inglaterra pen partir do m om ento em que a Lei G uizot (1833)
dura-se no pescoço do aluno recalcitrante um entrou em vigor, o ensino m útuo se extinguiu
pedaço de m adeira de dois ou três quilos. O cor progressivam ente (LÉON, 1971: 343). Tal lei
re tam bém que se pode am arrar um pedaço de obrigava cada m unicípio a instalar escolas; essa
m adeira entre as suas pernas e obrigá-lo a dar foi um a das causas do declínio das escolas m ú
a volta da sala de aula. Às vezes os delinqüen tuas. O utras acusações contra essas escolas eram
tes são colocados em um a grande cesta ou saco, feitas pelos pais, que não gostavam de ver os
suspenso ao teto da escola, à vista de todos, en filhos perderem tem po servindo de m onitores,
quanto as crianças preguiçosas são postas num ao invés de eles próprios aprenderem ; elas eram
berço e balançadas po r um colega (p. 193). acusadas tam bém de form ar autôm atos ou mili
tares (p. 342). M as não há nenhum equívoco em
Por que se apreciava tan to esse m étodo de
afirm ar que as verdadeiras causas do declínio das
ensino? O fato de ensinar as m atérias básicas
sim ultaneam ente foi um a das causas do suces escolas m útuas são, em prim eiro lugar, políticas.
so im portante do ensino m útuo. Sabemos que Em conclusão, devem os assinalar que, em bo
os Irm ãos das Escolas Cristãs, ainda em 1837, ra o ensino m útuo constitua um a inovação peda
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova
gógica m uito interessante, principalm ente com o segundo ele, p o r trás da longa querela ideológi
uso dos quadros e o ensino de todas as m atérias ca a propósito do controle da escola pela cor
sim ultaneam ente, não é m enos verdade que ele rente laica ou pelos religiosos, há um a espécie
se inscreve no prolongam ento da pedagogia do de concordância geral sobre os fins e os meios.
século XVII. Efetivam ente, o grande m érito do Segundo parece, seja p o r parte dos republicanos
ensino m útuo foi talvez sublinhar a im portância ou dos conservadores, não são questionados os
da função econôm ica da escola, da qual não se princípios de ordem e de autoridade da escola;
estava consciente anteriorm ente. “O ra, recusar a ainda se desconfia da espontaneidade da criança
instrução é sufocar o gênio e privar a sociedade (p. 8). As querelas quanto aos m étodos pedagó
dos talentos que form am o seu mais belo b rilh o ” gicos ocorrem no final do século. Evidentem en
(LASTEYRIE, 1819: 51). C onsiderava-se daí te, há grandes nom es no seio desses antagonis
em diante que podia ser lucrativo para um Es tas: Froebel, H erbart, Itard, Pestalozzi, Tolstoi,
tado instruir o povo; não só os custos da educa K ergom ard etc. M as, segundo Prost (1968: 9),
ção deixavam de ser proibitivos, mas tam bém o a audiência real desses autores continua sendo
Estado podia prosperar graças a cidadãos mais lim itada e sua influência se fará sentir algumas
instruídos. Essa função econôm ica da escola foi décadas depois, no fim do século, quando suas
levada ao seu apogeu no século XX. ideias e práticas forem retom adas pelos p arti
dários da pedagogia nova. Assim tam bém , há
6.1.3 A legislação e a organização m udanças notáveis no ensino de algumas m até
escolares no século XIX rias: p o r exem plo, aprende-se a leitura a partir
de m étodos fonéticos; escreve-se com pena de
Parece que vários historiadores da educação aço, que substitui a pena de ganso; e utiliza-se
consideram o século X IX com o um período de mais frequentem ente a ardósia, em vez do papel.
im portância secundária (LÉON, 1971: 333). A M as estam os longe de um a revolução pedagógi
contribuição principal deste século se situa mais ca profunda; trata-se, antes, da evolução gradual
ao plano da organização da educação popular de determ inadas práticas.
Jo que no plano da inovação dos m étodos p e A contribuição fundam ental do século XIX
dagógicos. Efetivam ente, ainda no início do sé para a educação encontra-se alhures. É nessa
culo X IX , só um terço ou um q uarto das crian época que se percebe mais claram ente a ligação
ças francesas vão à escola, e esta continua sendo estreita que une a educação à evolução política e
tributária das iniciativas locais (GONTARD, econôm ica (LÉON, 1971: 376); isso terá conse
1981: 255). M as, no fim do século, quase todas qüências im portantes na organização escolar. Em
crianças estão escolarizadas; tal constatação prim eiro lugar, no plano político, são incontes
m ostra a eficiência das m edidas legislativas a d o táveis os efeitos da Revolução Francesa: o m un
tadas e a im portância dos esforços despendidos do se dirige progressivam ente para a dem ocra
□esta área (p. 261). cia. Esta é inconcebível sem a instrução do povo,
C om o diz Prost (1968: 8), no século XIX, que deve dispor do conhecim ento indispensável
ire s a r dos num erosos debates sobre a questão para o exercício do poder. Assiste-se assim à ins
escolar, “não se discute pedagogia”. N a verdade, tauração de várias legislações para que o ensino
162 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
prim ário se torne obrigatório e gratuito. É evi Em conclusão, poderíam os dizer que, à se
dente, considerando-se as diferenças econôm icas m elhança do que ocorre no século XVII, u n u
na população, que a obrigação escolar exige a vez que as crianças estavam na escola, sentiu-íe
gratuidade. O fam oso Projeto-Lei de C ondorcet, a necessidade de reform ar as práticas pedagóg:-
em 1792, ilustra perfeitam ente a natureza dos cas. Em fins do século XIX, depois de descobnr
debates escolares que ocorrem ao longo do sé que a instrução p opular era necessária à prospe
culo XIX. Seu plano de educação propõe, por ridade do Estado, e de instaurar um verdadeir;
um lado, um a escola única para os dois sexos, a sistema legislativo para garantir a sua perenida
instrução popular obrigatória, laica e gratuita; e, de, percebeu-se que era necessário reform ar o*
p o r outro, um ensino secundário aberto a todos m étodos pedagógicos. Tendo passado po r rara>
e centrado nas ciências. O plano de C ondorcet m udanças no decorrer dos três séculos anterio
está constantem ente presente na m ente dos re res, a pedagogia será objeto de grandes transfor
form adores do fim do século XIX e irá inspirar m ações no futuro.
mais de um a dezena de m edidas legislativas.
N o plano econôm ico, com o desenvolvim en 6.2 A ciência critica a tradição
to industrial, comercial e agrícola da Europa, a pedagógica
sociedade precisa, para o seu funcionam ento, de
outros docentes além dos hum anistas instruídos à É m uito im portante insistir no fato de qut
m aneira clássica. De agora em diante, procura-se poderíam os qualificar com o tradicional o saber
associar a escola ao sistema de produção econô pedagógico reproduzido de geração em geração
mica e form ar um pessoal experiente nas ciências pelos Irm ãos das Escolas Cristãs, pelos jesuítas
e nas técnicas. A revolução industrial tem com o e pelos m estres da escola m útua. É um saber
efeito não apenas aum entar as exigências quanto que se adquire principalm ente p o r im itação,
ao ensino prim ário, mas torna necessária a cria no c o n tato com pedagogos experientes (ISANl-
ção de “salas de asilo” (espécie de creches criadas BERT-JAMATI, 1990: 89). Vimos que a tradi
a partir de 1826) para cuidar das crianças cujas ção im plica um conjunto de ações ritualizadas.
mães trabalham nas fábricas (LÉON, 1971: 353). executadas m aquinalm ente e que fazem com que
Enfim , no plano social, disputa-se com a o jesuíta noviço, p o r exem plo, ensine com o foi
Igreja o m o nopólio escolar, o que tem com o ensinado, “sem m esm o pensar nisso”. Ainda no
efeito secularizar mais ainda a escola. A distin século X IX , os Irm ãos das Escolas Cristãs ensi
ção entre os sexos vai tam bém se atenuando. nam mais ou m enos da m esm a m aneira que no
A b arreira entre as escolas prim ária e secundá século XVII; o m étodo de ensino m útuo, além
ria é igualm ente derrubada. A escola prim ária de algumas adaptações exigidas pelo grande nú
é cada vez m enos reservada ao povo e a escola m ero de alunos, participa em m uitos aspectos da
secundária não é m ais exclusivam ente acessível m esm a ideologia de ordem e de controle em vi
à burguesia. Discute-se sobre a passagem h ar gor dois séculos antes. Com o vimos, a sem elhan
m oniosa entre as duas escolas, para g arantir a ça é im pressionante.
igualdade de todos qu an to à instrução (G O N - É essa tradição pedagógica que denunciam ,
TARD, 1981: 253). na prim eira m etade do século X IX , os p a rtid á
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 163
, a se- rios da pedagogia nova. Esse saber pedagógico Segundo ele, deve-se superar o em pirism o pela
, um a sedim entado há três séculos é adquirido por experim entação controlada. Bernard dá o exem
itiu-se im itação; é um banco de preceitos a aplicar, plo da crença tradicional dos m édicos na eficácia
agógi- proveniente do uso e m odificado pela ex p e ri do tratam ento da pneum onia pela sangria. Essa
cobrir ência. Esse conjunto de respostas prontas, esse prática, am plam ente difundida, era um erro bem
rospe- rep ertó rio de ações pedagógicas a serem rep e consolidado na tradição m édica, e só um a ex
ideiro tidas c o m p o rta erros, evidentem ente. A gora, é perim entação científica controlada perm itiu que
enida- preciso q uestionar esse saber, passar pelo pente isso fosse constatado.
la r os N ão é pois surpreendente ver surgir, em fins
fino da crítica essas afirm ações que datam de
raras do século XIX e início do X X , vários autores
três séculos e, possivelm ente, tran sfo rm ar a
iterio- que preconizam a necessidade de superar a trad i
tradição em um a pedagogia mais adequada ao
nsfor- ção e de fundar a pedagogia sobre a ciência. Por
novo contexto.
exem plo, C harbonnel (1988) situa por volta de
Uma das funções fundam entais da ciência é
1880, na França, o m ovim ento que visa transfor
precisam ente verificar hipóteses, garantir a ve
m ar a pedagogia na ciência da educação:
racidade de certas afirm ações, corrigir erros. A
ciência, que tivera um forte im pulso durante o Nasce uma disciplina, intelectual e insti-
tucionalmente, a Ciência da Educação.
Século das Luzes, com eça a tom ar um a im por
e que Pela primeira vez, na França, seja na
tância decisiva em fins do século XIX. C onhece Sorbonne, em Lyon, ou em Bordeaux, al
saber
mos a influência que terá a d o utrina positivista guns homens sobem às cátedras das facul
raç ã o dades para ministrar cursos de Pedagogia1
de Augusto C om te (1798-1857). Este afirm ava
suítas (CHARBONNEL, 1988: 18).
que a hum anidade passa p o r certo núm ero de
saber
estágios na sua evolução. Primeiro, um estágio teo N o Dicionário de Pedagogia e de Instrução
ação,
lógico, caracterizado pela explicação sobrenatu Primária, publicado sob a direção de F. Buisson,
SAM-
ral dos fenôm enos; depois, um estágio m etafí em 1888, H. M arion assina o artigo “Pedago
tradi-
sico, em que as entidades sobrenaturais, com o gia” e define-a com o ciência da educação. Essa
tadas,
Deus, são substituídas p o r conceitos abstratos precaução lingüística não é sim plesm ente um
n que
da mesm a natureza; finalm ente, um estágio p o jogo de palavras superficial; ela assinala um a
10 foi
sitivo, em que os hum anos, renunciando às an m udança fundam ental na m aneira de conceber
da no
tigas explicações, descobrem pela observação a pedagogia e sua evolução futura. Pela pesquisa
ensi
e pelo raciocínio científico as leis que regem o de novos fundam entos mais sólidos, aquilo que
ne no
real. A ciência, segundo C om te, é pois o estágio se cham a m odernidade consagra precisam ente
além
mais avançado da evolução da hum anidade. N o essa ru p tu ra com um a tradição form ada de com
le nú-
mesmo espírito, conhecem os tam bém a enorm e portam entos sacralizados que eram baseados no
os da
influência da obra do m édico C laude Bernard, uso, na experiência, nas tentativas. O artigo de
m vi-
intitulada Introdução ao estudo da medicina ex M arion (1888: 2.240) tem esse sentido:
Ihan-
perim ental, publicada em 1865. Em substância,
esse au to r defende que, se toda ciência com eça
ciam, 1. É interessante notar que, pouco a pouco, na mesma época, a
pela observação e pela experiência fortuita, essa
Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, instaurava uma
rtidã- é apenas a prim eira etapa da sua elaboração. cátedra de Science and Art of Teaching (HAZLETT, 1989: 11).
164 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
entre o fim do século X IX e a prim eira m etade toda confiança em si mesmos, nascia a
do X X , um a série de autores, cujas iniciativas di grande esperança de que uma educação
versas, mas de espírito aparentado, contribuíram bem compreendida formaria indivíduos
capazes de pôr fim às guerras e organi
para a em ergência desse m ovim ento2.
zar, pela compreensão mútua, um mun
Uma prim eira onda chega ao fim do sécu do melhor (SKIDELSKY, 1972: 83).
lo XIX. Segundo Ferrière, a expressão “escola Assiste-se, portanto, à im plantação de um a sé
nova” (new school) parece ter surgido na Ingla rie de tentativas pedagógicas. Por exem plo, inau
terra po r volta de 1889, no m om ento em que gura-se a Fundação das Com unidades Livres de
Cecil Reddie cria um a escola nova em Abbot- H am burgo, onde as crianças organizam sozinhas
sholm e. Em 1894, Jo h n Dewey (cf. cap. 7) é a sua vida escolar, escolhem seus responsáveis e
nom eado professor de psicologia e de pedago redigem seus regulam entos (M ÉDICI, 1969: 33).
gia na Universidade de Chicago e funda a sua A criação da Associação para a Educação Nova,
fam osa escola prim ária ligada à universidade. em 1921, e a organização do Prim eiro Congres
K erschensteiner com eça no m esm o ano as suas so Internacional de Educação N ova, no mesmo
prim eiras experiências nas escolas de M unique, ano, são outros exemplos. Neill (cf. cap. 9) funda
na A lem anha (arbeitsschule: escola ativa). Em a sua célebre escola de Summerhill, na Inglater
1898, A. Binet publica a sua obra A fadiga in ra, em 1921. A pedagoga norte-am ericana, H.
telectual, na qual “declara guerra” à pedagogia Parkhurst divulga, em 1922, o plano D alton, que
tradicional. O Bureau Internacional das Escolas preconiza o m étodo do trabalho individualizado
N ovas é fundado em 1899 por Ferrière. M ontes- e, no m esm o ano, C. W ashburne dirige a Escola
sori (cf. cap. 8) cria em Rom a a prim eira Casa dei de W innetka, que concebe um m étodo particular
Bam bini (Casa das Crianças) em 1900. Decroly de educação nova em ciências e em aritm ética. A
funda em 1907, em Bruxelas, a Escola de Her- revista Pour l’Ere nouvelle é fundada em 1923.
m itage e apresenta um novo m étodo de leitura Piaget (cf. cap. 14) começa a publicar, no mes
global, dito natural. m o ano, um a série de obras sobre a psicologia
Uma segunda onda im portante se segue ao da criança, obras que exercerão um a influência
fim da Prim eira G uerra M undial. Segundo Cou- considerável no rápido desenvolvim ento da edu
sinet (1965), vários europeus sentem então a ne cação nova. C ousinet publica o seu m étodo de
cessidade de reform ar a educação para garantir a trabalho livre por grupo em 1925, e Freinet (cf.
salvação da hum anidade. Desejam, por m eio da cap. 10) inventa a im prensa na escola durante o
educação, criar um novo tipo de hum ano, a fim m esm o período. Dezenas de outras obras são pu
de suprim ir definitivam ente as causas da guerra blicadas durante esses anos de intensa atividade
(SKIDELSKY, 1972: 147). de pesquisa pedagógica. Os exem plos preceden
Depois de uma terrível revolução que tes bastam para m ostrar que o período entre o
desestimulara os homens e lhes tirara fim do século XIX e o com eço do X X é um m o
m ento forte na história da pedagogia.
2. Pode-se consultar proveitosamente a obra de F. Chatelain e As décadas subsequentes são, de certa for
R. Cousinet (1966) para obter uma cronologia detalhada dos
acontecimentos e os títulos das obras dos autores mais impor
ma, o prolongam ento desse m ovim ento, cujos
tantes associados à pedagogia nova, entre 1870 e 1966. efeitos ainda percebem os em nossos dias. À se
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova
tradicional, estimam ter sido lesados em que a m ente das crianças é com o um a pequena
seu desenvolvimento natural. São, pois, jarra de boca estreita, que devolve o líquido que
ao mesmo tempo, a parte queixosa,
ali se despeja em grandes quantidades e recebe
as testemunhas e os juizes (KESSLER,
1964: 31). aquele que se introduz gota a gota”. H avia, en
tre os jesuítas, um a preocupação com a infância
E com o a tradição pedagógica com porta
que os partidários da pedagogia nova ocultaram
dim ensões que atingem a totalidade da vida da
com pletam ente, utilizando a m etáfora de m odo
classe, é denunciada da m esm a m aneira, isto é, caricatural, com finalidade polêm ica.
opondo-se sistem aticam ente a um a organiza
M as é preciso observar que as críticas con
ção pedagógica com posta de elem entos julga
tra a pedagogia tradicional não eram sem fun
dos maus. A pedagogia tradicional abom inada,
dam ento. A tradição não evolui suficientem ente
proscrita, carrega todos os pecados do m undo:
rápido para enfrentar os novos contextos, e a
verbalism o, desconhecim ento da psicologia da
escola tradicional m erece a sua parte de acusa
criança, confusão entre fins e meios. Essa posi
ção. E ntretanto, “p retender que to d a inovação
ção m aniqueísta leva Kessler (1964: 30) a defen da Escola N ova corresponde a um defeito da es
der a hipótese de que os partidários da escola cola tradicional, é levar a sistem atização longe
nova criaram , para servir à sua causa, um a espé dem ais” (KESSLER, 1964: 33). C riando assim
cie de caricatura da pedagogia tradicional, que um a espécie de inim igo que tem todos os defei
utilizaram para definir a sua p rópria pedagogia. tos, os partidários da pedagogia nova podiam
A tradição pedagógica que descrevem os acim a se valorizar, em um a oposição quase term o a ter
to rn a, pois, progressivam ente, na boca dos seus m o, as características da sua p rópria pedagogia e
detratores, a “pedagogia tradicional”, expressão prom ovê-la. E um jogo sedutor, de acordo com
negativam ente carregada e extrem am ente pejo Snyders (1975: 13), o por todos os defeitos do
rativa, ainda em nossos dias. m undo aos encantos daquilo que se quer criar;
Em outras palavras, os adversários da peda ora, os partidários da pedagogia nova não se pri
gogia tradicional criticam não um objeto real, varam desse prazer.
mas um a caricatura, e isso, com um a intenção
polêm ica. Essa pedagogia tradicional denuncia 6.3.3 As características da oposição entre
da é, na realidade, um a coisa útil, inventada com pedagogia tradicional e pedagogia nova
fins erísticos para facilitar a orientação da ação
pedagógica em um a o utra direção. C om o exem Vamos exam inar, através dessa oposição, o
plo, vamos pensar na velha m etáfora da jarra. retrato de um a e da outra, tal com o foi dese
Todos nós já não ouvim os dizer que, na pedago nhado pelos partidários da pedagogia nova. Para
gia tradicional, concebia-se a m ente da criança facilitar a leitura desta subseção, retom am os os
com o um a simples jarra a encher? O ra, se con principais elem entos de descrição, que apresen
fiarmos no exem plo relatado po r Isambert-Jamati tam os no Q uadro 6.1.
(1990: 88), a m etáfora original, tirada dos textos Parece-nos, em prim eiro lugar, que Bloch
do Padre Jouvency no século XVIII é na verdade (1973: 34) tem razão de sublinhar que a peda
bem mais sutil: “O m estre não se esquecerá de gogia nova é prim eiram ente e antes de tudo um
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 169
Quadro 6.1 A op o siçã o entre a pedagogia tradicional e a pedagogia nova (segundo o s partidários da pedagogia nova)
Características Pedagogia tradicional Pedagogia nova
"Terminologia • Pedagogia fechada e formal. • Escola ativa.
• Abordagem mecânica. • Educação funcional.
• Pedagogia enciclopédica. • Escola renovada.
• Ensino dogmático. • Abordagem orgânica.
• Pedagogia centrada na escola. • Pedagogia aberta e informal.
• Escola nova (new school)2.
• Educação puerocêntrica (pedagogia centrada na criança).
-naKdade da • Transmitir uma cultura “objetiva” às novas • “Transmitir” a cultura a partir das forças vivas da criança.
•riMcação gerações. • Permitir o desenvolvimento das forças imanentes da
• Formar a criança, modelá-la. criança.
• Valores objetivos (o verdadeiro, o belo, o bem). • Valores subjetivos, pessoais.
■Modo • Educar de “fora” para “dentro”. • Educar de “dentro” para “fora".
• Ponto de partida: o sistema objetivo da cultura • Ponto de partida: o lado subjetivo, pessoal da criança.
que se recorta em partes que devem ser • Pedagogia do interesse.
assimiladas pela criança.
• Escola ativa (learning by doing).
• Pedagogia do esforço.
• Educação funcional.
• Escola passiva (a criança segue um modelo).
• Enciclopedismo.
Concepção da • A criança é como cera mole. •A criança tem necessidades, interesses, uma energia
criança • A infância tem pouco valor em relação à idade criadora.
adulta. • A infância tem um valor em si mesma.
• É preciso agir sobre a criança. • A criança age.
• Visa-se principalmente a inteligência. • Preconiza-se o desenvolvimento integral da criança.
• A criança gira em torno de um programa • 0 programa gira em torno da criança.
definido fora dela.
Concepção do • 0 conteúdo a ensinar às crianças não leva • Os campos de interesse das crianças determinam o
arograma em conta os seus campos de interesse (cultura programa (estrutura e conteúdo).
objetiva). • Realismo do programa (conteúdo ligado ao ambiente em
• Idealismo do programa (conteúdo que vive a criança).
desencarnado).
Autores • É uma tradição sem que seja possível • Dewey, Kerschensteiner, Claparède, Decroly, Cousinet,
“ oresentativos identificar suas origens. Freinet, Montessori, Ferrière.
Concepção da • A escola é um meio artificial. • A escola é um meio natural e social, no qual decorre a vida
cscola • Repressão das emoções (distanciamento). da criança (a escola como ambiente de vida).
• Lá longe, outrora. • Espontaneidade infantil.
• A criança resolve problemas artificiais. • Aqui e agora.
• A escola prepara para o futuro. • A criança resolve problemas reais.
• A escola ajuda a criança a resolver os seus problemas do
momento.
=*apel do • 0 mestre dirige. • 0 professor orienta, aconselha, desperta a criança para o
arofessor • O mestre está no centro da ação: ele dá o seu saber. É uma pessoa-recurso.
saber. • A criança está no centro da ação.
• 0 mestre é ativo: faz o exercício diante da • A criança se exercita.
criança, é o modelo a imitar.
-•sciplina • Disciplina autoritária (motivação extrínseca: • Disciplina pessoal (motivação intrínseca).
recompensas e punições). • Disciplina que vem do interior.
• Disciplina exterior que visa coagir.
I p o de • Pedagogia do objeto: a cultura a transmitir. • Pedagogia do sujeito: a criança a desenvolver.
sedagogia • Pedagogia de ordem mecânica. • Pedagogia da ordem espontânea (natural).
_____________ i________________________
' Vários desses termos aparecem entre 1917 e 1920.
~ Esse termo aparece em 1889 na Inglaterra e, em 1899, na França.
170 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
espírito, mais do que um m étodo particular. N a O objetivo da educação nova é, pois, fazer
verdade, com o já vimos, esse m ovim ento agrupa frutificar todos os dons que a criança traz con
vários atores que, em diversos contextos nacio sigo ao nascer (DEWEY, apud BLOCH , 1973:
nais (França, Bélgica, A lem anha, Inglaterra, Es 31). A escola já não se lim ita, daí em diante, às
tados Unidos etc.), elaboraram m aneiras de fazer dim ensões intelectuais: ocupa-se da totalidade
a escola bem diferenciadas um as das outras. Ve dos aspectos do ser h u m a n o . Por e x e m p lo ,
rem os, p o r exem plo, a que p o n to é diferente a K ersch en stein er pensava que a arbeitsschule (es
abordagem de M ontessori em relação à de Neill, cola ativa) deveria concentrar os seus esforços
e com o estas diferem dos m étodos de Freinet ou no desenvolvim ento das capacidades m anuais,
de Freire (cf. cap. 12). M as apesar dessas dife artísticas, m orais e intelectuais das crianças (p.
renças, todos com partilham a ideia de centrar a 49 e 62). Ainda mais, desenvolver a criança sig
educação sobre a criança e não sobre os conheci nifica que se enfatiza não mais a transm issão de
m entos a transm itir. certos conteúdos culturais po r um m estre, mas
aquilo que perm ite o desabrochar das forças es
Essa ideia fundam ental, que tem conseqüên
pirituais da criança (p. 32).
cias concretas em todas as dim ensões da pedago
gia, constitui um a espécie de revolução coper- Para atingir esse fim, era preciso m odificar
nicana do ensino, assim com o o livro Em ílio de consideravelm ente a concepção da criança. Na
Rousseau (cf. cap. 5). M as, nesse m o m en to da perspectiva da pedagogia nova, a criança não
história, opera-se um a reviravolta no que se re é mais um hom unculus, um hum ano reduzido,
fere não só às concepções, mas tam bém às p rá mas um ser integral, distinto do adulto, que tem
ticas. Bloch, retom ando a célebre expressão de as suas m aneiras de pensar e de agir (COUSI-
C laparède, escreve: NET, 1965: 67).
Mas pedir assim ao educador que si A criança não é uma cera mole que pos
tue o centro de gravidade na própria samos modelar à vontade; a criança tem
criança, é pedir-lhe nada menos do que dons, necessidades, apetites intelectuais,
realizar uma verdadeira revolução, se é curiosidades, “uma energia criativa e as-
verdade que, até agora, como vimos, o similadora” (BLOCH, 1973: 31).
centro de gravidade foi situado sempre Nesse valor positivo da criança é que irá
fora dela. É essa revolução - exigência
fundam entar-se toda a educação nova. Assim,
fundamental do movimento de edu
cação nova - que Claparède compara C ousinet (1965) retom a a m ensagem de Rous
àquela que Copérnico realizou na astro seau, que queria ensinar o ofício da vida ao seu
nomia, e que ele define com tanta felici personagem , Emílio. Para C ousinet, a educação
dade nas seguintes linhas: “Os métodos é obra da criança (e não do m estre), pois a crian
e os programas que gravitam em torno
ça nada tem para fazer além de viver: “ [...] A
da criança, e não mais a criança giran
do mais ou menos bem em torno de vida é para a criança - sim plesm ente pelo fato de
um programa decidido fora dela, essa é ser um a criança - com preensão e aprendizagem .
a revolução ‘copernicana’ à qual a psi Para aprender e com preender, ela só precisa vi
cologia convida o educador” (BLOCH, ver. Para ela, a vida po r si só é educação” (COU-
1973: 33). SINET, 1965: 89).
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 171
Por que se deve deixar a criança viver com o Antes de tudo, ele cria o ambiente, o
lhe aprouver? meio favorável. E começa pelo cenário.
Há uma organização do local escolar, a
[Porque] a sua natureza a leva a fazer o
disposição das carteiras, das mesas, um
que é necessário para o seu crescimento.
cuidado, a preocupação com a beleza e
Esses impulsos vitais - designados pelos
psicólogos como os “interesses profun com a renovação que já são um convi
dos” da criança - são, como se vê, alavan te ao trabalho ativo (CHATELAIN &
cas naturais da sua atividade, a cada etapa COUSINET, 1966: 33).
do seu desenvolvimento (CHATELAIN Depois, o professor adota um a atitude que
& COUSINET, 1966: 21).
inspira calm a, com preensão e confiança; os alu
Nessa perspectiva, a criança sabe n atural nos têm vontade de estar p erto dele. Estamos
m ente o que é bom para ela. Ela tem um a indivi longe da atitude rígida e distante da pedago
dualidade p rópria que orienta o seu desenvolvi gia tradicional. N as atividades que ele propõe,
m ento, de certa form a, com o m ostra a reflexão o m estre é, p rin cip alm en te, um estim ulador,
de Ferrière (apud MIALARET, 1969: 13):
um guia; está presente mas m antém -se discre
A criança cresce como uma pequena to. Além disso, e esta é sem dúvida a dim ensão
planta. Cada criança segundo a sua es
mais im portante do seu papel, ele procura basear
pécie, à semelhança de cada planta se
gundo a sua espécie, à semelhança de to d a atividade escolar nos cam pos de interesse
cada pequeno animal segundo a sua reais da criança e perm itir-lhe desabrochar. Para
espécie. [...] Assim, cada criança cresce C laparède (1958), a educação funcional é aquela
segundo a sua espécie, segundo a sua va que responde às necessidades da criança. A ati
riedade, segundo o matiz particular da vidade de todo indivíduo é suscitada p o r um a
sua mente.
necessidade. N ão se trata mais de im por neces
Essa insistência relativam ente à natureza da sidades de adultos às crianças, com o se fazia na
criança tem repercussões im portantes no papel pedagogia tradicional, na qual tudo era decidi
do professor. N a verdade, se a criança deve se do previam ente e fora da criança: os program as,
desenvolver de dentro para fora, “é preciso que as atividades, as lições etc. É preciso, de prefe
o adulto evite m ultiplicar as intervenções intem rência, que o m estre esteja à escuta daquilo que
pestivas que se exercem de fora para d e n tro ” vivem e sentem os alunos. Ele é o observador
ífER RIÈRE, apud BLOCH , 1973: 31). Essa é
atento daquilo que eles fazem e pode assim dife
a escolha decisiva efetuada pelos partidários da
renciar um capricho passageiro de um a necessi
pedagogia nova quanto ao papel do docente.
dade profunda. C om o se dizia com to d a a razão
E e s nos convidam a situar o debate em torn o
na época, a ajuda do docente pode ser útil, mas
é t duas opções. A prim eira, tradicional e nefas-
a sua direção não é necessária.
agir “de fora para d e n tro ” ; a segunda, mais
priada: agir “de dentro para fora” (BLOCH, Assim, o conjunto das atividades que se de
3: 32). O m estre deixa, pois, de ser aquele senrolam na classe são m odificadas. N a lógica
dá constantem ente o saber (p. 48). Seu papel daquilo que vimos anteriorm ente, toda atividade
iste, antes, em responder às necessidades da deve responder a um a necessidade (CLAPARÈ
ça, situando-a no centro das suas preocu- DE, apud BLOCH, 1973: 36). C onsequente
s. m ente, nenhum a atividade é im posta a partir do
172 Parte I A evolução das ideias e das práticas pedagógicas da Antiguidade até o século XX
exterior. A escola ativa de que se fala não é sim a escola tradicional, mas problem as concrt-:»^
plesm ente um a escola onde se desenrolarão ativi vindos do seu m undo in terio r (BLOCH, i-~ 3
dades; pelo contrário, é um conceito preciso, do 36). É p o r essa razão que o m étodo dos p r c r e a j
qual Kerschensteiner (apud BLOCH , 1973: 44) é tão p o p u lar na escola nova. O fam oso
dá um a definição com plexa, mas interessante: ning by doing de Dew ey expressa p e r f e i t a m a J
Em vez de exigir que a criança seja “ati a ideia de que, ao fazer as atividades (que c m I
va”, é preciso que ela seja “ativa por si respondem às suas necessidades), é que a cr*sm
mesma”, e ser “ativa por si mesma” não ça evolui e aprende. M as deve-se n o tar que. a j
significa apenas que ela deve ser “por si
p rep arar atividades atraentes, o m estre não raw
mesma ativa”, mas que o princípio da
quilo que a obriga à atividade deve es ponde necessariam ente às necessidades da c r á J
tar “nela mesma”, e que essa obrigação ça. Tanto Dewey quanto C laparède d e n u n c ia *
deve emanar “da própria criança”, dos severam ente os artifícios inventados pelos pro
seus “próprios interesses”, e traduzir fessores hábeis, para suscitar o interesse atravdti
a urgência com a qual estes exigem os de atividades divertidas, mas não significativas*
meios da sua satisfação.
para as crianças (CHATELAIN & COUSINET
Insiste-se nas atividades de expressão. Efe 1966: 38). Segundo eles, um interesse não pooe
tivam ente, favorecendo a expressão infantil, ser estim ulado a p artir do exterior; ele só pooe
pode-se perceber m elhor tanto as necessidades surgir do fundo do p ró p rio indivíduo.
quanto os cam pos de interesse da criança. É
Essa abordagem tem um a incidência impor
assim que são desenvolvidas profusam ente as
tante no program a a “tran sm itir” aos alunos. N i
atividades de desenho livre, de redação sobre
escola nova não há program a preestabelecidc
tem as livrem ente escolhidos pelos alunos, as
Para Dewey, os program as são estranhos à ex
brincadeiras espontâneas, as conversas em que
periência da criança; são um a preparação para
as crianças discutem sobre aquilo que as p reo
mais tarde e não poderiam ser verdadeiram ente
cupa verdadeiram ente. Além disso, as atividades
devem “tom ar sem pre com o p o n to de partida o educativos. As necessidades e os cam pos de inte
m eio natural e social no qual decorre a vida da resse dos alunos devem, pois, estar na base dos
criança” (BLOCH, 1973: 34). A escola nova é program as.
um a escola aberta para o m undo e não cortada Veremos como, aos olhos de Dewey,
da vida. Assim, o docente não se obstina em exi uma matéria deve corresponder preci
samente a esse ponto de vista para fa
gir que as crianças realizem atividades que não
zer parte do programa; e só poderia ser
sejam significativas para elas e cuja utilidade introduzida nele no momento em que
esteja dependente unicam ente de critérios dos ela intervém no ciclo vivo dos interesses
adultos. De preferência, faz-se en trar na escola da criança, para permitir-lhe resolver
o m undo da criança. E o seu m undo é o que a os seus problemas. Essa regra é válida
p reocupa “aqui e agora”. Jo h n Dewey dizia que para o ensino tanto das ciências quan
to da história, da geografia e da língua
a criança procura constantem ente resolver os
materna. Ela implica a condenação de
problem as com que se depara. N ão se deve dar todo ensino dogmático que viesse a ser
à criança um problem a fictício e fora da sua ex imposto aos alunos em virtude de um
periência viva, com o aqueles em que era perita programa preestabelecido, além de pro
6 Da pedagogia tradicional à pedagogia nova 173
K. clamar que “toda lição deve ser uma res puramente exterior dos métodos tradi
3: posta” [a uma necessidade] (BLOCH, cionais [...] vem do interior”; a discipli
1973: 38). na interior deve substituir a disciplina
o>
exterior (BLOCH, 1973: 52).
ir- A concepção da disciplina é um a característi
K ca im portante da abordagem centrada nos cam Essa disciplina interior se m anifesta na a t
•r- pos de interesse das crianças. N a escola tradicio m osfera geral de um a classe nova. N ão se en
D- nal m antém -se a disciplina de m odo autoritário, contra ali a ordem m ecânica e excessiva da clas
bO com o se o aluno estivesse constantem ente en tre se tradicional, seu clima sério e triste; a classe
Sr- gue à agitação e à deso rd em e fosse preciso vi- assemelha-se, de preferência, a um a colm eia em
n- giá-lo. C om pletam ente diferente é a concepção que todos estão ocupados em suas tarefas respec
m de disciplina em um a perspectiva nova. Q uando tivas, num a espécie de am biente sereno (p. 43).
D- há interesse na classe, quando o aluno pode tra
Em conclusão, o retrato da pedagogia tra
CS balhar com aquilo que o m otiva verdadeiram en
dicional pintado pelos partidários da pedagogia
t>- te, a questão da disciplina se apresenta diferente
nova é bastante som brio. E ntretanto, esse artifí
i; m ente e fica, em grande parte, resolvida.
cio retórico lhes perm itiu definir o tipo de p ed a
Je A velha disciplina autoritária e policial,
gogia que preconizavam . E nquanto a pedagogia
k [...] a disciplina de heteronomia e de co
ação com todas as suas ameaças pode ser tradicional é um a pedagogia do objeto, da cultu
suprimida. “O interesse, o interesse pro ra a transm itir pelo professor ao aluno, a peda
ir fundo pela coisa que deve ser assimilada gogia nova se inscreve em um a dinâm ica oposta:
ia ou executada”, substitui, como “mola
substitui o ensino do m estre pela aprendizagem
o. propulsora da educação”, o temor ao
castigo, e até o desejo de recompensa. do aluno e se define, po r conseguinte, com o um a
s- pedagogia do sujeito. Essa visão da pedagogia
Torna-se assim o princípio de uma dis
ra ciplina que em oposição à “disciplina continua bem presente em nossos dias.
te
e-
»
Conclusão
Resumo
SKIDELSKY, R. (1972). Le mouvement des écoles nou- DURAND, S. M. (1961). Pour ou contre l’éducation
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DEBESSE, M. & MIALARET, G. (orgs.) (1971).
~rjité des sciences pédagogiques. Tomo 2. Paris: PUF.
N o alvorecer do século X X , a pedagogia teve Esta segunda parte apresenta as respostas de
de enfrentar novos e im portantes desafios decor alguns dos mais im portantes pedagogos do século
rentes da herança contraditória dos séculos prece X X para essas questões, tensões e contradições:
dentes. De fato, desde o Século das Luzes, a visão Jo h n Dewey, M aria M ontessori, A lexander Neill,
rousseauniana de um a infância feliz e livre tinha Célestin Freinet, Carl Rogers e Paulo Freire.
conseguido um destaque considerável. E ntretan Apesar da diversidade de suas concepções,
to, essa visão está em desacordo com a herança todos esses pedagogos têm um aspecto em co
de um a pedagogia considerada com o um a prá m um : tendo escrito, em sua m aioria, num erosos
tica de ordem baseada no controle das crianças, livros, eles não se contentaram em im aginar ou
im plem entada no século XVII, com as prim eiras sonhar com um a pedagogia ideal, mas tiveram
com unidades dedicadas ao ensino, tanto protes a ousadia de colocá-la em prática em escolas e
tantes quanto católicas. Essa pedagogia do con turm as junto de alunos e professores de carne e
trole instalou-se am plam ente nas instituições de osso. Em suma, todos esses pedagogos são cria
ensino dos séculos XVIII e XIX; além disso, nes dores e inovadores - alguns se definem , inclusi
te últim o século, impôs-se gradualm ente a ideia ve, com o revolucionários não deixando de ser
de um a escola prim ária obrigatória para todas as hom ens e m ulheres de ação - da ação pedagógi
crianças. N o século XIX, essa ca - que trabalham no terreno
ideia será dom inante através da A pedagogia contemporânea é concreto das práticas de ensino
edificação dos grandes sistemas um espaço de tensões entre as e da organização das escolas e
escolares m odernos que preten tradições e as inovações, entre das classes.
dem ser dem ocráticos e abertos a ciência e a liberdade, entre H á mais de um século, nas
a todas as crianças sem exceção.
a democracia de uma escola escolas e nas salas de aula, a pe
Enfim, no final do século XIX,
emerge a ideia de um a ciência da
para todos e as necessidades dagogia alim enta-se de - além
peculiares de cada aluno. de confrontar-se com - suas
educação capaz de servir de base
ideias, seus posicionamentos, suas
à pedagogia; essa ciência positi
proposições de m udança, suas inovações e suas
va, que reivindica apoiar-se em fatos objetivos e
criações. Aos poucos, e m uitas vezes de m aneira
em conhecim entos verificáveis, tem a pretensão
tím ida e distorcida, estas têm im pregnado efeti
de fundar um a nova educação baseada na crítica
vam ente as práticas escolares e, no século XXI,
das antigas tradições pedagógicas.
acabaram praticam ente p o r dom iná-las. Assim,
M as com o conciliar um a nova escola públi nos capítulos desta segunda parte, os leitores
ca - em determ inados países, esta chega a aco descobrirão que a pedagogia contem porânea
lher dezenas de m ilhões de alunos - com a antiga é um espaço de tensões entre as tradições e as
pedagogia do controle e da ordem ? E com o é inovações, entre a ciência e a liberdade, entre a
que essa pedagogia será capaz de se harm onizar dem ocracia de um a escola para todos e as ne
com um a visão positiva da infância e com um a cessidades peculiares de cada aluno. Os pedago
concepção científica da educação? Enfim , essa gos do século X X nos ensinaram justam ente que
concepção científica será com patível realm ente esse espaço era habitável, considerando que aí
com determ inados valores, tais com o a liberdade era possível respirar, viver e, sobretudo, agir em
da criança, o respeito po r seu desenvolvim ento e benefício de todos, a com eçar pelo espaço desti
um ensino a serviço da espontaneidade? nado às crianças e aos jovens.
7
John Dewey: aprender pela ação*
to ò ert B. Westbrook
Objetivos de aprendizagem
' Este texto é extraído de Perspectives: revue trimestrielle d’éducation comparée (Paris: Unesco/Bureau intemational d’éducation), vol.
XXIII, n. 1-2, mar.-jun./1993: 277-293. Unesco: Bureau International d'Éducation, 2000.
182 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
Introdução
Essa teoria do conhecim ento enfatizava a nas quais o professor haveria de escrever as li
“necessidade de com provar o pensam ento por ções sobre a civilização. Ao ingressar na escola, a
meio da ação se há a vontade de transform á-lo criança “já é intensam ente ativa e a incum bência
em conhecim ento” ; Dew ey reconheceu que essa da educação consiste em assum ir essa atividade
condição se estendia à p ró p ria teoria (MAYHEW e orientá-la” (DEWEY, 1899: 25). Ao iniciar sua
& EDWARDS, 1966: 464). Seus trabalhos sobre escolaridade, a criança traz consigo quatro “im
a educação tinham po r finalidade, sobretudo, pulsos inatos” - os “de se com unicar, de cons
aprofundar as im plicações de seu instrum enta- truir, de procurar saber e de aperfeiçoar a form a
lismo para a pedagogia e testar sua validade m e de se ex p rim ir” - que são “os recursos naturais,
diante a experim entação. o capital a investir, cuja valorização condiciona o
Dew ey estava convencido de que num erosos crescim ento ativo da criança” (p. 30). A criança
problem as da prática educacional de seu tem po traz com ela tam bém os interesses e as ativida
se deviam ao fato de estarem fundam entados em des de seu lar e do en to rn o em que vive; deste
uma epistem ologia dualista errônea - denuncia m odo, incum be ao educador a responsabilidade
da em seus escritos da década de 1890 sobre psi de usar essa “m atéria-prim a”, orientando as ati
cologia e lógica m otivo pelo qual ele se p ro vidades da criança para “resultados positivos”
pôs elaborar um a pedagogia baseada nas ideias (MAYHEW & EDWARDS, 1966: 41).
que defendia: funcionalism o e instrum entalis- Tal argum entação acabou levando Dewey a
mo. Tendo dedicado m uito tem po a observar o enfrentar tanto os partidários de um a educação
crescim ento dos próprios filhos, Dewey estava tradicional, “centrada no program a”, quanto os
persuadido de que a dinâm ica da experiência reform adores rom ânticos que defendiam um a
era sem elhante nas crianças e nos adultos: uns e pedagogia “centrada na criança”. Os tradiciona
outros são seres ativos que aprendem m ediante listas, liderados po r W illiam Torrey H arris, C o
o enfrentam ento de problem as que surgem no missário da Educação dos Estados Unidos, eram
decorrer das atividades que vierem a m obilizar favoráveis a um a instrução que destila, com m é
seu interesse. O pensam ento é um instrum ento todo e de form a disciplinada, a sabedoria acum u
a serviço tan to das crianças quanto dos adultos lada pela civilização: neste caso, o objetivo é o
para resolver os problem as da experiência; por program a de estudos que determ ina os m étodos
sua vez, o conhecim ento é o acúm ulo de sabe de ensino. A criança, po r sua vez, limita-se a “re
doria engendrada no decorrer da solução desses ceber, aceitar; ela cum pria seu papel quando se
problem as. Infelizm ente, as conclusões teóricas m ostrava dócil e disciplinada” (DEWEY, 1902:
desse funcionalism o tiveram - com o constata o 276; trad. fr. PID O U X , 1913: 95). N o lado
próp rio Dewey - pouco im pacto na pedagogia oposto, os defensores da educação focalizada na
e os estabelecim entos escolares ignoravam essa criança, tais com o G. Stanley Hall e m em bros
identidade de natureza entre a experiência das proem inentes da N ational H erb art Society, argu
crianças e a dos adultos. m entavam que o ensino das diversas disciplinas
Dewey afirm ava que as crianças não chega deveria subordinar-se ao desenvolvim ento n atu
vam à escola com o lousas em branco e passivas, ral e desinibido da criança. Para eles, a expressão
186 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
dos im pulsos espontâneos da criança é “o ponto 7.2.1 A utilização dos interesses e das
de partida, o centro, o objetivo” (p. 95). Essas atividades da criança
duas escolas de pensam ento travaram um acir
rado com bate na década de 1890: os tradiciona É sobejam ente conhecida a crítica de Dewei
listas defendiam os conhecim entos adquiridos, contra os tradicionalistas pelo fato de não reLa-
com m uita dificuldade, ao longo de séculos de cionarem os tem as de estudo com as atividades
luta intelectual e consideravam que a educação da criança; em com pensação, seus ataques cor-
centrada na criança era caótica, anárquica, um a tra os partidários da educação centrada na criar -
rendição da autoridade dos adultos, enquanto ça - criticados po r não associarem os interesses e
os rom ânticos celebravam a espontaneidade e a as atividades da criança aos temas de estudo - sã:
m udança, além de criticarem os adversários por m uitas vezes silenciados. Alguns críticos da teo
reprim ir a individualidade das crianças m ediante ria pedagógica de Dewey confundiram sua posi
um a pedagogia tediosa, rotineira e despótica. ção com as dos rom ânticos, mas ele se diferen
ciava claram ente dessas posturas. O perigo do
Para Dewey, esse debate era a m anifestação,
rom antism o, escreve ele, consiste em “tratar os
um a vez mais, de um dualism o pernicioso, con
interesses e as capacidades da criança com o coi
tra o qual ele se rebelou. Em sua opinião, era
sas significativas por si m esm as” (DEWEY, 1902:
possível resolver tal disputa, se os dois cam pos
280; trad. fr. PIDO UX , 1913: 102). M as seria
estivessem dispostos a
desastroso cultivar, tais com o são, as tendências
se desembaraçar da ideia funesta de que e os interesses das crianças. O bom educador
haveria uma oposição de natureza (em
deve ficar vigilante a fim de tirar partido des
vez de uma diferença de grau) entre a
experiência da criança e os diversos sas tendências e desses interesses para orientar
temas que ela há de abordar no decor a criança em direção à sua plena realização nos
rer de seus estudos. Impõe-se chamar a tem as de estudo, sejam eles de natureza cientí
atenção para o fato de que sua experi fica, histórica ou artística “porque os interesses
ência já contém, em si mesma, determi nada são além de atitudes em relação a experiên
nados elementos - fatos e verdades - de
cias possíveis; nada têm de acabado, de com ple
natureza semelhante aos que constituem
os estudos elaborados pela razão dos to; seu valor corresponde ao de um a alavanca”
adultos; e o que é ainda mais impor (p. 102). Os diversos ram os de estudo ilustram
tante [sic], impõe-se mostrar como ela a experiência acum ulada pela hum anidade; ora,
contém as atitudes, os incentivos e os esse é, precisam ente, o aspecto para o qual tende
interesses que haviam contribuído para
a experiência im atura da criança. E Dewey tira a
desenvolver e organizar os programas
ordenados de forma lógica. Por outro seguinte conclusão:
lado, no que diz respeito aos programas, Os fatos e as verdades que entram na
trata-se de interpretá-los como o resul experiência da criança, e aqueles con
tado orgânico de forças que intervém tidos nos programas de estudo, consti
na vida infantil, além de descobrir aí os tuem os termos inicial e final da mes
meios de fornecer à experiência insufi ma realidade; estabelecer uma oposição
ciente da criança uma maturidade mais entre uns e outras é opor a infância à
rica (DEWEY, 1902: 277-278; trad. fr. maturidade do mesmo corpo vivo; é
PIDOUX, 1913: 98). afirmar que o movimento instintivo de
7 John Dewey: aprender pela ação 187
Dewey adm ite que a m aioria dos professores to com unitário é substituído po r “m otivações e
prim ários não possuem os conhecim entos teó ri norm as fortem ente individualistas” : m edo, em u
cos e práticos indispensáveis para ensinar dessa lação, rivalidade, julgam entos de superioridade e
m aneira, mas considerava que eles eram capazes de inferioridade; p o r isso m esm o, “os mais fra
de adquirir tal aprendizagem . cos perdem o senso de suas capacidades e acei
tam um a posição de inferioridade persistente e
d u rad o u ra”, enquanto “os fortes são tentados a
7.3 Democracia e educação
se vangloriar po r serem os mais fortes” (p. 64,
H á quem , às vezes, atribua o qualificativo 65). Assim, Dewey afirm ava que, para fom entar
“p rogram a o c u lto ” à m odelagem da perso n ali o senso social das crianças e desenvolver seu es
dade da criança, finalidade m oral e política da pírito dem ocrático, a escola deveria organizar-se
escola; e n tre ta n to , no caso de Dewey, esse as com o com unidade cooperativa. Se pretendem os
pecto de sua teo ria e de sua prática pedagógicas que a educação se to rn e um a preparação para a
não foi m enos explícito, em bora seja m uito m e dem ocracia, a escola deve se converter em “uma
nos radical, do que os o u tro s objetivos estabele instituição que seja, provisoriam ente, um lugar
cidos no p ro g ram a de estudos. D ew ey não hesi de vida para a criança, em que esta seja um m em
tava em afirm ar que “a form ação de d eterm in a bro da sociedade, ten h a consciência dessa filia
do caráter é o único fundam ento v erdadeiro de ção e esteja disposta a dar-lhe seu con trib u to ”
um a c o n d u ta m o ra l”, nem em identificar essa (DEWEY, 1895: 224).
“c o n d u ta m o ra l” com o exercício dem ocrático A criação de condições favoráveis para a
(DEWEY, 1897b). form ação do senso dem ocrático na classe não
O indivíduo se realiza, de acordo com Dewey, é um a tarefa fácil: com efeito, tal disposição de
usando seus talentos peculiares, a fim de con ânim o não é algo que os m estres possam im por
trib u ir p a ra o bem -estar da c o m u n id ad e; p o r aos alunos, mas têm de criar um am biente so
conseguinte, a função crucial da educação em cial propício a incentivar as crianças a assumir,
um a sociedade dem ocrática consiste em ajudar espontaneam ente, a responsabilidade de um a
a criança a adquirir o “c aráter” - conjunto de c o n d u ta m oral dem ocrática. O ra, esse tipo de
hábitos e v irtu d e s - que lhe p e rm itirá reali- vida, observava Dewey, “só existe quan d o o
zar-se plenam ente dessa form a. Ele considerava indivíduo consegue apreciar p o r si m esm o os
que, em seu conjunto, as escolas norte-am erica- objetivos adotados p o r ele e trab alh a com in
nas não cum priam tal tarefa; em sua m aioria, teresse e dedicação p ara alcançá-los” (DEWEY,
elas em pregavam m étodos com um a orientação 1897a: 77). D ew ey tin h a consciência de ser
dem asiadam ente “individualista” que obrigavam m uito exigente em relação aos professores e é
todos os alunos da classe a ler, sim ultaneam ente, p o r isso que, ao evocar seu papel e sua im p o r
os mesm os livros e a recitar as mesmas lições. tância social, no final da década de 1890, vol
Nessas condições, atrofiam -se os im pulsos so to u a rec o rre r ao evangelism o social, que ele
ciais da criança, e o m estre não pode tirar par tin h a ab an donado, qu an d o designa o docente
tido do desejo inato da criança “para dar, fazer, com o “o an u nciador do v erdadeiro Reino de
ou seja, servir” (DEWEY, 1897a: 64). O espíri D eus” (DEWEY, 1897b: 95).
C onform e dá a entender esse testam ento, ma, em vez de reprodução social, era necessário
a teoria educativa de Dewey está m uito m enos reconstruí-las com pletam ente. Tal era o objeti
centrada na criança e mais no professor do que vo mais am bicioso de Dewey com o reform ador
se possa pensar. Sua convicção de que a esco da educação: transform ar os estabelecim entos
la, tal com o a concebe, inculcará nas crianças as escolares dos Estados Unidos em outros tantos
virtudes dem ocráticas procede da confiança de instrum entos de dem ocratização radical da so
positada não tan to nas “capacidades prim itivas e ciedade norte-am ericana.
espontâneas da criança”, mas na habilidade dos
m estres para criar, na classe, um en to rn o p ro p í
7.4 A escola de Dewey
cio a levar a criança a transform á-las em “hábitos
sociais, frutos de um a com preensão inteligente Em 1896, Dewey declarou que “a escola é
de sua responsabilidade” (p. 94-95). a única form a de vida social a funcionar na abs
A fé de Dewey no professor transparece tam tração e em m eio controlado, a ser diretam ente
bém na sua convicção, m anifestada na década de experim ental; além disso, se um dia a filosofia
1890, de que “a educação é um m étodo funda viesse a tornar-se um a ciência experim ental, seu
m ental do progresso e da reform a da sociedade” ponto de partida seria a construção de um a esco
(p. 93). E havia certa lógica nessa profissão de la” (DEWEY, 1896a: 244). Ele chegou a Chicago
fé: na m edida em que a escola desem penha um com a ideia bem nítida do tipo de “escola labora
papel decisivo na form ação da personalidade das tó rio ” que ele p ró p rio gostaria de im plem entar.
Em 1894, ele confiou à esposa:
crianças de determ inada sociedade, ela pode, se
é concebida com essa finalidade, transform ar de Tenho em minha mente, cada vez mais
presente, a imagem de uma escola em
m aneira fundam ental essa sociedade. A escola
que, no centro e na origem de tudo, es
constitui, efetivam ente, um a espécie de caldo de teja alguma atividade verdadeiramente
cultura suscetível de influenciar realm ente o cur construtiva e a partir da qual o trabalho
so da sua evolução. De fato, se os professores se desenvolva sempre em dois sentidos:
desem penharem bem seu trabalho, qualquer re por um lado, a dimensão social dessa
form a haveria de se to rn a r praticam ente supér atividade construtiva; e, por outro, o
contato com a natureza que lhe fornece
flua: um a com unidade dem ocrática e coopera
sua matéria-prima. Posso ver perfeita
tiva acabaria po r em ergir diretam ente da classe. mente, em teoria, como a atividade de
O problem a é que, em sua m aioria, as escolas carpintaria instalada para construir uma
maquete de casa, por exemplo, venha a
foram concebidas não para transform ar a socie
ser o centro de uma formação, por um
dade, mas para reproduzi-la. Com o dizia Dewey, lado, social e, por outro, científica -
“em todas as épocas, o sistema escolar dependeu tudo isso acompanhado de um treina
sempre do tipo predom inante de organização da mento físico, concreto e positivo, da vis
vida social” (DEWEY, 1896b: 285). Portanto, as ta e das mãos (DEWEY, 1894).
convicções esboçadas em seu credo pedagógico a A decisão incum bia, daí em diante, às a u to
respeito da escola e dos professores visavam não ridades universitárias, diante das quais Dewey
tanto o que era, mas o que poderia ser. Para que havia defendido os m éritos de um a escola que,
as escolas se convertessem em agentes de refor m antendo o labor teórico em contato com as
190 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
exigências da prática, constituiria o elem ento es diam no m ercado; as de 7 anos estudavam a vida
sencial de um D epartam ento de Pedagogia - “o na época pré-histórica em cavernas construídas
nervo de todo o sistem a”. Para tan to , conseguiu por elas próprias, enquanto as de 8, em um es
o apoio de H arper, ativista firm em ente com pro paço mais afastado, estavam concentradas nas
m etido com a cam panha em favor da reform a aventuras dos navegadores fenícios, de Robin-
educacional de Chicago (DEWEY, 1896c: 434). son C rusoé e de outros exploradores posterio
Em janeiro de 1896, a Escola Experim ental da res, tais com o M arco Polo, Fernão de M agalhães
Universidade de Chicago abria suas portas: ela e Cristóvão Colom bo. A história e a geografia
com eçou com 16 crianças e dois m estres; mas, locais ocupam a atenção das crianças de 9 anos
em 1903, já contava com 140 alunos e dava em de idade, enquanto as de 10 estudavam a his
prego a 23 professores prim ários, além de 10 tória colonial, m ediante a construção da réplica
assistentes graduados da universidade. A m aio de um côm odo da m oradia utilizada na época
ria dos alunos procedia de famílias de profissio dos pioneiros. O trabalho dos alunos da faixa
nais liberais e m uitos eram filhos de colegas do etária correspondente a 11 e 12 anos está menos
próprio Dewey. Bem rapidam ente, a instituição estritam ente concentrado em um período par
ficou conhecida com o a “Escola de D ew ey”, ticular da história - m esm o que esta disciplina
já que as hipóteses testadas nesse “laboratório” continue a ser um com ponente im portante de
eram estritam ente as da psicologia funcional e seus estudos - e se organiza sobretudo em tor
da ética dem ocrática de Dewey. no de experim entos científicos de anatom ia, ele-
trom agnetism o, econom ia política e fotografia.
Os alunos de 13 anos de idade que, p o r terem
7.4.1 As vantagens do centramento fundado um clube de debates, necessitavam de
temático em uma ocupação um lugar para reuniões, estavam envolvidos na
construção de um espaço de dim ensões respeitá
N o núcleo do program a de estudos da Esco
veis; aliás, esse projeto cooperativo irá m obilizar
la de Dewey figurava o que ele designava com o
alunos de todas as faixas etárias e, para m uitos,
“ocupação”, ou seja, “um m odo de atividade por
irá perm anecer o m om ento em blem ático da his
parte da criança que reproduz um tipo de trab a
tória da escola.
lho exercido na vida social, ou paralelo a ela”
(DEWEY, 1899: 92). Os alunos, divididos em C onsiderando que as atividades práticas que
onze faixas etárias, executavam um a grande va c o n stitu em essas “ o c u p a ç õ e s” têm p ro lo n g a
riedade de projetos centrados em diferentes ofí m entos que são, por um lado, o estudo científico
cios tradicionais ou contem porâneos. As crian dos m ateriais e processos utilizados p o r elas e,
ças mais jovens (4 e 5 anos de idade) estavam po r o u tro , seu papel na sociedade e na cultura, o
envolvidas em atividades que lhes eram fam ilia centram ento tem ático em um a ocupação fornece
res pelo fato de terem presenciado sua prática a oportunidade não só para a form ação m anu
nas próprias casas ou entre os vizinhos: cozinha, al e a investigação histórica, mas tam bém para
costura, carpintaria. As crianças de 6 anos cons trabalhos em m atem ática, geologia, física, bio
truíam um a granja com cubos, plantavam trigo logia, quím ica, artes plásticas, m úsica e idiomas.
e algodão, que colhiam , transform avam e ven N a Escola E xperim ental, de acordo com Dewey,
7 John Dewey: aprender pela ação
*2 criança vai à aula para fazer coisas: cozinhar, vidir a quadra de areia em vários cam
costurar, trabalhar a m adeira e utilizar ferra pos destinados a receber as culturas de
mentas m ediante atos de construção simples. E, trigo, milho e aveia, além de prever a
localização da moradia e da granja,
"esse contexto e com o conseqüência desses atos,
as crianças usaram a régua de um pé,
se articulam os estudos: escrita, leitura, cálculo como unidade de medida, e começaram
a c .” (DEWEY, 1896a: 245). Uma com petência, a entender o que significava um quarto
tal com o a leitura, é adquirida quando a criança e uma metade; mesmo que as divisões
chega ao estágio em que ela reconhece a utilida não fossem exatas, eram suficientes para
permitir-lhes delimitar a granja. A medi
de desse saber-fazer para a resolução dos p roble
da que se familiarizavam com o uso da
mas que ela enfrenta nas atividades que fazem régua e aprendiam a manipular o meio
parte de sua “ocupação” . Segundo Dewey, “se pé, o quarto de pé e a polegada, tor-
ama criança com preende a razão pela qual tem nou-se possível esperar, e conseguir,
de adquirir determ inada com petência, tal aqui que elas fizessem um trabalho com maior
sição vai se to rn a r m uito mais fácil para ela. Por precisão... Para a construção dos pré
dios da granja eram necessários quatro
conseguinte, os livros e a leitura são considera postes para as esquinas, além de seis ou
dos estritam ente com o ferram entas” (MAYHEW sete ripas da mesma altura. Ao medir as
& EDWARDS, 1966: 26). ripas, as crianças esqueciam frequente
mente de manter o ponto de partida da
K a th e rin e C am p M ay h ew e A nna C am p
graduação da régua na extremidade do
Edw ards, que eram professoras da Escola Ex lado esquerdo da ripa de modo que as
perim ental, resenharam p o sterio rm en te, e de medidas tinham de ser refeitas duas ou
form a detalhada, essa notável experiência ed u três vezes antes de obter uma medição
cativa, m ostran d o que D ew ey e seus colegas exata. Em seguida, o que havia sido fei
to em um lado da casa, elas tiveram de
tinham conseguido, em grande p arte, a tra d u
repeti-lo, em seguida, no outro; com o
zir na prática a Teoria D ew eyana, algo que é treino, o trabalho ganhava, naturalmen
confirm ado, aliás, pelos testem unhos de obser te, rapidez e precisão (MAYHEW &
vadores m enos diretam en te im plicados. Basta EDWARDS, 1966: 83-84).
citar aqui um único exem plo: os alunos de 6 Exem plos sem elhantes a esse ilustram com o é
anos, baseando-se na fecunda experiência em possível não só p artir do interesse da criança po r
atividades dom ésticas executadas na pré-escola, um a atividade concreta na qual ela está envolvi
focalizaram seu trab alh o “nas ocupações úteis da (construção de um a m aquete de granja) para
do la r” . Eles vão construir, na q u ad ra com areia levá-la a adquirir conhecim entos em determ ina
da recreação, a m aquete de um a granja e sem ear da m atéria (medidas e frações m atem áticas), mas
trigo no pátio da escola. À sem elhança do que tam bém fam iliarizá-la deste m odo com m étodos
se passava na m aioria das atividades de cons em píricos de solução de problem as, em que o
trução em preendidas na escola, a edificação da erro é um fator im portante da aprendizagem .
m aquete da granja perm itiu-lhes ap re n d e r algu A pedra angular da pedagogia de Dewey con
mas noções de m atem ática: sistia em fornecer às crianças um a “experiência
No momento em que, para materializar de prim eira m ão” sobre situações-problem a que,
a produção agrícola, foi necessário di em grande parte, haviam sido criadas p o r elas
192 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
próprias. C om efeito, em sua opinião, “a m ente expressão da ética e da Teoria D em ocrática deakt
não consegue estar realm ente liberada enquan grande pedagogo. Ele tinha o costum e de alar
to não houver em penho em criar condições que m ar: “A prioridade cabe à função social da edb-
obriguem a criança a participar ativam ente da cação” (MAYHEW & EDWARDS, 1966: 46~. j
construção personalizada de seus próprios p ro A Escola de Dewey era, acim a de tudo, uma ex
blemas e a colaborar na im plem entação dos m é periência de educação para a dem ocracia.
todos que lhe perm itirão resolvê-los - nem que De acordo com todos os testem unhos dispc- j
seja m ediante m últiplos ensaios e erros (DEWEY,
níveis, Dewey obteve um notável êxito na trans
1903: 237).
form ação da escola-laboratório em um a comu
Ao ler as descrições e resenhas da Escola nidade dem ocrática. As crianças participavam ài
E xperim ental, torna-se difícil entender com o al preparação dos projetos, cuja execução se fazú
guns críticos chegaram a acusar Dew ey p o r ser segundo um a divisão do trabalho do tipo coo
0 paladino de um a educação progressista “sem perativo, caracterizada pelo rodízio freqüente
m etas”. N o entanto, Dew ey enunciou explici no exercício das funções de direção. Além disso,
tam ente os objetivos de seu program a de estu cultivava-se o espírito dem ocrático, não só entre
dos, aliás, visíveis im ediatam ente na prática co os alunos, mas tam bém entre os adultos que tra
tidiana dos professores com quem trabalhava. À balhavam nessa escola. Dewey criticou severa
sem elhança do mais rígido dos tradicionalistas, m ente o fato de que, nos estabelecim entos esco
Dewey valorizava o saber acum ulado pela hum a lares, os professores não participassem de m odo
nidade, além de preconizar que, durante os pri algum das decisões que, no entanto, influencia
m eiros anos de escolaridade, as crianças tivessem vam a condução do ensino público; reprovava,
acesso aos conhecim entos da ciência, da história em particular, aqueles reform adores que, tendo
e das artes; pretendia tam bém que elas ap ren utilizado to d a a energia para que o controle das
dessem a ler, escrever, contar, pensar de m aneira escolas fosse retirado das m ãos de políticos cor
científica e exprim ir-se com requinte. N o que se ruptos, acabavam p o r conferir um poder consi
refere aos tem as de estudo, os objetivos peda derável, do tipo autocrático, aos diretores locais
gógicos de Dewey eram , em últim a análise, bas do ensino. Esses julgam entos m ostram perfeita
tante convencionais e som ente seus m étodos se m ente até que p o n to Dew ey estava em penhado
apresentavam com o inovadores e radicais; mas, em levar a dem ocracia a superar o círculo estrei
convencionais ou não, esses objetivos estavam to da política para estendê-la ao lugar de traba
explicitam ente enunciados. lho. “O que significa dem ocracia - era a questão
que ele se form ulava - , a não ser o fato de que
1 A .2 Uma experiência de educação parao indivíduo deve dar sua opinião na determ ina
a democracia ção das condições e dos objetivos de seu próprio
trabalho; e o fato de que, em últim a análise, a
Por mais im portante que tenha sido sua esco- atividade do m undo se realiza em m elhores con
la-laboratório com o cam po de experim entação dições pela livre e m útua harm onização entre
para a psicologia funcional e para o pragm atis diferentes indivíduos do que pelo planejam ento,
m o de Dewey, ela foi ainda mais relevante com o organização e direção de algumas pessoas, por
7 John Dewey: aprender pela ação
mais com petentes e bem -intencionadas que elas cim entos escolares em poderosas instituições de
se-am?” (DEWEY, 1903: 233). N a sua Escola Ex- contestação, no cerne da cultura norte-am erica
rtnmental, Dewey tentou im plem entar esse tipo na, ele tinha em com pensação um a visão m uito
ie dem ocracia no lugar de trabalho. O m esm o clara do que, em seu entender, deveriam ser as
sênero de organização orientava a tarefa tanto escolas em um a sociedade fundam entalm ente
dos m estres quanto dos alunos. Os professores dem ocrática e, não sem sucesso, tentou concreti
-e reuniam , um a vez po r sem ana, para analisar e zar essa ideia na Escola Experim ental. C om toda
planejar o trabalho; e, apesar de serem levados a a evidência, essa escola não foi concebida segun
atenuar, sem dúvida, suas críticas pela presença do um a perspectiva de reprodução social. Dewey
~3timidante de Dewey, eles desem penhavam um pretendia relacionar a escola com a vida social
papel ativo na elaboração do program a escolar. exterior, colocando atividades produtivas - as
“ocupações” - no âm ago de seu program a, mas
Dewey não tinha um a verdadeira estratégia
suprim iu deliberadam ente delas, tais com o eram
rara que os estabelecimentos escolares norte-ame-
praticadas na sociedade norte-am ericana, o que
ncanos, em geral, se tornassem em instituições
constituía um a de suas características essenciais:
favoráveis a um a dem ocracia radical. Apesar de
com efeito, vai retirá-las das relações sociais da
não pretender, nem esperar que os m étodos da
produção capitalista para colocá-las em um co n
Escola E xperim ental fossem seguidos de m anei
texto cooperativo no qual se tornavam dificil
ra estrita em outros lugares, ele alim entava a ex
m ente reconhecíveis para aqueles que as exer
pectativa de que sua escola viesse a ser não só
ciam no exterior. “N a nossa Escola, de acordo
ronte de inspiração para todos aqueles que se es-
com sua explicação, as ocupações clássicas exe
rorçavam em transform ar o ensino público, mas
cutadas pelos alunos estão isentas de qualquer
tam bém cam po de exercício e centro de pesquisa
obrigação m ercantil. O objetivo não é o valor
para os professores e os especialistas partidários
com ercial dos produtos, mas o desenvolvim ento
da reform a. Procedendo desse m odo, ele m ani-
da autonom ia e da perspicácia sociais” (DEWEY,
restava tendência a subestim ar a constatação de
1899: 12). Isentas das vis preocupações utilitá
que o sucesso da Escola de Dewey se devia ao
rias, as ocupações m anuais estavam organizadas
fato de que esta se m antinha afastada dos confli
na sua Escola de tal form a “que os m étodos, o
tos, divisões e desigualdades que afetam a socie
objetivo e a com preensão do trabalho estejam
dade em geral; com efeito, era difícil reproduzir
presentes na consciência de quem o executa, e
tal situação de isolam ento. C onvém reconhecer
que a atividade tenha sentido para o alu n o ” (p.
igualm ente que se tratava de um a escola com
16). O trabalho efetuado pelas crianças não era
reduzido núm ero de alunos, freqüentada p o r fi
alienante: em nenhum a circunstância, era pos
lhos de executivos abastados, em que o ensino
sível verificar o hiato entre m ão e cérebro que
era garantido p o r professores m otivados e bem
se tornava cada vez mais freqüente nas fábricas
qualificados, além de estarem em contato com
e oficinas do país. Dew ey qualificou, às vezes,
intelectuais de um a das m aiores universidades
sua Escola com o “sociedade em brionária”, mas
do país.
não se tratava, absolutam ente, de um em brião da
M esm o que Dewey não tivesse, pro p riam en sociedade existente fora de seus m uros (p. 19);
te falando, um plano para converter os estabele longe de ser um a prom essa de reprodução da
194 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
Am érica industrial, ela prefigurava de preferên exterior, para apoiar os m ovim entos r e f o r m a i-
cia sua reconstrução radical. res no Japão, Turquia, M éxico, União Soviete* j
e China, países em que, sem dúvida, seu impac
to foi m aior. Tendo chegado à China, em 1 9 U y
7.4.3 Uma breve existência
nas vésperas da em ergência do M ovim ento 4 ac
Essa com unidade - fundada po r Dewey - M aio, Dewey foi acolhido calorosam ente por
que p refig u ra v a o fu tu ro acabou te n d o um a num erosos intelectuais chineses que, de acord:
existência m uito breve e, ironia do destino, seu com a afirm ação de um historiador, “associa»
fim deveu-se à luta pelo controle da Escola Ex estreitam ente seu pensam ento à p rópria noçã:
perim ental po r parte dos que nela trabalhavam . de m odernidade” (KEENAN, 1977: 34).
C om efeito, Dewey e seus professores não eram As convicções dem ocráticas de Dewey aca
proprietários de seu “ateliê” ; este pertencia à baram p o r levá-lo tam bém a se envolver ein
U niversidade de C hicago. Em 1904, o presi controvérsias com grande núm ero de educadc-
dente H arp er m anifestou sua preferência pelos res “progressistas”, inclusive com alguns que se
professores e funcionários técnico-adm inistrati- consideravam seus fiéis adeptos. Ele atacou c*
vos de um a escola fundada pelo coronel Francis “progressistas adm inistrativos” favoráveis a pro
Parker (que havia se fundido com a Escola de gram as de ensino profissional nos quais ele via
Dewey no ano anterior), descontentes por te um ensino classista que convertia a escola em
rem sido integrados na “Escola do Sr. e da Sra. um agente ainda mais eficaz para a reprodução
D ew ey”, além de recearem que, em particular, de um a sociedade não dem ocrática. “O ensine*
Alice Dewey decidisse prescindir de seus servi profissional que me interessa não é aquele que
ços. Q uando H arp er despediu Alice, Dewey de adapta o operário ao regime industrial existen
mitiu-se e, quase sim ultaneam ente, aceitou um te; m inha paixão por esse regim e não chega a
posto na Universidade de C olum bia, onde per esse p o n to ”. Pelo contrário, e no prosseguim en
m aneceu até o final de sua longa carreira. A per to de sua afirm ação, os norte-am ericanos deve
da de sua Escola Experim ental deixou o cam po riam tender para “um tipo de ensino profissional
livre para que outros interpretassem , aplicassem que começasse p o r m odificar o sistem a indus
e, m uitas vezes, distorcessem suas ideias peda trial existente para, finalm ente, transform á-lo"
gógicas; deste m odo, Dewey ficou privado de (DEWEY, 1915: 412). Dewey continuou tam
um extraordinário instrum ento para concretizar bém a se distanciar dos progressistas rom ânticos,
seus ideais dem ocráticos. centrados na criança e, na década de 1920 - em
um a declaração pública de um a rispidez inusi
tada atribuiu a esse m étodo o qualificativo
7.5 O movimento progressista de
reforma de “realm ente estúpido” porque se lim itava a
deixar as crianças seguirem suas inclinações na
Apesar de nunca mais ter conseguido o utra turais (DEWEY, 1926: 59). Enfim , na década
escola própria, Dewey continuou sendo um crí de 1930, ele chegou a se m anifestar contra os
tico m ilitante da educação norte-am ericana, até radicais adeptos do “reconstrutivism o social”,
o final de sua carreira. Aventurou-se tam bém , no cujo pensam ento estava, talvez, mais próxim o
7 John Dewey: aprender pela ação 195
d o seu, quando pro p u n h am reco rrer a p ro g ra tão grande respeito pela tradição e pelos tem as
mas de “contrad o u trin ação ” para im pedir um de estudo que acabou descontentando os ro m ân
ensino destinado a legitim ar um a ordem social ticos. O que perm ite o historiador H erb ert Klie-
opressiva. A contrapropaganda em preendida pe bard escrever que,
los radicais dem onstrava, em seu entender, falta apesar de sua estatura intelectual, de sua
de confiança na força das próprias convicções e reputação internacional e das numero
na eficácia dos m eios pelos quais, supostam ente, sas honrarias que lhe foram prestadas,
haviam adquirido tais convicções; com efeito, Dewey não teve um número suficiente
não havia sido p o r doutrinação que eles tinham de verdadeiros discípulos para garantir
chegado às conclusões acerca dos defeitos da seu impacto no mundo da prática edu
sociedade capitalista, mas p o r “um estudo in cativa (1986: 179).
teligente das forças e das condições históricas e M esm o que tivesse continuado a acreditar
presentes” (DEWEY, 1935: 415). Os dem ocratas que o professor era “o anunciador do verdadeiro
radicais deveriam acreditar na aptidão de seus Reino de D eus”, Dewey deve ter vivenciado um a
alunos para chegar às m esm as conclusões pelos profunda decepção ao constatar o desinteresse
mesmos m eios, não só p o r se tra tar de um p ro ce em relação a seus argum entos pedagógicos. M as,
dim ento mais dem ocrático, mas tam bém porque após a Prim eira G uerra M undial (1914-1918),
tais conclusões deveriam ser subm etidas à análise sua atividade m ilitante deixou de estar focaliza
contínua que é inerente a esse tipo de educação. da na escola; com um a apreciação m enos ingê
Se o método da inteligência deu resul nua do papel dessa instituição na reconstrução
tados no nosso caso - eis a questão que social, Dewey já não situava a sala de aula no
ele se formulava - por que havemos de
centro de sua revisão reform adora. O que, em
pensar que não funcionará no caso de
nossos alunos, nem irá engendrar neles sua m ente, havia sido o m eio essencial da dem o
o mesmo entusiasmo e a mesma energia cratização da vida norte-am ericana se converteu
prática? (DEWEY, 1935: 415). em um recurso fundam ental, entre outros, e um
As críticas de Dewey contra outros reform a m eio de educação do público m anifestam ente
dores eram recebidas, em geral, com cortesia, secundário em relação a instituições mais aberta
mas não chegaram a ser convincentes; foram ra m ente políticas. A p artir daí, Dewey reconhecia
ros aqueles que o seguiram no cam inho p roposto de bom grado que a escola, ao estar inextricavel-
por ele para “sair da confusão educativa”. Para m ente vinculada às estruturas de poder vigente,
a m aioria dos educadores, ele constituía um a sé constituía um dos principais instrum entos de re
ria am eaça para os m étodos e tem as de estudo produção da sociedade de classes, característica
tradicionais. Além disso, as im plicações sociais do capitalism o industrial; p o r conseguinte, era
eram dem asiado radicais para os defensores da extrem am ente difícil transform á-la em um agen
eficácia científica e não o eram suficientem ente te da reform a dem ocrática. Todos os esforços
para alguns adeptos da reconstrução social. En despendidos para convertê-la em alavanca de
fim, apesar de ter preconizado um program a de um a dem ocratização mais acentuada da socieda
estudos revolucionário, baseado nos impulsos e de foram alvo das críticas daqueles que tinham
interesses das crianças, Dewey m anifestou um interesse em preservar a ordem social existente.
196 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
As lacunas da escola refletem e m antêm os defei fizer aliança com este ou aquele m ovim ento das
tos da sociedade com o um todo, e não podem ser forças sociais existentes” (DEWEY, 1934: 207);
corrigidos sem a luta pela dem ocracia de toda a contrariam ente ao que Dewey tinha tendência
sociedade. A escola vai participar da m udança a fazer ou tro ra, ela não pode ser considerada
social dem ocrática som ente “na m edida em que com o o veículo que perm ite se evadir da política.
Conclusão
Resumo
Questões
Atividade de aprendizagem
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Maria Montessori: a criança e sua educação*
Hermann Rõhrs
Objetivos de aprendizagem
* Este texto foi extraído de Perspectives - Revue trimestrielle d’éducation comparée, vol. XXIV, n. 1-2, mar.-jun./1994, p. 173-188.
Paris: Unesco/Bureau International d’Éducation.
202 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
Introdução
8.1 Uma vida a serviço da infância Estados U nidos e no qual, pela segunda vez, ele
apresentou seu m étodo.
M aria M ontessori nasceu em 1870, em
Chiaravalle, p erto de A ncona, na Itália, e m or Inspirada pela experiência que tinha adqui
reu em 1952 em N ordw ijk, na H olanda. Em rido na clínica em contato com crianças - obser
1896, foi a prim eira m ulher, vadas p o r ela ao brincarem no
na Itália, a concluir m edicina chão com pedaços de pão po r
com um a tese sobre neuro- falta de brinquedos - e pe
jDgia. Em seguida, trabalhou los exercícios desenvolvidos
durante dois anos com o as po r Séguin para aperfeiçoar
sistente na clínica psiquiátri as funções sensoriais, M aria
ca da U niversidade de Rom a, M ontessori decidiu dedicar-
tendo sido incum bida, em se aos problem as pedagógi
particular, do estudo do com cos. Em 1900, ela trabalhou
portam ento de um grupo de na Scuola Magistrale O rto-
ovens com reta rd o m ental. frenica, instituto destinado à
0 tem po passado com essas form ação dos educadores das
crianças perm ite-lhe consta escolas para crianças p o rta
tar que suas necessidades e doras de deficiência e com re
>eu desejo de b rin c a r haviam tardo m ental. D epois de estu
p erm an ecid o intactos, o que
dar pedagogia, ocupou-se da
1 levou a p ro cu ra r recursos M aria M ontessori
m odernização de um bairro
para educá-las. Foi nessa época
pobre de Rom a, San Lorenzo,
que ela descobriu as obras dos médicos franceses
encarregando-se da educação das crianças. Para
Bourneville, Itard e Séguin, assim com o a de
atender às suas necessidades, ela fundou um a
Pereira, espanhol que viveu em Paris, tendo co
Casa das Crianças (Casa dei bam bini) na qual
nhecido Rousseau e D iderot. Ela adquiriu um
estas podiam aprender a conhecer o m undo e a
interesse específico pelos estudos de Itard - que
havia ten tad o civilizar a criança selvagem, e n desenvolver suas aptidões para organizar a p ró
contrada nas florestas de Aveyron em 1798, es pria existência.
tim ulando e desenvolvendo seus sentidos - e de San Lorenzo foi o início de um a espécie
Edouard Séguin, aluno de Itard. Em geral, ela de m ovim ento de renascim ento que contribuiu
m anteve-se discreta sobre as fontes de sua ins para avivar sua fé na possibilidade de m elhorar
piração, mas em seus escritos descreveu de m a a hum anidade através da educação das crianças.
neira aprofundada os esforços despendidos para Em bora sua ação fosse baseada em princípios
conciliar suas teses com as de Séguin, principal científicos, M aria M ontessori não deixou de
m ente as que são expostas em seu livro Idiocy ab o rd ar a infância com o um a continuação do
j n d its treatm ent by the physiological m etb o d [A ato da criação. Essa com binação de diferentes
idiotia e seu tratam en to pelo m étodo fisiológi abordagens constitui o aspecto verdadeiram en
co]1, publicado depois de ter em igrado para os te fascinante de sua obra: ao fazer experiências
e observações m eticulosas de acordo com um a
' MONTESSORI (1969). Sua relação com o professor Séguin
m etodologia científica, ela considerava a fé, a
e abordada, de forma aprofundada, por KRAMER (1977: 58) e
çualmente em HELLBRÜGGE (1977: 68). esperança e a confiança com o os m eios mais efi
204 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
cazes de ensinar às crianças a independência e a extrem am ente bem -sucedida. Tendo sido en
autoconfiança. As Casas das Crianças que foram carregada po r Talamo, o diretor da em presa de
criadas nos anos seguintes tornaram -se, às vezes, construção, de fundar um centro de jovens para
verdadeiros santuários para onde os educadores evitar que as crianças ficassem na rua enquanto
se dirigiam em peregrinação; elas constituíram os pais trabalhavam , ela realizou o “m ilagre da
sem pre m odelos que m ostravam com o resolver criança nova”, cuja “infância” enaltecida acaba
os problem as pedagógicos. va po r influenciar, favoravelm ente, os pais. A
A reflexão e a m editação desem penharam “criança verdadeira” era a prova viva do p ro
um papel im portante tanto em sua vida pessoal, cesso contínuo de criação, de renascim ento e de
quanto em seu p rogram a educativo. R ecusan renovação: qualquer um que tivesse o desejo e o
poder de refletir seriam ente sobre a questão des
do-se a adotar m étodos estranhos à sua aborda
cobriria sua dim ensão profundam ente religiosa.
gem, rejeitando as contem porizações, ela tinha a
certeza de defender a causa de todas as crianças, M aria M ontessori foi um a das figuras autên
de atender às suas necessidades, além de saber ticas da Educação N ova enquanto m ovim ento
transm itir sua m ensagem com inteligência, clare internacional. De fato, a reform a preconizada
za e determ inação. Apesar do rigor de sua lingua p o r ela não se lim itava a um a simples substitui
gem, era considerada po r m uitos com o um a es ção m ecânica dos m étodos antigos p o r novos,
pécie de sacerdotisa dos direitos das crianças em supostam ente m ais eficazes. Além de reforma-
um m undo hostil. Seu destino pessoal (deu à luz tio - em seu sentido original de reorganização
a um filho natural) contribuiu certam ente p ara a e renovação da vida - , nenhum o u tro term o ex
pressava m elhor o processo pelo qual ela se inte
atm osfera de m istério que envolvia seu trabalho.
ressava fundam entalm ente.
M as é precisam ente através de sua atividade que
ela encontrou a m aneira de resolver esse proble
ma de m odo exem plar (KRAMER, 1977). As influências da pedagoga
Seus colaboradores mais próxim os - Anna
M accheroni e, durante algum tem po, a pedagoga N ão é fácil definir a posição de M ontessori
norte-am ericana H elen Parkhurst - se dedicaram em relação aos outros partidários da Educação
totalm ente a essa tarefa. Seu filho e, mais tarde, N ova. Ao contrário da m aioria, ela foi m uito in
seu neto, M ario M ontessori, m anifestaram tam fluenciada p o r Rousseau. Vários trechos de seus
bém a m esm a dedicação; no entanto, tal com livros assem elham -se a variações sobre tem as
rousseaunianos; além disso, sua crítica do m un
prom isso era m otivado pela preocupação não de
do dos adultos que, a seus olhos, não levavam
m anter um a tradição familiar, mas de preservar
em conta as crianças, evoca tam bém a atitude de
um a herança bem mais am pla, ou seja, “a educa
Rousseau. Ainda sob a influência desse filósofo
ção dos seres hum anos” (M O N TESSO RI, M a
é que ela com batia as amas de leite, as correias,
rio, 1977).
os voadores, as cintas protetoras e os andadores
utilizados para ensinar as crianças a andar m uito
8.2 Montessori e a Educação Nova cedo, chegando à seguinte conclusão:
E importante deixar a natureza agir o
A ação em preendida por M aria M ontesso mais livremente possível; assim, quanto
ri no bairro rom ano de San Lorenzo revelou-se mais livre for a criança em seu desenvol
8 Maria Montessori: a criança e sua educação
vimento, tanto mais rapidamente e mais Ela foi influenciada tam bém p o r Ovide D e
perfeitamente ela atingirá suas formas croly. Tanto suas vidas quanto suas obras apre
e funções superiores (MONTESSORI,
sentam diversos pontos em com um : eles tinham
Mario, 1977).
praticam ente a m esm a idade (M ontessori tinha
E claro que ela não tinha estudado sistem a nascido em 1870 e Decroly em 1871), ambos
ticam ente as obras de Rousseau; no entanto, da estudaram m edicina e criaram instituições de en
mesma form a que se apropriou de um bom núm e sino em 1907 - a Casa dei bam bini, em Rom a, e
ro de críticas contra a cultura e a sociedade de seu a École pour la vie par la vie [Escola para a vida
tem po, ela deve ter lido, pelo m enos, algumas pela vida], em Bruxelas. Pelo fato de pertencerem
partes de E m ílio , em qualquer caso, o prim eiro à associação N e w Education Fellowship, eles ti
iivro. Assim, é difícil tam bém delim itar sua ati veram a oportunidade de se encontrar e discutir
tude relativam ente aos educadores - em particu com frequência. N o entanto, por ocasião de seu
lar, Dewey, Kilpatrick, D ecroly e Ferrier - que prim eiro encontro, cada um já tinha elaborado a
participavam do m ovim ento da Educação Nova. m aior parte de suas ideias, de form a que as n u
Em bora ela estivesse em contato com alguns de m erosas sem elhanças que podem os observar em
les no âm bito de suas atividades no seio da N e w suas abordagens são devidas, essencialm ente, ao
Education Fellowship, tal circunstância não re fato de que am bos tinham estudado as obras de
sultou em nenhum a colaboração concreta; em Itard e de Séguin3.
suas obras, encontram os unicam ente a citação
O conceito fundam ental subjacente à obra
dos nom es de W ashburne e de Percy N u n n - em
pedagógica de M ontessori é o seguinte: as crian
particular este últim o quando ela desenvolve seu
ças devem se beneficiar de um am biente ap ro
conceito de “m ente absorvente”.
priado no qual tenham a possibilidade de viver
Percy N u n n , que presidia na época a seção e aprender. A característica fundam ental de seu
inglesa da N e w E ducation Fellow ship, veio a program a pedagógico é que ele dá igual im por
encontrá-la p o r ocasião do ciclo de co n ferên tância ao desenvolvim ento interno e ao desen
cias proferidas p o r ela em L ondres. Sua Teoria volvim ento externo, organizados de form a a se
de horm ê e de m n ê m ê 2 - desenvolvida no livro com pletarem .
E ducation: its data and first principies (N U N N ,
N o entanto, o fato de que algum a atenção
1920) - ajudou M aria M ontessori a elaborar
seja prestada à educação externa - considerada
sua concepção da m ente hum ana em desenvol
pelos filósofos e pedagogos da escola idealista
vim ento, que determ ina o fluxo da existência
com o um a simples conseqüência do sucesso da
em constante interação com o am biente e, ao
educação interna - reflete a orientação científi
fazê-lo, acaba ela p ró p ria p o r assum ir um a for
ca de seu program a. Nesse p o nto, a influência
ma definida.
de Séguin foi certam ente decisiva, assim com o a
de Pereira, que tinha dem onstrado o papel dos
2. Mnêmê corresponde à memória, vestígio do desenvolvimen
sentidos no desenvolvim ento da personalidade.
to das gerações anteriores que foi deixado no inconsciente da
aiança; por sua vez, hormé, do inglês hormic, segundo Percy 3. Essa hipótese estaria respaldada provavelmente em pesqui
Nunn, significa força vital (cf. mais adiante, subtítulo 8.7, penúl- sas e na publicação dessa correspondência, tarefas que ainda
Smo parágrafo) [N.T.]. estão por executar.
206 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
que essa etapa deve ser ultrapassada, mas, nas intelectual. O m elhor exem plo que podem os darj
Casas das Crianças, seus usuários se preparavam dessa situação é o exercício de encaixar sólidoc]
para essa fase de m últiplas m aneiras. As prim ei cilindros de diferentes tam anhos e cortes d e v e «
ras atividades a executar adquiriam , p o rtan to , ser introduzidos em cavidades adaptadas; uma;
um a im portância decisiva, no plano tan to m oral única solução é possível para cada cilindro e j
quanto físico para as fases seguintes de seu de assim, a criança pode apreender com seu erro
senvolvim ento. quando o cilindro desliza, mas não pode ser in
O “perío d o sensível” da prim eira infância troduzido.
oferece a o p o rtu n id ad e única de incentivar um
desenvolvim ento real. M ontessori considerava
8.4 O material didático
a educação social com o um elem ento im p o rta n
te dessa prim eira fase, visto que a a u to d e term i O uso de m aterial didático baseava-se, entre
nação deve receber sua orientação de outrem outros, no princípio fundam ental de que as ati
p ara que o indivíduo possa atingir a perfeição vidades deveriam ser m etodicam ente coordena
en q u an to ser social. N o últim o capítulo de seu das, de m aneira que as crianças pudessem avaliar
livro A descoberta da criança, ela descreveu esse facilm ente seu grau de êxito enquanto as rea
processo: lizavam: po r exem plo, solicitava-se às crianças
Nenhum coração sofre com o bem de para andar em cim a da linha de grandes círculos
outrem, mas o triunfo de alguém, fon traçados no chão e que form avam um a série de
te de encantamento e de alegria para desenhos interessantes, segurando um a vasilha
os outros, suscita frequentemente imi cheia até a borda de tinta azul ou verm elha; se
tadores. Todos têm um aspecto feliz e
a tinta transbordasse, elas podiam perceber que
satisfeito de fazer “o que podem”; caso
contrário, o que fazem os outros suscita seus m ovim entos não eram suficientem ente co
uma inveja ou uma penosa emulação. A ordenados e harm oniosos. Da m esm a form a, to
criança pequena de três anos trabalha das as funções corporais eram desenvolvidas de
pacificamente ao lado de um menino de m aneira consciente.
seis; ela está tranqüila e não inveja o ta
manho do mais velho. Todos crescem na Para cada um dos sentidos, havia um exer
paz (1969: 333). cício cuja eficácia poderia ser ainda aum entada
O m aterial didático tinha igualm ente a fun pela elim inação das outras funções sensoriais:
ção de ajudar a criança a “crescer na paz” a fim po r exem plo, existia um exercício de identifica
de que ela venha a adquirir um senso elevado de ção pelo toque de diferentes tipos de m adeira, o
responsabilidade. Esse m aterial, que constituía qual poderia tornar-se ainda mais eficaz ao ven
um dos elem entos do “am biente p rep arad o ” das dar os olhos das crianças.
Casas das Crianças, era m etodicam ente conce Esses exercícios eram praticados em grupo e
bido e padronizado, de m aneira que, ao esco seguidos de um a discussão, o que fortalecia seu
lher livrem ente um dos objetos propostos para alcance do p o n to de vista dos aspectos sociais da
se ocupar, a criança se encontre posicionada em educação das crianças. E assim que as diferentes
um a situação previam ente determ inada e seja atividades eram destinadas a conjugar os respec
conduzida, sem saber, a enfrentar seu desígnio tivos efeitos; com o M ontessori escreveu “para
8 Maria Montessori: a criança e sua educação 209
[que a criança] progrida rapidam ente, é neces gindo a maior conquista de que suas
sário que a vida prática e a vida social estejam mentes são capazes: o material abre
intim am ente m isturadas à sua cultura” (1966: à inteligência determinadas vias que,
nessa idade, seriam inacessíveis sem ele
38; 1972: 199).
(1969: 197-198).
Além de ter sido o posicionam ento de H elen Ao adotar essa abordagem , o m estre pode
Parkhurst, esse era, evidentem ente, o de M aria deixar o centro do processo educativo e atuar a
M ontessori, de quem era aluna: ela se esforçava
partir de sua periferia. Sua tarefa mais urgente
em desenvolver os aspectos sociais da educação, consiste em praticar um a observação científica e
em bora a preocupação essencial que orientava em pregar sua intuição para descobrir outras pos
sua ação não tenha sido aquela que se inspirava
sibilidades e novas necessidades. O desenvolvi
em determ inadas concepções educativas de o ri
m ento das crianças deve ser dirigido, de m aneira
gem sociológica, concernentes a um a categoria responsável, de acordo com o espírito científico.
diferente de problem as. Tal esclarecim ento serve
de resposta aos que rejeitaram , de m aneira par
cial, as ideias pedagógicas de H elen Parkhurst e 8.5 O fundamento científico da ação de
de M aria M ontessori, acusando-as de serem irre Montessori
m ediavelm ente individualistas4.
M ontessori foi um a das prim eiras peda
O m aterial didático deveria agir “com o um a gogas a em preender a tentativa de fundar um a
escada”, para retom ar a expressão predileta de verdadeira ciência da educação. Sua abordagem
M aria M ontessori: ele deveria perm itir que as consistiu em instaurar a “ciência da observação”
crianças tom assem a iniciativa e fizessem p ro (1976: 125). Ela exigia que os educadores e to
gressos na via de sua plena realização. Por outro dos os participantes do processo educativo rece
lado, ele estava im pregnado de um espírito e de bessem um a form ação nesses m étodos, e que o
um a atitude intelectual específicos que, ao serem p róp rio processo educativo se desenrolasse em
transm itidos às crianças, deveriam m odelá-las. um quadro que perm itisse o controle e a verifi
O material sensorial pode ser conside cação científica.
rado, desse ponto de vista, como “uma
A possibilidade de observar o desen
abstração materializada”... Quando a
criança pequena se encontra diante do volvimento da vida psíquica na criança,
material, ela responde com um trabalho como se tratasse de fenômenos naturais
concentrado, sério, que parece extraído e de reações experimentais, transforma
do melhor de sua consciência. Dir-se-ia a própria escola em ação, em uma espé
que, na verdade, as crianças estão atin cie de gabinete científico para o estudo
psicogenético do ser humano (p. 120).
4. Já abordei esse aspecto em trabalhos anteriores: RÕHRS, H. A arte fundam ental da observação exata -
lorg.) (1966). Schule und Bildung im internationalen Gesprãch -
considerada já po r Rousseau com o a mais im
Studien zur Vergleichenden Erziehungswissenschaft. Frankfurt:
Akademische Verl.-Ges, p. 57. • (1977). Die Progressive erzie- p o rtan te com petência exigida para ensinar - re
rvngsbewegung. Verlauf und auswirkung der reformpãdagogik corre à precisão da percepção e da observação.
ri den USA. Hannover: Schroedel, p. 143. Cf. tb. OSWALD,
M ontessori im aginou um “novo tipo de educa
P (1958). Das Kind im Werke Maria Montessoris. Mühlheim. •
BOHM, W. (1991: p. 86). d o r” : “Em vez da palavra, [ele deve] aprender o
210 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
silêncio; em vez de ensinar, deve observar; em vezes seguidas, tenta encontrar a cavidade que
vez de se revestir de um a dignidade orgulhosa corresponde a um pino em m adeira antes de
que deseja parecer infalível, deve revestir-se de direcionar, com alegria, sua atenção para outra
hum ildade” (p. 123). Esse tipo de observação atividade; no entanto, em nenhum lugar, é m en
atenta à distância não é um a aptidão natural: é cionado seu m eio intelectual e social, nem seus
necessário aprendê-la “e ser capaz de observar progressos ulteriores.
é a verdadeira m archa rum o à ciência. De fato, É da m esm a form a que M ontessori trata
se não vemos os fenôm enos, é com o se eles não to d o tipo de fenôm enos, descobertas (éveils) e
existissem. Pelo contrário, a alm a do cientista é “explosões”. Se adotarm os seus próprios crité
feita de interesse apaixonado pelo que ele vê. rios - ainda que estes sejam form ulados de m a
Aquele que é iniciado a ver com eça a se interes neira im precisa e geral - para julgar o trabalho
sar, e esse interesse é a força m otriz que cria a científico e teórico que ela realizou no cam po da
m ente do cientista (p. 125-126). educação, não é de m odo algum garantido que
M ontessori concebeu um m étodo que seria esse julgam ento seja positivo. O sucesso de sua
qualificado, hoje, com o herm enêutico-em pírico; ação dependia de outros fatores: sua hum ilda
no entanto, ela p rópria não conseguiu colocar de, sua paciência e (evocado com frequência) seu
em prática, in te g ralm e n te , um a única dessas poder de encantam ento diante da vida.
ideias em seu próp rio trabalho. Suas experiên Essa capacidade de im aginação, que trans
cias careciam de um quadro teórico sólido e elas cende a observação exata, é de fato um m odo
não eram conduzidas nem avaliadas de form a a de vida filosófico; a despeito de todas as críticas
perm itir um a confirm ação objetiva. Suas descri que form ulou contra a filosofia e o ensino da
ções não estavam isentas de subjetividade e suas filosofia, ela m esm a adotou essa atitude. Em um
conclusões eram frequentem ente parciais ou, até trecho em que se debruça sobre a necessidade
m esm o, expressas de m aneira dogm ática. Apesar de p roporcionar aos professores um a experiên
disso, ela se distinguia na criação de situações cia prática da pedagogia, ela escreve, a propósito
educativas, m esm o que estas, na m aior parte das [...] do papel do m icroscópio: “Eles sentiram ,
vezes, fossem m anifestam ente sobretudo a ex observando no m icroscópio, nascer essa emoção
pressão de sua personalidade irradiante e não feita de espanto que desperta a consciência e o
tanto o fruto de um a reflexão e de um a p rep a entusiasm o apaixonado pelos m istérios da vida”
ração rigorosas. Suas observações eram elabo (1976: 133).
radas com esm ero, segundo m étodos científicos É im p o rta n te lev arm o s em c o n sid eração
que garantiam sua objetividade, mas o essencial a a b ertu ra da sensibilidade de M ontessori aos
de seu trabalho dependia de um talento m uito “m istérios da vida” e, ao m esm o tem po, sua
pessoal, único, para m anipular e in terpretar os abordagem essencialm ente científica, sob pena
processos educativos. de ficarm os em aranhados nas contradições e ali
Sua descrição dos fenôm enos educativos e as m entarm os a controvérsia sem pre acalorada em
conclusões que tirava deles devem ser conside relação ao valor e ao significado de sua obra; no
rados sob esta ótica. Ela descreve, po r exem plo, entanto, é necessário reconhecer que, no pressu
um a m enininha que, durante quarenta e quatro posto de que nenhum aspecto tivesse sido negli
8 Maria Montessori: a criança e sua educação
genciado, m esm o assim seria impossível elim inar estudarmos, por exemplo, a vida das
todas as divergências de opinião a seu respeito. plantas ou dos insetos na natureza, te
mos uma ideia aproximada da vida das
Algumas tom adas de posição e conclusões plantas ou dos insetos no mundo intei
de M aria M ontessori assem elham-se mais às de ro. Ninguém conhece todas as plantas;
Pestalozzi, em seus m om entos filosóficos, do no entanto, basta ver um pinheiro para
que à análise objetiva de alguém diplom ado em conseguir imaginar como vivem todos
medicina. M as é precisam ente essa am plitude os pinheiros (p. 80).
de visões que confere a pujança profética a um N a m esm a ordem de ideias, ela escreveu em
grande núm ero de seus escritos; aliás, tal aspec o u tro lugar: “Ao encontrarm os um rio ou um
to nem sem pre está isento de am bigüidade e é o lago, será necessário ver todos os rios e todos
que explica sua grande popularidade no m undo os lagos do m undo para saber do que se trata?”
inteiro, tan to na índia quanto na E uropa. Sua Ao em itir essa ideia e form ulando-a desse m odo,
influência era m aior quando ela estava presen ela se m ostra surpreendentem ente próxim a de
te, proferia conferências e m inistrava cursos, e Pestalozzi. A sem elhança deste pedagogo, ela
encontrava um grupo de discípulos fervorosos, aconselha a não negligenciar as form as de per
decididos a viver e m anter viva sua doutrina cepção direta. “A vista concreta das árvores em
(SCHULZ-BENESCH, 1962: 15). um bosque, com toda a vida que acontece em
volta delas, não pode ser substituída por ne
nhum a descrição ou imagem de qualquer livro”
8.6 A Teoria da Percepção
(1966: 44-45).
Além de ter aperfeiçoado um m étodo siste Em seu entender, é fundam ental obter a “co
m ático de desenvolvim ento das faculdades per- operação da atenção in te rio r”. É po r isso que ela
ceptivas, M aria M ontessori elaborou um a Teoria se esforçava em estruturar a base m otivacional
da Percepção que tem num erosos pontos em co do m aterial didático de tal m aneira que ele es
mum com a abordagem de Pestalozzi. Assim, no tivesse em contato com a esfera de consciência
que diz respeito ao m aterial didático, ela notou da criança. C onvém notar que M ontessori ex
que não é necessário que “a atenção das crianças plicava esse processo com parando-o com um ato
seja retida p o r objetos quando com eça o delicado
de fé, processo sem elhante que, no entanto, se
fenôm eno da abstração” (1976: 80). Ela p reten
produz em outro nível: “N ão basta [...] ver para
dia que seu m aterial didático fosse concebido de
crer; é necessário crer para v e r”. Escreveu, igual
form a a perm itir transcender a situação concreta
m ente, mais adiante: “É debalde que se explica
e im ediata, favorecendo a abstração. “Ao não in
ou, até m esm o, que se faz ver um fato, p o r mais
centivarem a generalização, esses m ateriais cor
rem o risco, com suas ‘arm adilhas’, de am arrar a extraordinário que ele seja, se não existe a fé.
criança p o r m eio de verdadeiros vínculos à terra. Em vez da evidência, é a fé que leva à apreensão
Se isso ocorre, a criança perm anece ‘confinada da verdade” (p. 216-217).
no círculo vicioso da futilidade’” (p. 80). Ela conseguiu incontestavelm ente estabele
M aria M ontessori escreve: cer um vínculo dessa form a de fé, que é conhe
No seu conjunto, o mundo repete, mais cim ento interior e visão aprim orada, com sua
ou menos, os mesmos elementos. Se concepção de ciência.
212 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
m odos deform ados ou falseados de com preen que lhe agrada, mas nos dispor a colabo
são, de expectativa e de com portam ento que, rar com a ordem da natureza, com uma
em seguida, hão de perpetuar-se. Além de serem de suas leis, segundo a qual esse desen
volvimento se efetua pelas experiências
gravadas perm anentem ente na m ente das crian
próprias da criança (MONTESSORI,
ças, essas prim eiras impressões engendram a im 1972: 82-83).
plem entação de estruturas de desenvolvim ento,
A “m ente absorvente” é, ao m esm o tem
de esquemas, em função dos quais todas as expe
po, a capacidade e a vontade de aprender. Isso
riências ulteriores são enfrentadas e assimiladas.
quer dizer que o intelecto é o rien tad o em d ire
Desde o nascim ento, as crianças estão n atu ção aos acontecim entos do m undo circu n d an
ralm ente abertas ao m undo. Por isso, elas cor te, em harm onia com esses acontecim entos, de
rem constantem ente o risco de se perder, dife tal m odo que, em relação à diversidade, os as
rentem ente dos anim ais que têm um estoque de pectos que têm um valor educativo diferem de
reações instintivas que lhes garantem um desen acordo com cada caso particular: “ [...] em todas
volvim ento apropriado; em com pensação, os as crianças, o desenvolvim ento físico precede as
animais não são livres porque a liberdade não é aventuras da vida” (p. 69). O im p o rtan te é que
um estado natural, mas um a condição a ser c o n as im pressões recebidas e a a b ertu ra m ental se
quistada. “O ser h u m an o , d ife ren te m e n te dos jam concom itantes, de form a que os im perativos
animais, não tem m ovim entos coordenados fixos; do processo de aprendizagem correspondam às
ele próp rio deve construir tu d o ” (p. 67). Sob sensibilidades e às tendências naturais de cada
esse aspecto, podem os encontrar certa analogia fase do desenvolvim ento.
entre as ideias de M aria M ontessori e a an tro p o
Vinculada estreitam ente a esses conceitos an
logia m oderna: aliás, Anthropologia pedagógica
tropológicos está a ideia de “períodos sensíveis” :
(1910) é a prim eira obra que ela consagrou a
trata-se de períodos de m aior receptividade do
esse tipo de questões.
ponto de vista da aprendizagem p o r interação
Ao falar da “vida psicoem brionária”, ela re com o entorno. Segundo essa teoria, existem pe
corre a um a analogia com o “em brião físico” a ríodos determ inados durante os quais a criança
fim de sublinhar que o m undo intelectual do in é naturalm ente receptiva a algumas influências
divíduo deve ser construído tam bém progressi do entorno que a ajudam a dom inar certas fun
ções naturais e a atingir um a m aior m aturidade:
vam ente p o r m eio de im pressões e experiências.
p o r exem plo, existem períodos sensíveis para o
O entorno - e a m aneira com o ele é organizado
aprendizado da linguagem, o dom ínio das rela
para desem penhar sua função educativa - é, p o r ções sociais etc. Se lhes consentim os a atenção
tanto, tão im portante quanto a alim entação do que convém , eles podem ser explorados para
corpo durante o período pré-natal. prom over períodos de aprendizagem intensa e
O primeiro passo da educação consiste eficaz; caso contrário, as possibilidades p ro p o r
em prover a criança de um entorno que cionadas p o r eles são perdidas para sempre.
lhe permita desenvolver as funções que
lhe foram atribuídas pela natureza. Isso O desenrolar harm onioso do desenvolvimen
não significa que tenhamos o dever de to in terio r e ex terio r pode en g en d rar igualm en
dar-lhe satisfação e deixá-la fazer tudo o te um a independência mais consistente:
214 Parte II Figuras tutelares da pedagogia no século XX
Se nenhuma síndrome de regressão se germ e desse ser; suas esperanças eram tão gran
revela, a criança manifestará tendências des que ela estava convencida de que esse era o
muito claras e muito fortes em dire
cam inho da salvação. Ela acreditava igualm ente
ção à independência funcional [...] Em
na renovação e na conquista da perfeição:
cada indivíduo está em ação uma força
vital que o impele a procurar a plena Para que seja possível seu advento,
realização de si. Percy Nunn atribuía a salvação começará pelas crianças,
a essa força o qualificativo de hormé já que elas são as criadoras da huma
(MONTESSORI, 1952: 77). nidade. As crianças estão investidas
de poderes desconhecidos que podem
Tal posição explica igualm ente o m otivo
ser as chaves de um futuro melhor. Se
pelo qual M ontessori nutria tanta expectativa queremos verdadeiramente uma reno
em um a reform a da educação conform e a suas vação autêntica, então o desenvolvi
ideias. Para ela, a educação do “hom em novo” mento do potencial humano é a tare
deveria com eçar com a criança que carrega o fa que deve ser atribuída à educação”
(MONTESSORI, 1952: 52).
Conclusão
Resumo
Questões
Atividade de aprendizagem
BÕHM, W (1991). Maria Montessori: Hintergrund ______ (1952). Kinder sind anders [As crianças são
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Montessori - Kritische Nachforschungen zum Werk
______(1969).DieEntdeckungdes Kindes [Descoberta einer katholischen Pãdagogin von Weltruf mit einer
da criança]. Paul Oswald & Günter Schulz-Benesch internationalen Montessori-Bibliographie [A contro
8 Maria Montessori: a criança e sua educação 217
Objetivos de aprendizagem
Introdução
17.1 As linhas de força da pedagogia fim da Educação. Em vez disso, ela é um espaço
cultural, intelectual, institucional e pragm ático
Será que o futuro da pedagogia é com pleta que é colocado constantem ente em tensão po r
m ente im penetrável para nós, sendo inútil p re diferentes ideias (ou ideologias) que esbarram
tender antecipá-lo? A resposta é negativa porque entre si, se m isturam , se opõem e se im bricam
a liberdade dos seres hum anos nascidos hoje e um as nas outras, com o se tratasse de um m osaico
que hão de nascer am anhã será verossim ilm ente m ovente. Essas ideias tam bém não flutuam no
sem elhante à nossa. Sem nada de absoluto, ela vazio: em cada época e em cada sociedade, elas
será um a verdadeira liberdade hum ana, ou seja, são carregadas po r pessoas, grupos, instituições,
lim itada, concreta, com plexa e difícil, um a liber práticas educativas; suscitam paixões, debates,
dade suscetível de ser rejeitada ou endossada, lutas, às vezes, latentes, outras vezes, abertas.
negada ou assum ida, mas que deverá ser exerci Pensemos, p o r exem plo, no ensino dos sofistas
tada em função do peso do passado - de tudo o que se opôs à educação grega tradicional, nos
que foi realizado pelas gerações precedentes - e pedagogos hum anistas que esbarraram na esco-
das tendências que, de m odo durad o u ro , m ode lástica, na Reform a Protestante contestada pela
lam já o presente e, po rtan to , o futuro próxim o. C ontrarreform a Católica, no construtivism o que
N este aspecto, lem brem os que a prim eira e enfrentou o em pirism o, na Educação N ova que
principal lição decorrente dos capítulos desta se opôs à pedagogia tradicional. Em suma, se é
obra é que a longa história da pedagogia já está, verdade que, em cada época e em cada socie
em grande parte, realizada. Assim, pouco im por dade, é possível detectar ideias e práticas peda
ta o grau de liberdade que acreditam os possuir, gógicas dom inantes, estas existem apenas com o
essa história com mais de 2.00 0 anos não pode co n trap o n to a outras correntes pedagógicas que
ser refeita, nem desfeita. É necessário, p o rta n procuram incansavelm ente se afirmar. Todas
to, contar com ela e basear-se nela para pensar e essas tensões, todos esses choques de ideias re
antecipar o futuro. N o fundo, em pedagogia as velam que a educação, o ensino e a pedagogia
sim com o em outras áreas, o que se designa por são realidades hum anas, sociais e culturais da
antecipação do futuro nada é além de um exer mais elevada im portância. E, p o rtan to , norm al
cício invertido de reflexão histórica: antecipar que elas suscitem desafios, debates, oposições no
o futuro consiste em procurar no passado as li âm ago das sociedades.
nhas de força que atravessam e estruturam nosso Se procuram os antecipar o futuro da peda
presente, a p artir das quais é possível, p o rtan to , gogia, não basta, portanto, identificar as linhas
pressentir, po r hipótese, que elas hão de exercer de força - que, tendo atravessado o passado e o
efeitos a longo prazo sobre nossos descendentes presente, hão de m arcar, verossim ilm ente, o fu
e sobre os descendentes de nossos descendentes. tu ro - , mas é necessário igualm ente vislum brar as
O u tra lição a tirar desta obra: tais linhas de tensões em torn o das quais essas linhas vão con
força nada têm de hom ogêneo, nem de contí tinuar a se entrelaçar. Eis, po rtan to , sem nenhu
nuo. A história da pedagogia não é um trem de ma pretensão profética e com toda a m odésda
ideias que avança em linha reta; tam pouco um a intelectual, algumas dessas linhas de força que,
longa cam inhada m ecânica para o Progresso sem em nosso entender, continuam sendo portadoras
426 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia
de conteúdo pedagógico nas próxim as décadas. tuições p ro fundam ente racionalizadas: os do
C onsiderada isoladam ente, cada um a dessas li centes seguem os program as, perseguindo obje
nhas possui, sem dúvida, sua coerência interna: tivos que foram fixados p o r Estados que foram
é sua convergência no cerne de um a tram a co aconselhados p o r peritos, além de que n um ero
m um - a pedagogia do futuro - que irá engendrar sas regras e norm as enquadram seu trabalho; os
novos avanços e, por isso m esm o, novas tensões. saberes escolares e os program as são divididos
em etapas, e sua progressão é rigorosam ente
prevista; os alunos devem ad q u irir conhecim en
17.1.1 O racionalismo tos racionais, tais com o a gram ática, a m atem á
O racionalism o é um a das principais linhas tica, a tecnologia, a história e a geografia. Além
de força da tradição educativa ocidental. Ele ser disso, a educação con tem p o rân ea continua vi
ve de referência constante aos filósofos clássicos sando, em grande p arte, a form ação de pessoas
e aos teóricos m odernos: os prim eiros (Sócra racionais, ou seja, capazes de pensar p o r si mes
tes, Platão, Rousseau etc.) definem , de saída, o m as e cujas ideias e ações estejam apoiadas em
hom em com o um ser racional, enquanto os se raciocínios e conhecim entos válidos. Em suma.
gundos se esforçam sobretudo em racionalizar a ontem com o hoje, a racionalidade constitui um
educação, em torná-la mais eficaz e mais científi valor central de nossa educação.
ca, em suma, mais “racional”. Tudo isso m ostra que o racionalism o se tor
A ideia básica do racionalism o, cujos p ri nou, neste início do século XX I, um quadro m en
m eiros alicerces foram lançados pelos filósofos tal que serve de referência simbólica e discursiva
gregos da A ntiguidade, é que a educação deve para o conjunto dos agentes escolares, além de
basear-se nas “luzes da razão”, no m ínim o, neste um sistema de práticas institucionalizadas em or
triplo sentido: prim eiram ente, a educação deve ganizações, rotinas coletivas, atitudes e com pe
favorecer o desenvolvim ento do pensam ento ra tências. Com o quadro m ental, ele define as re
cional no educando (suas capacidades de argu gras de produção e de com unicação dos discursos
m entação, sua lógica, seu raciocínio, seu espírito educativos, assim com o seus limites e seu valor:
crítico, seus conhecim entos etc.); em segundo qualquer discurso a respeito de ou na escola será
lugar, a pedagogia deve respeitar a natureza ra aceitável e discutível com a condição de se apre
cional do aluno e tratá-lo, não com o um a coisa sentar com o racional. Com o sistema de práticas,
a m odelar ou um anim al a adestrar, mas com o ele regulariza e orienta as organizações e as ati
um fim, diria Rousseau, ou seja, com o um valor vidades escolares em função de m odelos raciona-
absoluto; enfim , a pedagogia deve apoiar-se em listas de ação: a burocracia, a ação p o r objetivos,
saberes educativos racionais, em vez de m itos, as atividades planejadas, o ensino po r program as,
crenças, preconceitos, rotinas ou sentim entos. a perícia dos professores, o ensino eficaz etc. As
A origem filosófica dessas ideias é eviden atividades e projetos “irracionais” serão, então,
te. E n tretan to , no deco rrer dos últim os sécu denunciados, criticados, suprim idos.
los, elas acabaram im pregnando, aos poucos, a Pelo fato de que o racionalism o está no âm a
educação e a pedagogia. Assim, nossos am plos go de nossa civilização, de nossas ciências e de
sistem as educativos co n tem porâneos são insti nossas tecnologias, de nossos Estados e de nossas
17 A pedagogia de amanhã 427
os d o instituições, tudo leva a crer que, ao longo do sé de nossa sociedade contem porânea. N o século
to obje- culo XX I, ele continuará im pregnando as ideias XVII, ela com eçou a se separar da filosofia e da
e foram e as práticas pedagógicas. N o entanto, essa racio religião para se transform ar, aos poucos, em um
um ero- nalização da educação e da pedagogia com porta em preendim ento autônom o; desde então, tem
d ho; os certo núm ero de tensões e desafios. C om efeito, conhecido um a seqüência de sucessos, em par
vididos os capítulos precedentes enfatizaram o pluralis ticular, ao aliar-se à tecnologia e à indústria. N o
am ente m o das concepções da razão educativa: de Só século XIX, tais sucessos culm inaram na ideia
;cim en- crates a Rousseau, de Freinet a Freire, da peda das ciências hum anas e, posteriorm ente, de um a
latem á- gogia tradicional do século XVII às pedagogias ciência da educação. Com o vimos na terceira
a. Além construtivistas de nossos dias, constata-se que parte desta obra, diversas psicologias tentaram ,
inua vi- todas as concepções pedagógicas pretendem ser sucessivam ente, definir-se no século X X com o a
pessoas racionais quando, afinal, elas divergem , às vezes, ciência que serve de base à educação: o behavio-
si mes- profundam ente no que diz respeito à sua visão rism o, o construtivism o, o socioconstrutivism o,
da pedagogia, do aluno e do professor. Tudo isso o cognitivism o etc.
idas em
m ostra que não existe consenso relativam ente à
i suma, Com o será possível, então, vislum brar a
natureza de um a pedagogia verdadeiram ente ra
itui um evolução de um a ciência da educação no século
cional. Assim é que, no decorrer do século XX,
XXI? Entre as m últiplas tendências atuais, um a
num erosos pedagogos denunciaram os exageros
i se to r parece se destacar com mais vigor: a fusão p ro
da racionalização da pedagogia escolar, opondo-
ro men- lhe, p o r exem plo, a liberdade (Neill), os senti gressiva da psicologia cognitiva com a n eurolo
scursiva m entos ou as em oções (Rogers, Freud), a ativi gia. Essa fusão significa que o estudo do pensa
ilém de dade espontânea da criança (M ontessori) etc. m ento hum ano pode apoiar-se, daqui em diante,
; em or- Além disso, observa-se que a racionalização de em bases biológicas, neurológicas, até mesmo,
com pe- nossos sistemas escolares tem m últiplos efeitos físico-químicas. Em nossa opinião, trata-se sem
e as re- perversos entre os quais: um a pesada burocracia, dúvida algum a de um cam inho de futuro na m e
tscursos a m ultiplicação dos regulam entos e dos c o n tro dida em que as teorias do desenvolvim ento da
í valor: les, a perda de autonom ia dos professores diante criança, da aprendizagem , da m em ória, do ra
Dia será dos program as e das diretrizes cada vez mais de ciocínio, da linguagem etc., poderão basear-se de
se apre- talhadas, a influência crescente dos sociólogos, form a cada vez mais consistente em fundam en
psicólogos, ortopedagogos, docim ólogos, tecnó tos em píricos, sólidos e verificáveis, em vez de es
•ráticas,
logos etc., sobre a educação. Enfim, o que se de peculações teóricas. Além disso, no decorrer das
r as ati-
signa atualm ente po r “racionalização” consiste, últim as duas décadas, essas novas teorias per
aciona-
na m aior parte das vezes, em um a subordinação m itiram renovar consideravelm ente algumas de
ijerivos,
excessiva da educação à econom ia, o que corre o nossas concepções a respeito da aprendizagem .
eramas,
risco, afinal de contas, de desnaturar o potencial Por exem plo, sabem os atualm ente que a criança
etc. As
em ancipador da razão educativa. de peito possui já um repertório de com petências
então,
intelectuais e com unicacionais m uito mais am
plo e recheado do que era possível pressentir na
io âma- 17.1.2 A ciência da educação
época de Piaget. N o m esm o sentido, os trabalhos
as e de A ciência é a form a m oderna dom inante do recentes em neuropsicologia enfatizam a relati
: nossas racionalism o. Ela constitui um a linha de força va plasticidade do cérebro hum ano, inclusive no
428 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia
adulto: a aprendizagem de novos conhecim entos de em ancipação, em vez de atividades com base
e de novas com petências se traduz pela criação científica, enquanto outros - é o caso de Vygotsky e
de novas redes de relações entre os neurônios. Bruner - vão considerá-las, antes de mais nada.
Algumas pesquisas sobre a m em ória perm itiram , com o atividades sociais ou culturais. Eles de
igualm ente, elaborar a Teoria da Carga C ogniti fendem a ideia de que a pedagogia é, acima de
va (TCC) que dem onstra a eficácia e a ineficácia tudo, um a atividade orientada p o r valores e.
de determ inados procedim entos pedagógicos. p o rtan to , não pode ser inteiram ente científica:
Todavia, convém confessar que alguns desses em sua opinião, a pedagogia nunca será um a tec
novos conhecim entos, apesar de serem extrem a nologia. Daí, o questionam ento relativam ente à
m ente estim ulantes, ainda estão longe de serem contribuição das ciências para a pedagogia tem
aplicados no m undo escolar e, em particular, nas ocorrido com frequência e de form a um tanto
salas de aula. De m aneira geral, o século X X nos superficial.
ensinou, através da sucessão das diversas psico
logias, que as teorias e os conhecim entos cientí 17.1.3 A escola
ficos têm dificuldade em im pregnar a esfera da
pedagogia escolar. Com efeito, quando se faz o O u tra linha de força da história da pedago
balanço das contribuições dessas psicologias para gia no decorrer dos últim os séculos reside, in-
a educação no século passado, o resultado é de contestavelm ente, em sua form a escolar que se
veras decepcionante. Os psicólogos têm escrito im pôs no século XVII. A escola tornou-se um a
m uito sobre a educação, mas são raras as ideias instituição dom inante da M odernidade. N o iní
que, de form a real e duradoura, se im puseram cio, lim itada ao O cidente, a escola estendeu-se
nas práticas dos professores. Q uem sabe se elas posteriorm ente pelo m undo inteiro e todos os
são inaplicáveis pelo fato de não terem sido con países acabaram p o r adotá-la com o institui
cebidas em ligação direta com as realidades do ção básica para a educação das novas gerações.
ensino na classe? De fato, a m aior parte das psi Com o será a evolução desta am pla instituição no
cologias têm concebido a aprendizagem em um a decorrer das próxim as décadas?
perspectiva clínica, canhestram ente individual e Lem brem os que, no decorrer dos últim os
subjetiva: elas têm m ostrado interesse por com séculos, o controle da escola se to rn o u em um
preender sobretudo o pensam ento da criança e verdadeiro cam po de batalha social. N o começo,
não tanto sua atividade coletiva em classe, atra a escola m oderna surgiu com o m ovim ento das
vés de suas interações com o professor e os sa reform as religiosas que m arcaram o cristianism o
beres a aprender. Além disso, diferentem ente da europeu a p artir do século XVII. Em seguida, ela
biologia ou da quím ica, a psicologia não chegou tornou-se um alvo de luta entre as com unidades
a se unificar com o ciência, incluindo a área das religiosas que a controlavam e a em ergência dos
ciências cognitivas que continuam sendo p e r novos poderes estatais. N o final do século XIX,
m eadas po r diversas correntes científicas. as diversas Igrejas deixaram de oferecer resistên
Tudo isso levou alguns pedagogos - tais cia aos Estados que, assim, estenderam seu con
com o Freire e Freinet - a conceber a educação trole sobre a escola: esta converteu-se em uma
e a pedagogia com o ações políticas e atividades instituição nacional a serviço da sociedade e de
17 A pedagogia de amanhã
seus cidadãos. E ntretanto, o m onopólio do Esta de ordem será cada vez mais contestada. Essa
ise
r e do sobre a escola foi am plam ente contestado ao contestação, em parte, carregada pelos partid á
da. longo do século X X , não só pelos grupos religio rios da Educação N ova, radicaliza-se na segun
de- sos, mas tam bém por pessoas e grupos favoráveis da m etade do século X X com a dem ocratização
de a um a instituição escolar privada. escolar que traz em seu bojo novos desafios as
e, Por trás dessas diversas tentativas de c o n tro sociados à heterogeneidade dos alunos e à di
íca: le político da escola surgem questões fundam en versidade de suas necessidades, assim com o de
tec- tais que m antêm toda a sua atualidade. C om o a suas origens sociais, culturais, religiosas, étnicas
te à educação dos seres hum anos é considerada um e lingüísticas. Em suma, a pedagogia do controle
tem bem , um valor central de nossa m odernidade, e da ordem - ou, dito por outras palavras, a pe
mto quem deve controlar esse bem e tom ar a decisão dagogia da autoridade absoluta - é abandonada.
de distribuí-lo aos m em bros da sociedade? Será Com essa dem ocratização, instaura-se um a nova
que a educação é um bem com um , cuja respon ordem dos valores pedagógicos: respeito pela
sabilidade deve ser assum ida pelo Estado que criança, diferenciação do ensino e acatam ento
garante a justa distribuição? Esse bem pertence das diferenças, adaptação às necessidades diver
rá aos indivíduos, em particular, às famílias que sificadas dos alunos, valorização de sua au to n o
ago-
são os principais responsáveis pela educação dos m ia, de sua atividade, de sua liberdade e de seus
, in-
filhos? Será que esse bem pode ser dividido em interesses, consideração p o r suas perspectivas e
le se
um a parte pública e um a parte privada, com o é representações etc. M esm o assim, a escola conti
um a
o caso em vários países? As crenças religiosas - nua sendo um a instituição coletiva que se dirige
>iní-
que, po r definição, são individuais, até m esm o, a um grande núm ero de indivíduos, cujo percur
;u-se
pessoais - terão seu lugar na escola, um a insti so de longos períodos - quase sem pre, acim a de
» os
tuição pública, neutra neste aspecto? É m uito um a década - é gerenciado po r ela. A tualm en
ritui-
provável que, no decorrer do século XX I, essas te, a pedagogia escolar parece encontrar-se em
çóes.
questões venham a dom inar a cena educativa; um a fase de evolução com plexa que está longe
io no
além disso, as respostas que lhes forem forneci de ter chegado a seu term o: tendo-se separado,
das hão de exercer um a influência considerável em parte, dos antigos m odelos de ordem e de
rimos
sobre a pedagogia escolar. autoridade, ela procura levar em consideração a
n um
N o entanto, a m aneira com o se fará a evo diversidade dos alunos e a com plexidade do ato
neço,
lução da escola não se lim ita a esse desafio de pedagógico no âm ago de um a escola dem ocráti
o das
controle político. Com efeito, com o vimos no ca, assim com o instruir, educar e preparar para a
lism o
capítulo 4, a escola do século XVII com eça por vida um grande núm ero de educandos. Às vezes,
la, ela
ser concebida com o um a instituição dom inada essa evolução conduz os professores a realizar a
dades
po r um a lógica de ordem . A pedagogia, inspira q uadratura do círculo!
ia dos
. XIX, da profundam ente pela religião e po r um a visão Enfim, em relação à escola do futuro, m ere
sistên- m ecanicista do m undo, define-se então com o a ce ser sublinhada esta últim a evolução. D uran
u con- arte de controlar as crianças, os saberes escola te m uito tem po, a escola ficou confinada em si
n um a res e os m estres nas salas de aula. Todavia, no mesm a po r ter o m onopólio dos saberes oficiais
le e de decorrer dos séculos subsequentes, essa lógica ou form ais, isto é, saberes que todos os cidadãos
430 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia
visão, o ensino não exige realm ente conheci um a força de expansão m undial, propagando-se
m entos, nem com petências especializadas: as prim eiram ente aos outros países anglo-saxões
professoras - a respeito das quais existe a cren (Canadá, A u strá lia , G rã -B re ta n h a etc.) e, na
ça de que possuem p o r instinto “a arte de e d u se q ü ên c ia, à E uropa e à América Latina. Atual
car crianças” - aprendem frequentem ente seu m ente, quase todos os program as de form ação
ofício na p ró p ria sala de aula, p o r experiência e de docentes afirm am ter a missão de form ar pro
im itação das professoras tarim badas, en q uanto fissionais - aliás, noção que é diferente de acor
sua form ação se lim ita a rudim entos e, em vá do com o país.
rios países, a um certificado de bons costum es. C om o será possível proceder à apresenta
N o fundo, enquanto a escola se desenvol ção de um a expansão tão rápida? N a realida
ve em grande escala durante a prim eira m eta de, a profissionalização dos diferentes ofícios e
de do século X X - à sem elhança em parte ao form ações é um a tendência antiga que, há mais
que ocorre com as grandes indústrias na mesm a de um século, m arca profundam ente o m undo
época - , o docente perm anece vinculado a um a do trabalho na sua totalidade; não se trata, por
visão artesanal de seu trabalho: possuindo talen tanto, de um fenôm eno peculiar ao ensino. N o
to para ensinar, basta-lhe, pensa ele, um pouco decorrer do século X X , num erosos grupos de
de form ação livresca porque o resto, tudo o que trabalhadores (peritos, profissionais de todas as
é im portante, irá aprender po r experiência em áreas - engenheiros, m édicos, advogados, psicó
contato direto com os alunos. Ainda m elhor: logos etc. - adm inistradores, gestores e quadros,
diferentem ente dos operários da indústria que técnicos de alto nível etc.) envolveram -se em um
devem trabalhar em colaboração ao longo de in vigoroso processo de racionalização das respec
term ináveis cadeias de m ontagem , o docente vê tivas atividades, esforçando-se p o r formalizá-las
o aspecto artesanal de sua profissão fortalecido com a ajuda de regras. Estas acabaram sendo
p o r seu isolam ento na classe. N a realidade, ele objetivadas em discursos, deontologias, éticas,
não tem necessidade dos outros professores para padrões de “boas práticas”, referenciais de com
executar o essencial de seu trabalho. Assim, à petências etc. Tal racionalização foi acom panha
m aneira de um artesão, ele sente-se autônom o e da pela edificação de bases de conhecim entos
responsável pela totalidade de sua obra: ensinar. específicos para cada grupo; estes últim os foram
N o entanto, essa visão artesanal da form ação integrados em cursus universitários a fim de te
dos docentes e de seu trabalho cede tam bém o rem seu fundam ento em saberes científicos. Uma
lugar, p o r volta da década de 1980, a um a nova grande parte da expansão das universidades no
concepção do ofício a que se atribui o qualifica século X X resulta justam ente desse am plo m o
tivo de profissionalização. vim ento de racionalização do trabalho e de pro
C om parativam ente à vocação, a profissiona fissionalização das form ações. Portanto, a partir
lização do ensino se caracteriza, por um lado, dos anos de 1980, observa-se que o ensino entra,
por seu aspecto recente e, por outro, por seu po r sua vez, no m ovim ento.
em basam ento norte-am ericano. A profissiona M as o que significa, concretam ente, profis
lização com eça, em m eados dos anos de 1980, sionalizar a form ação dos docentes? N os últim os
nos Estados Unidos e vai adquirir rapidam ente 25 anos, todos os trabalhos de pesquisa, tanto
17 A pedagogia de amanhã 433
d ose europeus quanto norte-am ericanos - em pé de 17.2 A (ou as) pedagogia(s) de amanhã
axões igualdade com os enunciados de políticas p ro
Q ual será o conteúdo da pedagogia de am a
e, na mulgadas na m aior parte dos países ocidentais - in
nhã? C om base nas considerações precedentes,
Vrual- sistem sobre os mesmos elementos que podem ser
podem os pensar que irá prosseguir o processo
aação considerados com o os ideais que devem orientar
de racionalização, que a ciência será convoca
r pro- as reform as da form ação:
da com um a frequência cada vez m aior, que a
acor-
1) realçar seu nível cultural, integrando-a na criança será observada de form a cada vez mais
universidade; m inuciosa, que a relação m estre-aluno será ana
ienta- lisada de form a cada vez mais detalhada, que as
2) enriquecer seus conteúdos pela incorpora
alida- tecnologias vão ocupar um espaço cada vez mais
ção dos resultados da pesquisa, em p articu
áo s e am plo e que os prom otores de inovações peda
lar, na psicologia, pedagogia e didática;
mais gógicas de to d a a espécie vão torná-las cada vez
undo 3) reservar um m aior espaço para a form a mais atraentes para encontrar quem esteja inte
, por- ção prática e estreitar seus vínculos com os ressado em adotá-las. O que parece ser crucial
>. N o outros com ponentes dos program as; é que, no contexto da globalização, a educação
os de 4) avaliar não mais unicam ente os conheci é percebida, mais do que nunca, com o um im
ias as m entos dos estudantes, mas sobretudo sua po rtan te vetor de desenvolvim ento econôm i
>sicó- com petência em aplicá-los no ensino; e, en co e social. E por isso que os grandes estudos
idros, com parativos, no plano internacional - com o o
fim,
n um program a Pisa da O cde - , têm desencadeado tal
5) valorizar um a visão reflexiva do ensino repercussão na população que os governos não
spec-
que venha a culm inar em práticas inovadoras podem perm anecer indiferentes a esses resulta
lá-las
a serviço da aprendizagem dos alunos. dos. A classificação precária de um Estado acaba
endo
Em princípio, se esses elem entos são im dando m unição aos reform adores, enquanto a
ticas,
plem entados de m aneira eficaz, eles deveriam posição de outro país entre os m elhores induz
com -
conduzir, em últim a análise, à form ação de n o a com preender as razões desse sucesso. Os Esta
inha-
dos pretendem , p o rtan to , adotar sistemas esco
entos vas gerações de docentes mais profissionaliza
lares de qualidade, o que implica, em particular,
oram dos, dispondo de conhecim entos científicos e
a prática de um ensino de qualidade. C om o dizia
le te- de com petências práticas já com provadas para
Com enius, deve-se ensinar “um m aior volume
Uma exercer seu ofício, estando orientados, ao m es
de conhecim entos, de form a mais rápida e ade
es no m o tem po, po r um a ética baseada na qualidade quada”. C om o atingir tal objetivo sem procurar
m o- da aprendizagem dos alunos. Todavia, a histó a aplicação das m elhores m aneiras de fazer, sem
pro- ria das últim as décadas m ostra que esse m ovi visar o reconhecim ento das práticas pedagógicas
>artir m ento de profissionalização está longe de sua exem plares? Uma das vias interessantes que, no
ntra, conclusão e que sua im plem entação suscita um decorrer das últim as décadas, foram adotadas -
grande núm ero de resistências, inclusive, entre e, sem dúvida, serão m antidas - tem a ver com
rofis- os docentes: seu desenvolvim ento constituirá, o esforço de avaliar, na classe, o im pacto dos
im os sem nenhum a dúvida, um a linha de tensão nos procedim entos pedagógicos e didáticos sobre a
canto próxim os decênios. aprendizagem dos alunos. C om essa condição é
mm
434 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia
que o ofício de docente poderá, enfim , profissio- gens pedagógicas se elas não oferecem determ i
nalizar-se e sair dos lim ites do senso com um , da nadas garantias de sucesso. Preferim os pensar
vivência, da intuição e das experim entações sem que o princípio de abertura deve ser adotado a
qualquer controle. posteriori, ou seja, que devem ser incentivadas
todas as abordagens pedagógicas que tenham
Para alguns autores, a m anutenção da plu
dem onstrado previam ente sua eficácia; eis o
ralidade das abordagens pedagógicas é um a es
que é um a ressalva im portante. A pedagogia do
pécie de princípio m oral que deve enquadrar a
futuro poderá assumir, p o rtan to , várias facetas,
profissão; em sua opinião, identificar as boas
mas estas últim as terão sido objeto de avaliação
práticas pedagógicas seria contrariar o princípio
relativam ente à sua eficácia. N o que diz respeito
de abertura às diversas abordagens. Parece-nos,
às pedagogias do futuro próxim o, parece que se
pelo contrário, que se trata de um a atitude e rrô
trata de pedagogias sistemáticas, estruturadas e
nea no sentido em que é abrir espaço a priori a
explícitas, cuja aplicação tem obtido resultados
um princípio pedagógico que não pode adquirir
convincentes; ora, o mais razoável é orientar-se
sentido a não ser a posteriori-, m anter o princípio
nessa direção. C om o nem todas as possibilidades
do pluralism o pedagógico a priori é afirm ar que
no plano pedagógico estão esgotadas, outras m a
estam os de acordo para prom over todas as pe-
neiras de dar a aula hão de aparecer, sem dúvida,
dagogias, até m esm o aquelas que não forneçam
nos anos vindouros; neste caso, convirá avaliar
necessariam ente bons resultados! É difícil com
criteriosam ente seus efeitos sobre a aprendiza
preender a pertinência de defender tais aborda
gem e a conduta dos alunos.
Conclusão
determ i- Resumo
s pensar
dotado a C om o conclusão da obra - A Pedagogia, teorias e p rá ti
rntivadas cas da A ntiguidade aos nossos dias - , este capítulo p ro p õ e
tenham pistas de reflexão sobre o fu tu ro da pedagogia. Em vez de
a; eis o um a leitura do fu tu ro , à sem elhança do que é feito p o r
gogia do alguns autores diante de um a bola de cristal ou da b o rra
5 facetas, de café, trata-se so b retudo de um a tentativa, com a aju
ivaliação da de nossos conhecim entos do passado e do presente, no
: respeito sentido de discernir as linhas de força que ap aren tem en
ce que se
te estão a desenhar-se. E ntre essas linhas, o racionalism o
ruradas e
serve de q u ad ro de referência aos discursos e às práticas
esultados
educativas institucionalizadas. Do m esm o m odo, a ideia de
rientar-se
um a ciência da educação - respaldada em dados em píricos
bilidades
utras ma- oriundos, em particular, da neurologia e da psicologia cog
a dúvida, nitiva, mas em ligação com o co n tex to da classe - parece
rá avaliar d e sp o n tar no ho rizo n te de m aneira cada vez m ais consis
prendiza- tente. Além disso, é claro que a form a escolar - no m ínim o,
tal com o é conhecida atualm ente - passará p o r um a de-
sestabilização cada vez m aior em decorrência do im pacto
das novas tecnologias. N ossa análise a respeito da criança
e de sua relação com o professor c o n tin u ará sendo objeto
ima opor- de preocupações pelo fato de que as T IC ocuparão um es
dagógicas paço cada vez m ais am plo. Enfim , a pedagogia de am anhã
ida da pe- deverá apoiar-se - e m ais do que o correu até aqui - na
encontro pesquisa. N o passado, houve a pretensão frequentem ente
rela com o de p rom over grandes revoluções pedagógicas q uando, de
quando form a mais m odesta, pequenos passos dados com m aior
xlutos de segurança teriam p erm itido à hum anidade d ar saltos de
ifelizmen- m aior am plitude.
, será im-
>rodutos”,
Questões
s falantes,
idade. De 1) Por que m otivo o racionalism o pode ser considerado
precaução com o um a das principais forças da tradição educativa?
ição àque-
2) Q ual é a m udança, entre o século XVII e nossos dias,
s crianças,
no papel a desem penhar pelo mestre?
i que seja,
436 Parte III As grandes teorias psicológicas e científicas da pedagogia
Atividade de aprendizagem