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Ossos do ofício geracional

— Mamã, vamos passar a ter aulas online. Já não vamos à faculdade.


— I mhaka muni svosvi? (Que foi agora?)
— A faculdade kuni ma casos (Há pessoas que testaram positivo na faculdade).
— Mamano... Lesvi ké? (E agora?)
— Tenho que ter aulas a partir de casa.
— Awuhlayile (Já tinhas dito).
— Okay, n'wananga (Está bem, filha).
Silêncio repentino. Entretanto, Teresa mantinha-se ali, parada, olhando para a
mãe que, sem se aperceber da gravidade da situação, se punha a cortar, à juliana, alguns
dos diversos ingredientes para a refeição do dia. Acabava de chegar do mercado
Xikheleni, onde pratica a sua actividade de vendedeira de verduras, entre outros
legumes e produtos de cozinha como sal empacotado, caldo, óleo, amendoim... 
— Assim, estás à espera de quê? — Vituperava em XiChangana. 
— Mamã, aula online... Telefone?
— Vakithi! (Céus!), passei do tio Dimande deixar para arranjarem, vali (dizem
(que)) se estragou "thatchu", os lucro desta semana deixei lá, n'wananga. Lesvi uni
vonako lani, "nho ndzundza hi marhaku" (Minha filha, assim que me vês aqui, estou
sem dinheiro), nem sareju. 
— Mas mãe, todo o lucro? 
— Mas, há muinto tempo uni kombelako "thatchu" wakona para ma aula (Mas,
há muito tempo que me pedes “touch”... )
Teresa reclamava, porém, não tinha o que dizer. Sentia pena da mãe, mas,
igualmente, precisava de um dispositivo para aceder às aulas e fazer pesquisas rápidas. 
— Está bem, mamã.
Teresa é uma rapariga alta, forte, de cabelos curtos, à carapinha, olhos castanhos
e maçãs do rosto bem salientes, salientando igualmente aquela beleza dos makuwas
como o pai. É estudante de Direito. É muito reservada e dedicada à escola,
diferentemente de muitas raparigas da sua idade, daquele bairro muito famoso da zona
sul, Mafalala. 
Via um dos seus direitos a lhe serem concedidos, entretanto, à maneira da mãe
que, sem apoio de ninguém, também porque era viúva, devia dar à filha, pelo menos
educação, coisa que ela não pudera ter de seus pais. É assim, a gente pode não ter tido
tudo, mas, aos nossos descendentes, sempre quer e deve dar tudo, até o que nunca
pensou em dar. São, eles, o nosso orgulho, os nossos representantes, o nosso futuro.
— Lesvi, n'wananga, ama "megagaites" yakona? 
— Mamã, "Me-ga-bai-te"! — sentenciava a futura Jurista. 
— Svolesvo! (Isso mesmo), upfa ugwira hi Xilungo xamina (até gingas com o
meu Português). — Obviamente! Como dizia, embora por uma instrução formal esta
mãe viúva não tivesse passado, concedia à sua filha tudo e mais alguma coisa que não
tivera quando criança. 
— Eich!, mamã, falei com o tio Pedro, disse que há-de ver. Na semana passada,
quando eu usava o telefone emprestado da Tânia, os megas de um mês que, depois de
dois meses tio Pedro a prometer comprar, antes de nem um mês fechar, acabaram.
Acho que fazia só duas semanas, mamã. 
— Está bem, minha filha. Mas eu já disse p'ra não fazer barulho tio Pedro.
Mina ni preferira hingadi (prefiro que não comamos), do que andar fazer barulho
alguém por causa de pedir ajuda. Está bem que i tio waku (é teu tio), mas não vamos
lhe fazer barulho, né?
— Sim, mamã, eu sei. Mas, mamã, só de hoje, acaba de dizer que o lucro desta
semana usou para mandar arranjar o telefone que vou passar a usar. Mamã já se
sacrifica com as propinas, comida daqui de casa, água, luz, sem querer falar de outras
despesas minhas da faculdade. E agora a internet está cara. Não sei como vai ser, mas
vamos gastar muito!
— Svita lunga, n'wananga (Vai dar tudo certo, minha filha), vou comprar
vintinha todos os dias p'ra ti. 
— Mamã, vintinha não vai ajudar. Megas, como disse aquela senhora à
Miramar, «voam parece vião»... 
— Então, minha filha, só posso pedir me diantarem Xitiki, para pagar esse
"interneto" aí de diamante. Kasi hayi mil? (Afinal não é mil?) 
— É, mamã, mas... 
— Mas o quê, você também? 
— É que... 
— É que yini? (É que o quê?) 
— Mamã, há uma Lei que vai entrar em vigor já... 
— Mavó (vejam), a sangulekile ni ma Lei yayena... (Começou com as suas
Leis...), a escola ha hakela, kambe hayivona (Pagamos a faculdade, mas, também
sofremos com o conhecimento que lá se adquire) nkama ni nkama (a toda a hora) Lei,
barra dois mil, dois mil e dezoito... — Reclamava a mãe da Teresa, achando que se
estava para entrar numa sessão de esclarecimentos de questões legislativas, como Teresa
gostava de fazer com a mãe — trocar as coisas em quinhentas a ponto de lhe fazer
compreender as Leis, incluindo o Decreto do Conselho de Ministros, devido à Pandemia
da Covid-19 que, naquela altura, era muito mal interpretado e, por consequência disso,
alguns Agentes da Polícia da República de Moçambique se aproveitavam da situação
para violar os Direitos Humanos.
— Não é isso, mãe.
— Ina... Hlaya ká (Sim... diz, então).
— Aqueles pacotes, aquelas recargas de mil para frente já não vão existir,
aqueles bónus que muitas operadoras davam já não vão dar, o INCM vai impedir as
operadoras de vender e promover esse tipo de bónus.
— Hã? INCM? Mabónus?
— Mamã, INCM é uma instituição do Estado que trabalha com essas
operadoras, comunicação, televisões, rádios... 
— Hã?! 
— Mamã, a recarga de mil já não vai existir, os megas já não vão ser como
dantes.
— Yuh, assim, vamos comprar dejinhas, cinquentinhas, centinhas, pouco a
pouco, até ter "megagaites" que aguentem as aulas, né?
— Exactamente!
— Mamano... Nifasekile mina waka Nhantsumbo (Mamã... Estou "lascada" eu
da família Nhantsumbo).
— Mas mamã, está a insultar mesmo?
— Ha... Nitakala ninga rhuki ni nyuzi leyo? (Como não insultar com essa
novidade?)
— Mamã não muda!
— Não muda svayini? (Não muda o quê?), nhova mpahla? (sou roupa?) Nita
yinya kwini male ya siku ni siku para kuxava "mamegagaites" yakona? (Onde irei
cagar o dinheiro diário para comprar megas?) — Enquanto isso, Teresa anuía com a
mãe, pois sabia do sacrifício que ela fazia por si, para pagar as propinas, o chapa (ida e
volta) à faculdade, as fichas que, devido ao curso que fazia, não eram poucas, os
manuais, Códigos de diversas áreas, às vezes, roupa, para que a filha fosse sempre
asseada à faculdade e, por ser mulher, até pensos higiénicos, afinal, era filha única, de
dezessete anos, desempregada, de pai makuwa e mãe machangana. 

Teresa era órfã de pai. Este foi vítima de uma bala perdida, cujo baleamento foi
perpetrado por um agente do SERNIC no Bairro Central, onde Raul Silvério, pai da
Teresa, trabalhava como segurança e o caso, misteriosamente, não teve desfecho. 

Como forma de trazer, um dia, justiça àquele e a outros casos similares, Teresa
decidira cursar Direito na maior universidade do país, após terminar a décima e segunda
classe, mesmo em meio às condições pelas quais passava. Curiosamente, os tempos
incumbiam-se de, cada vez mais, agravar as exigências…

Por Carlos da Graça

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