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RE-DESENHANDO COM WINNICOTT:

A INTERPRETAÇÃO ENCARNADA1

Milton Della Nina*

RESUMO

O autor, como um jogo do rabisco, dialoga com as idéias de Winnicott sobre


interpretação em psicanálise. A interpretação, como comunicação na dupla analítica,
teria a natureza de um processo. Nele se percebe a visão winnicottiana do desenvol-
vimento emocional primitivo. Dispõe-se como modificadora da subjetividade, emanando
sempre da contribuição do analisando, denominada colaboração inconsciente.
A interpretação será considerada construção a quatro mãos. Como fator de
transformação afetivo-cognitiva, em espaço potencializador da criatividade, seria objeto
transicional desenvolvido na cultura intersubjetiva. O tempo será cuidadosamente
observado no ajuste do encontro transferencial, considerando-se o ritmo do analisando.
Colocando-se a interpretação como parte integrante do espaço potencial,
também poderá ser objeto do brincar. Assim evita-se dogmatismo, sendo hipótese a ser
verificada com o analisando e um impedimento à sua submissão.
Winnicott, ao longo de seus textos, revelaria a existência de grande confiança
na possibilidade evolutiva do analisando.
No que denomina capacidade adquirida do analista, existe a sustentação do
paradoxo: manter a análise em continuidade enquanto se ajuda a terminar e ao
analisando se separar. Portanto, espera-se que cada interpretação possa integrar tais
tendências. Finalmente, identifica-se a expressão de amor pela subjetividade, do outro
e de si mesmo, analista. Existindo, pode o analista ajudar o outro a existir e acima de
tudo a serem pessoas presentes, no âmbito desta sempre surpreendente relação
humana, tão difícil de sustentar.

Palavras-chave: Interpretação. Processo analítico. Subjetividade. Objeto transicional.


Criatividade.

1
Apresentado na Jornada sobre Teoria
dos Campos: “A relação entre teoria e
clínica: A questão da interpretação”, na
Sociedade Brasileira de Psicanálise de
São Paulo, São Paulo, em 11 de agosto de
2007.
*
Membro Efetivo e Analista Didata da
SBPSP.

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(73): 157-168, dez. 2007. 157


Milton Della Nina

Ao praticar psicanálise, tenho o pro- emocional, como também na forma de


pósito de me manter vivo, me manter bem, trabalhar em conjunto com o analisando
me manter desperto. Objetivo ser eu mes- durante a elaboração em psicanálise.
mo e me portar bem. Uma vez iniciada Na construção deste pequeno tex-
uma análise espero continuar com ela,
to sobre o enfoque da interpretação por
sobreviver a ela e terminá-la. Gosto de
fazer análise e sempre anseio pelo seu fim.
Winnicott e sua importância para a práti-
A análise só pela análise para mim não ca analítica da atualidade, pretendo me
tem sentido. Faço análise porque é do valer da idéia do jogo do rabisco. Portan-
que o paciente necessita. to, aqui proponho um “re-desenhar” com
Winnicott onde, na leitura de suas contri-
Winnicott (1962/1983, pp. 152 -155) buições ao tema, tentarei continuar seu
traçado com aquilo que tenho considera-
Em seu livro A linguagem de do em minha prática como analista. As-
Winnicott, Abram (1996/2000) refere-se sim o faço pelo respeito à idéia de que
ao jogo do rabisco como elemento diag- cada analista deve ter a liberdade de
nóstico e mesmo terapêutico no trabalho desenvolver e expressar o que de mais útil
com crianças. Nele Winnicott se dispu- encontra na evolução de seu trabalho.
nha a brincar, convidando a criança a Como conseqüência evitaremos nos pren-
prosseguir, por meio de seu próprio traço, der a modelos dogmáticos ou à busca na
um rabisco que ele começara a fazer no clínica de pura ilustração de idéias pre-
papel. Em seguida acrescentava algo mais, concebidas. A leitura de Winnicott tem
também como gesto surgido espontanea- esse encanto de nos conduzir à nossa
mente, ao que a criança continuava so- própria elaboração, ajudando-nos por meio
mando outra linha e assim por diante, de seu estilo e verdade de expressão a
ambos alternando colaborativamente, até evitar qualquer invasão sobre a nossa
se darem por satisfeitos. Disso surgiam liberdade de pensar. Portanto, também
as mais variadas formas como desenho e aquilo que esperamos fazer com nossos
sobre as quais a dupla podia ir conversan- analisandos, em particular no que se refe-
do se eles quisessem. Formas não apenas re ao trabalho interpretativo.
sugestivas e reveladoras do processo Desde o seminal trabalho de 1945,
mental em investigação, mas também em sobre o desenvolvimento emocional pri-
sua própria ação de construção causa de mitivo, Winnicott foi concedendo cres-
movimento psíquico com efeitos transfor- cente papel ao ambiente como fator es-
madores. Ao lado do jogo da espátula, sencial para a organização mental. Daí na
desenvolvido com crianças acompanha- clínica a oportunidade oferecida pelo
das da mãe, aí já se encontram intrinseca- setting como facilitador para as transfor-
mente algumas de suas idéias básicas, mações psíquicas durante o processo
não apenas sobre o desenvolvimento analítico. O ápice desse enfoque ficará

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bem definido na década de 1950, onde, ao A análise não é apenas um exercício


estudar a regressão e seus aspectos me- técnico. É algo que nos tornamos capazes
tapsicológicos, estabeleceria definitiva- de fazer quando um certo estádio na aqui-
mente o setting como instrumento de sição de uma técnica básica é atingido. O
que nos tornamos capazes de fazer permite
tanta importância clínica quanto a inter-
que cooperemos com o paciente no anda-
pretação. Devido à atenção concedida à mento do processo, aquilo que, para cada
reconstrução egóica, antes da possibilida- paciente, tem seu próprio ritmo e segue
de mutativa dada pela interpretação, o seu próprio curso (Winnicott, 1954/1978a,
leitor desavisado poderá ser levado a p. 459).
acreditar que esta última teria pouca rele-
vância no seu trabalho. Poderíamos tam- E logo acrescenta: “Todas as ca-
bém pensar que entendia a interpretação racterísticas importantes deste processo
apenas em sua forma clássica como re- derivam do paciente e não de nós como
velação do inconsciente, segundo a orien- analistas”.
tação freudiana, ou então com finalidade Para Winnicott a capacidade de
integrativa, proposta pela escola kleinia- cooperação do analisando é inconsciente
na. Entretanto, como veremos, Winnicott e se manifesta explicitamente em sua
tinha da interpretação uma visão pessoal produção dos sonhos, relatos e associa-
que, aqui colhida de vários textos ao longo ções decorrentes. Vincula-se aos aspec-
de sua obra, mostra original e avançada tos positivos da transferência e nesse
forma de compreender seu uso em análise. sentido a presença e o vínculo dependen-
Na perspectiva clássica da psica- te do analista são essenciais. Mesmo
nálise a interpretação é instrumento prin- diante do que denomina análise-padrão,
cipal de mudança estrutural e será em- sem se referir ao trabalho com pacientes
pregada pelo analista, atento à fala do fronteiriços, Winnicott percebe a reorga-
analisando, no momento de máxima opor- nização dinâmica do ego diante das influ-
tunidade para a transformação psíquica. ências ambientais mediadas pelo analista.
Essa visão da interpretação, coerente Assim descreve o andamento da análise
pela responsabilidade ética do analista e a em três etapas:
posição assimétrica instaurada pela aná-
lise, pode não obstante, se exagerada, Contamos com certa força do ego nos
levar a uma compreensão inadequada estágios iniciais da análise, pelo apoio que
dessa situação. Assim, poderiam ser su- simplesmente damos ao ego por fazer aná-
lise-padrão, e fazê-la bem. Isso correspon-
perestimados tanto o poder como a im-
de ao apoio dado ao ego pela mãe que (na
portância exclusiva do analista enquanto minha teoria) torna forte o ego da criança
condutor do processo. Creio ser interes- se, e somente se, é capaz de desempenhar
sante aqui lembrar as palavras de Winni- sua parte especial nesta época. Isto é
cott: temporário e faz parte de uma fase especial.

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Segue-se então uma longa fase em que dentro de suas teorias de desenvolvimen-
a confiança do paciente no processo ana- to da psique e da mente, onde, ao lado da
lítico acarreta todo tipo de experimentação integração e da tolerância gradativa ao
(por parte do paciente) em termos de inde- real, desempenharia fundamental impor-
pendência do ego.
tância a interação corpo-psique, a qual
Na terceira fase o ego do paciente,
agora independente, começa a se revelar e
denomina personalização (Winnicott, 1945/
afirmar suas características individuais, 1978a). Para ele a psique, onde se inte-
começando o paciente a ver como natural grariam tempo e espaço, se desenvolve-
o sentimento de existir por si mesmo ria por elaboração imaginativa das expe-
(Winnicott, 1962/1983, p. 154). riências corporais, e disso logo deduzimos
que qualquer intervenção do analista, tal
No âmbito clínico, entende Winni- como a interpretação, também influenci-
cott que a presença do analista represen- ará esta interação sempre existente no
ta um fenômeno transicional, já que simul- indivíduo. Será no campo dessa observa-
taneamente é representante do princípio ção detida e atenta às expressões dos
da realidade, mantendo as condições ex- elementos espaciotemporais constituin-
ternas do setting, mas também objeto tes, que a noção de tempo oportuno me-
subjetivo para o paciente. Nesse ambien- recerá destaque na atividade interpretati-
te favorecedor de área potencial de ilusão va de Winnicott. Diz o autor:
é que o fazer do analista inclui e funda-
menta a intervenção interpretativa. Minhas interpretações são econômi-
Porém, mesmo em se tratando de cas, pelo menos assim espero. Uma inter-
ato incluído em área transicional, Winni- pretação por sessão me satisfaz, se está
cott procura preservar na sua realização relacionada com o material produzido pela
cooperação inconsciente do paciente.
esses dois pólos: da realidade e da poten-
Digo uma coisa, ou digo uma coisa em
cialidade criativa. Invocará o primeiro duas ou três partes. Nunca uso frases
desses aspectos como uma das razões longas, a menos que esteja muito cansado.
para que interprete, pois se não interpre- Se estou próximo do ponto de exaustão me
tar o paciente ficaria com a impressão de ponho a ensinar (Winnicott, 1962/1983, p.
que o analista tudo compreende, e o se- 153).
gundo ao acreditar que a verbalização no
momento exato geraria forças intelectu- Esse olhar para a máxima otimi-
ais de transformação. Ao se referir ao zação da intervenção psicanalítica, resul-
processo intelectual não o entende como tado possível da atenção e da escuta
intelectualização defensiva, mas como levadas a extremos, considerando princi-
mobilizador do psiquismo quando integra- palmente o ritmo e o andamento do pro-
do psicossomaticamente. Deste modo, a cesso modulado pelo paciente, foi nova-
interpretação estaria sendo considerada mente destacado poucos anos antes da

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sua morte. No magistral trabalho sobre o original de outros autores. Em Freud o


uso de um objeto e naturalmente do ana- tornar consciente o que inconsciente era,
lista em análise, em 1969, Winnicott de- em Bion a expansão do espaço psíquico
clara sobre sua técnica: pela transformação de seus elementos e,
em nosso meio, Fabio Herrmann ao nos
Por exemplo, só recentemente me tor- oferecer o conceito de ruptura de campo,
nei capaz de esperar; e esperar, ainda pela estariam todos se encaminhando nessa
evolução natural da transferência que mesma direção. Destaco aqui a contribui-
surge da confiança crescente do paciente ção de Winnicott, não por considerá-la
na técnica e no cenário psicanalítico, e única e exclusiva, mas apenas para res-
evitar romper esse processo natural, pela
saltar certos aspectos próprios e ineren-
produção de interpretações. Refiro-me à
tes à forma pela qual parecia conceber a
produção de interpretações e não às inter-
pretações como tais. Estarrece-me pensar possibilidade interpretativa do analista.
quanta mudança profunda impedi, ou re- Quase na mesma época, em 1968,
tardei, em pacientes de certa categoria de Winnicott tinha escrito especificamente
classificação pela minha necessidade de sobre a interpretação em psicanálise.
interpretar. Se pudermos esperar, o paci- Parte da concepção de ser uma comuni-
ente chegará a compreensão criativamen- cação e entende que, mesmo se referindo
te, e com imensa alegria; hoje posso fruir ao conteúdo oral, deve ser considerado
mais prazer nessa alegria do que costuma- que “... uma grande parte da comunica-
va com o sentimento de ter sido arguto. Ao ção que se dá de paciente para analista
interpretar, acredito que o faço principal- nãoé verbalizada” (Winnicott, 1968/1994,
mente no intuito de deixar o paciente co-
p.163). Assim ressalta os matizes da fala,
nhecer os limites de minha compreensão.
silêncios e movimentos, como também
Trata-se de partir do princípio de que é o
paciente, e apenas ele, que tem as respos- todos os detalhes comportamentais. Essa
tas. Podemos ou não torná-lo apto a abran- abrangência da atenção na construção da
ger o que é conhecido, ou disso tornar-se interpretação deve, no entanto, receber
ciente, com aceitação (Winnicott, 1969/ cuidados pelo analista, o qual deveria
1975b, pp. 121-122). evitar fazer comentários explícitos sobre
essas observações a menos que se sinta
Tornar o paciente apto a abranger autorizado pelo analisando em sua
o que lhe é conhecido, porém, ainda não verbalização. Da mesma forma o analista
sabido, como dirá depois Cristopher Bollas está se comunicando indiretamente pela
(1987/1992), tornando-se inteligível e to- sua expressão falada, que não raro con-
lerável em sua realidade psíquica, é sem tém atitudes morais independentes de sua
dúvida a tarefa do analista. Creio que intenção consciente. Acima de tudo o
essa forma de pensar está presente tam- autor assinala ser propósito da interpreta-
bém, de diferentes maneiras, na obra ção a inclusão de “... um sentimento que

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o analista tem de que foi feita uma permitiria na concepção de Winnicott uso
comunicação que precisa ser reco- compartilhado dos processos afetivo-cog-
nhecida”(p.164). Centrando sua aten- nitivos, como se analista e analisando
ção naquilo que pode compreender da brincassem junto com esse conteúdo.
comunicação do analisando, o analista Em especial, acentua o momento
deveria se afastar da utilização de suas oportuno para a comunicação, já que
próprias idéias, já que no momento pode- entende que, feita quando o analisando
riam estar erradas do ponto de vista do não se dispõe mentalmente para tal, esta-
paciente. Destarte, aqui Winnicott nos ria o analista “mais além do lugar onde
surpreende dizendo que a interpretação se encontra” o paciente e, portanto, a
na sua forma mais simples “... devolve ao interpretação poderia ser sentida como
paciente o que este comunicou”(Winnicott, quase “miraculosa”. Sem a confiança
1968/1994, p. 164). que o encontro permite, pode então ser
Ao comentar como tal proposta transformada “... numa ameaça, por
pode parecer simplista, contendo no míni- achar-se em contato com um estágio de
mo o “... intuito de informar ao paciente desenvolvimento emocional que o pa-
que o que ele disse foi ouvido e que o ciente ainda não atingiu, pelo menos
analista está tentando alcançar correta- como personalidade total” (Winnicott,
mente o sentido daquilo” (p. 164), acen- 1968/1994, p. 166).
tua, por outro lado, seu sentido mutativo. Ao comentar esse trabalho,
Baseado nas concepções de pessoa total Giovacchini (1990/1995) sustenta que
e comunicação dissociada a partir da apesar de a análise clássica considerar o
relação de objeto parcial, Winnicott acre- fluxo como unilateral, do paciente para o
dita que o analista, ao refletir de volta o analista, a interação interpretativa como
que o paciente comunicou, o faz em um Winnicott parece sugerir seria uma abor-
momento diferente da comunicação limi- dagem mais tolerada na atualidade. Tex-
tada e dissociada fornecida pelo analisan- tualmente nos diz que: “... muitos pacien-
do. Assim, favorece o contato do anali- tes não apenas precisam ter o que dizem
sando com parte de si mesmo, agora refletido de volta para eles, como Winni-
tomado pelo analista como pessoa total, cott sugeriu, mas querem engajar-se em
em um momento em que ele já emergiu um diálogo em que a participação do
“... desta área limitada ou condição disso- analista seja importante” (Giovacchini,
ciada” (p. 164). Portanto, vemos como aí 1990/1995, p. 77). Creio que a interpreta-
considera, mais uma vez, a importância ção assim entendida como comunicacio-
na comunicação do fator temporal, como nal e transformadora não se dirige à
também privilegia o sentido da integração decifração de conflitos inconscientes, tam-
egóica. Além disso, a devolução do mate- pouco à pura descrição do funcionamento
rial comunicado, por exemplo, um sonho, mental atuante naquele momento, mas a

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uma proposta de abertura de novos comentar a importância atual das con-


significados que incluem o tempo todo cepções clínicas e metodológicas de Fe-
ativa participação do analisando neste renczi, cita uma frase de Franco Borgogno
processo. que aqui tomo a liberdade de emprestar:
Sandler, em um trabalho apresen-
tado em 2002, ao investigar a construção Ferenczi parece saber que aquilo que o
clínica de atmosfera favorável ao pensa- paciente necessita não é uma interpreta-
mento onírico e à intimidade do paciente ção, mas, antes de tudo, de um reconheci-
consigo mesmo, revê a atitude do analis- mento de existência, que passa por uma
ta. Nesse texto encontro uma forma de comprovação do encontro com a mente, o
corpo e o coração do outro e do confronto
trabalho analítico que me apraz e em que,
com as qualidades afetivas da relação
embora ela relacione com as idéias de
(Borgonno, citado por Sandler, 2002, p. 8).
Bion e de Ferenczi, creio também reco-
nhecer aspectos da proposta interativa de
Winnicott, especialmente na construção Torna-se impossível aos leitores
da interpretação. Ao invés de interpretar de Winnicott não reconhecer nessa as-
classicamente uma paciente de difícil sertiva de Borgogno a maneira daquele
acesso, ali propõe uma forma de interven- autor de conceber o encontro na situa-
ção que metaforicamente denomina “obs- ção analítica. De fato, lembremos que
tétrica”. Descrevendo-a diz: esses autores, Ferenczi e Winnicott, dis-
põem-se cada vez mais como van-
Eventualmente consigo tentar dar pe- guardistas daquilo que Roberto Graña
quenos toques aqui e ali, chamar sua aten- (2007), ao comentar a influência do pri-
ção para algum detalhe, propor alguma meiro sobre o segundo, nos diz: que em
questão. Pode parecer muito pouco, mas Ferenczi
me lembra o trabalho de auxiliar um parto:
acompanhar, aliviar, amparar, fazer peque- ... encontraremos o húmus da inspira-
nas manobras e torcer para que a natureza ção principal para o passo além de Freud
faça sua parte (Sandler, 2002, p. 7). e da metapsicologia freudiana, rumo ao
que tem sido eventualmente denominado
Essa sutil descrição, que revela terceira tópica, ou seja, a redescrição do
existência de grande confiança do analis- contexto da investigação teórica e da prá-
ta na possibilidade evolutiva do analisan- tica clínica psicanalítica a partir da pers-
do, assim como no predomínio da atenção pectiva da interatividade ou da intersubje-
compartilhada na elaboração psíquica, tividade (Graña, 2007, p. 55).
lembra-nos também a divisão do ato in-
terpretativo da qual nos fala Winnicott ao Portanto, vemos que ao estudar a
dividir a interpretação em duas ou três interatividade na construção da interpre-
pequenas frases. Além disso, a autora, ao tação, vértice também destacado por

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Winnicott, estaremos em plena perspec- tismo, considerando-a sempre como hi-


tiva de uma investigação clínica no desen- pótese a ser verificada conjuntamente
volvimento da metodologia psicanalítica. com o analisando e um impedimento à sua
Ao final destes rabiscos referenci- submissão.
ais, a partir de Winnicott e de alguns Sabemos que a criatividade, assim
outros autores correlacionados, podemos como a existência, é ponto importante na
então contemplar o nosso desenho. Creio concepção de desenvolvimento emocio-
nele ser patente que a interpretação na nal para Winnicott. Ele entende que a
ótica winnicottiana pode ser mais bem criatividade, como “apercepção criati-
entendida como um processo. Funda- va”, é o elemento essencial à possibilida-
menta-se em suas teorias sobre o desen- de de sentir, como diz, “que a vida é
volvimento mental a partir da vida emoci- digna de ser vivida”. No texto “A cria-
onal. O objeto externo, na situação analí- tividade e suas origens”, publicado em
tica lugar ocupado pelo analista, está sem- livro onde reúne seus principais trabalhos
pre implicado na manutenção de um am- sobre a transicionalidade, declara textual-
biente favorável ao desenvolvimento do mente que essa condição de criatividade
potencial do analisando. Assim, a inter- não ocorre quando
pretação não dependeria exclusivamente
do analista, mas deveria ser considerada ... em contraste, existe um relaciona-
uma construção a quatro mãos. Inserin- mento de submissão com a realidade exter-
do-se como um fator de transformação na, onde o mundo em todos seus porme-
afetivo-cognitiva em espaço potenciali- nores é reconhecido apenas como algo a
zador da criatividade, pode ser também que ajustar-se ou a exigir adaptação
compreendida como objeto transicional (Winnicott, 1971/1975a, p. 95).
desenvolvido na cultura intersubjetiva,
progressivamente desenvolvida pela Nos traços referenciais que anteri-
parceria. O tempo nessa relação criati- ormente esboçamos é perfeitamente iden-
va será cuidadosamente observado, ten- tificável a preocupação de Winnicott de
tando-se um ajuste que permita o en- que a interpretação não crie essa condi-
contro transferencial, levando-se em ção de submissão ou “falso self”, expon-
conta principalmente o ritmo do anali- do-se o analista o tempo todo ao escrutí-
sando. nio do analisando. Creio ser esta uma
Colocando-se a interpretação no disposição interior que o analista pode ou
espaço transicional, e em sua melhor não apresentar, inserindo-se naquilo que
evolução como parte integrante do espa- nos objetivos da análise, mencionados na
ço potencial, também poderá ser objeto epígrafe deste texto, Winnicott parece
do brincar na concepção de Winnicott. referir como ser ele mesmo e se compor-
Assim poderíamos nos afastar do dogma- tar bem.

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Re-desenhando com Winnicott: A interpretação encarnada

Nessa epígrafe, ao apresentar os Bollas, C. (1992). A sombra do objeto:


objetivos da análise, chama-nos a aten- Psicanálise do conhecido não
ção que Winnicott inicie seu pensamento pensado. Rio de Janeiro: Imago
falando de si mesmo e não de metas ou (Trabalho original publicado em
projetos para o analisando. Destaca-se 1987).
assim, em minha opinião, não apenas a
importância da contratransferência em Giovacchini, P. L. (1995). Interpreta-
um sentido amplo, como também já esta- ções, uma área técnica obscura: Co-
ria aí enunciada a liberdade do analisando mentários sobre “A interpretação na
em fazer da análise seu próprio uso. psicanálise”, de Winnicott. In P. L.
Naquilo que denomina capacidade adqui- Giovacchini, Táticas e técnicas psi-
rida do analista, e que prefiro chamar de canalíticas: D. W. Winnicott (pp.
disposição interna, podemos ainda reco- 65-78). Porto Alegre: Artes Médi-
nhecer a sustentação do paradoxo: cas (Trabalho original publicado em
manter a análise em sua continuidade 1990).
enquanto desde o primeiro momento
pretende ajudá-la a terminar e ao ana- Graña, R. B. (2007). Origens de Winni-
lisando se separar. Naturalmente, es- cott: Ascendentes psicanalíticos e
pera-se que cada interpretação possa filosóficos de um pensamento origi-
integrar tais tendências. Finalmente, nal. São Paulo: Casa do Psicólogo.
podemos ali reconhecer, como em cada
uma de suas idéias sobre interpretação, Sandler, E. H. (2002). A criança, “Pai
a expressão de amor pela subjetivi- do Homem” ou alguém que deve
dade, do outro e de si mesmo, analis- ser visto, mas não ouvido? Traba-
ta. Portanto, assim existindo pode o lho apresentado na Clinical Sándor
analista ajudar o outro a existir e Ferenczi International Conferences,
acima de tudo serem pessoas presen- 2002, Torino, e em Reunião Científi-
tes, no âmbito desta sempre surpreen- ca da SBPSP, 2003, São Paulo.
dente relação humana, tão difícil de
sustentar. Winnicott, D. W. (1975a). A criatividade
e suas origens. In D. W. Winnicott,
REFERÊNCIAS O brincar e a realidade (pp. 95-
120). Rio de Janeiro: Imago. (Traba-
Abram, J. (2000). A linguagem de Winni- lho original publicado em 1971).
cott: Um dicionário do uso de
palavras por Winnicott. Rio de Winnicott, D. W. (1975b). O uso de um
Janeiro: Revinter (Trabalho original objeto e relacionamento através de
publicado em 1996). identificações. In D. W. Winnicott,

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Milton Della Nina

O brincar e a realidade (pp. 121-


131). Rio de Janeiro: Imago (Traba-
lho original publicado em 1969).

Winnicott, D. W. (1978a). Aspectos clí-


nicos e metapsicológicos da regres-
são dentro do setting analítico. In D.
W.Winnicott: Textos selecionados:
Da pediatria à psicanálise (pp.
459-481). Rio de Janeiro: Francisco
Alves. (Trabalho original publicado
em 1954).

Winnicott, D. W. (1978b). Desenvolvi-


mento emocional primitivo. In D. W.
Winnicott: Textos selecionados: Da
pediatria à psicanálise (pp. 269-
285). Rio de Janeiro: Francisco Al-
ves. (Trabalho original publicado em
1945).

Winnicott, D. W. (1983). Os objetivos do


tratamento analítico. In D. W. Winni-
cott: O ambiente e os processos de
maturação: Estudos sobre a teo-
ria do desenvolvimento emocio-
nal (pp. 152-155). Porto Alegre:
Artes Médicas (Trabalho original
publicado em 1962).

Winnicott, D. W. (1994). A interpretação


na psicanálise. In C. Winnicott, R.
Shepherd, & M. Davis, Explora-
ções psicanalíticas: D. W. Winni-
cott (pp. 163-166). Porto Alegre:
Artes Médicas Sul (Trabalho origi-
nal publicado em 1968).

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Re-desenhando com Winnicott: A interpretação encarnada

SUMMARY

Drawing with Winnicott: The interpretation incarnated

The author, as in a “Squiggle Game”, dialogues with Winnicott’s ideas about


interpretation in psychoanalysis.
The interpretation, as a communication within the analytic duet, is considered as
a process; within it Winnicott’s view on primitive emotional development can be
captured. The interpretation is understood as a modifier of subjectivity and always
comes from the patient’s contribution, what is called ‘unconscious collaboration’.
The interpretation is considered as a four-hands construction. It is a factor of
affective and cognitive transformation in potential space of creativity, and a transitional
object developed in the intersubjective culture. Time is carefully observed within the
transference’s encounter adjustment, where the pace of the patient is considered.
Taking into account the interpretation as part of the potential space, it can also
be an object of play. It is a hypothesis to be examined with the patient and an impediment
to one’s submission. Thus, dogmatism is avoided.
Over his papers, Winnicott reveals a great confidence in the patient’s possibility
of development. In the ‘gained capacity of the analyst’, there is a paradox: to maintain
analysis’s continuity while assisting the patient to be separated and to finish analysis.
Therefore, it is expected that each interpretation can integrate this contradiction.
Finally, the expression ‘love for subjectivity’ of the patient and of oneself is
identified. Being oneself the analyst can help the other person to exist as a present
person in a always surprising human relationship, so difficult to sustain.

Key words: Interpretation. Analytical process. Subjectivity. Transitional object. Cre-


ativity.

RESUMEN

Rediseñando con Winnicott: La interpretación encarnada

Como en un juego de hacer garabatos, el autor dialoga con las ideas de Winnicott
sobre interpretación en psicoanálisis. La interpretación como comunicación en el par
analítico tendría la naturaleza de un proceso. En el mismo se percibe la visión
winnicottiana del desarrollo emocional primitivo presentándose como modificadora de
la subjetividad, emergiendo siempre de la contribución del analizando, denominada
colaboración inconsciente.
La interpretación será considerada una construcción a cuatro manos. Como
factor de transformación afectivo-cognitiva, en un espacio potencializador de la

Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(73): 157-168, dez. 2007. 167


Milton Della Nina

creatividad, vendría a ser un objeto transicional desarrollado en la cultura intersubjetiva.


El tiempo será cuidadosamente observado en lo que se refiere al ajuste del encuentro
transferencial, teniéndose en cuenta el ritmo del analizando.
Si se considera la interpretación como parte integrante del espacio potencial,
también podrá ser objeto del juego. De esta manera se evita el dogmatismo, siendo una
hipótesis a ser verificada con el analizando y un impedimento para su sumisión.
A lo largo de su texto, Winnicott revelaría la existencia de una gran confianza en
la posibilidad evolutiva del analizando.
En lo que denomina capacidad adquirida del analista, se encuentra la ratificación
de la paradoja: mantener la continuidad del análisis mientras se ayuda a terminarlo y
al analizando a separarse. Por lo tanto se espera que cada interpretación pueda integrar
tales tendencias. Finalmente, se identifica la expresión de amor por la subjetividad del
otro y de sí mismo, analista. Existiendo, el analista puede ayudar al otro a existir y sobre
todo a ser personas presentes en el ámbito de esta siempre sorprendente relación
humana, tan difícil de sustentar.

Palabras-clave: Interpretación. Proceso analítico. Subjetividad. Objeto transicional.


Creatividad.

Milton Della Nina


R. Leôncio de Carvalho, 306/81 – Paraíso
04003-010 São Paulo, SP
Fone: (11) 3289-6381
E-mail: mdnina@uol.com.br

Recebido em: 20/11/2007


Aceito em: 27/11/2007

168 Jornal de Psicanálise, São Paulo, 40(73): 157-168, dez. 2007.

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