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Universidade Estadual de Campinas – Unicamp

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH


Programa de Pós Graduação em Antropologia Social – PPGAS
Trabalho de Conclusão de Curso de Antropologia da Violência, 2º Sem. - 2019
Profª Drª Susana Branco Durão
Lucas Antonio dos Anjos Nascimento

Espaços de segregação e espaços segregados


Introdução
Em Osasco, entre o final dos anos 1990 e 2000, tornou-se prodiminante a construção de
condomínios residenciais verticalizados no Centro da cidade. A cidade estava em processo de
recuperação da sua economia, passada a crise econômica que prejudicou a cidade entre as décadas
de 1980 e 1990 durante os governos Collor e Fernando Henrique Cardoso. Com efeito dessa crise
os galpões industriais se deslocaram para outras cidades, barateando seus custos de produção, ao
passo que esses terrenos passaram por um processo de especulação imobiliária na sua geração de
valor.
Os condomínios residenciais verticalizados, shoppings centers e redes de comércio
internacionais (hipermercados, fast-foods, etc) ocuparam as áreas desses antigos terrenos e plantas
industriais. Com efeito, há uma circulação e consumo diferente de mercadorias na região do Centro
da cidade. Da mesmaa forma que alteram a circulação e o consumo, alteram também a produção.
Nestes condomínios, shoppings, hipermercados, etc., circulam pessoas a fim de lazer, moradia,
trabalho, comércio, etc., de diferentes classes sociais, produzindo, circulando e consuminndo as
mercadorias produzida pelo setor de serviços.
O objetivo desse ensaio é realizar uma breve reflexão dos muros no Centro de Osasco.
Parto da reflexão da Teresa Caldeira (2001), que compreende nos muros uma nova forma de
segregação social na cidade, para refletir sobre a relação entre os muros e os indivíduos na
formação desses espaços sociais, a partir da leitura de Henri Lefebvre (2006).

Os muros e espaços de segregação


Teresa Caldeira (2000) observa no cotidiano urbano de São Paulo, a partir da década de
1980, uma terceira forma de segregação espacial, sobreposta ao padrão de diferenciação social
centro- periferia, e instrumentalizado através dos
(…) “enclaves fortificados”. Trata-se de espaços privatizados, fechados e monitorados para
residência, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime
violento. Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a esfera pública
tradicional das ruas para os pobres, os “marginalizados” e os sem-teto. (CALDEIRA, 2000
p.211).

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A autora parte dos projetos político-econômicos na cidade de São Paulo a partir da década
de 1930, tal como a participação e ação por parte da sociedade civil na disputa e conquista por
demandas sobre o tema da habitação, além da constatação da expansão das periferias de São Paulo,
motivadas pelas relações entre sociedade civil (empresários e trabalhadores) e sociedade política na
implementação e modernização da infraestrutura da cidade – rodoviária, de transportes,
fornecimento de água, luz e recolhimento de esgoto, entre outros. Segunda Caldeira (2000) o padrão
de desenvolvimento da cidade até os anos 1940 segui o modelo de segregação “centro-periferia”
(p.218). Através dessas relações e desenvolvimento de infraestrutura urbana, Teresa observou que a
partir da década de 1980 a cidade já assumia uma outra configuração espacial de segregação, sem a
extinção ou superação do padrão “centro-periferia”, dado o avanço de investimentos destinados às
classes média e classes altas em direção as regiões mais afastadas do centro, a partir da década de
1970, motivadas pela expansão urbano industrial do período, cujo centro da cidade permaneceu em
posse das elites econômicas.
Com efeito, entre as décadas de 1980 e 1999, as fronteiras se estabeleceram através dos
muros dos condomínios, que segregam e reformulam a dinâmica social do espaço nas cidades, a
partir da privatização dos espaços em lugares distantes do centro da cidade: distritos pobres, com
marcas indicadores sociais (como renda média, serviços de infraestrutura, etc) baixos em relação ao
centro. Dados estes movimentos, a consequência disso se dá com o aumento de concentração de
riquezas nessas regiões, dado o deslocamento contínuo de classes médias e altas à regiões afastadas
do centro (CALDEIRA, 2000 pp.240-2).
Os fatores que levaram a essa segregação espacial como nova forma de produção de espaços
na cidade foram o medo da violência, ou do crime violento, que apresentou-se no “cotidiano”
paulistano em consequência da crise econômica e do aumento da segregação social e espacial.
Nesse sentido, as classes médios buscaram dentro dos “enclaves fortificados” uma ressignificação
da vida urbana, segregadas dos pobres e do crime violento (CALDEIRA, 2001, p. 35-40).
Caldeira analisa que as condições urbanas do período, motivadas por questões político-
econômicas, mobilizou um novo cotidiano na cidade. A partir da “narrativa do crime”, os munícipes
tanto constestavam sua condição de segurança – reforçando esterióripos e preconceitos contra
potenciais perigos – como também produziam espaços para circulação onde se sentissem seguros.
Os muros não operam apenas a seguranção da classe média que sofre com o medo da
violência, mas também distinguem espaços de segregação social e distinção. Dentro dos muros,
como afirma Caldeira (2001, p. 43, p. 69-73), os moradores orientados pela “narrativa do crime”
também se diferenciam dos pobres (nordestisnos, negros, bandidos, etc.) através de seu consumo
enclausurado, que atende às necessidades dessa classe para além da segurança, mas também a partir

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da “aparência e do estilo”, fatores dispensáveis aos pobre. O efeito prático desse consumo
enclausurado é de separar os grupos sociais e manter “cada um no lugar que lhe é “próprio””.
Sendo assim entende-se que os condomínios (shoppings centers e outros enclaves
fortificados) em Osasco, construídos no Centro, seriam espaços de segregação social, com função
de circulação e moradia para as classes médias, mantendo-os em segurança do crime violento e
distantes da classe baixa. Assim sendo, seriam lugares de grupos sociais dominantes, no qual os
grupos dominados são segregados desses espaços pelos dispositivos de segurança mobilizados pelos
enclaves fortificados.

Espaços segregados e seus muros


Henri Lefbvre (2006) pousa para entender a dinâmica da cidade sob a teoria marxista,
partindo dessa perspectiva de acumulação flexível do setor de serviços, mas reavaliando alguns dos
conceitos dessa tradição. Apesar das propostas de distanciamento, ou rompimento teórico do
marxismo para o entendimento das cidades e a dinâmica de produção dos seus espaços, Lefebvre
parte deles se propondo a contar uma história desses espaços (2006, p. 9).
Para contar essa história não contada se faz necessário realocar a categoria “espaço” dentro
da teoria marxista, pois segundo Lefebvre a concepção do espaço ou suas funções não são
estabelecidos na relação “base – estrutura – superestrutura”, argumentando que
o espaço entra nas forças produtivas, na divisão do trabalho; ele tem relações com a
propriedade, isso é claro. Com as trocas, com as instituições, a cultura, o saber. Ele se
vende, se compra; ele tem valor de troca e valor de uso. Portanto, ele não se situa a tal ou
tais “níveis”, “planos” classicamente distinguidos e hierarquizados. (LEFEBVRE, 2006 p.
11).

Descolando o espaço para outra categoria de análise, Lefebvre posiciona-o num impasse
teórico: se os espaços tanto produzem, quanto são produzidos, qual a dinâmica da sua formação?
Como se estabelecem as relações do espaço - enquanto posição (estratégica), forma, função ou
divisão física - na organização das cidades divididas em classes sociais? A sua proposta
metodológica é a de observar os espaços sociais a partir de um olhar tríplice 1: “a prática do espaço,
representação do espaço e espaço de representação” - corporificados como “o percebido, o
concebido e o vivido” (LEFEBVRE, 2006, p. 67-8).
Neste sentido, a prática do espaço diz respeito às ações dos sujeitos nas suas práticas
cotidianas e suas relações com a “realidade urbana (os percursos e redes ligando os lugares do
trabalho, da vida “privada”, dos lazeres)”; enquanto a representação do espaço seriam os espaços

1 Há também um propósito filosófico e metodológico na escolha da “tríplice análise”, cujo argumento é


resumidamente que o “binarismo” de ideias, como chave da dialética elaborada por Hegel e Marx, sucumbiu às
complexidades analíticas de seu tempo e tem limites para complexidade da atualidade (LEFEBVRE, 2006, p. 66-8).

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idealizados para alguma forma ou função, e percebidos pelos sujeitos como tal; ao passo que os
espaços de representação seriam os espaços vividos pelos sujeitos e, através de suas
representações artísticas ou através do seu uso cotidiano por grupos de sujeitos, adquiririam
simbolicamente a representação dos sujeitos (LEFEBVRE, p. 67-9). Ainda sobre a produção dos
espaços, Lefebvre (2006, p. 68 - 71) compreende que a representação dos espaços seriam objetivas,
mas nem sempre tem sentido definido e as perspectivas para representação dos espaços são
abstratas, com certeza, pois as representações do espaço entram na prática social e política;
as relações estabelecidas entre os objetos e as pessoas no espaço representado dependem de
uma lógica [capitalista] que os faz, cedo ou tarde, explodir porque são incoerentes [e] os
espaços de representação (…) penetrados de imaginário e de simbolismo, eles têm por
origem a história, primeiramente de um povo e, posteriormente, a cada indivíduo
pertencente a este povo.
Em suma, no sistema capitalista, os espaços são produzidos através da relação exposta pela tríplice
análise, adquirindo forma (como a estética, arquitetura ou disposição espacial) associada
diretamente a uma função (produção de mercadorias, circulação de bens, moradia, logística, etc),
lidas dentro de uma estrutura social, política, econômica e cultural, sujeitas às ações do tempo e
subjetividades humanas.
O fato de Lefebvre considerar a ação dos sujeitos para a formação desses espaços passa pelo
entendimento que as formas de relação global e seus novos “modos de vida” dependem do
indivíduo e, portanto, de seu corpo, em experimentação cotidiana com o percebido, o concebido e o
vivido. Logo, o corpo pode ser lido como um espaço, mas de ordem privada, passível de ser lido a
partir da “tríplice análise” e que transita por esses espaços sociais dotando-os de sentido material e
simbólico em seus usos cotidianos, assim como o próprio corpo (ou indivíduo) é produzido e dotado
de sentido conforme transita nesses diferentes espaços. Da mesma forma a casa pode ser tomada
como um espaço da ordem privada. A distinção entre a ordem privada e pública seria abstrata,
dependendo das relações adotadas pelos indivíduos na interpretação de um “espaço sensorial e o
espaço social”2.
Partindo dessa lógica, os muros nada mais são do que objetos para a segregação dos
espaços, inclusos na lógica de proução e circulação de mercadorias. Mas os espaços são
significados a partir das relações simbólicas cotidianos dos sujeitos para a geração de valor desses
espaços. Nesse sentido, os “enclaves fortificados” são lidos como espaços com “forma, função e
estrutura”, o qual os sujeitos transitam significando-os como espaços de trabalho, de lazer, de
moradia ou de segregação a partir da sua prática do espaço, das representações do espaço e dos

2 Para um aprofundamento maior destes termos, recomenda-se a leitura de Lefebvre (2006), p. 285-340, e Gottidiener
(2010), Cap. 5 - “Além da Economia Política Marxista, a fórmula da trindade e a análise do espaço”.

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espaços de representação, experienciadas pelos sujeitos a partir do concebido, o percebido e o
vivido.

Muros no Centro
Partindo para a reflexão dos muros no Centro de Osasco pode-se ter 3 entendimentos: o
primeiro é que são objetos para orientar a divisão dos espaços; o segundo é que os muros não
geram, de fato, segregações, pois nestes “enclaves fortificados” circulam indivíduos de diversas
camadas sociais e, por último, os muros são uma decisão política-econômica, pois tanto orientarão a
lógica dos espaços, como orientam sua lógica privatista.
Nos condomínios, nos shoppings centers, ou em outros estabelecimentos, a lógica de
segregação social geradas pelos muros cai por terra ao considerar que ai circulam pessoas pobres,
de classe média, com ocupam simbólicamente diferentes um do outro esses espaços através das suas
experiências. Não trata-se de desconsiderar os muros, pois eles são matéria presente: trata-se de
fazer uma leitura dos muros nas suas relações simbólicas com os sujeitos, produtores de valor
desses espaços a partir de suas relações cotidianas. Ou seja: um muro, um enclave fortificado, pode
situar um espaço de segregação social – como um espaço de representação, por exemplo – mas o
que de fato vai determinar são as relações e disputas políticas e econômicas entre as classes sociais
na disposição desses espaços.
O que mobiliza, portanto, a construção de muros na cidade não é mais (ou “apenas”) a
“narrativa do crime”, mas uma nova forma de produção e consumo, orientada pelas novas
dinâmicas capitalitstas, que por sua vez se estabelecem culturalmente na dinâmica urbana
reorientando a disposição de seus espaço, e sendo orientada pela produção simbólica cotidiana.

Bibliografia

BONDUKI, Raquel e BONDUKI, Nabil. Periferia da Grande São Paulo: reprodução da


casa como expediente da reprodução da força de trabalho. in MARICATO, Ermínia. A
produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. Editora Alfa-Omega, 1982 2ed.. p.
117-155
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São Paulo. Editora 34, 2001.
HARVEY, David. Justiça Social e a Cidade. Editora HUCITEC, São Paulo, 1980. Trad.:
Armando Corrêa da Silva.
______________. Produção Capitalista Do Espaço. São Paulo: Loyola, 2001.

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______________. Condição Pós-Moderna. 13ª. São Paulo: Loyola, 2008.

ENGELS, F. e Marx K. - The city, the division of labor and the emergence of capitalism.
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GOTTDIENER, Mark. The social production of urban space. University of Texas Press,
2010.
LEFEBVRE, Henri. A ilusão urbanística. In: A revolução Urbana. Editora UFMG: Belo
Horizonte, 2004, p. 139-150.
________________. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins
(do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000). Primeira versão:
início – fev. 2006
MAGNANI, José Guilherme Cantor et al. De perto e de dentro: notas para uma
etnografia urbana. Revista brasileira de ciências sociais, v. 17, n. 49, p. 11-29, 2002.

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