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Kant - teoria do conhecimento

A síntese entre racionalismo e empirismo


Prof. José Renato Salatiel, Especial para a Página 3, Revista Pedagogia & Comunicação

O filósofo alemão Immanuel Kant responde à questão de como é possível o conhecimento


afirmando o papel constitutivo de mundo pelo sujeito transcendental, isto é, o sujeito que possui as
condições de possibilidade da experiência. O que equivale a responder: "o conhecimento é possível porque
o homem possui faculdades que o tornam possível". Com isso, o filósofo passa a investigar a razão e seus
limites, ao invés de investigar como deve ser o mundo para que se possa conhecê-lo, como a filosofia havia
feito até então.
Mas quais são exatamente, segundo Kant, estas faculdades ou formas a priori no homem que o
permitem conhecer a realidade ou, em outros termos, o que são essas tais condições de possibilidade da
experiência? Em Kant, há duas principais fontes de conhecimento no sujeito:

A sensibilidade, por meio da qual os objetos são dados na intuição.


O entendimento, por meio do qual os objetos são pensados nos conceitos.

Vejamos o que ele quer dizer com isso, começando pela intuição. Na primeira divisão da Crítica da
Razão Pura, a "Doutrina Transcendental dos Elementos", a primeira parte é intitulada "Estética
Transcendental" (estética, aqui, não diz respeito a uma teoria do gosto ou do belo, mas a uma teoria da
sensibilidade). Nela, Kant define sensibilidade como o modo receptivo - passivo - pelo qual somos afetados
pelos objetos, e intuição, a maneira direta de nos referirmos aos objetos. Funciona assim: tenho uma
multiplicidade de sensações dos objetos do mundo, como cor, cheiro, calor, textura, etc. Estas sensações
são o que podemos chamar de matéria do fenômeno, ou seja, o conteúdo da experiência. Mas para que
todas estas impressões tenham algum sentido e entrem no campo do cognoscível (daquilo que se pode
conhecer), elas precisam, em primeiro lugar, serem colocadas em formas a priori da intuição, que são o
espaço e o tempo.
Estas formas puras da intuição surgem antes de qualquer representação mental do objeto; antes
que se possa pensar a palavra "cadeira", a cadeira deve ser apresentada, recebida, na forma a priori do
espaço e do tempo. Este é o primeiro passo para que se possa conhecer algo.
Assim, apreendemos daqui duas coisas: primeiro, o conhecimento só é possível se os objetos da
experiência forem dados no espaço e no tempo; e, segundo, espaço e tempo são propriedades subjetivas,
isto é, atributos do sujeito e não do mundo (da coisa-em-si).
Espaço e tempo Espaço é a forma do sentido externo; e tempo, do sentido interno. Isto é, os objetos
externos se apresentam em uma forma espacial; e os internos, em uma forma temporal.
Como Kant prova isso? Pense em uma cadeira em um espaço qualquer, por exemplo, em uma sala
de aula vazia. Agora, mentalmente, retire esta cadeira da sala de aula. O que sobra? O espaço vazio. Agora
tente fazer contrário, retirar o espaço vazio e deixar só a cadeira. Não dá, a menos que sua cadeira fique
flutuando em uma dimensão extraterrena.
E o tempo? Ele é minha percepção interna. Só posso conceber a existência de um "eu" estando em
relação a um passado e a um futuro. Só concebemos as coisas no tempo, em um antes, um agora e um
depois. Voltemos ao exercício mental anterior: podemos eliminar a cadeira do tempo - ela foi destruída, não
existe mais. Porém, não posso eliminar o tempo da cadeira - eu sempre a penso em uma duração, antes ou
depois.
A conclusão é de que é impossível conhecer os objetos externos sem ordená-los em uma forma
espacial - e de que nossa percepção interna destes mesmos objetos fica impossível sem uma forma
temporal. Além disso, espaço e tempo preexistem como faculdades do sujeito – e, portanto, são a priori e
universais - quando eliminamos os objetos da experiência.
Por isso, segundo Kant, espaço e tempo são atributos do sujeito e condições de possibilidade de
qualquer experiência.

As categorias
Na segunda parte da "Doutrina Transcendental dos Elementos", a "Analítica Transcendental", Kant
analisa os conceitos puros a priori do entendimento, pelos quais representamos o objeto. Vamos rever o
esquema do conhecimento, antes de avançar. Temos objetos no mundo, que só podemos conhecer como
fenômenos, isto é, na medida em que aparecem para o sujeito. Fora do sujeito, como coisa-em-si, estão
fora do alcance da razão.
Mas, para serem fenômenos, estas coisas precisam, antes de tudo, aparecer no espaço e tempo,
que são faculdades do sujeito. Vejo uma árvore. Esta árvore eu vejo em suas cores e formas, que são as
sensações deste objeto. Estas sensações são recebidas e organizadas pela intuição no espaço e no tempo.
Esta é a primeira condição para o conhecimento.
O segundo momento, depois de o sujeito receber o objeto na intuição, na sensibilidade, pela
faculdade do entendimento ele reunirá estas intuições em conceitos, como, por exemplo, "Árvore" ou "A
árvore é verde". Esta é a segunda condição para o conhecimento.
Os conceitos básicos são chamados de categorias, que são representações que reúnem o múltiplo
das intuições sensíveis. As categorias, em Kant, são 12:

1. Quantidade: Unidade, Pluralidade e Totalidade.


2. Qualidade: Realidade, Negação e Limitação.
3. Relação: Substância, Causalidade e Comunidade.
4. Modalidade: Possibilidade, Existência e Necessidade.

São formas vazias, a serem preenchidas pelos fenômenos. Os fenômenos, por outro lado, só
podem ser pensados dentro das categorias.
Em Hume, a causalidade - relação de causa e efeito - era um hábito, uma ilusão. Já para Kant,
Hume estava errado em procurar a causalidade na Natureza. Só podemos pensar as coisas em uma
relação de causa e efeito porque a causalidade está no sujeito, não no mundo. Uma criança vê uma bola
sendo arremessada (causa) e olha na direção de quem atirou a bola (efeito). Como a criança liga um fato
com o outro? Porque ela possui, a priori, a categoria de causalidade, que a permite conhecer.
Chegamos, portanto, a uma síntese que Kant faz entre racionalismo e empirismo. Sem o conteúdo
da experiência, dados na intuição, os pensamentos são vazios de mundo (racionalismo); por outro lado,
sem os conceitos, eles não têm nenhum sentido para nós (empirismo). Ou, nas palavras de Kant: "Sem
sensibilidade nenhum objeto nos seria dado, e sem entendimento nenhum seria pensado. Pensamentos
sem conteúdo são vazios, intuições sem conceitos são cegas."

Considerações finais
É um lugar-comum dizer que Kant é um divisor de águas na filosofia, mas é verdade. O sistema
kantiano foi contestado pelos filósofos posteriores. No entanto, suas teorias estão na raiz das principais
correntes da filosofia moderna, da fenomenologia e existencialismo à filosofia analítica e pragmatismo. Por
esta razão, sua leitura é obrigatória para quem se interessa pela história do pensamento moderno.

Sugestões de leitura
A Crítica da Razão Pura foi traduzida para o português e publicada pela Editora Abril, na coleção
"Os Pensadores", e pela editora portuguesa Calouste Gulbenkian. Ambas são recomendadas. É de grande
ajuda, para o domínio do vocabulário kantiano, o Dicionário Kant (Jorge Zahar Editor), de Howard Caygill.
Também da Jorge Zahar, o livro Kant & A Crítica da Razão Pura, de Vinicius Figueiredo, propõe introduzir o
leitor nessa obra densa e de difícil leitura

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