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RELAÇÕES DE GÊNERO NA CONSTRUÇÃO CIVIL EM UMA

LOCALIDADE DO INTERIOR DO RIO GRANDE DO SUL

Daniela Romcy1

Resumo: O trabalho aqui apresentado é um recorte da pesquisa etnográfica, realizada em 2012,


intitulada: “Fala que nem homem”: Relações de Gênero na Construção Civil em uma localidade do
interior do Rio Grande do Sul, onde havia uma engenheira responsável. O meu objetivo neste texto
é explorar a partir de um viés antropológico, como são construídas as relações de trabalho para as
mulheres em um campo “predominantemente” masculino, onde as posições profissionais de
prestígio, as hierarquias e as estratégias de interação na sociabilidade de homens e mulheres são
diferenciadas. Um dado observado em minha pesquisa foi a dificuldade em encontrar engenheiras
civis responsáveis por estas obras, pois na maioria dos casos elas são alocadas em cargos
administrativos nas construtoras ou ainda responsáveis pela elaboração de projetos.
Palavras-chave: Antropologia - Relações de gênero - construção civil.

Apresentação

Este trabalho foi pensado a partir da minha dissertação de mestrado ainda em processo de
conclusão intitulada: “Fala que nem homem”: Relações de Gênero na Construção Civilem uma
localidade do interior do Rio Grande do Sul.Foi a partir da pesquisa realizada por Jurema Brites
sobre as relações entre empregadas domésticas e suas patroas que comecei a delinear aos poucos
um campo possível de estudos e em como pensar estas relações no campo da construção civil. Ou
seja, se o objetivo da pesquisadora citada era entender as relações estabelecidas intragênero, a
questão da minha pesquisa insere-se nesta mesma linha de raciocínio, mas buscando
entenderrelações intergêneros, em que a subordinação cabia aos homens e não as mulheres. A
questão norteadora desta pesquisa é como se dão empiricamente as hierarquias do trabalho, as
diferenças sociais e as estratégias de interação, na sociabilidade destes homens pedreiros chefiados
por mulheres quando há uma inversão das tradicionais hierarquias de gênero e também social. Eu
estava pensando em relações de gênero, mas preocupada com a construção das masculinidades

1
Mestranda em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. Integrante do
GEPACS/UFSM (Grupo de Estudos e Pesquisas em Cultura, Gênero e Saúde)
diante destes novos espaços ocupados pelas mulheres no mercado de trabalho2. Pois poucos são os
trabalhos que abordam de maneira específica as condições da construção da masculinidade e das
relações estabelecidas entre homens e mulheres no campo do trabalho, ou seja, aqui meu olhar
estava direcionado a produção de homens e suas masculinidades.
Entretanto, o local escolhido para a minha pesquisa foi justamente uma obra da construção
civil que fosse chefiada por uma mulher. Um dado observado em minha pesquisa foi à dificuldade
em encontrar engenheiras no mercado de trabalho da cidade estudada, pois esse cenário continua
sendo majoritariamente masculino. Quando as encontrava, o local de inserção era diferenciado, pois
a maioria trabalhava nos setores administrativos das construtoras, evolvidas na elaboração de
projetos, dificilmente acompanhavam o processo da execução da obra. O que por si mostrava o
lugar generado da mulher.
Mesmo que ao longo do trabalho o meu olhar tenha sido direcionado, não pude deixar de
pensar, de forma mais concisa o lugar social que ocupava a engenheira. E assim como o lugar
ocupado por ela, ao longo da escrita percebi que outras oitomulheres que também trabalhavam na
construção haviam escapado ao meu olhar. Mais do que um trabalho finalizado o exercício
empreendido aqui é apresentar estas mulheres em um espaço de trabalho até pouco tempo atrás
tomado praticamente por homens.
Para não tornar o artigo muito extenso, farei uma breve apresentação do campo e das
técnicas utilizadas nesta pesquisa, de onde tirei as poucas reflexões aqui propostas. E privilegiarei
os aspectos descritivos da minha imersão etnográfica.

Questões metodológicas e apresentação do campo

O recorte aqui apresentado foi retirado de uma pesquisa que ocorreu no ano de 2012
nointerior do Rio Grande do Sul. Houve uma reforma de grande porte, realizada pela construtora
em um espaço comercial que nunca fechou suas portas. Assim,os sinais da reestruturação eram
fortemente percebidos em todos os espaços doestabelecimento.Nesta obra, no momento de minha
investigação, havia 20 pedreiros homens que eram contratados locais e 15 trabalhadores

2
Sobre a inserção da mulher no mercado de trabalho ver bruschinni@@@ e Guedes@@
especializados: em hidráulica, 2basalteiros3 e 5 pintores oriundos de outras cidades. Uma casa e um
apartamento foram alugados para alojar como dormitório e refeitório tais trabalhadores. 4
A etnografia foi relativamente curta, por imponderáveis do campo, após um pouco mais de
três meses, a obra findou-se dando fim também a minha imersão de pesquisa. Entretanto, como
aprendi a admitir com minha orientadora5, não estamos mais na época de Malinowski, nas Ilhas
Trobriant, nem temos mais o tempo necessário para pesquisa de tal envergadura, na qual o
pesquisador passava anos juntamente com este “outro universo”, tempo este que era “definidor da
própria pesquisa etnográfica” (Ribeiro, 2010). Nosso tempo hoje tem relação também com a
sazonalidade das populações que investigamos. Todavia, não é pelo pouco tempo que nós não
chegamos a lugar nenhum.
Como o tempo foi definidor do trabalho, outro fator importante é o fato de não mencionar os
nomes verdadeiros dos pesquisados assim como os locais onde ela foi realizada. Uma medida que
utilizo para proteger meus informantes, desta tarefa hercúlea, pois é no detalhamento que fazemos
dos sujeitos e lugares das nossas pesquisas que trazemos fidelidade ao texto etnográfico.Mesmo que
a cidade não seja mencionada, algumas características essenciais são importantes para que o leitor
saiba situar o local de minha pesquisa. Realizei essa pesquisa em uma cidade de médio porte com a
economia voltada para a prestação de serviço, fundamentalmente pelo estabelecimento de serviços
públicos estatais e federais e desenvolvimento do comércio. Por isso, existem muitos
estabelecimentos comerciais tais como o que pesquisei, sendo difícil que ao ler este trabalho alguém
consiga mapear onde a pesquisa foi realizada.
O método etnográfico, privilegiado nesta pesquisa, nos permite, enquanto pesquisadores, um
contato contínuo com o grupo estudado. Segundo Geertz, fazer etnografia é “estabelecer relações,
selecionar informantes, transcrever dados, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário”.
É entrar na vida do “outro”, sem a mínima pretensão de “entrar na alma do nativo”6, mas antes
procurar entender uma “hierarquia estratificada de estruturas significantes” nas quais as ações são
produzidas, percebidas e interpretadas. (Geertz, 1989). Dito isso, de outra maneira, para que se

3
São chamados de basalteiros por serem responsáveis por colocar o basalto, tipo de piso colocado no
estabelecimento.
4
Os basalteiros eram de uma empresa especifica de Santa Catarina, eram dois homens pai e filho. Esta obra como é
comum na literatura das ciências sobre trabalhose deu a partir de contratações terceirizadas na subcontratação de
empresas menores, em uma dinâmica de dependência mútua.
5
Diversos “insigths” que tive ao longo deste trabalho foram travados em longas discussões com minha orientadora. O
orientador ocupa um lugar importante nas nossas vidas “mesmo sem desejar e muitas vezes sem consciência, herdeiros
intelectuais de determinadas linhagens”(Grossi, 2004, pg 221./223)
6
Malinowski, 1978.
compreenda determinados fenômenos sociais, no meu caso pra entender as relações de gênero na
construção civil a partir da Antropologia, é no “olhar”, “sentir” e “escrever” (Oliveira,2006) que
estes elementos adquirem “um sentido todo particular de natureza epistêmica”.

Campo de trabalho feminino – engenharia em foco

Cristina Bruschini (1999; 2007) realizou algumas pesquisas sobre as ocupações profissionais
femininas, que possuem algum prestígio na nossa sociedade, tais como engenharia, direito,
arquitetura. Em sua pesquisa realizada com dados do Rais entre os anos de 1993 a 2004, a autora
aponta um crescente aumento no campo de trabalho feminino no Brasil. Na Magistratura, por
exemplo, as mulheres ocupavam 22,5% dos postos de trabalho em 1993 e em 2004 este índice
chega a 34%. Na arquitetura elas ocupavam em 2004 54% de mão de obra feminina, ou seja, na
arquitetura há mais mulheres no mercado de trabalho do que homens. Entretanto, no caso das
engenharias, as mulheres ocupavam 12% dos cargos disponíveis em 1993 e esse índice cresce para
14% em 2004. Importante para esta pesquisa é pensar que apesar deste crescimento a carreira da
engenharia é a que menos cresce em termos de mão de obra feminina se comparada a outras
ocupações.
Segundo Bruschini (1999), a engenharia no Brasil esteve associada às escolas militares que
não permitiam mulheres, o que por si só recusava a entrada delas neste campo. É a partir dos anos
60 e 70, com a expansão das Universidades que as mulheres começam a escolher este como um
possível campo profissional. Sua conclusão é de que com o passar do tempo a inserção entre
homens e mulheres, nas diversas profissões estudadas, se dava de forma semelhante, apesar de
“padrões diferenciados por gênero” principalmente quando se fala na questão salarial, já que as
mulheres ainda recebiam menos que os homens.
Cabe lembrar que esta pesquisa se deu em um grande centro urbano e que esta configuração
toma outras proporções quando se pesquisa em outras regiões. Isso significa que se o índice de
aumento de mulheres engenheiras em São Paulo, lugar da pesquisa citada, foi de 2%, isso não quer
dizer que o mesmo ocorra em outras cidades. Nem que estas inserções profissionais se deem de
formas semelhantes. Ainda que atualmente muitas mulheres se formem nos cursos de engenharia,
como salientei anteriormente a inserção destas mulheres se dá de forma diferenciada, já que em sua
maioria elas ficam responsáveis por realizar tarefas administrativas.
Aengenheira e as “outras mulheres”

Fabian, a engenheira era uma mulher atraente, de 36 anos, morena com cerca de um metro e
sessenta de altura. Sua voz era suave e delicada, apesar de alegre. Em nosso primeiro encontro
usava roupas simples, mas femininas: calça jeans e blusa preta, ambas justas evidenciando as
formas do seu corpo. Seu rosto estava bem maquiado. Usava batom, delineador, brincos dourados
nem grandes, nem pequenos e uma pequena gargantilha de ouro. Na sua mão podia-se ver que as
unhas eram curtas e não estavam pintadas, embora estivessem bem cuidadas. Em um dos dedos
possuía um anel de casamento e logo acima outro com uma pedra grande e escura. Seus cabelos
estavam soltos, presos com óculos de sol acima da cabeça. Em contraste com todo este visual
feminino, usava uma botina suja de pó, evidenciando um traço característico de quem trabalha
numa obra: sujeira.
No nosso primeiro encontro resolvemos questões pragmáticas da minha “empreitada” e
também conversamos sobre muitas coisas: a vida dela, a rotina da obra, suas experiências de ser
uma trabalhadora que se desloca de sua cidade acompanhando a construtora e as diferenças que
percebe no tipo de profissional que tem que lidar. O que talvez parecesse banalidade para ela frente
a uma reunião “profissional”, eram assuntos de extrema importância para que eu tivesse um
panorama do meu objeto.
Ela formou-se em 2001 em uma universidade pública e já na faculdade tinha predileção por
canteiros de obras, toda sua formação foi para exercer este tipo de serviço, inclusive seu estágio foi
na reforma de um aeroporto. Entretanto, passou muito tempo em busca de emprego, pois a
preferência para o trabalho nas obras é por homens, fato que eu já tinha percebido anteriormente.
Segundo ela, em algumas entrevistas isso ficava evidente, enquanto em outras ela percebia nas
“entre-linhas”. Os entrevistadores chegavam a falar com todas as letras que preferiam para o cargo
um homem a uma mulher, apesar da sua qualificação. O fato de ter tido um filho7 dificultou ainda
mais que ela conseguisse um emprego, pois ela foi demitida logo após acabar a licença maternidade
de sua segunda gestação.
Fabiana era casada e tinha dois filhos, um com sete e outro com nove anos. Como ela
morava em outra cidade seus filhos ficaram a cargo do seu marido, que é professor de física no
ensino médio em uma escola estadual. O casamento de Fabiana possuiu algumas características do
que Tania Salem chamou de “o casal igualitário”, uma das características deste modelo de parceria

7
O fato da dificuldade de conciliação entre trabalho e maternidade para as mulheres ver Sorj 2007.
é o princípio do igualitarismo exprimisse na proposição de que “não existem nem âmbitos nem
qualidades simbólicas exclusivas a cada um dos gêneros e proibidos ao outro. Com efeito, nesse
contexto ético homem/masculino e mulher/feminino encontram-se investidos de um mesmo valor”.
Mesmo que a engenheira fosse a chefe de família, pois era dela a maior parte da renda familiar, e
que se pudesse pensar que aparentemente esse casal procurasse dividir as tarefas domésticas, é
difícil ainda na nossa sociedade, mesmo em camadas médias e letradas alcançar um status de “casal
igualitário”. Quanto a este casal especificamente ficou claro que este marido tinha dificuldades em
lidar com o espaço doméstico, já que ele era assistido no cuidado dos filhos da mãe de Fabiana. Mas
o mais distinto fenômeno neste caso em particular foi a distância que o trabalho evidenciava do
convívio familiar, tanto que no final do meu campo, quase no final da reforma, Fabiana se viu
obrigada a “escolher” entre o emprego e o marido. Ela escolheu o segundo, se despedindo do
trabalho antes do esperado.
Com relação ao seu trabalho e suas relações com os pedreiros, que eu estava disposta a
analisar percebi que essa relação pouco existia na prática. Pois o campo da construção civil é
também extremamente hierarquizado. Entre a engenheira e os pedreiros havia outras pessoas, outros
homens tais como: os mestres de obras, os responsáveis pela hidráulica, elétrica que intermediavam
essa relação. Conforme os dias foram passando, fui reconhecendo que embora Fabiana passasse por
toda obra, a sua fala era restrita a determinadas pessoas, como o sócio da empresa, o mestre de obra,
os responsáveis pela elétrica/hidráulica/pintura,mas era com Ricardo8uma dos mestres de obras que
ela mais conversava. Contudo, dirigia-se pouco aos pedreiros e quando isso ocorria ou era por que
estes não estavam trabalhando ou quando não estavam usando os EPI (Equipamentos de Proteção
Individual), como por exemplo, capacetes, botas, protetores auditivos, etc... Ou seja, as ordens
significativas nunca erram dadas diretamente aos pedreiros por Fabiana. Esta acionava Ricardo ou
outros homens que comunicavam o que deveria ser feito aos trabalhadores.
A relação de Fabiana se dava de forma mais concisa com estres outros homens, acima ou um
pouco abaixo na hierarquia de trabalho. Mas um relato do meu primeiro dia de observação
participante pode ilustrar que mesmo entre seus “iguais” ela não desfrutava do mesmo status que
seus colegas. Transcrevo a seguir a cena extraída do meu diário de campo:

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Ricardo era o principal mestre de obras, toda a obra passava por ele. Estava sempre com o telefone no ouvido, falando
com fornecedores, com o chefe, organizando de forma prática o funcionamento da obra. Embora Ricardo e Taislan
sejam seguranças do trabalho Ricardo atuava como mestre de obras, pois ficava o dia inteiro circulando pelo
estabelecimento, assim como Gustavinho. Taislan trabalhava grande parte do dia em frente do computador com funções
administrativas no container central. Mas como não havia uma delimitação entre mestre de obra e segurança de
trabalho, chamei todos eles de mestre de obras os longo do texto.
Assim que entrei pela primeira vez no container administrativo, fui apresentada
por Fabiana aos dois sócios da empresa Luís e Otávio9 e aos três mestres-de-obras, logo
depois de apresentada Fabiana saiu e me deixou sozinha com eles. Neste primeiro contato
transcorreu uma conversa entre eu e Luís, que me possibilitou pensar o espaço ocupado por
estes homens naquele lugar. Todos os homens estavam sentados conversando e eu parada
na porta. O diálogo transcorreu da seguinte forma:
- Tu tem certeza de que tu quer fazer pesquisa aqui com a gente? – Luís
- Sim, quero, respondi prontamente.
- Mas aqui somos um bando de “loco”, tudo “loco”, exclama Luís
- Verdade? Falei sem muita certeza de como reagir
- Pergunta pra Fabiana? Quando ela chegou aqui fizemos um bolão pra ver quanto
tempo ela ficaria, é difícil aguentar toda essa gente “loca”, mas ela é de fé, já esta aqui há
três meses.
- Ah! Vamos ver, acho que eu consigo também.
- Quero só ver “guriazinha”!!! – exclamou ele ao som das gargalhadas de todos os
outros.

A palavra “loco” parece assumir o status de masculinidade naquele lugar, pois mesmo
Fabiana estando ali há um bom tempo, ainda não portava do mesma condição de “loca” como os
homens, assim como obviamente eu não iria postar. Pois, este status quo neste caso assume um
aspecto relacional de gênero.
Além da engenheira, sob qual estava o meu foco de análise, havia outras oito mulheres que
faziam parte da “obra”. Destas, sete eu conheci pessoalmente, mas pouco tive contato, e uma que só
tomei conhecimento pela descrição e falas da engenheira e dos mestres de obras. Esta última era a
chefe da empresa que contratou os serviços da construtora, ela aparecia na obra somente para as
reuniões gerais entre construtora e estabelecimento, reuniões estas que ocorriam em uma sala
fechada na própria casa comercial. Sempre depois de uma destas reuniões que ocorriam
esporadicamente, umas três vezes enquanto estive em campo, seu nome aparecia sempre de modo
depreciativo ou como reclamação. Pois era ela a responsável por cobrar e alterar o cronograma e
ajustes que ocorriam de forma imprevista durante o processo de andamento da reforma. Cobrava
“tintim por tintim” o que estava nos projetos e não gostava de alterações, o que segundo a
engenheira era impossível de acontecer por sempre acontecia a falta de entrega de um fornecedor,
ou mesmo, aspectos climáticos que atrasavam a execução.
Outra mulher que aparecia esporadicamente nas mesmas falas dos homens e da engenheira
era a arquiteta da empresa responsável pela fiscalização da obra. Eu a conheci logo no primeiro dia
do meu campo, e foi nosso contato mais duradouro, algo em torno de minutos, seu nome era
Fernanda ela era, loira, magra e seus olhos me chamaram a atenção, sempre inquietos e

9
Dono e sócio da empresa respectivamente.
desconfiados, estava sempre na correria e era mais nova que a Michele e menos experiente, esta era
a sua primeira obra de fiscalização, pois havia se formado a pouco, o que por si só gerava
desconfiança nos seus “fiscalizados”. Assim que foi avistada por Michele esta me apresentou, falou
o que eu estava fazendo ali e Fernanda se mostrou disponível para me ajudar na pesquisa,
infelizmente, talvez por estar impregnada pelas falas negativas, que posteriormente escutei dos
meus pesquisados, principalmente sobre sua inexperiência e sua rabugice, eu praticamente a eclipsei
de minha observação, também pouco a via na obra e quando a via era para escutá-la reclamando que
algo estava errado. Posteriormente, o que meus informantes viam como “picuinha”,entendi que era
parte de seu trabalho de fiscalizadora. E que mais do que ser mulher, seu pouco tempo de
trabalhado a colocava em um lugar subalterno o que não acontecia com a engenheira da empresa
contratada.
Estas mulheres acima citadas se equiparavam em função com o que eu buscava pesquisar,
ou seja, o que busquei em Fabiana, entretanto, outras mulheres me chamaram a atenção, e ao
mesmo tempo fugiram ao meu olhar. Ainda presa aos condicionamentos de um olhar generado e de
classe eu me prendi demasiadamente num objeto idealmente construído – ou seja, eu buscava o
tempo todo compreender as relações dos pedreiros e de sua chefe engenheira. Essa certa “obsessão”
metodológica enturvava meus olhar para outras personagens presentes nas cenas de campo, o que
compreendi com o trabalho sobre os diários e a construção escrita etnográfica. Assim, pouco a
pouco elas tomavam um lugar mais privilegiado na minha análise.
Porque estas fugiram ao meu “olhar”. Simplesmente, pois elas trabalhavam em lugares e
espaços tradicionalmente femininos, ou seja, na limpeza e na cozinha. Espaços que, no âmbito do
privado são tradicionalmente das mulheres (Brites 2002) e que no caso da minha pesquisa e com
estas mulheres permanecem como referencial das relações de gênero.
Destas, quatro mulheres eram responsáveis pela limpeza, duas trabalhavam pela manhã e
duas pela tarde. Seu trabalho era limpar a sujeira deixada pelos trabalhadores da obra, geralmente
elas trabalhavam em lugares opostos aos pedreiros, posto que estes acabavam a reforma,
terminando uma seção, elas se dirigiam a ela para deixar o espaço “apresentável”.
As outras duas mulheres eu conheci no que chamei de “casa masculina.Pois elas eram
responsáveis pela alimentação do operariado. Eu as conheci quando fui almoçar com os rapazes.
Quando fui almoçar com o pessoal da obra, nas minhas pequenas observações era notório que estas
mulheres não se espalhavam nos espaços da casa, ao menos não na minha presença, ficavam
circunscritas ao espaço da cozinha e da sala principal também elas não tinham quase nenhuma
relação com os trabalhadores. Os estudos sobre trabalho e gênero remarcam que a despeito das
mudanças no mercado de trabalho nas últimas décadas, as tarefas de cuidado são destinas
massivamente às mulheres (Brites 2000, Bruschini2007).
Na construção que fiz minha pesquisa não haviam mulheres trabalhando como pedreiras.
Entretanto alguns dos homens confidenciaram-me que já haviam trabalhado com mulheres neste
cargo, mas salientaram que diferentemente dos homens, estas ficavam com a parte de finalização,
como pintura, acabamento. Ou seja, com as partes que exigem maior detalhamento e delicadeza.

Considerações Finais

Eu entrei em campo, a partir da matriz e os conceitos de gênero das ciências sociais e em


especial da antropologia assim como de algumas teóricas feministas, entretanto logo pude perceber
que a ideia de gênero que eu tenho não é a mesma com a qual meus informantes entendem como
gênero ouem como operam as dicotomias entre masculino e feminino.
Para levar a sério os meus informantes a sério eu tive que me despir de tudo que acredito e
luto. Para mim gênero pode ser compreendido como

“uma complexidade cuja totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente


exibida em qualquer conjuntura considerada. Uma coalizão aberta, portanto, afirmaria
identidades alternativamente instituídas e abandonadas, segundo as propostas em curso;
tratar-se-á de uma assembleia que permita múltiplas convergências, sem obediência a um
telosnormativo e definidor.” (Butler, 2006, p.37)

A visão tanto dos homens quanto das mulheres da minha pesquisa se assemelham a um certo
tipo de pensamento essencialista que concebe as diferenças de gênero como sendo fixas e não se
limita à fixidez determinada biologicamente, mas incluí também a fixidez ontologicamente
determinada. Se mulher ou homem num canteiro de obras esta invariavelmente ligado, além das
genitálias ao papel sexual que determinam as categorias de gênero para eles.
Strathern propõe pensar gênero simplesmente como um tipo de diferenciação que assume
conteúdos específicos em contextos particulares. E invariavelmente isso pode vir em contraposição
aos preceitos feministas10. Entretanto o meu impasse foi justamente pensar em como desestabilizar
universalidade da oposição natureza e cultura em um contexto onde esse tipo de pensamento é
pretensamente marcado. Para ilustrar melhor essa dificuldade relato uma conversa que tive com
Fabiana. Logo no meu primeiro dia de observação Percebi que os homens gritavam muito naquele

10
Para ver mais sobre as discordâncias entre as vozes feministas e antropológicas ver Strathern (2006).
espaço, não era um grito de ordenamento, mas era a forma incisiva como eles se comunicavam. A
engenheira se negou veementemente a participar desse modelo de se relacionar, nas suas palavras
“Se tivesse que falar alto e grosso como um homem para ser obedecida , seu lugar não era ali”.
Conceber o gênero como uma relação entre sujeitos historicamente situados é fundamental,
o sujeito a atacar passa a ser numa concepção relacional, o padrão dominante da relação de gênero.
Diferentemente do que se pensa com freqüência , o gênero não regula somente as relações entre
homens e mulheres, mas normatiza também relações homem-homem, mulher-mulher”.

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GenderRelacions in Civil Construction in a countrysidetownof Rio Grande do Sul


Astract: The paper presented here is a part of an ethnographic study, conducted in 2012, entitled,
"Speak like a man": Gender Relations in Building Construction at a countryside town of Rio
Grande do Sul, where there was an engineer responsible. My purpose in this paper is to explore
from an anthropological bias, how are built working relationships for women in a field
"predominantly" male, where the prestigious professional positions, hierarchies and interaction
strategies in sociability of men and women are different. A fact noted in my research was the
difficulty in finding civil engineers responsible for these works because in most cases they are
allocated in administrative positions in the construction or responsible for project design.
Keywords: Antropology - Gender Relations - Building Construction

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