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Histórias de “movimentos”:

embarcações e população portuguesas


na Amazônia joanina

Antonio Otaviano Vieira Junior*


Daniel Souza Barroso**

No esforço de matizar compreensão da repercussão da presença da família


real portuguesa no Brasil para além do Rio de Janeiro, esse artigo tem como
finalidade possibilitar uma reflexão acerca dos anos joaninos (1808-1821)
na Amazônia. O foco de análise é o fluxo de embarcações portuguesas e a
movimentação migratória entre Portugal e o Pará.

Palavras-chave: Amazônia joanina. Movimentação migratória. População no Pará.

Introdução estimativa é menos generosa, apontando


que inicialmente 211 pessoas mais a fa-
No Cais de Lisboa, naquele movimenta- mília real chegaram ao Brasil, em 1808,
do 27 de novembro de 1807, um raro evento acompanhadas, no ano seguinte, por mais
se desenrolava. A Corte, incluindo a rainha 233 viajantes. Também é possível encontrar
e o príncipe, iniciava sua transferência para uma versão que afirma que seis mil seriam
o outro lado do Atlântico; viagem que trans- apenas os que seguiram a esquadra naval,
formaria uma simples colônia na sede de um tendo ainda que somar a família real e os
Império. Pela primeira vez, desde os tempos membros da Corte. A discrepância entre
dos descobrimentos transoceânicos, o os números arrolados pode ser explicada,
Velho Mundo assistia um regente deixar o fundamentalmente, pela variedade de fontes
continente e buscar refúgio em terras do utilizadas e pelo próprio tratamento analítico
Novo Mundo. dispensado a tais documentos (MALERBA,
Imaginar a partida da Corte não é tarefa 2008, p. 170-176). Concomitantemente, essa
fácil, principalmente pelas incertezas quanto variação ajuda a pensar que a dramaticidade
ao número de pessoas que compunham a da viagem da Corte para o Brasil deixou um
comitiva real, embora a versão mais repeti- rastro de possibilidades de investigação... e
da oscile entre 10 e 15 mil membros. Outra de versões.

* Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de História e do Programa de Pós-
Graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, pesquisador do CNPq, membro do Grupo
de Pesquisa Demografia e História, do CNPq, e do Grupo de Trabalho População e História, da Abep, e diretor do Centro
de Memória da Amazônia (CMA/UFPA).
** Mestrando em História, pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazônia, da Universidade Federal
do Pará, bolsista de mestrado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Capes e membro do
Grupo de Pesquisa Demografia e História, do CNPq.

R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 193-210, jan./jun. 2010


Vieira Jr., A.O. e Barroso, D.S. Histórias de “movimentos”

Apesar das muitas incertezas, pode-se atordoados pela distância da Corte e nem
encontrar testemunhos que destacam as de uma Corte restrita ao Rio de Janeiro....
tensões e representações que cercaram Falaremos de um porto e de uma população
a partida da Corte, como na cena descrita ao norte da América lusitana, onde, por
nas memórias do marquês da Fronteira, motivos diferenciados, entre 1808 e 1821,
José Trazimundo, que, com cinco anos de presenciou partidas e chegadas.
idade, teve suas lembranças marcadas pela
correria e tristeza do embarque real: Entre mares e rios, o movimento das
Minhas tias mandaram logo [chamar] embarcações
por duas carruagens, que nos levaram
a toda a pressa ao cais de Belém, onde
A impressão que a cidade de Belém
reinava a maior confusão e desordem. As
bagagens da corte, expostas ao tempo e podia causar em viajantes europeus, entre
quase abandonadas, ocupavam desde a 1808 e 1821, algumas vezes não era das me-
rua da Junqueira até o cais; as carruagens lhores... em outras, surpreendia aos menos
não puderam entrar no largo de Belém, otimistas. Mesmo considerando os juízos
porque o Estado do Príncipe, o imenso
de valor contidos em algumas narrativas da
povo que estava no largo, as bagagens
e o regimento de Alcântara, que fazia a época, ainda é instigante imaginar a paisa-
guarda de honra, impediam o trânsito. Não gem inicial que os navegantes encontravam
pudemos, portanto, ver os nossos parentes ao ancorarem no Pará. Essas impressões,
que partiam... Nunca esquecerei as lágrimas por exemplo, são registradas no diário de
que vi derramar, tanto ao povo como aos
viagem de Spix e Martius (1817-1820):
criados da Casa Real, e aos soldados que
estavam no largo de Belém. (BARRETO, Do lado do mar, avistam-se, perto da
1932, p.32). margem e quase no meio da fila de casas,
a Praça do Comércio e a Alfândega, atrás
Entre números imprecisos e memórias da qual surgem as duas torres da Igreja
recriadas, rumo ao Brasil navegava um das Mercês. Mais para dentro, eleva-se a
período marcado por transformações so- cúpula da Igreja de Santana e, na parte
ciais, políticas e econômicas, ao qual, hoje, norte, termina a vista com o Convento
dos Capuchinhos, de Santo Antonio; na
chamamos de joanino (1808-1821). Anos de parte do extremo sul, o olhar repousa no
histórias de muitas separações: separação Castelo e no Hospital Militar, a que se
de um príncipe de seus súditos, de uma juntam o Seminário Episcopal e a Catedral,
Corte de sua origem, de uma colônia de sua esta com duas torres. Mais para o interior
metrópole, de uma nobreza de parte de sua das terras destaca-se, naquele lado, o
Palácio do Governo. (...) Porém, quando
riqueza, de proprietários de seus pertences, o recém-chegado entra na própria cidade,
de soldados de seus generais, de criados encontra mais do que prometia o aspecto
de seus senhores, separação de famílias... exterior: casas sólidas, construídas, em
separação de populações. sua maior parte, de pedras de cantaria,
Entre tantas separações e imprecisões, casas em largas ruas, que se cortam em
ângulos retos. (SPIX; MARTIUS,1981,
os números também podem ser aliados na p. 23).
tentativa de se enveredar pela “dinâmica da
distância”, considerando as embarcações e Em si, a impressão da cidade revela
as pessoas que deixaram portos lusitanos o “movimento” nos termos comparativos
e buscaram abrigo no Brasil. Números que implícitos, seja com cidades europeias, seja
ancoram possibilidades de investigação com outras localidades do Brasil visitadas
e marcam “movimentos” que não eram pela dupla de viajantes. A surpresa com a
novidade entre Portugal e Brasil, mas que solidez das construções também revela o
ganharam novos contornos. “movimento”, pois a expectativa é a antes-
Esse ensaio busca analisar o período sala da chegada.
joanino, considerando o movimento de Entre as ruas da cidade, uma população
embarcações e pessoas, no ir e vir entre marcada pela migração deixava suas pega-
Portugal e a Amazônia, mais especificamen- das. Negros “crioulos” e de variadas partes
te para o Pará. Não falaremos de nobres da África, índios de diversas aldeias, bran-

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cos de vários países, “brasileiros” de várias regularidade de embarcações que, mesmo


capitanias e filhos de relações interétnicas diante das Guerras Peninsulares, continua-
compunham um cenário populacional tam- ram unindo dois polos de um aparentemente
bém marcado pelo “movimento”.1 Apesar debilitado Império lusitano − o que nos faz
dos números pouco precisos, verifica-se pensar no perfil dessas travessias.
um crescimento da população paraense E assim, vejamos inicialmente o fluxo
nos anos joaninos, que saltou de 96.000 de embarcações que navegavam entre a
habitantes, em 1808, para 128.000, em 1823 Amazônia e Portugal. Para analisar esse
(RECENSEAMENTO DO BRAZIL, 1922). fluxo, utilizou-se, como fonte de pesquisa, o
Números em “movimento” que auxiliam a controle da saída de navios através da barra
perceber uma Amazônia multifacetada que da baía do Guajará, na cidade de Belém. Es-
poderia ir além das construções sólidas ses registros são instigantes por auxiliarem
que causavam surpresas aos viajantes a compreensão do trânsito fluvial-marítimo
europeus. Uma Amazônia que vivenciava na região e por, indiretamente, indicarem a
transformações e expansões populacionais. dinâmica de visitas de embarcações ao cais
Uma terra de “chegadas” e de encontros. belenense.3
Encontros, como no caso de um “rapaz” O porto de Belém foi visitado com re-
que, em meio aos ecos da terceira invasão lativa frequência nos anos joaninos. Entre
francesa ao território português, foi embar- 1808 e 1821 foi registrada, na fortaleza da
cado em 1811 no navio “Prazeres & Alegria” cidade, a saída de 534 embarcações (média
para ser levado ao encontro de seus pais de 41 por ano), sendo que algumas – como
que já estavam no Pará: “Prazeres & Alegria” – faziam linha regular
entre os dois continentes.
(...) igualmente embarcou no mesmo Navio
[Prazeres & Alegria] hum Rapaz de menor Das saídas registradas na barra de
idade que aqui [no presídio da Trafaria] Belém, aproximadamente 64% ocorreram
se achava cujos os Pais tinham já ido depois de 1815. Considerar esse ano como
degredados para o Referido[Pará] por assim referência é importante, pois justamente
me ser determinado por Aviso Va. Exa. De 16
marca o fim das chamadas Guerras Penin-
do corrente [novembro de 1811].2
sulares, o fim da invasão portuguesa na
Dois pontos merecem destaque nes- Guiana, a elevação do Brasil à categoria de
se caso: o primeiro refere-se ao navio de Reino Unido, a derrocada final das tropas
transporte, o “Prazeres & Alegria”, uma napoleônicas e o início de uma relativa
embarcação que fez com regularidade a pacificação na Península Ibérica. A situação
linha Belém-Lisboa entre 1809 e 1833; e política na Europa, em especial na Península
o segundo diz respeito às circunstâncias Ibérica, parece interferir diretamente no fluxo
associadas à partida de Lisboa do jovem de embarcações estrangeiras para Belém –
“rapaz”, que envolviam prisões e degredo mas não de maneira linear.
de seus pais. Tais destaques mostram possi- Embora seja possível perceber, de um
bilidades múltiplas de separação e encontro modo geral, o aumento do fluxo de embar-
entre familiares, bem como a importância e a cações depois 1815, também nesse período

1 No geral, há poucos trabalhos que estudem a história demográfica do Pará; existe uma carência na área de estudos
migratórios e de pesquisas que explorem taxas de natalidade, fecundidade e mortalidade no século XIX. Merecem destaque
as pesquisas de Kelly (1984), Moraes (1984), Batista (2004), Cancela (2006) e Cardoso (2008). Atualmente, um projeto
em desenvolvimento realiza o levantamento de fontes populacionais para a história da Amazônia, entre 1750 e 1850.
Cf: VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. História e População na Amazônia: levantamento de fontes demográficas (1750-1850);
financiado pelo CNPq, por meio de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa.
2 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 10915 – Ofício do comandante do presídio de Trafaria, António
Elesbão Xavier de Almeida, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar, conde das Galveias, D. João de Almeida
de Melo e Castro], sobre os indivíduos embarcados no navio “Prazeres e Alegria”, com destino ao Pará, onde vão cumprir
as penas de degredo a que foram condenados.
3 Arquivo Público do Estado do Pará, Registros Códice 645, Série: Abaixo-assinados da navegação com o comandante
da fortaleza da Barra (1808-1832).

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constata-se a retração no fluxo de navios principalmente nos anos de guerra; navios


portugueses: das 216 embarcações de origem que vinham de um país marcado por ocu-
lusitana que passaram pelo controle da barra pações estrangeiras, produção industrial e
de Belém nos anos joaninos, 55,5% foram agrícola agonizante e uma economia que
registradas nos anos de maior tensão entre tentava se restabelecer ainda sob o efeito
Portugal e França (1808-1815). Ou seja, o dessas ocupações.
período de maiores tensões militares, econô- Os anos de ocupação francesa e a
micas e políticas em Portugal – durante uma presença de tropas inglesas em território
série de invasões francesas – não significou lusitano marcaram uma desarticulação na
a fragilização da presença lusitana no porto produção portuguesa. A partir de 1812, com
de Belém. Muito pelo contrário, entre 1808 e o arrefecimento das Guerras Peninsulares
1815, havia a hegemonia de naus portuguesas em algumas regiões de Portugal, ações
no cais amazônico. governativas buscaram fornecer à agricul-
A partir desses números, pode-se sus- tura sementes, mão de obra e ferramentas
peitar que os combates na Península Ibérica para retomar o cultivo da terra que havia
não foram suficientes para retrair a presença sido interrompido pela guerra. O estado
de navios lusitanos na Amazônia. Em parte, da produção industrial somente em 1814
isso se explica pela fragilidade e tamanho da foi avaliado pelo governo português (Real
marinha francesa, que, envolvida diretamente Junta do Comércio), que procurou elaborar
em conflitos navais com esquadras britâni- estatísticas das fábricas ainda existentes no
cas, teve aproximadamente dez vezes mais país (PERES, 1934, p. 418).
baixas do que os ingleses (HOBSBAWM, Esse quadro de recuperação econô-
1982, p.104). As empreitadas marítimas mica, iniciado em 1812 e 1814 e que ainda
francesas não conseguiram impedir a nave- teve que esperar a pacificação efetiva da
gação de embarcações inglesas e de seus península pós-1815, mostra a fragilidade
aliados, como Portugal, no Atlântico. produtiva portuguesa nos anos joaninos.
Por outro lado, até 1815, foi menor a Mas, apesar dessa aparente debilidade,
presença de embarcações de outras na- em Belém ainda eram as embarcações
cionalidades na baía do Guajará. Nesse portuguesas que dominavam o trânsito no
sentido, o período de pacificação na Europa porto da cidade.
significou aumento das visitas de embarca- Entretanto, não se deve ignorar a impor-
ções estrangeiras ao porto de Belém do Pará tância do Congresso de Viena e da expulsão
e, ao mesmo tempo, retração no número do exército francês de Portugal. Logo após
de visitas portuguesas. Seria um indício da a assinatura do Tratado de Paris, em 1815,
fragilidade dos laços que uniam o Brasil a houve um aumento significativo no número
Portugal e do fortalecimento da presença de embarcações portuguesas em Belém,
de outras nações em território amazônico? que passou de 14 navios, em 1815, para
Durante todo o período joanino (1808- 23, em 1816, e 25, em 1817. Mas, a partir de
1821), das 534 embarcações que ancoraram 1818, diminuiu vertiginosamente a presença
em Belém, apenas 13 não tiveram seus de navios lusitanos: 15 embarcações nesse
países de origem informados. Das 521 em- ano, 13 em 1819, 10 em 1820 e 10 em 1821.
barcações que tiveram suas nacionalidades Ou seja, a efetiva pacificação peninsular
referidas, 216 (41%) vieram de Portugal – instigou, inicialmente, o aumento da pre-
numa média de 16 embarcações/ano. Esses sença de barcos portugueses no porto de
números expressivos podem oferecer novas Belém, mas depois, ainda sob o esforço de
tonalidades ao considerarmos o impacto da reorganização econômica em Portugal, esse
abertura dos portos brasileiros em 1808 e da número voltou a patamares condizentes aos
ocupação francesa em Portugal. anos de ocupação francesa.
Após 1808, mesmo tendo a possi- Ao longo de todo o período joanino,
bilidade legal de ancoragem de navios a presença de navios lusitanos não ex-
de diversos países, Belém ainda recebia cluiu a vinda de embarcações de países,
majoritariamente embarcações lusitanas, destacando-se a Inglaterra, com 177 barcos,

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ou aproximadamente 34% to total, gerando no continente europeu. Além disso, em julho


uma média de quase 14 embarcações/ de 1808, o governador do Pará recebeu
ano. A presença inglesa no Brasil joanino, ordem régia para invadir Caiena, possessão
em especial quando se pensa o Pará, pode francesa na América, numa ocupação que
ser ressaltada ao se comparar o número de se estendeu até 1815: quadro de conflitos
navios ingleses com os portugueses. A dife- que oficialmente anulou o contínuo con-
rença percentual foi de apenas 7% a favor tato entre a Coroa portuguesa e o Estado
das embarcações lusitanas, o que induz a francês.
considerar a influência britânica nas ativida- A análise do Gráfico 1 ajuda a compre-
des comerciais que envolviam a região. Essa ender o fluxo de embarcações francesas,
perspectiva ganha força quando lembramos num comparativo com as inglesas e portu-
o papel das tropas inglesas na expulsão dos guesas. Entre 1808 e 1815, nenhuma nau
exércitos franceses do território português. francesa teve registro de passagem arrolado
E, mesmo após a derrocada final do exército no porto belenense, período em que portu-
napoleônico, o número de embarcações gueses e franceses estavam em conflito nas
britânicas no porto de Belém continuou a au- Guerras Peninsulares e em Caiena. Com o
mentar, chegando ao máximo em 1818, com fim das hostilidades em 1815, as visitas de
29 visitas. Esses dados ratificam o esforço embarcações francesas aumentaram, com o
e sucesso britânicos em obter o controle primeiro registro em 1816. O número alcan-
total dos mercados coloniais e ultramarinos çou seu ápice em 1818, com 11 autorizações
(HOBSBAWM, 1982, p.101). concedidas pelo posto de controle da barra
Contudo, Belém não foi alvo da visita da baía do Guajará.
apenas de embarcações lusitanas e ingle- A partir de 1816, observa-se a diminuição
sas: 24,5% dos navios que passaram pelo da presença de embarcações portuguesas,
controle da barra do Guajará tinham origem quando comparadas com as inglesas e
em outros países, destacando-se os EUA, francesas. Esse decréscimo no fluxo de naus
com 89 (17%), e, para nossa surpresa, a lusitanas pode ser pensado a partir de alguns
França, com 30 (6%). fatores: os anos de guerra significaram o
A presença de embarcações de origem fortalecimento da dependência da economia
francesa em pleno período joanino é intri- portuguesa em relação à Inglaterra; o pós-
gante; em fins de 1807, em 1809, 1810 e guerra foi marcado pelo esforço de reorgani-
1815, Portugal e França estavam em guerra zação interna da economia portuguesa; o fim

GRÁFICO 1
Visitas de embarcações no porto de Belém, por país de origem
Belém, Pará – 1808-1821

Fonte: Arquivo Público do Estado do Pará, Registros Códice 645, Série: Abaixo-assinados da navegação com o comandante da
fortaleza da Barra (1808-1832).

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das Guerras Napoleônicas não significou o promulgava a abertura dos portos brasilei-
término das tensões políticas que envolviam ros a todas as nações amigas. No caso do
o governo português, ao contrário, houve norte do Brasil, isso significou, na prática, a
intensificação desses conflitos, que desa- preponderância das embarcações inglesas.
guaram, em 1821, na Revolução do Porto; A soma das embarcações de outras nações
e a força da marinha inglesa articulada à – EUA (17%), França (6%), Holanda (0,3%),
necessidade de ampliação da rede comercial Suécia (0,6%) e Dinamarca (0,6%) – não al-
britânica. cançava o total referente à presença inglesa
Os dados da Tabela 1 mostram que (34%). Os portos foram abertos às “nações
o fim das Guerras Peninsulares instigou o amigas”, mas a mais “amiga” era a Inglaterra.
aumento das embarcações estrangeiras Segundo Jobson Arruda (2008), pelo menos
no porto de Belém, notadamente inglesas em relação ao Rio de Janeiro, essa abertura
e francesas. Além disso, em números ab- aconteceu efetivamente em 1800. Ou seja,
solutos, os navios da Inglaterra chegaram entre a abertura dos portos fluminenses em
a superar os de Portugal. Somando-se as 1800, a Carta Régia que formalizou essa
naus francesas, inglesas e portuguesas, abertura em 1808 e a circulação de embar-
depois de 1815, tem-se um total de 252 cações estrangeiras na Amazônia, existem
visitas – quase a metade de todas as visitas intervalos temporais significativos, o que tor-
do período joanino (534). Destas, 50% eram na instigante pensarmos as especificidades
embarcações inglesas, 38% portuguesas e do fluxo de embarcações no Brasil joanino.
12% francesas. Há a efetivação do domínio Em suma, é possível considerar uma
inglês nas relações portuárias em Belém, história do movimento, da origem e do
bem como uma significativa diminuição da período dos navios que chegavam a Belém
presença lusitana. nos anos joaninos, em que se verifica uma
A partir desses dados, verifica-se que, relação direta entre as origens das embar-
entre 1808 e 1821, o porto de Belém foi cações que visitavam o cais belenense e a
frequentemente visitado por embarcações intensificação dos conflitos peninsulares na
estrangeiras. E mais, no conjunto das Europa, marcando o predomínio das embar-
visitas, percebe-se um aumento paulatino cações lusitanas até a derrocada final do
das embarcações de origens inglesas e exército napoleônico e a supremacia inglesa
francesas, o que coincidiu com o processo nos anos seguintes. Observa-se, também,
de pacificação das relações entre Portugal e que a suposta “abertura dos portos”, pelo
França, com a dominação comercial inglesa menos na Amazônia, só se efetivou depois
e a efetivação de um cenário político que de 1815, com marcante aumento da pre-
impelia o retorno da família real. sença de naus inglesas e francesas. Das 89
Ainda na chegada do príncipe regente à embarcações dos Estados Unidos, somente
cidade de Salvador, sua primeira carta régia 20 ancoraram em Belém antes de 1816. Das

TABELA 1
Visitas de embarcações no porto de Belém, por país de origem
Belém, Pará – 1816-1821
Ano Portuguesas Inglesas Francesas
1816 23 09 01
1817 25 23 02
1818 15 29 11
1819 13 18 02
1820 10 18 08
1821 10 29 06
Total 96 126 30
Fonte: Arquivo Público do Estado do Pará, Registros Códice 645, Série: Abaixo-assinados da navegação com o comandante da
fortaleza da Barra (1808-1832).

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poucas naus holandesas, suecas e dina- verifica-se um significativo percentual de


marquesas que vieram ao Pará no período viagens cujos destinos eram outras regiões
joanino, nenhuma ancorou antes de 1816. brasileiras. Essas viagens internas alcança-
vam 31% dos destinos declarados, ou 57
Da origem ao destino viagens: o Maranhão era o mais visitado,
com 38 viagens, seguido por Pernambuco
Segundo a Ordem Régia de agosto de com sete. A capital, Rio de Janeiro, resi-
1808, assinada no Rio de Janeiro, todos os dência da família real, só recebeu cinco
navios portugueses e estrangeiros eram embarcações lusitanas que partiram de
obrigados a relacionarem não apenas seu Belém, a vila paraense da região do salgado,
porto de origem, mas também o de destino,4 Bragança, recebeu quatro, a Bahia duas e
o que possibilita, por meio dos documentos o Ceará uma visita. Assim, 31% dos navios
de controle da barra de Belém, ter uma ideia portugueses que saíam de Belém dirigiam-
mais detalhada do fluxo de embarcações se para os portos brasileiros. Somando-se
na Amazônia. a esse número os 26,5% das saídas para
Muitas vezes, Belém era utilizada como portos portugueses, verifica-se que 57,5%
escala de viagem, por navios que vinham das embarcações portuguesas que partiam
dos EUA e da Europa. No esforço de análise com destino para outros portos ancoravam
dessas escalas, a documentação pesquisa- no Brasil ou em Portugal.
da apresenta um primeiro problema: 62% Esse número ganha novos contornos
das embarcações não declararam seus quando se consideram as viagens para
destinos finais, o que significa o descum- Caiena, que até 1815 estava sob o domínio
primento das diretrizes portuárias joaninas. português. Para lá foram mais 48 viagens,
Assim, das 534 embarcações que saíram de ou 26% dos destinos de embarcações por-
Belém, 333 não registraram seus destinos fi- tuguesas que partiam de Belém. E, mesmo
nais, que poderiam ser outros países, outras depois de 1815, a Guiana continuou a rece-
capitanias ou até mesmo outras localidades ber visitas de naus portuguesas, pelo menos
do próprio Pará. Das 201 embarcações até 1821 (foram 22 visitas), o que pode ser
que indicaram seus portos de destino, um indicador de que a desocupação militar
184 (91,5%) eram de origem portuguesa. portuguesa não rompeu imediatamente com
Das 177 embarcações inglesas e das 30 os vínculos entre Belém e Caiena.
francesas que partiram da baía do Guajará, Assim, se somadas as partidas de em-
nenhuma declarou seu porto de destino. barcações portuguesas com destino a ou-
Das embarcações portuguesas, 26,5% tros portos brasileiros, a portos portugueses
(49) estavam indo para Lisboa ou para a e a Caiena, tem-se um total de 83,5% dos
cidade do Porto. Dos navios que declara- destinos de navios lusitanos que passaram
ram como destino portos portugueses, 47 pela barra de Belém nos anos joaninos.
registraram que o porto de retorno seria na Ou seja, a navegação portuguesa ficava
cidade de Belém. Ou seja, partiam de Belém, circunscrita a Portugal, ao Brasil e à Guiana.
ancoravam em Lisboa ou no Porto e depois Poucos foram os países na Europa ou na
retornavam para a capital paraense. Assim, África que eram destinos das embarcações
pode-se imaginar uma continuidade de lusitanas que partiam de Belém: França (2),
contato entre os portos portugueses e o de Inglaterra (2), Angola (4), Guiné-Bissau (3),
Belém, como no caso já referido do navio Cabo Verde (4) e Gibraltar (10).
“Prazeres & Alegria”. Entretanto, é necessário relativizar
Ainda considerando as embarcações alguns destes dados. Apesar de se locali-
portuguesas partindo de Belém e que ti- zarem no continente africano, Angola, Cabo
veram seus portos de destino declarados, Verde e Guiné-Bissau faziam parte do Impé-

4 Arquivo Público do Estado do Pará, Códice: 616, Documento: 121.

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rio português. Gibraltar, por sua vez, era pos- dos portos” em 1808, a ancoragem de em-
sessão inglesa. Ou seja, em última instância, barcações estrangeiras no cais de Belém
embora os navios partissem rumo à África, passou a ser mais diversificada, incluindo
seus portos de chegada estavam atrelados a navios dinamarqueses, suecos, etc. Noutro
“Portugal” ou, no caso de Gibraltar, à “Ingla- sentido, o avançar dos anos joaninos tam-
terra”. Essas regiões eram fontes do tráfico bém significou a diminuição da presença
de população escrava, exceto Gibraltar. A de embarcações portuguesas na baía do
partir de 1815, todavia, apenas Angola se Guajará. E fundamentalmente explicitando
enquadrava nesse aspecto, pois Portugal e a força da ingerência econômica inglesa,
Inglaterra firmaram um acordo que proibia o houve o prevalecimento da ancoragem de
tráfico negro de regiões da África localizadas embarcações britânicas após 1815 – que
acima da Linha do Equador.5 superou a presença lusitana.
Outro ponto a destacar é o número re- No ir, percebe-se que os navios portu-
duzido de viagens à França (apenas duas), gueses que partiam de Belém trafegavam
o que pode criar a impressão de que o con- principalmente entre Portugal, Brasil, Gi-
tato entre Belém e a França era esporádico, braltar e Caribe francês. As naus lusitanas
mesmo considerando o número de embar- também visitavam com frequência o porto
cações francesas que partiam do porto de de Caiena, mesmo após a desocupação
Belém (30). Entretanto, o que os registros desse território por parte das tropas portu-
mostram é que os barcos portugueses guesas. As mesmas embarcações portu-
preferiam visitar as possessões francesas guesas, quando tinham destino para outras
no Caribe: Ilha de São Bartolomeu (três partes do Brasil, visitavam prioritariamente
viagens), Ilha de São Vicente de Guadalupe o Maranhão.
(três) e Martinica (uma). No total foram sete Assim, pode-se ter uma ideia do tráfico
viagens a portos franceses no Caribe, mais de embarcações que passou pelo porto de
do que, por exemplo, as quatro viagens para Belém durante os anos joaninos. O destaque
Angola, as duas para Inglaterra, as três para é dado para o fluxo de navios lusitanos, que
Guiné Bissau ou as duas para Barbados ligaram extremos de um mesmo império.
(colônia britânica na parte extrema oriental Mas, ainda considerando esse império,
do Caribe). Além das visitas das embarca- devemos pensar no perfil da trajetória que
ções portuguesas ao Caribe francês, ainda marca a saída de pessoas, como no caso
podem ser somadas as visitas às Guianas, o do “rapaz” que embarcou no “Prazeres &
que efetivamente destaca o contínuo contato Alegria”.
entre o porto de Belém com essas regiões
sob domínio francês, principalmente a partir Para além das embarcações
de 1815-16.
Em resumo, por meio dos dados apre- Não foram só navios que partiam e
sentados, verifica-se que, no período joani- chegavam no porto de Belém nos anos joa-
no, alguns elementos podem ser destaca- ninos. A relação entre Portugal e a Amazônia
dos no vir e ir de embarcações portuguesas não se resumia ao transporte de mercado-
através do porto de Belém. rias e nem ao simples ancoradouro. Pessoas
No vir, durante o período joanino também saíam de Lisboa ou do Porto rumo
em geral (1808-1821), Belém recebeu à capital do Pará.
prioritariamente visitas de embarcações A documentação que sustenta essa
portuguesas ou inglesas. Somente depois análise está disposta no Arquivo Histórico
de 1815, a despeito da famosa “abertura Ultramarino Português: são as solicitações

5 Em 1815, durante o Congresso de Viena, Portugal e Inglaterra firmaram um Tratado que proibia o tráfico, para o Brasil,
de escravos oriundos de regiões sobre a Linha do Equador. Em 1817, este Tratado foi ratificado e acrescido, culminando
na autorização à Marinha Inglesa para abordar navios suspeitos em pleno mar e na criação de tribunais mistos no Rio de
Janeiro e em Serra Leoa, para julgar embarcações presas sob a suspeita de praticarem o tráfico em regiões proibidas.

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de permissão de viagens feitas aos admi- na pacificação da Península Ibérica (1815),


nistradores de Portugal durante a ocupação houve 140 (54%) autorizações expedidas
francesa e a ausência da família real. Os para partida de viajantes de Portugal para o
pedidos estão relacionados à saída com Pará. Outras 119 autorizações, ou 46% dos
destino direto ao Pará. Trata-se de uma passaportes expedidos, ocorreram entre
documentação limitada para o esforço de 1816 e 1821 (Gráfico 2).
compreensão do perfil demográfico desse Essa constância nos pedidos de passa-
movimento migratório, pois não é difícil portes parece interessante, principalmente
imaginar pessoas fugindo de Portugal sem quando lembramos que o ano de 1815 foi
a autorização de uma administração pre- um marco nas transformações do perfil de
cária e submetida a constantes mudanças embarcações que frequentavam o porto de
de governantes e aos rigores das guerras. Belém. Os navios portugueses diminuíram
Apesar dos limites, os dados levantados sua presença e os estrangeiros tornaram-se
a partir desses registros são um indicativo mais significativos e variados, enquanto o
do perfil do fluxo de pessoas para Belém fluxo de moradores de Portugal que deseja-
do Grão-Pará. Entre 1808 e 1821, a média vam vir ao Pará manteve-se o mesmo.
foi de 17 pedidos de passaportes/ano, um Mas, fujamos dos números pela pouca
número significativamente inferior às 41 confiabilidade da documentação e nos fixe-
embarcações/ano que passavam pelo porto mos na análise das trajetórias individuais,
de Belém no mesmo período. Em 1807, um que, mesmo circunscritas a histórias de
pouco antes da transferência da família real vida, possibilitam pensar o que foram os
para o Brasil, foram solicitadas 12 autoriza- anos joaninos para pessoas que deixaram
ções de embarque. Portugal e chegaram à Amazônia. E mais,
O ano que mais apresentou pedidos de num movimento de refluxo, as trajetórias
passaportes foi 1811, com 29 solicitações. individuais podem auxiliar a análise de
Entre a chegada da família real ao Brasil tendências populacionais mais gerais, apon-
(1808) e o último ano de grandes confrontos tando limites e possibilidades documentais.

GRÁFICO 2
Solicitações de passaporte ao Pará
1808-1821

Fonte: Arquivo Histórico Ultramarino. Projeto Resgate Barão do Rio Branco. Pará. Solicitações de passaporte.

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Franceses ao mar tura mediana, com cabelo castanho escuro,


olhos pardos, rosto claro e redondo.
Os anos joaninos iniciaram com a parti- A travessia para Portugal foi marcada
da da família real para o Brasil, período que pelo encontro com uma frota francesa: duas
ganhou contornos dramáticos pela invasão fragatas e um brigue aprisionaram o navio
das tropas de Junot, que avançaram em que transportava Cristóvão, conduzindo-o
território lusitano enquanto a Corte partia. para a Ilha da Madeira. No entanto, poste-
Esse momento foi marcado por uma série riormente, mesmo debilitado pela moléstia,
de batalhas, invasões e escaramuças que ele conseguiu fugir para Lisboa. Segundo
envolviam ingleses, portugueses, espanhóis o próprio Cristóvão, foi buscar em Portugal
e franceses. Conflitos que não repercutiram a cura de suas doenças, mas não a encon-
apenas num cenário bélico e nem se res- trou. E justamente por isso, em agosto de
tringiram ao joguete de tropas e de seus 1812, solicitou ao Regente a autorização de
generais. retorno para Belém. Toda essa trajetória de
As tensões militares entre Portugal e Cristóvão – Belém-Ilha da Madeira-Lisboa-
França mexeram com a vida de homens Belém – durou pouco mais de um ano.7
e mulheres. A retaliação feita por Portugal Seu caso mostra que, apesar das es-
à França, com a tomada da Guiana, em caramuças e da intensificação das tensões
especial com o remanejamento de tropas durante a Guerra Peninsular, homens e mu-
e de uma elite administrativa para Caiena, lheres comuns continuavam viajando entre
a partir de dezembro de 1808 (REIS, s/d, Brasil e Portugal – mesmo que algumas
p. 74), por exemplo, marcou a trajetória de vezes se deparassem com ações militares
Dona Bárbara Benedita, que, em outubro francesas. E, a despeito da ameaça france-
de 1809, solicitou passaporte para partir sa, não foram poucos os que atravessaram
de Lisboa até Belém e de lá até Caiena. o Atlântico rumo ao Brasil, mesmo antes da
Não viajaria sozinha, pedia licença para ser derrota final do exército francês. Entretanto,
acompanhada por três filhas menores de mesmo a superioridade da marinha inglesa
dez anos, um criado e uma criada. O motivo não foi suficiente para impedir pontuais
da partida era justificado pela “chamada” do ações francesas no mar, o que poderia
marido, então nomeado governador inten- significar o apresamento de embarcações
dente geral da Nova Conquista de Caiena e portuguesas e alterações nos destinos ori-
Guiana Francesa. No tabuleiro de retaliações ginais de seus passageiros (HOBSBAWM,
joaninas, mãe, filhas e criados tinham seus 1982, p. 104).
destinos atrelados ao Pará e a Caiena.6
E se alguns partiram de Lisboa para Homens em rumo ao Pará
Belém do Pará, outros fizeram o caminho
contrário. Cristóvão Luiz era negociante e Entretanto, a mais famosa travessia
ex-granadeiro, nascido em Braga e servia foi da frota que trouxe a Corte, ancorando
em Belém. Havia dado baixa da infantaria em Salvador em 22 de janeiro de 1808. As
por motivos de saúde, por adquirir uma ruas da cidade lentamente foram tomadas
moléstia que, segundo os cirurgiões, só en- por súditos curiosos para verem de perto o
contraria remédio em Lisboa: era necessário príncipe e a rainha.
regressar. Seu processo de “passaporte” Em Lisboa, um dia após a chegada
apresentava detalhes como a descrição da Corte à Bahia, Joaquim Alves Godinho
física de Cristóvão que, com 27 anos de também fazia preparativos de viagem para
idade, era considerado um homem de esta- o Brasil e solicitava permissão para partir

6 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 10791 – Requerimento de Bárbara Benedita de Tavares Ferreira
Osório, para o príncipe regente [D. João], solicitando a concessão de passaporte com destino à cidade de Belém do Pará
e daí para Caiena, juntamente com suas filhas menores e dois criados, para ali se juntar a seu marido.
7 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 10974 – Requerimento do negociante Cristóvão Luís de Azevedo
para o príncipe regente [D. João], solicitando a concessão de passaporte para regressar à cidade de Belém do Pará.

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de Portugal. Porém, não pretendia aportar número de pessoas que deixaram Portugal
na cidade baiana ou no Rio de Janeiro, mas rumo à capitania paraense. Não seria ab-
sim na capital paraense. Não atravessaria surdo imaginar a possibilidade de muitos
o oceano seguido por centenas de famílias navios partirem de Lisboa e do Porto sem a
nobres, mas tentava embarcar com seus permissão das autoridades (principalmente
dois supostos filhos, um criado, “duas cria- considerando-se os anos de guerra e de
das pretas” e a esposa, dando início a uma ocupação de parte do território lusitano),
travessia pouco mais discreta. Justificava trazendo passageiros não declarados e sem
seu pedido de deslocamento pelo fato de “passaporte”.8
ter morada em Belém e lá exercer o ofício de Joaquim Godinho pediu apenas um
cirurgião. O intrigante do seu pleito era a pre- “passaporte”, mas este não se resumia à sua
sença dos filhos. O “passaporte” solicitado, partida; compreendia também criadagem,
em 23 de janeiro de 1808, trazia uma anota- supostos filhos e esposa. No geral, embora
ção lateral informando que Godinho partiria tenham sido solicitadas 236 autorizações de
com a esposa, Gertrudes Justina, dois filhos, viagem, o número dos envolvidos era su-
um criado e “duas criadas pretas”. Mas, perior pela presença de “agregados”. Além
estranhamente, durante a reiteração da dos 236 solicitantes, foram identificados 40
solicitação do “passaporte”, uma semana “agregados”, ou quase 17% de pessoas
depois, Godinho textualmente afirmou: “não acrescidas ao total de pedidos. A soma
tem o Suplicante filhos e nem esperança de dos solicitantes de “passaportes” e dos
tê-los, pella sua avançada idade por tanto “agregados” apresenta uma média de 21
não pode ser útil a esse país [Portugal]”. pessoas/ano tentando viajar rumo ao Pará.
Parece que o fato de ter ou poder ter Esse número talvez não seja expressivo,
filhos dificultaria a permissão de viagem; a principalmente quando comparado com o
ausência da prole era apresentada como provável contingente que acompanhou D.
ponto favorável para seu deslocamento até João ao Brasil, mas instiga a problematizar,
o Pará. Mas, mesmo assim, não se pode considerando o período joanino, as alte-
esquecer a anotação na lateral da página rações populacionais na Amazônia – pelo
do primeiro pedido de “passaporte”, bem menos quanto ao quadro migratório.
como o fato de Godinho fazer referência Essa tentativa de ponderar sobre os li-
à sua família nos dois documentos: seria mites das possíveis alterações na população
apenas a esposa? Envolveria os criados? da Amazônia ganha reforço quando se con-
Os filhos seriam frutos de outra relação da sidera o perfil dessas migrações. Joaquim
esposa? Perguntas que hoje temos poucas Godinho pediu autorização de viagem, uma
condições de responder. ação que era predominantemente masculi-
Mesmo considerando limites documen- na: do total de solicitações de embarque
tais, é possível estabelecer um diálogo entre para o Pará, aproximadamente 74% foram
casos particulares e tendências mais gerais, feitas por homens. Nesse sentido, pode-se
num esforço de compreensão do significa- pontuar a maior possibilidade de mobilidade
do da autorização de viagem pleiteada por masculina. Sim! Mas, não esqueçamos que
Joaquim Godinho e sua família (incluindo Joaquim viajaria acompanhado, incluindo a
os supostos filhos). O primeiro ponto é a esposa. Então, pedidos feitos por homens
quantidade. Em todo período joanino, foram não estariam mascarando o deslocamento
solicitados 236 pedidos de viagem para o de mulheres, como no caso citado?
Pará (considerando a documentação do Entre as solicitações masculinas que
Arquivo Ultramarino de Portugal); entretan- declararam “agregados”, apenas oito pe-
to, isso não significa dizer que esse foi o didos não englobavam cônjuges. Outros

8 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc.10735 – Requerimento de Joaquim Alves Godinho, para o
príncipe regente [D. João], solicitando a confirmação da concessão de passaporte com destino ao Pará; e doc. 10737
– Requerimento de Joaquim Alves Godinho, para o príncipe regente [D. João], solicitando licença de transporte para a
cidade de Belém do Pará.

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24 casos envolviam homens com suas res- percentual de 20%, com destaque para a
pectivas esposas. Ou seja, de 175 homens presença de capelães de navio (11%).
que solicitaram licença para viajar ao Pará, Somando os números de “retornos”
18% viajaram acompanhados. Mas, quando com os dos “navegadores”, tem-se uma
comparado ao quadro geral de pedidos perspectiva que minimiza o impacto da pre-
masculinos, o caso de Joaquim Godinho sença da Coroa no processo de migração
se enquadrava no rol seleto de homens que para Amazônia. Considerando a população
partiram de Portugal com cônjuges. masculina, 40% dos deslocamentos esta-
A justificativa para o pedido feito por vam associados ao “retorno” ou às funções
Joaquim traz outras informações. Sua de navegação. A esse número somam-se
solicitação, mesmo que se valesse de um 10% de homens que foram degredados –
jogo retórico para fugir de Lisboa, vinculava (27% não identificaram o motivo). Tem-se
sua partida ao fato de retornar para casa. um quadro em que não ganham destaque
Joaquim explicitou para as autoridades as empreitadas masculinas empenhadas
que havia residido em Belém por mais de em garantir pela primeira vez residência na
16 anos, onde tinha “casa de morada”. Em Amazônia joanina.
Lisboa, ainda segundo o próprio Godinho, Nem mesmos os homens que viajavam
ele e sua família encontravam-se “na maior acompanhados de suas esposas, excetu-
desgraça pelos fundos do seu giro se ando os “retornados”, poderiam indicar um
acharem no Pará”, onde exercia a função empenho de se estabelecer num período
de cirurgião, o que significava dizer que ele mais duradouro no Pará. Dos 24 maridos
estava “partindo” de Lisboa motivado por que durante o período joanino partiram
suas precárias condições de subsistência. de Portugal com suas esposas, 12 (50%)
E mais, que o Pará era local de sua residên- tinham uma razão compulsória comum: o
cia onde não apenas tinha propriedades e degredo.
exercia um ofício, mas também possuía uma Este era o caso de José Antonio Martins,
base domiciliar. Joaquim Godinho estava comerciante natural de Setúbal. Em novem-
“retornando” para sua morada em Belém bro de 1818, encontrava-se preso na Ribeira
do Pará.9 das Naus. Deveria embarcar o mais breve
Considerando os motivos explicitados possível para Belém, onde cumpriria sua
nos pedidos de “passaporte” formalizados pena de degredo por cinco anos. Escrevera
por homens, 20% (35) apontavam o “retor- uma solicitação a D. João VI destacando
no” como justificativa da viagem. Ou seja, que havia sido condenado injustamente,
eram homens que alegavam já ter residência fruto de acusações falsas de seus inimigos
no Pará. Ainda levando-se em conta as so- e, principalmente, pelo mal cumprimento
licitações masculinas, somente 0,1% (três) da legislação, pois no seu processo não
declarou o empenho de se estabelecer pela houve exame de corpo e delito e nem
primeira vez em território paraense. pronúncia para sua prisão. E mais, deixava
Tão significativo quanto o número nas entrelinhas uma reclamação sobre a
de retornos, como no caso de Joaquim partida do soberano, enfatizando que uma
Gondinho, era o percentual de pedidos autoridade local, D. Miguel Pereira Forjaz,
associados diretamente à navegação. Eram fazia as “vezes” do rei: “Vossa Excelência é
homens que apenas exerciam funções em que faz as vezes e quem enxuga as lágrimas
embarcações que pretendiam aportar no da saudade do nosso amantíssimo (sic)
Pará. Esses casos também figuravam no soberano auzente”. Entretanto, o objetivo

9 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc.10735 – Requerimento de Joaquim Alves Godinho, para o
príncipe regente [D. João], solicitando a confirmação da concessão de passaporte com destino ao Pará; e doc. 10737
– Requerimento de Joaquim Alves Godinho, para o príncipe regente [D. João], solicitando licença de transporte para a
cidade de Belém do Pará.

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da solicitação era pedir autorização para de seus procuradores, como no caso de


que sua esposa o acompanhasse durante Maria Luiza de Barros, que em 18 de abril
o degredo. E justificava o pedido: “e o que de 1809 solicitou autorização para deixar
mais sente he deixar sua mulher e filhos Lisboa e ir para Belém do Pará. Maria nasceu
entregues a hua desgraçada ruína, por não em Lisboa e pretendia embarcar com sua
ter tempo de cobrar (...) dividas que se lhe filha, Ana Luiza, de um ano e nove meses.
devem, e nem por vigorarse das graves O motivo alegado era atender ao chamado
enfermidades que padece”.10 do marido, Antonio Daniel, que já estava
O caso de José Antonio entrava em residindo na cidade de Belém. Ou seja, a
sintonia com metade dos pedidos feitos mãe e a filha buscavam juntar-se ao marido
por maridos que desejavam levar a esposa e pai para estabelecer residência no Brasil.
como acompanhante: iniciava-se a partir A “chamada” feita por Antonio Daniel era um
do degredo. E mais, nas dificuldades de forte indício do esforço de fincar morada no
sobrevivência da família fracionada, estava Pará, o que justificaria a reunião da família
a justificativa da ação de José Antonio. Um em Belém. O passaporte não deixava claro
homem que reclamava da sua suposta con- há quanto tempo Daniel estava no Brasil,
denação, das dificuldades de subsistência mas a pouca idade da filha pode estabelecer
da mulher e dos filhos, e que pensava passar uma estimativa.
cinco anos no Pará acompanhado da família. O passaporte também vinculava o
Embora o mais comum fosse homens depoimento de três testemunhas, que
condenados ao degredo solicitarem a atestavam a origem, o motivo e a identi-
companhia da esposa, esses casais não dade de Maria. As três testemunhas eram
estavam isentos de conflitos conjugais. Ca- marítimos, entre eles dois pilotos. Além dos
sais degredados, unidos muito mais pela di- depoimentos, o passaporte trazia o aval de
ficuldade de a esposa subsistir em Portugal, dois “homens de negócio” atestando que
nem sempre permaneciam unidos. Como Maria partiria para Belém em companhia de
no caso de Teresa de Jesus, cujo marido sua filha e para se encontrar com o marido.
cometeu vários “crimes”. Sob condenação, Somada ao depoimento das testemunhas e
o esposo foi degredado para o Pará, onde ao aval dos “homens de negócio” estava a
deveria ficar por cinco anos. A esposa, Te- declaração do capitão do “Navio Comercian-
resa, se ofereceu para acompanhá-lo. Mas, te”, que informava estar levando Maria e sua
em 1814, Teresa não suportava mais as filha para Belém do Pará, com a intenção de
agressões impostas pelo cônjuge e entrou uni-las ao marido e pai.
com um pedido de autorização para retornar E se Maria Luiza alegava como justifica-
a Lisboa; justificava a solicitação pelos maus tiva para a viagem o esforço de reunir-se ao
tratos dispensados pelo marido a ela e a um esposo, podemos entrever outras mulheres
filho menor. Parece que a esposa preferiu a com o mesmo empenho. É o caso de outra
insegurança da subsistência que poderia se Maria, a Maria Joaquina dos Santos, em 20
abater sobre ela e o filho a ficar exposta à de abril de 1809. Joaquina havia nascido e
violência impetrada pelo marido.11 morado no Porto e pedia para ir a Belém
acompanhada por sua mãe viúva e dois
Mulheres para Belém filhos, um com seis e outro com quatro
anos. Deixaria Portugal levando um grupo
Em 1809, apareciam os primeiros pe- familiar mais dilatado, incluindo a mãe viúva.
didos demandados por mulheres por meio O instigante nesse documento é o fato de

10 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 11439 – Requerimento de José António Martins, negociante da
vila de Setúbal, para o rei [D. João VI], solicitando licença para que a esposa, Felícia Rosa, o acompanhe na viagem de
degredo para o Pará, a que fora condenado.
11 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 11059 – Requerimento de Teresa de Jesus para o príncipe regente
[D. João], solicitando o seu regresso ao Reino e afastamento de seu marido, Manuel Francisco, condenado ao degredo
no Pará, e a quem acompanhou na viagem, devido aos maus tratos por este praticados contra a pessoa da suplicante.

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Maria Joaquina, seus dois filhos e sua mãe pelo desarranjo em que fica meu giro” (sic).
terem embarcado na mesma viagem que O negócio estabelecido por ele no Pará ne-
levara Maria Luiza e sua recém-nascida filha cessitava da sua presença contínua, o que
ao Pará.12 na carta aparece como justificativa para a
Duas famílias que deixavam Portugal e permanência no Brasil.
rumavam para Belém. Essas duas mulhe- A carta continha claras instruções para
res não apenas compartilharam a mesma Rosário, como ela deveria proceder ao che-
viagem, mas também declararam o mesmo gar em Belém. Primeiro, ela deveria buscar
motivo: ficarem juntas dos respectivos ma- a casa dos irmãos Feliciano e Domingos
ridos e residirem com as famílias no Pará – Colares, pois eles providenciariam a ida de
onde os cônjuges haviam se estabelecido. Rosário e de seu filho até onde seu marido
O “Navio Comerciante” foi palco, naquele estava no Pará. Ao compadre que morava
mês de abril de 1809, do encontro entre em Portugal escrevia também, pedindo que
“Marias”. “Marias” que deixavam Lisboa e este auxiliasse Rosário a suprir qualquer
rumavam para Belém, “Marias” que bus- eventual necessidade de vestuário. A parti-
cavam o amparo do marido, “Marias” que da de Rosário deveria ser rápida, Zeferino
levavam seus filhos rumo a uma distante e esperava reunir-se com a família no Natal.
mal conhecida região do outrora poderoso Para tanto, pedia que a mulher embarcas-
Império lusitano e que agora se deparava se logo no primeiro navio e que, se não o
com a ameaça das empreitadas napoleô- fizesse, lhe avisasse em qual embarcaria. Ele
nicas. No convés do Comerciante, histórias teve que esperar, pois, apesar de remeter a
parecidas se encontrariam. carta em agosto de 1809, somente em 15
O caso de Maria do Rosário também de janeiro de 1810 o processo começou a
é instigante, devido às instruções que caminhar: passou mais um Natal longe da
acompanhavam a “carta de chamada”, esposa e do filho.13
escrita por Zeferino Xavier, seu marido, que Orientava que a esposa vendesse os
havia partido para a capital paraense antes “trastes” que tinha em casa. Embora tivesse
mesmo da ocupação francesa e, em 1805, dúvida sobre a possibilidade da existência
já morava na cidade. Após cinco anos dis- de tais “trastes”, explicitada numa lacônica
tante da família, ele achava que chegara o frase: “se he que ainda tem algum”. Essa
momento de chamar a esposa e o filho. Por dúvida pode sugerir uma instabilidade
isso, Rosário, a esposa, em 1810, solicitara econômica na vida de Rosário, explicada
o direito de viajar para Belém acompanhada parcialmente pela situação de Portugal
de um filho com seis anos de idade. A carta após a partida da Corte, pois houve um
do marido fora escrita em agosto de 1809, expressivo deslocamento de parte de sua
no Pará; chegara às mãos de Rosário por base econômica para o Brasil, incluindo a
meio de um comerciante que vinha de Be- intensidade do comércio e a circulação de
lém e logo nas primeiras linhas orientava a capital. Nesse quadro, Rosário tinha que
esposa para se por “em prática seu avizo”. sustentar a si e a um filho, e sem ajuda dos
Zeferino explicitava sua vontade de pais que já eram falecidos. A venda dos
buscar pessoalmente Rosário e seu filho: “trastes” serviria como meio de sustento. No
“Eu queria antes ir em lugar da carta (...)”. entanto, na mesma carta, o marido orientava
Mas, logo justificada a sua impossibilidade: Rosário a não se desfazer da cama, que
“porem este gosto não me é possível tello deveria acompanhá-la até o Pará – era um

12 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 10762 – Requerimento de Maria Joaquina dos Santos, para
o príncipe regente [D. João], solicitando a concessão de passaporte com destino à cidade de Belém do Pará, indo ao
encontro de seu marido, Manuel Carlos dos Santos.
13 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 10802 – Requerimento de Maria do Rosário, para o príncipe
regente [D. João], solicitando a concessão de passaporte com destino à cidade de Belém do Pará, acompanhada de
seu filho, Tomé José Xavier, indo ao encontro de seu marido Zeferino José Xavier.

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“traste” especial, que merecia ser mantido retornar para suas moradas no Pará (20%)
no patrimônio familiar, o que se justifica ou acompanhar as embarcações onde exer-
pela limitada possibilidade de aquisição de ciam ofício (20%). No caso das mulheres,
mobília no Brasil e seu elevado custo. o destaque era dado para seus empenhos
Após todas as orientações, o marido em seguir o marido. Somente 5% (3) das
reforçava o desejo de se reunir com a es- mulheres alegaram buscar em Belém do
posa: “o mais que me resta fica para a vista, Pará por iniciativa própria, embora ampara-
que só com ella serei feliz”. Encerra a carta da por outros parentes, uma alternativa de
mandando lembranças a muitos conheci- sobrevivência que não estava relacionada
dos e parentes que residiam em Portugal, diretamente a uma determinação masculina.
e assinava a carta como: “Seu fiel esposo, Este é o caso da ex-escrava Joaquina
Zeferino José Xavier”. Maria, nascida em Angola, com 25 anos de
A “carta de chamada” é instigante por idade e que residia em Lisboa. Em 26 de
apresentar problemas corriqueiros que en- maio de 1809, solicitou passaporte para
volviam o deslocamento para a Amazônia. retornar ao Pará, junto a uma filha chamada
O cuidado com os bens que ficavam em Lis- Paula Francisca, de pouco mais de quatro
boa, a debilidade material no Pará, a rede de anos. Paula era natural do Pará, ou seja,
sociabilidade criada em Belém e que deveria sua mãe estava há pouco tempo morando
amparar a chegada da esposa, a entrada de em Lisboa. Foi para a capital portuguesa
Zeferino em regiões distantes de Belém, o acompanhando seu senhor, José Monteiro
desejo de reencontrar a família, os amigos de Carvalho, e por morte deste ganhou a
e parentes que continuavam em Portugal... alforria. Forra e em Lisboa, Joaquina pre-
Todos esses elementos integravam uma cisava garantir a vida naqueles tempos de
espécie de “cotidiano da separação” de incertezas, tempos de súditos sem sobera-
um casal que, dos sete anos de possível no. A forra declarou que sua ida para Belém
vida marital, tiveram durante cinco anos o se justificava por não ter condições de se
Atlântico como fronteira. sustentar na capital portuguesa e por contar
Mas, no geral, quais seriam os motivos no Pará com o apoio de parentes. O paquete
alegados por mulheres para deixarem Por- Santo Antonio do Pará foi autorizado a levar
tugal em busca da Amazônia? Dos 61 casos a ex-escrava e a filha.14
que envolviam mulheres, 42% (26) estavam O outro caso foi de Dona Ana Raimun-
justificados pelo empenho da esposa em da Góes Freire, viúva do desembargador
acompanhar o marido. Seja um marido que Manuel Freire. Em abril de 1817, Dona Ana
foi degredado, seja, principalmente, um solicitou o direito de partir de Lisboa, onde
esposo que buscava morar no Pará. Como morava, para a cidade de Belém. O pedido
no caso de Zeferino que chamava Rosário se estendia a três filhos menores, um com
para fazer residência em Belém. Em outros 11 anos, outro com cinco anos e o mais
casos, as mulheres alegavam acompanhar novo com três meses de idade; também foi
parentes masculinos, como filhos (8%), solicitado o “passaporte” para sua criada
irmãos (6,5%), genro ou pai (3%). Ou seja, Maria Gertrudes, uma portuguesa com 20
61,5% das partidas das mulheres eram anos de idade. Dona Ana era viúva e, pela
justificadas pelo fato de acompanharem a idade da filha mais nova, presume-se que
iniciativa de parentes masculinos. recentemente perdera o marido. Mas o
Assim, marca-se uma diferença sig- que levaria a viúva de um alto funcionário,
nificativa entre os motivos alegados por com seus três filhos e uma criada, partir de
homens e por mulheres para alcançarem a Lisboa para Belém naquele ano de 1817?
Amazônia. Os homens, no geral, declaravam A explicação talvez resida no fato de Dona

14 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 10766 – Requerimento de Joaquina Maria, para o príncipe regente
[D. João], solicitando a concessão de passaporte com destino à cidade de Belém do Pará.

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Ana ter nascido em Belém do Pará, onde Os casos citados possibilitam pensar
provavelmente tinha uma base familiar que que as viagens de mulheres ao Pará não
lhe garantiria a subsistência sua e de seus se limitavam a um único estamento social,
filhos.15 envolvendo senhoras casadas acompanha-
Cita-se, ainda, o caso de Vitória Maria das de seus filhos, viúvas com seus netos,
Teresa, viúva e natural do Pará. Fora para bem como uma ex-escrava e sua filha. A
Lisboa acompanhando o filho que era cirur- cidade de Belém, em anos joaninos, emergia
gião numa nau real. Após o falecimento do como possibilidade de residência e ampa-
filho na capital portuguesa, Vitória solicitou, ro – mesmo para poucos –, principalmente
em 1810, autorização para voltar a Belém considerando o estabelecimento de maridos
com a filha e o neto de seis anos. Alegava e outros parentes que serviam como base
que estava passando “grandes mizerias e de auxílio. No rastro da família real, outras
necessidades pela falta de abrigo e amparo famílias buscaram no Brasil sobrevivência,
do dito seu filho sem terem por quem as residência e tentaram reconstruir suas vidas,
sustentem”. Vitória formava um intrigante embora, na realidade específica do Pará,
grupo familiar em Lisboa, pois a paraense esse número não seja significativo.
viúva morava com a filha (sem referência ao Mas nem todos vinham à Amazônia por
genro), com o neto e com o filho que era o vontade própria. Alguns eram obrigados,
provedor da residência. Continuando seu pagando punições judiciais com o degredo.
relato, empenhada em transmitir a gravidade Em 27 de novembro de 1811, era remetida
de sua situação, Vitória Maria dizia que no pelo comandante do presídio de Trafaria
Pará tinha dois filhos, que serviriam como uma lista de condenados que deveriam ser
base de apoio para que ela, a filha e o neto embarcados para o Pará, na já referida em-
retornassem para Belém.16 barcação “Prazeres e Alegria”, que fazia linha
Considerando o caso da ex-escrava, regular entre Belém e Portugal, transportando
da viúva do desembargador e de Vitória, passageiros, pólvora, madeira, sal, fio de
encontramos os três únicos processos vela, pedra calcária... e, naquele novembro
de “passaporte” solicitados por mulheres de 1811, a “carga” incluía 13 presos.17
que destacavam como motivo da viagem Entre os presos apenas um era homem,
a vontade de estabelecer vida em Belém. os demais eram mulheres. A culpa mais co-
Não atrelando suas viagens diretamente a mum entre as condenadas era o furto (10),
parentes masculinos específicos, como a outra era acusada de infanticídio, uma viúva
maioria dos casos, tais mulheres buscavam acusada de participar da morte do marido
retornar à terra de suas famílias. Embora es- e o único homem arrolado fora acusado de
tivessem separadas por estamentos sociais “aviso falso”. Mulheres livres, outras conde-
tão distantes, a ex-escrava Joaquina Maria, nadas, esposas de altos funcionários reais,
Dona Ana e Vitória tinham como marco do cônjuges de comerciantes, ex-escravas,
deslocamento inicial o falecimento de seus prisioneiras... compunham um cenário com
“provedores” em Lisboa; seja o senhor, o muitas possibilidades daqueles que partiam
marido proprietário ou o filho. de Portugal e buscavam o Pará.

15 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 11156 – Requerimento de Ana Raimunda de Góis Freire,
viúva do desembargador Manuel Joaquim Ribeiro Freire, para o príncipe regente [D. João], solicitando a concessão de
passaporte para viajar com destino ao Pará, levando seus três filhos menores, Inês Amália dos Santos, Cipriano Ribeiro
Freire e Maria Honorata.
16 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 10820 – Requerimento de Vitória Maria Teresa, viúva de José
de Lima Álvares e natural da cidade do Pará, para o príncipe regente [D. João], solicitando a concessão de passaporte
com destino à cidade de Belém do Pará.
17 Projeto Resgate, Pará, Arq. Histórico Ultramarino, doc. 10915 – Ofício do comandante do presídio de Trafaria, António
Elesbão Xavier de Almeida, para o [secretário de estado da Marinha e Ultramar, conde das Galveias, D. João de Almeida
de Melo e Castro], sobre os indivíduos embarcados no navio “Prazeres e Alegria”, com destino ao Pará, onde vão cumprir
as penas de degredo a que foram condenados.

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Epílogo além do Rio de Janeiro, relativizando seus


desdobramentos.
Mesmo em época joanina, com as E, nesse caleidoscópio, a Amazônia
incertezas rondando um Portugal em meio emerge como possibilidade de imagens.
a avanços e recuos de invasões estrangei- Seja por continuar a receber embarcações
ras e a um regente afastado, o ir e vir não de origens portuguesas e estrangeiras, seja
cessou entre a Amazônia e os portos lusi- por se apresentar como possibilidade de
tanos. No rastro da Coroa, alguns partiram sobrevivência ou expurgo de “crimes” para
para o norte do Brasil, por variados motivos. moradores de Portugal. Os anos joaninos
O instigante é não reduzirmos essas aven- não significaram o isolamento da região e,
turas migratórias a uma nobreza perdida, mesmo no auge dos confrontos peninsula-
nem a homens de guerra. É preciso consi- res europeus, muitas embarcações e pes-
derar outros agentes sociais, que insistiam soas buscaram o porto da cidade de Belém.
em procurar o Brasil. Aliás, também é Anos de “movimento”, de embarcações,
preciso pensar a presença da família Real populações e... história em movimento.

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Resumen

Historias de “movimientos”: embarcaciones y población portuguesas en la Amazonia juanina

Con el objetivo de matizar la comprensión de la repercusión de la presencia de la familia real


portuguesa en Brasil, más allá de Río de Janeiro, este artículo tiene como finalidad posibilitar
una reflexión sobre los años juaninos (1808-1821) en la Amazonia. El centro del análisis es el
flujo de embarcaciones portuguesas y el movimiento migratorio entre Portugal y Pará.
Palabras-clave: Amazonia juanina. Movimiento migratorio. Población en Pará.

Abstract

Stories of “movements”: Portuguese boats and population in the 18th-century Amazon

In order to better organize the understanding of the effects of the presence of the Portuguese
Royal Family in Brazil beyond Rio de Janeiro, this article discusses the period of the Brazilian
reign of King John VI (1808-1821), in the Amazon region. The focus of the analysis is the in-
and-out of Portuguese vessels and the migratory processes between Portugal and the then
Province of Pará.
Keywords: 19th-century Amazon. Migratory movements. Population in Pará.

Recebido para publicação em 21/09/2009


Aceito para publicação em 23/01/2009

210 R. bras. Est. Pop., Rio de Janeiro, v. 27, n. 1, p. 193-210, jan./jun. 2010

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