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MULHERES EM CONTEXTOS RURAIS: EXPERIÊNCIAS E TEORIAS

Siomara Aparecida Marques1

Resumo: O texto busca analisar como as mulheres camponesas se organizam na produção agrícola,
na política e na vida em comunidade. Por mulheres do campo entende-se não apenas as
trabalhadoras rurais, mas as mulheres quilombolas, faxinalenses e indígenas. O espaço geopolítico
da análise está limitado às comunidades rurais, reservas indígenas e assentamentos de reforma
agrária do Território da Cidadania Cantuquiriguaçu - Paraná. Os objetivos da análise são: identificar
as formas de organização comunitária e da produção rural e verificar como se estabelecem as
relações de gênero nos espaços políticos comunitários. Os depoimentos de mulheres sobre suas
experiências no mundo da produção e na vida comunitária são analisados com base nos debates
feministas da igualdade e do reconhecimento político das diferenças de gênero, e com base na teoria
dos movimentos sociais. Este texto possibilita lançar um olhar que intersecciona gênero, raça, etnia,
classe e sexo no campo dos estudos feministas sobre as mulheres rurais/camponesas no Brasil.

Palavras-chave: Gênero. Mulheres Camponesas. Experiências. Teoria Social.

O lugar geográfico, político e social das mulheres do campo

O campus Laranjeiras do Sul da Universidade Federal da Fronteira Sul2, está instalado no


território Cantuquiriguaçu. O território, onde está inserido o campus, localiza-se no Centro Oeste do
estado do Paraná, área conhecida como Território da Cantuquiriguaçu3 ou Território da Cantu.. Esse
território é considerado território da cidadania, é formado por 20 municípios4 e abrange uma
população de 233.643 habitantes. A maior parte dos municípios se emancipou recentemente, mais
precisamente a partir de 1980, formando uma nova configuração política territorial. Essa nova
configuração apresenta características peculiares em relação ao desenvolvimento econômico e

1
Doutora em Sociologia Política. Professora da Universidade Federal da Fronteira Sul – UFFS – Campus Laranjeiras
do Sul – PR, Brasil.
2
UFFS surge da demanda dos movimentos sociais por educação superior, pesquisa e extensão ligada à ideia do
desenvolvimento regional sustentável. A Universidade Federal da Fronteira Sul tem quatro anos de existência e sobre
ela recaem as mais variadas expectativas, apostas e desafios. Nascida da organização dos movimentos sociais e das
lideranças políticas e comunitárias da Mesorregião da Grande Fronteira do MERCOSUL e seu entorno, a UFFS é a
mais viva e recente expressão da capacidade de mobilização dos atores sociais que, há décadas, lutam em defesa dos
ideários mais importantes da emancipação social, como democracia, igualdade, respeito à diversidade, cidadania, direito
à educação pública, gratuita e de qualidade, sustentabilidade e justiça social. Sua origem se dá no âmago da sociedade
civil organizada. Ela nasce de “fora para dentro”; surge dos movimentos sociais e, na sequência, legitima-se como
instituição pública estatal por meio da Lei Federal 12.029/2009. (2010:12)
3
As informações sobre o Território da Cantu teve como fonte principal o Diagnostico Socioeconômico do Território da
Cantuquiriguaçu, documento elaborado pelo IPARDES.
4
Campo Bonito, Candói, Cantagalo, Catanduvas, Diamante do Sul, Espigão Alto do Iguaçu, Foz do Jordão, Goioxim,
Guaraniaçu, Ibema, Laranjeiras do Sul, Marquinhos, Nova Laranjeiras, Pinhão, Porto Barreiro, Quedas do Iguaçu,
Reserva do Iguaçu, Rio Bonito do Iguaçu, Três Barras do Paraná e Virmond.
social. Características essas que refletem áreas ou regiões estagnadas economicamente e deprimidas
socialmente. (IPARD5, 2007)
Conhecer o processo histórico de ocupação e formação humana, cultural, política e
econômico desta região, é essencial para compreender atual organização social. Os protagonistas
sociais deste processo foram às populações indígenas (guarani e kaingáng), os migrantes
portugueses, (interessados na captura de indígenas e na colonização do interior do estado), os
espanhóis com suas missões jesuítas, e no século XX, a migração nacional e internacional de
italianos, alemães, eslavos, catarinenses e gaúchos em busca de novas terras férteis. A história
regional foi construída em meio a muitos conflitos de ordem cultural e também por conflitos físicos
violentos, tendo como principal desencadeador a questão da posse da terra. (IPARDES, 2007).
A economia do período de colonização e expansão das fronteiras paranaenses esteve
atrelada a produção agrícola de subsistência, ao cultivo da erva mate, criação de gado e mulas para
o tropeirismo, a criação de suínos e a exploração madeireira, tendo como base o trabalho escravo e
familiar.
As atividades econômicas e produtivas além das características acima tinham como outro
dado relevante, as grandes propriedades de terra. Dentro deste cenário, constituíram os elementos
fundamentais para a formação de uma sociedade patriarcal, com lutas de classes sociais, conflitos
étnicos constantes, e problemáticas com as relações de gênero, principalmente no que tange a
questão do trabalho das mulheres e geração de renda, dentro dos assentamentos e nas pequenas
propriedades de agricultura familiar, ou em outros espaços de trabalho ligados aos ambientes rurais.
O processo histórico de ocupação do território no Centro-Oeste e Sudoeste do Paraná definiu
para a região, uma distribuição fundiária com predominância de pequenas propriedades de
exploração unifamiliar. Tal característica foi intensificada na região, onde foi implantado pelo
INCRA, e pela capacidade organizativa dos movimentos sociais o assentamento de mais de 5 mil
famílias de trabalhadores rurais sem terra. A região é tipicamente agrícola, caracterizada por
pequenas propriedades e culturas de subsistência, que encontram na agricultura familiar uma base
estruturadora e dinamizadora do processo de desenvolvimento associado à valorização e proposição
de novas alternativas para a atual matriz produtiva.
A criação de novos municípios, ou áreas urbanas, não retirou o caráter de ser uma região
onde grande parte de seus habitantes, são residentes das áreas rurais, apesar de vir acompanhando a
tendência brasileira de fluxo migratório do campo para a cidade. Da população total do território de

5
Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social – IPARDES.
233.643 habitantes, 47,54% vivem em áreas rurais, com 21.184 agricultores familiares, 4.264
famílias assentadas, 03 comunidades quilombolas e 02 reservas indígenas6. O diagnóstico
paranaense mostra que a população de homens no campo é maior que a feminina, afirmando que há
uma masculinização das áreas rurais.
O caso do município do Rio Bonito do Iguaçu, chama atenção, devido às altas taxas de
crescimento populacional, principalmente na zona rural. A presença de acampamentos e
assentamentos rurais originários da reforma agrária em alguns municípios pertencentes ao Território
da Cantu data a partir dos anos de 1990, onde o INCRA criou 40 assentamentos rurais (IPARDES,
2007. p. 121).
Essas formas de ocupação do território estão ligadas aos movimentos sociais, entre eles o
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST, na sua maioria. O expressivo número de
movimentos sociais é uma realidade que trás particularidades para o território da Cantu. Além do
MST, outros movimentos sociais, têm presença ativa no território, entre eles, o Movimento das
Mulheres Camponesas - MMC, o Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, o Movimento dos
Atingidos por Barragens – MAB, o Movimento das Comunidades Quilombolas, formam a Via
Campesina, que se constitui numa rede de movimentos sociais que lutam pelo direito à terra.
O Território Cantuquiriguaçu detém o segundo lugar do IDH mais baixo do Paraná. Está em
condições de vulnerabilidade socioeconômica, com baixos de índices de desenvolvimento humano e
situação de exclusão social crescente. A pobreza predominante nos municípios do Território atinge
principalmente as famílias camponesas e de maneira desigual homens e mulheres. Observa-se na
região uma concentração de terra e renda proveniente do agronegócio.
Para amenizar o baixo desenvolvimento socioeconômico, a região integra projetos de
intervenção de políticas públicas para reverter a situação na esfera estadual. Além deste, o Território
da Cantu também integra o programa federal “Territórios da Cidadania”, que tem o objetivo de
gerar desenvolvimento e difundir programas sociais, numa parceria com os governos municipais e
estaduais.

Breves apontamentos de teoria social sobre gênero e mulheres camponesas

Este artigo busca contemplar as temáticas dos estudos das relações de gênero, mulheres e
feminismos em suas interseccionalidades com as temáticas da ruralidade, da reforma agrária, da

6
Dados populacionais consultados no site do Território da Cidadania (http:// www.territoriosdacidadania.gov.br).
agricultura familiar, das situações das mulheres do campo, nas áreas prioritárias de políticas
públicas, como por exemplo, nos territórios da cidadania, no caso, a Região da Cantuquiriguaçu-PR.
Entende-se pela noção de mulher do campo todas as diferentes experiências socioculturais e
de gênero que definem as mulheres como agricultoras, indígenas, trabalhadoras rurais, quilombolas.
Como já é de conhecimento, no Brasil, “as reflexões sobre mulheres e gênero em contextos rurais
alcançaram uma maior visibilidade a partir da década de 1980” (PINTO, 1994, 198). Conforme
Rosineide Cordeiro e Russel Perry Scott (2007),
podemos citar três vertentes que contribuíram para o delineamento dessa área: a produção
das pesquisadoras feministas sobre o trabalho feminino e, particularmente, sobre o trabalho
das mulheres na área rural; o discurso das mulheres trabalhadoras rurais organizadas em
grupos e movimentos; as pesquisas etnográficas sobre campesinato, rebeirinhos(as),
populações indígenas, etc. (CORDEIRO e SCOTT, 2007, 240)

As lutas das mulheres agricultoras levaram a conquistas tais como: reconhecimento do


trabalho na agricultura; pelo direito à terra e pela reforma agrária; acesso aos benefícios da
Previdência Social; participação das mulheres na estrutura sindical, seja como associadas ou como
diretoras de sindicatos e federações. Na nova Constituição, as conquistas alcançadas foram o direito
à terra, a extensão de direitos trabalhistas para homens e mulheres trabalhadores(as) rurais e o
acesso aos benefícios da Previdência Social.
De acordo com os mesmos autores, “a partir do final da década de 1980 as lutas das
mulheres foram pela regulamentação dos direitos conquistados e pela implementação de políticas
públicas voltadas para a promoção da igualdade de gênero” (CORDEIRO e SCOTT, 2007, 240).
Além destas conquistas políticas e jurídicas, as mulheres do campo atualmente organizam-se em
ONGs e aprenderam implementar espaços democráticos de debate como seminários, encontros,
oficinas sobre diversos temas de gênero, violência, sexualidade, saúde reprodutiva, geração de
renda, meio ambiente, entre outros.
É a partir desse cenário de conquistas e aprendizados sobre a condição de ser mulher do
campo que esta pesquisa pretende situar-se.
A presença das mulheres rurais na produção agrícola é um fato. Mesmo na invisibilidade,
não se pode negar que elas estão ocupando terra, plantando e colhendo, e cultivando o desejo de ter
uma terra livre e usufruí-la com seu trabalho. Presentes na casa, no quintal, na roça e na luta pela
terra, as mulheres lutaram pelo direito de serem reconhecidas como trabalhadoras. A emergência
das mulheres rurais nos movimentos sociais proporcionou seu aparecimento como sujeito político,
rompendo sua invisibilidade como trabalhadora. Nesse aprendizado e experimentação as mulheres
rurais criaram seu próprio movimento, consolidado na década de 1980.
No aspecto teórico deste estudo, entende-se por mulheres do campo não apenas as
trabalhadoras rurais, mas as mulheres de quilombos e indígenas, o que nos possibilita lançar um
olhar que intersecciona gênero, raça, etnia, classe, sexo. A intersecção desses marcadores sociais
leva à questão da análise da igualdade e de sua antítese, a diferença, no debate feminista. O
problema central do argumento igualdade e diferença é: será que o objetivo do feminismo e do
movimento de mulheres deve ser a igualdade civil, política e social, ou, alternativamente, será que
as mulheres devem repudiar a igualdade e exaltar a diferença?
No discurso reivindicativo das mulheres sempre esteve a ideia de igualdade entre os sexos.
Se esta reivindicação é justa e necessária no plano social, não é geradora de conhecimentos para
sujeitos que são distintos ou que tenham sido transformados em tais. É, paradoxalmente, o discurso
da igualdade entre os sexos que revela a opressão sobre as mulheres, e que, simultaneamente, cria a
consciência dessa opressão. Este discurso nasceu quando as mulheres foram empregadas como mão
de obra nas fábricas e o lugar da diferença se restringiu ao salário desigual, à dupla jornada de
trabalho, à negação do direito ao voto. Estes lugares transformavam a diferença simplesmente em
desigualdade, contra a qual as mulheres têm lutado.
Apesar de fazerem parte de outro contexto socicoeconômico, as mulheres camponesas
passam pelos mesmos reveses tanto no trabalho agrícola como no doméstico ou nos movimentos
sociais mistos, a exemplo do MST e do sindicato. Analisando diferentes movimentos sociais no sul
do País em que participam camponesas, Maria Ignez Paulilo (2004) constata o seguinte aspecto
sobre a questão da igualdade:
Apesar de a construção da igualdade pela ideia de que ‘todos devem fazer de tudo’, as
mulheres são muito cobradas e não conseguem ‘se impor’, se não ‘se desafiam’, enquanto o
fato de os homens não dividirem o trabalho doméstico é um pecado menor, tão leve que
risível. Essa igualdade, a nosso ver, masculina, torna vã inclusive a pergunta sobre quanto
são os homens e quantas são as mulheres que participam dos cargos de direção nos
movimentos mistos. (PAULILO, 2004, 248)

Toda análise da igualdade entre os sexos pressupõe considerar a diferença, pois há


interdependência dos dois termos, já que a igualdade não é a eliminação da diferença, e a diferença
não exclui a igualdade. De acordo com Joan Scott (1988), no caso das teorias ou dos movimentos
feministas e de mulheres, discutir dicotomicamente igualdade versus diferença significa,
estruturar uma eleição impossível. Para as feministas, renunciar à diferença, significa
renunciar a ‘ferramenta analítica mais significativa’. Renunciar à igualdade também é
problemático quando é necessário se referir aos princípios e valores de sistemas políticos.
[...]. A noção de política da igualdade inclui um reconhecimento da diferença. (SCOTT,
1988, 217-218).
Para as mulheres camponesas a diferença é marcada pelos papéis sociais que desempenham
homens e mulheres no âmbito da produção e da reprodução, do doméstico e do público.
A mulher agricultora foi socializada no espaço privado e qualificada para os afazeres
domésticos, o trabalho na lavoura, o cuidado e a educação dos filhos, a lida com os animais
e a sair sempre acompanhada pelo marido, pelo pai e pelos irmãos. Por outro lado ao
homem foram dadas tarefas como o relacionamento com o banco, a cooperativa, o
comércio e também com o sindicato. [...]. A mulher carrega consigo particularidades
femininas, adquiridas na sua socialização, que não se restringem ao biológico, mas ao
comportamento, ao modo de agir. (BONI, 2004, 301)

A força de trabalho das mulheres camponesas na lavoura é tal qual a dos homens, porém o
trabalho doméstico não tem o mesmo peso. No capitalismo o trabalho na lavoura é considerado
economicamente produtivo, mesmo que muito de seu trabalho doméstico traga benefícios
econômicos, este não é valorizado.
As mulheres, ainda, responsabilizam-se praticamente sozinhas pelo trabalho doméstico, no
qual com frequência são auxiliadas ou substituídas pelas filhas, quando têm outra atividade.
Nessa esfera as mulheres têm autonomia e poder, tomando decisões relativas ao preparo
dos alimentos, cuidado da casa e da roupa, orientação e educação dos filhos, assim como a
uso de recursos destinados ao consumo doméstico. Elas também tomam decisões referentes
a vendas eventuais de bens por elas produzidos, tais como ovos, queijo, nata e outros, sendo
também responsáveis pelo uso do recurso assim obtidos. No entanto não se deve
superestimar a importância de sua autonomia e poder nesse domínio, tendo em vista, por
um lado, que as vendas feitas por elas geralmente são eventuais e de pequeno valor e, por
outro, que as atividades domésticas são consideradas secundárias, pelos próprios membros
da família, em relação às atividades produtivas. Não é de surpreender, por isso, que
mulheres, apesar da dureza do trabalho agrícola e de seu papel subalterno no mesmo,
prefiram exercer essa atividade ao trabalho doméstico, usando justificativas tais como: “o
trabalho doméstico é todo dia a mesma coisa, a gente limpa e logo em seguida a gente tem
que limpar de novo”; “o trabalho na roça a gente vê”. (BRUMER, 2004, 211-212)

A diferença entre a definição de trabalho doméstico de trabalho produtivo acaba reforçando


os papéis atribuídos a mulheres e homens e mantendo a desigualdade, muitas vezes confundida com
diferença. Conforme Paulilo (2004), define-se trabalho doméstico tudo aquilo que é atribuição da
mulher
[...]. Se ela vai para a roça com o marido, é trabalho produtivo, mesmo que o que for
colhido seja tanto para vender como para comer. Se cuida da horta e das galinhas sozinha, é
trabalho doméstico. Se vende ovos de vez em quando, uma galinha ou outra, é tão pouco
que não vale a pena teorizar sobre isso. Mesmo nos assentamentos de reforma agrária
coletivos com os quais tivemos contato, onde tanta desigualdade foi questionada, ainda se
diz que os homens trabalham oito horas e as mulheres quatro, por causa do serviço de casa.
(PAULILO, 2004, 245)

Entre os grupos camponeses presentes na região da Catuquiriguaçu, encontram-se os grupos


indígenas distribuídos nas seguintes Terras Indígenas (TI): TI de Rio das Cobras, localizada nos
municípios de Nova Laranjeiras e de Espigão Alto do Iguaçu. Essa TI possui uma área territorial de
18.681,98 ha, sendo sua população estimada em 2.828 índios das etnias Kaingáng e Guarani Mbya.
A terra indígena está dividida em seis comunidades de índios Kaingáng: Sede, Trevo, Taquara, Vila
Nova, Campo do Dia e Encruzilhada; e duas comunidades de índios Guarani, Mbya: Lebre e Pinhal.
Dando continuidade à discussão referente á questão da igualdade e das diferenças entre
mulheres e homens quanto ao desempenho de seus papéis sociais na esfera pública e no espaço
doméstico, destaca-se a contribuição dos estudos sobre mulheres indígenas de Iraildes Caldas
Torres (2007) e Azelene Kaingáng (2012).
Analisando o trabalho artesanal de mulheres indígenas ticunas na região amazônica, Torres
observou que “homens e mulheres desempenham papéis sociais baseados em valores mitológicos
que constituem o seu acervo cultural” (TORRES, 2007, 470). Todo o trabalho artesanal das
mulheres está ligado ao simbolismo do grupo e aos rituais de passagem de meninas e meninos à
idade adulta.
A moça só estará apta para casar quando souber fazer vários objetos e prendas domésticas,
pois para ser digna de ter um marido bom caçador uma mulher deve saber fabricar uma
louça de qualidade para cozinhar e servir sua caça. Nenhum homem desposaria uma moça
que não saiba fazer nada, considerando que mulheres incapazes de fazer louça seriam
criaturas malditas. Além da mulher saber tratar o peixe, cozinhar e lidar com os encargos da
casa [...]. Também o menino é submetido a esse processo de aprendizagem, já que para
assumir o compromisso matrimonial, ele deve primeiro saber fazer um mapa para pescar,
caçar e se apropriar de todo serviço reservado aos homens. (TORRES, 2007, 469-470)

O exemplo dos ticunas reforça a ideia do simbolismo na cultura indígena que orienta a
divisão sexual dos papéis de homens e mulheres. Nas terras indígenas do Paraná, entre os povos
kaingáng e guarani os papéis sexuais estão bem definidos, principalmente no que cabe à mulher em
relação à educação dos filhos.
Quando se fala em educação, é importante separar a educação indígena da educação
escolar indígena. A educação indígena é responsabilidade da família e da comunidade. A
mãe inicia o processo de aprendizagem do filho; é ela que dá ao filho as primeiras noções
de identidade e de pertencimento. Essa relação especial começa durante a amamentação,
quando a mãe fala as primeiras palavras kaingáng, que, aos poucos, se torna familiar aos
ouvidos do bebê até que este comece a falar a língua de seu grupo.
[...]. A formação da pessoa e da personalidade indígena, enfim, é responsabilidade da mãe.
Quando a mãe não cumpre com esse papel, é como se ela não tivesse dado conta de ser
mãe. Já o pai e toda a coletividade passam à criança as noções sobre os ritos, a organização
política e social de seu povo e o que pode e o que não pode na vida coletiva. (KAINGÁNG,
2012, 412)

Quanto ao poder político, entre no povo kaingáng, por ser “patrilinear (quem dá a
identidade ao filho é o pai)”, a liderança é masculina.
Assim, entre nós, a liderança política tradicional, com raríssimas exceções, é sempre
exercida pelos homens nas aldeias. A autoridade máxima é uma figura masculina e não uma
mulher, embora as mulheres, desde sempre, enfrentem mais diretamente os problemas que
envolvem a saúde, a segurança alimentar e a responsabilidade pela educação dos filhos.
(KAINGÁNG, 2012, 411)
Em relação aos povos tupis “quem tem o poder, pelo menos historicamente, são as mulheres,
porque eles são matrilineares (quem dá a identidade ao filho é a mãe)” (Kaingáng, 2012, 411). Entre
os tupis, as mulheres têm assumido a liderança como cacique, a exemplo da aldeia guarani ou
também denominada de Comunidade do Pinhal, no município de Espigão Alto, Paraná.

Algumas experiências

A partir da década de 1980, observa-se um crescimento significativo da participação política


feminina, porém no campo prevalece a aceitação da suposta inferioridade das mulheres, orientada
pela divisão sexual do trabalho tanto no espaço doméstico como na comunidade, o que tende a
provocar a desvalorização do trabalho realizado pelas mulheres. A análise das atividades
desenvolvidas no Território mostra que as mulheres assumem tripla jornada de trabalho: produtivo,
reprodutivo e comunitário, sendo o trabalho reprodutivo e comunitário caracterizado como papel
tradicional mulheres.
Algumas iniciativas têm sido implementadas na região para reverter esse processo de
marginalização das mulheres do campo. A Escola de Mulheres coordenada por um coletivo dos
movimentos sociais tem se tornado referência no debate e na formação das mulheres do campo,
tanto em termos formação política como capacitação para o trabalho. Entenda-se formação política
no sentido de estudos, debates e discussões sobre questões de gênero que envolve as mulheres em
todos os aspectos de suas vidas: trabalho doméstico e “produtivo”, família, reprodução, saúde, lazer,
educação, comunidade, participação política na esfera pública – poder local e movimentos sociais.
Criada em 2006, atualmente a Escola de Mulheres conta com uma equipe coordenada por
uma ONG, o CEAGRO (Centro de Desenvolvimento Sustentável e Capacitação em Agroecologia).
Compõe a equipe dirigente os MST – Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra, o MPA –
Movimento dos Pequenos Agricultores e mulheres indígenas. O MST e o MPA integram a Via
Campesina. Não há na região a organização do Movimento de Mulheres Camponesas – MMC,
movimento de caráter mais autônomo e problematizador das questões de gênero. Nesse caso, quem
tem assumido este perfil é a Escola de Mulheres.
Conforme Paulilo (2004) é preciso observar as diferenças significativas dos movimentos e
como as mulheres e as questões de gênero se inserem nesses espaços. No MST e MPA “enfatizam
as questões de classe, sendo as mulheres parte dessa classe”. Quanto aos movimentos autônomos,
estes “se dedicam mais às questões de gênero, no sentido de dar prioridade ao que preocupa as
mulheres no seu dia a dia” (PAULILO, 2004, 239-240).
Nos movimentos que colocam a luta de classes em primeiro lugar, o modelo de participação
política é machista. O discurso da igualdade de gênero é consenso, mas não se discute quão
desigual é essa igualdade, na medida em que se cobra das mulheres um comportamento
masculino e elas acabam por incorporá-lo, sentindo-se culpadas quando não conseguem
segui-lo à risca. [...] Os militantes reconhecem a participação majoritária masculina, mas
atribuem isso ao fato de que é preciso mais tempo para mudar costumes antigos.
(PAULILO, 2004, 239-242).

Seguindo os argumentos de Paulilo, tanto o MST como o MPA na região têm um perfil
voltado mais às lutas de classe, mas com a Escola de Mulheres, oriunda desses movimentos,
percebe-se a tentativa de abrir espaços para a inclusão dos debates e discussões de gênero. Os
relatórios das atividades desenvolvidas pela Escola apontam para isto.
A dinâmica mobilizadora das mulheres do campo no Território da Cantuquiriguaçu iniciou
com ideia de aproveitar os encontros festivos realizados no dia 8 de março em celebração
ao Dia Internacional da Mulher - organizados pelas instituições municipais, e torná-lo um
dia de luta com caráter de formação, cujo objetivo é o de mobilizar as mulheres dos mais
variados espaços sociais em torno da construção de um projeto popular, que paute as reais
necessidades e tenha como bandeira de luta a permanente busca de igualdade e equidade de
condições entre homens e mulheres. Nesta lógica os encontros têm sido realizados desde
2006, o primeiro encontro aconteceu no município de Cantagalo com as discussões
voltadas para saúde da mulher. No ano seguinte o evento foi realizado no município de
Nova Laranjeiras. Em 2008 o encontro se desenvolveu no município de Goioxim, tendo
como tema “Água”. A quarta edição do evento se realizou no município de Porto Barreiro,
tendo como tema “Sementes”. O quinto encontro aconteceu no Município de Rio Bonito do
Iguaçu, na oportunidade foi discutindo o tema “Sementes”. No ano de 2011 o encontro
aconteceu no Município de Marquinho, este encontro teve como tema “Mulheres dizem não
ao agrotóxico e sim à vida”. O evento de 2012 foi sediado no Assentamento 8 de Junho em
Laranjeiras do Sul, com o tema “Organização produtiva”, seu viés foi destacar as atividades
coletivas e cooperativas visando o desenvolvimento local pelas famílias rurais e redução
dos índices de êxodo rural, diversificação das atividades produtivas para que se tornem auto
sustentáveis.

O último encontro de mulheres foi realizado no município de Quedas do Iguaçu com a


temática sobre a organizaçao produtiva para mulheres decorrente das experiências em torno de
políticas de desenvolvimento rural sustentável em nível local e regional. Em todos os eventos a
Escola de Mulheres se fez presente e tem influenciado na indicação dos temas para os eventos do
dia 8 de março.
Conforme Carla Loop (2012) a proposta da Escola de Mulheres surgiu a partir de uma
demanda do CONDETEC (Conselho de Desenvolvimento do Território Cantuquiriguaçu) com o
objetivo de consolidar um espaço de qualificação das lideranças do sexo feminino do campo e da
cidade no Território. Além do CONDETEC, em relação ao campo, a Via Campesina percebeu
também a necessidade ampliar os espaços de atuação da mulher, para isto realizou um pré-encontro
no município do Rio Bonito do Iguaçu. Este encontro deu origem à primeira comissão organizadora
para o evento do dia 8 de março. Com a realização de uma mística envolvendo “o simbolismo da
mulher camponesa”, foi definido nas discussões, a pauta permanente para os movimentos sociais e
para as mulheres: “agroecologia, violência contra mulher, código florestal, agrotóxicos e reforma
agrária”. Temas posteriormente incorporados pela Escola de Mulheres.
Os objetivos da Escola seguem as diretrizes nacionais do MST que consistem em:
- Desenvolver um espaço para formação política de mulheres, com intuito de estimular a
participação em espaços decisórios nos conselhos comunitários, municipais e territoriais,
bem como movimentos sociais existentes na sociedade local.
- Articular um espaço possível de reproduzir lideranças que se tornem instrumentos
permanentes na base das comunidades.
- Reforçar o momento escola como referência no setor de gênero do MST.
- Criar um espaço de intercâmbio de saberes prático.
- Consolidar um espaço de capacitação nas diversas áreas de atividades produtivas.

Quanto às ações em torno da proposta de capacitação profissional das mulheres do campo, a


Escola conta a assistência técnica do CEAGRO que realiza cursos sobre “empreendedorismo;
culinária, panificação, aproveitamentos; artesanatos; jovem aprendiz; mulher atual: autoestima;
agronegócio, pequenos negócios; produção orgânica e capacitação para o trabalho fora do campo”.
Todos os cursos estão voltados à geração de renda e modernização do trabalho no campo. A
Universidade Federal, aos poucos se insere nesta realidade da mulher do campo e já vem
desenvolvendo alguns projetos de extensão7 que objetivam tanto a formação em torno das questões
de gênero como a capacitação profissional das mulheres.
Além das mulheres camponesas militantes do MST e do MPA que compõe a equipe da
escola, há o grupo das mulheres indígenas. Ainda não há na região um movimento organizado das
mulheres indígenas, mas aos poucos elas vão se politizando em torno das questões que envolvem a
realidade da mulher e do povo indígena. Em outubro de 2011 com a realização do “I Seminário
Qualidade de vida na Terra Indígena Rio das Cobras”, a Universidade Federal se propôs a ouvir as
demandas das comunidades indígenas, dentre as quais estão a melhoria da produção de peixes,
abelhas e do cultivo de milho e feijão. Porém, na ocasião, as mulheres indígenas apontaram outras
necessidades, mais voltadas à família, à produção/comercialização do artesanato e à questão da
violência sexual. Em relação à família apontaram as dificuldades de acesso a serviços de qualidade
na saúde pública materna e infantil e acesso à creche. Na questão da produção/comercialização do
artesanato apontaram a necessidade de qualificação e apoio dos governos locais à implementação de
postos de venda dos produtos. Mas o que mais chamou atenção foi a questão da violência sexual,

7
Proposta de extensão aprovada no PROEXT 2013, intitulada “Apoio à ações organizativas de integração
social e produtiva para mulheres do Território da Cidadania Cantuquiriguaçu”.
sofrida por adultas e crianças, que veio em tom de denúncia. Neste aspecto, a Escola de Mulheres
vem discutindo a questão da violência contra a mulher, tema do último curso realizado em
dezembro de 2012. A violência contra mulher indígena tem se colocado como um grande desafio
político, tanto para a Escola como para os projetos desenvolvidos pela Universidade nas terras
indígenas. Há muito que fazer.

Conclusões

O presente artigo contemplou parcialmente a análise proposta pelos objetivos iniciais:


identificar as formas de organização comunitária e da produção rural e verificar como se
estabelecem as relações de gênero nos espaços políticos comunitários. Quanto ao primeiro, observa-
se que o momento presente exige que mulheres e homens criem novas oportunidades e formas de
trabalho socialmente reinventadas e autossustentáveis, de modo a ressignificar o sentido de trabalho
produtivo. Desafio para os estudos e pesquisas de gênero na região.
O segundo objetivo, abordou somente as experiências de organizações das mulheres
existentes nesta região do Paraná e que são recentíssimas, comparado a outros estados em que há
mulheres atuando como dirigentes dos movimentos sociais, sejam eles mistos ou autônomos, o que
configura na prática a efetivação da igualdade e do reconhecimento político das diferenças de
gênero. Como a proposta do texto é o de lançar um olhar que intersecciona gênero, raça, etnia,
classe e sexo no campo dos estudos feministas sobre as mulheres rurais/camponesas no Brasil, o
que aqui foi tratado é apenas um esboço de estudos sobre tão ambicioso projeto.

Referências

BONI, Valdete. Poder e igualdade: as relações de gênero entre sindicalistas rurais de Chapecó,
Santa Catarina. Revista Estudos Feministas. Florianópolis: CFH/CCE/UFSC, vol. 12, n.1, 2004, p.
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BRUMER, Anita. Gênero e agricultura: a situação da mulher na agricultura do Rio Grande do Sul.
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Women in rural contexts: experiences and theories

Astract: The text aims to analyze how rural women organize themselves in farming production,
politic and community life. By rural women it means not only the rural workers, but women at
quilombola communites, faxinalenses and indigenous. The geopolitical space of the analysis is
limited to rural communities, indian reserves and agrarian reform settlements of the Territory of
Citizenship Cantuquiriguaçu - state of Paraná. The objectives of the analysis are to identify the
forms of community organization and rural production and see how they settle gender relations in
the community political spaces. Women testimonies about their experiences in the world of
production and community life are analyzed based on the feminist debates of equality and political
recognition of gender differences, and also on the social movements theory. This text provides a
glimpse that intersects gender, race, ethnicity, class and sex in the field of feminist studies on
rural/peasant women in Brazil.

Keywords: Gender. Peasant Women. Experiences. Social Theory.

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