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ARTE
FORMA E PERSONATIDADE
3 Estudos
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Mário Pedrosa
ARTE
FORMA E PERSONAIIDADE
3 Estudos
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cor-EçÃo TRAços
Conrtlho E.lllorlrl!
Celso Fernando Favargtto
Francisco Foot Hardmân
JoBé Resende
José Mlgu€l Wlsnlk
João LaÍetá
OtÍliâ Beetrlz Flori Aranlos
DADOS DA EOIçÃO
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Sâo Paulo SP
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lmpresso no Brasll
L
TNDICE
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Prefácio (Otília F. Arantes)
FORMA E PERSONALIDADE
Modelo Interior Versus Modelo Exterior . . . . . 87
O Mundo Fisionômico e o Fenômêno Artístico 90
Paralelismos Psíquicos e Formais 100
Inspiração e Irucura no Passado 103
Forma, no Doente e no São . 106
Os Veículos de Express6o 110
A lntuição Criadora em Ação 113
1. AiDé Patri, "Entretien avec Atlan", in Paru, maio de 1948' p' 53'
Citado no ensaio aqui publicado: Fotma e Personalidade'
2. Conta Mário Pedrosa que r€correu naquole momêÍlto a um amigo seu
que morava nos EUA o economista alemão Cunter Reiman - para
-
lhe enviar tudo o que encontresse por lá, dos mestres dâ Gestah' ll ettío
ún, ,"rto* haviam sido traduzidos para o espanhol, podendo ser localizados
aqui no Brasil.
3. Salvo o texto rarissimo de Koffka, citado por Mário Pedrosa: The
Problems in the Psychology ol Art (rpÍase a.Áo n9. Bry.n Mawr Sympooium'
nu p""".yi*"i", rsfõ), áada de mais sidemático havia sido publicado'
O primeiá livro "Ã
dc Arnheim (um dos maiorcs psicólogos ds arte, de orientação
geitático) sobre o assunto Afi and Visual Perception data de 1954'
- -
2
I
tlgobém para o debate, sempÍe atual, seja sobre a natureza da expe-
riência- artística, seja sobre o estatuto de uma psicologia da Arte, pe-
dimos-lhe que nos autorizasse a publicação, à quaf acrescentamos,
por sugestão sua, .um ensaio imediatamente posterior Forma e
Personalid.ade a -
cuja problemática é semelhante, mas onde certas
-
posições são nuançadas ou aprofundadas. De acordo com Mário
Pedrosa, os dois escritos são complementares. .Segue-se um panorana
da Pintura Moderna, mais ou menos da mesmã época, s ilustrando
as- correspondências e as imbricações entre o aparato crítico e a expe-
riência estética do autor.
l-
( fisionômicas ) que comandariam as reações afetivas do espectador'
ü", *" as propriedades emotivas the são inerentes, a arte só
tem a capacidad-e de comover poÍque também, de outÍo lado, as
leis estruturais que a goveÍnam àpliCam-se ao campo cognitivo e fi-
siológico a 'fuoa forma" estende-se ao sistema nervoso' às estru-
-
turai perceptivas, a todo organismo ou à realidade física (Koehler) '
Há, põrtanio, um parentescõ de formas, ou uma homologia perfeita
entrá sujeito e objêto, que toÍna inócua a oposição tradicional sub-
jetividade/objetividade.
Um proúlema, contudo, permanece: o da. especificidade da expe-
riência artística. Ora, se uma Estética da Fornia a bem dizer inexistia,
é bem verdade que os teóricos da Gestalt tomaram sempÍe a aÍte. como
modelo: Ehrenfels, no ensaio que deu o nome à escola, partia das
estruturas melódicas para pensár a forma como totalidâde; a per-
cepção primitiva passôu a ier denominada artística por Koffka e os
dem-ais,'dada a süa capacidade de se organizar da melhor maneira
nas côndições dadas; e todos eles assumiam como vai notar
-
-da
inteÍpretação globàüzadora iealidade em oposição à visão anali
tica àa ciénciai Mas se uma estética aí implícita se deixava adivinhar,
necessitava ainda ser questionada, além de formulada. A função do
teórico da aÍte não poderia ser, obviamente, a de percorrer o ca-
minho inverso ao dô psic6logo, tentando aplicar os esquemas da
Gestalt às obras, mas a de propor uma discussão metoclológica muito
mais radical que Pusesse em questão os próprios fundamentos da teo-
ia gestáltica: a legitimidade do modelo primeiro, ao mesmo tempo
que a especificidade ou não da arte. Algumas das peÍguntas que se
colocam: A lei da "boa forma" autoriza a identificação entÍe as Íe-
presentações primitivas e artísticas? A criação artística está sujeita
à mesmâ inexorabilidade e objetividade das leis estÍuturais? Ou ain-
da: Por que precisamos de arte se a percepção já é artística e se a arte
é governãda pelos mesmos princípios que norteiam as experiências
primáriaq e não elaboradas?
Mário Pedrosa responde a estas questões atribuindo à arte uma
função duplamente corretiva: ela é úma espécie de retilicador da
perõepção primeira, seletivo, respeitoso da espontaneidade desta, po-
ié. duoAo-me uma estruturâ "idtalmente perfeita"; ao mesmo tempo
ela não permite o desvio do sentido original da percepção formal
primitiva, desembaraçando-a de todo associacionismo mecânico e cul-
iural. Já na Introdução à tese, Mário Pedrosa refere-se ao paren-
tesco entre as impressões estéticas e as impressões primeiras em seu
sincretismo, e conclui que aquelas perdem sua pureza e sua força
expressiva quando esse sentimento do objeto se "mareia" devido a
prõocupações analíticas ou significativas de outra ordem. A arte deve
ôomorôr-nos sem a mediação do intelecto. Assim, à medida que
)
',
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I
I
6
tahiana, formas fortes, prenhes naturalmente de predominância figural.
Mas- as de.padrões menos organizados, de maioi oscilação de pãrtes,
ou de ambivalência marcada na relação figura-fundo nãó são pàr issó
mais facilmente descartáveis que as outrai na visão do artistã. pode
verificar-se até o contrário, que a sua ambigüidade mesma seja um
elemento de atração a mais.,, s Entretanto, íegundo Mário pedrosa,
obedecendo a lma lógtca da visão, .,a rica amb-ivalência dos símboloi
presen_tativos" (S. Langer)e acabaria por se cristalizar em formas
articuladas; -para
.r'm "impulso insopitável,' a estruturação (Waren_
dock) to _sujeitaria todo o material fragmãntário, os elementos amorfos
ou_as alucinações a uma organizaçãó da quai, apesar da complexi-
dade e das alternâncias, podõm dar o. gestôkic'os. A
expeflencla ou o sentimento estético"orrtu "Áquà.u,
é a intuição das estruturas for_
mais, é a percepção dentro da qual as .enruç6e, se disciplinam e se
fundem.
É o que. o fará sempre reticente às tendências ..informais" na
arte. Primeiramente quanto à designação que the parece extremamente
rmpropna. Ele escreve a propósito, num artigo de 1959: ,.Forma é o
elem.ento. primeiro de toda percepção e sem ela não se poderia dis-
cernir coisa alguma, mormente numa tela que, apesar âos pesares,
ainda se destina a ser vista. Forma nâo quei dizef apenas a iegutar,
a geométrica, a forte, no sentido gestaltiino. Mancha é, aliás, ã pri-
meira das fo-rmas que se vêem e que se estudam nas experiênôias
perceptivas. da Gestalt, pois mancha é o que de mais elementar e pri_'
meiro se destaca do fundo. O que se pode dizer, com precisão, é
que a_pintura tachista atual é umã pintuia de predominânôia do fún-
do sobre a figura." 11 Mas a desconfiança do 'crítico vai mais além,
envolve esse tipo mesmo de arte, de .,efeitos cacofônicos,', ,.sem ca-
dência e sem direção preferencial,,. pollock, Kline, Maúieu (este
último já de maneira extremada) são tidos por ele como fenômenos
muito atuais e frutos da crise da ciülização contemporânea; perma_
necem, entretanto, talvez por isso mesmo, muito distantes de uma
criação artísticâ puÍa: sacrificam as preocupações plásticas a pro_
jeções narcisistas, fantasias, interesses indiviàuáis,
uliá, b.- póu.o
artísticos, de ordem moral ou utilitária. ls para Mário pedroia os
tachistas teriam parado, em sua maioria, na primeira fase do processo
criativo o da projeção enquanto o aio de pintar deveria con-
- -,
8. Ibid., pp. 66167.
9. Ibid., p. 70.
10 lbid., p. 67,
2t "Do Inlormal e seus equívocol,, it op. cit., p 34
12 "Da abstração à auto-expressão,,, in op. cit., p 3E
7
sistir justamente'na passagem deste primeiro estágio (comp191o ) fala
um ségundo, de "simplifiõação e cristalização da expressão". A fór-
múa ãdotada por elê é a seguinte: trata-se de "uma sucessão ede
passagens que vãi da projeção à simplificação via complexidade"'18 1a
CoeÍentemente, Mário Pedrosa vai privilegiar na AÍe Moderna
as formas mais depuradas. Apesar de sua grande perceptividade ao
novo, nunca abandonará o critério de objetividade e é justâmente
em nome desta que suas preferências irão mais no sentido da pintura
constmtivista e concretista, ou daquelas obras das quais se pode
falar de "ideações puras ou desnudas, sem compromissos ou insus-
peitadas" (Kandins§, Klee, Malevitch, Mondrian, Delaunay, Boc-
cioni). 15
13 . Ibid., w. 36117 .
14. A posiçáo de Mário Pedrosa acaba afastando'se bastante da de
Ehrenzweig, preocupado sobretudo em prooeder a uma crítica radical de
toda teori; gãstáIticà da arte, Pois esta não leva em conta a percepção de
profundidadJ (irteiÍamente diversa da de superfície), não permite que o olho
;divague", tolhe a apreensão das formas suPerPostas e da inaÚiculação
enquanto tal os glissandos, as vibralos apreensíveis somente num
estado difuso de - consCiência. Náo que uma técnica-, livte de Gestalt coÍrstitua
por si só a arte, mas é fundamental a participação da "mente profunda",
Àimbolizada nestê mesma técnica. Para Ehrenzweig a crítica da redução do
estético âos esquemas de superfície acompanha a da "ilusão de exterioridade"
que proi€ta a origem do sentimento estético do mundo interior para
-o mundo físico. SegunÀo ele, "a experiência emocional na arte não depende
da estrutura do objeto extemo da arte, mas é tleterminada Pela luta entre
o movimento da iorma inconsciente e a reação do super-Ego". Assim
também a pregnância da forma ou a "boa forma", enfim o prazer estético
ligado ao bilo (ao simples e harmonioso), é resultado da ação oragnizadora
e repressora dos proceisos secundários sobre o conteúdo simbólico próprio
aos impulsos primários; é fruto antes da cultura do que o invg156 - 65
"sentimêntos eitéticos" servem ao super'Ego contra a pressão exelcida pela
percepção do inconsciente (mais livre e indiferenciada entre os primitivos). O
esforço da arte contemporânea é de novamente romPer com as estrutuÍas
rígidãs dos processos secundários e com a superfície gestáltica para revelar
ai criações ãutornáticas da "mente profunda". O surrealismo e o tachismo
váo neite sontido, €mbora o super-Ego acabe por reagir ao mais violento
dos ataques de modo a constituir uma textura espessa e rígida no lugar, por
exemplol das "cortinas móveis" de Pollock (seus seguidores, tentando copiá-lo,
cristaiizaram suas soluçóes, tirandoJhe a força disruPtora e transformando a
action-painting num "eitilo histórico", em detrimento dos componentes cria'
tivos, óriginaii, incodificáveis). (Cf . The Psychoanalysis ol Artistic Vision and
Hearing e The Hidden Oder of Art.)
15 . Mário Pedrosa, op. cit., p. 40-
8
vez ele enfrentará o conflito da Gestalt e de todas as teorias de inspi-
ração-.fenomenológica com aquelas referidas à tradrção lingüística e,
-como,
em
_úlitma instância, com a Teoria da Informação. Assim ao
abrir uma brecha para o inconsciente, embora insistindo sobre a
irredutibilidade da Forma, Mário Pedrosa concede um lugar ao en-
foque psicqnalítico, sem atribuir à Informática o privilégiõ da abor-
dagem, fornece-lhe também um espaço, à medidá que ?la expressa
um conflito aberto nos limites do próprio homem, nàs seus prõprios
sólios perceptivos. Cômo diz ele, á aite moderna se debate, mêsmo
sem o saber, nos vértices da inlormação e da expressão. Torna-se
necessário averiguar quais as estruturas globais, tõtais, que podem
permanecer intactas, exprimindo o domíniô do inteligível, quando os
nossos campos peÍceptivos se dilatam sempre mais na busõa de um
marco inatingível de uma percepção exausii ra. por quanto tempo a
percepção estética poderá ainda fundar-se nos afinai arcaicos'fun_
damentos da experiência primeira? 16
()
I I
10
acentuam mais o desenho do que a reprodução literal, apresentando
efeitos de formas, qualidades de linhas e superfícies, comLinações de
massa, que são desconhecidas da tradição grega" (esta, naturalista).
Apesar da insuficiência, ou mesmo do caráter discutível do esque-
ma de oposições de Worringer, em que se move Mário pedrosá, o
grande mérito.'desta pequena história está em conseguir uma inter-
pretaçào unitária para .a pintura contemporânea, especialmente do
pré-guerra. A diretriz é dada pela tendência única de autonomização
crescente das formas plásticas, pela busca da pureza estética, que teria
chegacto
.ao seu apogeu com Kandinsky, Mondrian, parcialmente Klee
ou.Boccioni, Malevitch, Max Bill, Môholy-Nagy. Sã com isto a his-
tória daquele meio século ganha coerênci ã, taliéz seja em detrimento
de uma compreensão de certos movimentos, de inegável relevo; assim,
pgr exemplo, a importância do expressionismo do grupo Die Brücke
é_ minimizada por discrepar dessi vocação básica-da pintura deste
século. "tendência subjetiva", ,,explosão animista,,, .ivolta à nar-
ração" -cara,cterizá:1o-iam, em oposição ao Blau Reiter, de preocupa-
ções mais "formalistas".
. O objetivo de um "panorama" como esse não é, contudo, o de
darlma úsão exaustiva, nem de distribuir quinhões idênticos às cha-
madas escolas, mas o de reconstituir ou meimo recoÍtar de uma ma-
neira coerente um período da história da arte, dando-lhe inteligibili-
dade. É apenas um ponto de vista, mas que ie mostra bastanie su-
gestivo e se concretiza num dos raros texios que traçam um esboço
da pintura da primeira metade do século, tãd fino quanto didáticô.
Ponto de vista da arte ou do crítico? Talvez seja este um falso
dilema. É difícil dissociar os dois o ponto de vistá da história e o
de quem .a naüa -...- e certamente- corremos menos riscos quando o
autor lem como preceito a objetividade. Mesmo vindo a sofier algu_
mas alterações, as escolhas teóricas básicas de Mário pedrosa já esia_
vam quase todas fixadas desde sua tese de 1949.
l1
DA NATURTZA AFTTIVA DA TORMA
NA OBRA DI ARTT
rNTRODr,rçÃO
A EXPERIÊNCIA PRIMEIRA
O problema da apreensão do objeto pelos sentidos é o problema
número um do conhecimento humano. A primeira aquisição cientÊ
fica, a primeira aquisição filosófica e a primeira aquisiçãc éstética es-
tão reunidas de início no nosso poder de perceber as coisas peios sen-
tidos. O primeiro olhar do homem contém enr si, em germà, todo o
futuro. de civilização. Em que consiste esta apreensão do objeto
pela visão?-sua
Em distinguir lá fora uma dada estrutúra. Tudo no mun-
do-está aí para ser visto, ouvido, cheirado, tocado, sentido, percebido,
enfim. Esta é a experiência imediata. Sobre ela o homem construiu
os impérios, edificou seus monumentos, oÍganizou a vida, elaborou a
ciência, inventou as religiões com os seus ãeuses, criou a arte.
._Do ápice dessas realizações imensas, o homem tende a esqueceÍ
a célula, a base humilde de todas essas conquistas e nraravilÉas, a
pergepção.
Psta,
já a primeira, é, na criança, bástante complexa. r Um
edifício rudimentar, mas um edifício. Suas partes se inteidependem,
inseparáveis de um todo. É uma forma. Nó primeiro dia dà nasci-
mento as crianças já fazem uma distinção capital. percebeÍn um ,poÍto
luminoso na escuridão. O mundo não se- lhes apresenta confusa-
mente como um caos, um emaranhado difuso de sensações, mas .antes
como um campo delimitado, sobre o gual se destaca nma figura. E
tudo se organiz-a com essa estÍutura.
12
A particularidade de nossos olhos, de nosÉos sentidos, é segre-
gar os o-bletos que os estimulam segundo.um padrão, ulna organização
áediata óu imeãiata. O processo fisiológico resultante de um conjunto
de excitações tende a organizar-se espontaneamente, conforme certas
leis da esirutura, independentemente de quaisquer fatores Precedentes'
Essa organização espontânea de formas não se dá em virtude de nos-
sos conhecimentos.
A impressão primeira que se tem das coisas e dos objetos é assim
de ordem global. Com ser subjetiva, atua sobre nós como um todo.
Vem por isso mesmo antes como um choque, uma revelação, do que
como uma sucessão de sensações isoladas e progressivas, como numa
demonstração paulatina. Daí seu caráter súbito; é antes um instantâ-
neo que temos das coisas e de suas relações. É a isto que os psicó-
logos chamam de percepção global sincrética.
Os animais e a criança não têm outro pÍocesso de distinguir e
conhecer as coisas. O sincretismo é o modo de conhecimento deles.
Essas impressões primeiras constituem, já o disse Koffka, o alicerce
da impressão estéiica. A arte se funda sobre elas, e perde- sua- força
expresiiva, sua pureza, quando essa percepção sincrética global, esse
sentimento primiiro do ôbjeto se mareia. Como? Mesclada .de preo-
cupações anãlíticas ou significativas de outra ordem: exigências exter-
naÀ, didáticas, científicas, intelectuais, morais, religiosas, práticas etc.,
a arte deixa de ser fim para ser meio.
Há uma variedade infinita dessas impressões, todas qualitativa-
mente distintas, em graus de semelhança que não vão até a identidade
mas também ãife.ença entre as próprias partes. O psicólogo
"om
francês Paul Guillaume reconhece a freqüência com que a percepção
estética respeita ou procura Íeencontrar essas impressões globais'
2
13
está imersa nas oÍigens e de que a ciência aspira a emancipaÍ-se, a
arte lhe restaura o valor".3 O aspecto sensível dos objetos é o que
antes de tudo seduz o artista. As conceDÇões e crenças que temos
sobre as coisas podem, sem dúvida, influir na própria pGiEêplãõlNão
t se isola o aspecto sensível dos objetos para considerar o saber e as
idéias preconcebidas relativamente aos mesmos, senão à medida que
estão em condições de agir secundarinmen e sobÍe aquele aspecto
r sensível.
Para a psicologia funcional, a percepção é precedida de um ato
virtual de reconhecimento. n A idéia de conhecimento deixa de ser
autônoma, sem relação com a vida e a açáo. Sua organização peÍcep-
tiva refletiria a de um ato. Cabe então explicaÍ preliminarmente esta
organização do ato. Seria uma organização silenciosa ou manifesta,
de um reflexo ou de um ato voluntário. Não basta, entÍetanto, veri-
ficar que a organização apaÍece na reação. Esta não faz mais do
que prolongar a excitação nascida ao nível dos órgãos Íeceptores,
sob a influência de agentes externos.
O problema da nutrição em Biologia tem certa analogia com re-
gistrar o simples fato: o ser vivo assimila alimentos. Para o psicó-
logo, porém, essa função levanta um problema: Como é possível essa
assimilação? De que maneira o alimento, por sua própria qualidade
química, determina as relações assimiladoras? Koffka e outÍos, ao
analisar a emoção estética em face do reconhecimento da obra de
arte, no fundo levantam a mesma questão. A teória da Einlühlung
procura resolvê-la, vendo também um ato funcional do sujeito no
reconhecimento estético. O problema da assimilação do alimento é
análogo ao do conhecimento ou reconhecimento do objeto. A Teoria
da Forma, segundo P. Guillaume, procuÍa compreender a possibili-
dade do ato na l.eoúa funcional. Liga-o antes, porém, por meio de
uma causalidade física inteligível, tanto às propriedades gerais do orga-
nismo como à ação específica de um excitante complexo. 6
14
Na teoria da EinÍühlung, o ato é manifesto no sentido do cria-
rlor, do artista. Tudo parte de nós, de nossas emoções e movimentos,
sendo a emoção estética uma experiência puramente subjetiva. O
objeto é passivo. A teoria gestaltiana não padece desse subjetivismo
extÍemo da teoria funcional. Não estando apaÍente o ato, leduz-se a
um suposto esquenra motor cerebral, inacessível. Nesse caso, que
outro testemunho da organização do processo cerebral resta, senão a
própria percepção?
Na hipótese, percepção .e ato não se sepaÍam. O prolongamento
afetivo e motor da excitação condiciona o processo psicológico total,
pelo menos em certos casos. Guillaume não vê incompatibilidade nas
duas teorias, a da percepção como substituto da ação física, uma
ação cerebral, virtual em face do objeto, s e a da organização psico-
física.de um todo. E com razão. Toda adaptação modifica no ser vivo
o efeito da ação que o mundo exterior tende a exercer sobre ele.
Assim, constitui-se um mundo exteÍioÍ próprio do sujeito, organizado
conforme as suas necessidades. Tal organização, porém, não se expli-
ca sem a concepção gestaltiana da percgpção. Temos assim de abrir
mão da idéia segundo a qual o pÍocesso nervoso se apÍesenta como
uma sucessão de fases em que a seguinte está presa à precedente, e
não a pode modificar. Devenros, ao contrário, tomá-lo como uma uni-
dade real, uma verdadeira forma física. 7 Assim, uma melodia perde
completamente seu caráter, seu efeito total, com a simples alteração
de uma nota. O acorde perfeito menor só difere, estruturalmente, do
acorde perfeito maior pelo abaixamento de um semitom em uma
de suas notas. O resuitado é radical, e ninguém, nem mesmo um
ouvido deseducado, jamais confundirá um com o outro.
Mas voltemos ao nosso problema.
Contrariamente ao ponto de vista de Rignano, s a percepção do
todo autônomo não é fruto de reações motÍizes e afetivas comuns a
vários objetos que nos intefessam, que nos sáo úteis. Não percebe-
mos nuÍna situação apenas o que nos interessa, o que pode satis-
fazer a uma necessidade. A percepçâ<r não se exaure com sua função
utilitária, a serviço da adaptação biológica, como pretende Rignano.
A repartição e cimentação cias sensações é de origem afetiva. O obje.
to não responde só e exclusivamente .a uma tendência instintiva ou
habitual; e não é em função dessa tendência que ele sobressai como
6. P. Janet, Les débqts de I'inÍelligence, Paris, Flammarion' 1935.
7. P. Guillaume, ob. cit., p. 218.
8. Eugàne Rignano, Prablànes d.e Psychologie et de morale, Paris'
Alcan, 1928 p,279, e Scientis "La Théorie Psychologique de la Forme"
Setembro,- Outubro e Novembro - de 1927 Maio de 192t. Em inglês:
-"The Psychological Theory of Form" The- Psychological Review. 1928.
XXXV, p. I 18-135. -
t5
l
unidade figural. Para Rignano as propriedades formais do obieto se
prendem a essas funções e causas.
Respondendo ao filósofo francês, que assim atacava o funda-
mento da Teoria da Forma, Koehler, e depois de reconhecer a exis-
tência de uma harmonia suficientemente geral entre percepção e
necessidade, considerando-a como expressão da adaptação biológi-
ca, pede provas para cada caso particulaÍ, quando se pretende fazer
depender a organização percepcional da influência das condições afe-
tivas ou interessadas. A segregação dos todos, a impressão global se
dá também Íelativamente a coisas que não se incluem nes atividades
pragmáticas do homem, ou não se ligam às suas necessidades de modo
a dar-lhes satisfação ou levá-las em conta. A unidade e a forma de
uma nuvem, por exemplo, gue vem destacar-se no céu, ou de uma
constelação que se isola como um todo no firmamento tomado de
estrelas, explicar-se-iam também pelas necessidades práticas?
Se certas formas nos lembram as de objetos mais diretamente li-
gados à nossa atividade prática, o fato é então uma conseclüência,
um efeito, e não causa da organização. Por outro lado, um agregado
inorgânico de sensações elementares, uma percepção amorfa, con-
forme a teoria associacionista clássica, não evocariam nenhuma re-
cordação precisa. Em uma noite clara, levantamos a cabeça e incons-
cientemente a nossa percepção destaca algumas ôonstelações que se
agrupâm e se delimitam ao mesmo tempo pelo seu contorno, Se da-
mos significação afetiva a esses todos figurais. isso resulta de fato
anterior: a sua existência preliminar, como objelo sensível. Com
efeito, a significação não explica o fato de tais estrelas, e não ou-
tras, terem sido vistas antes como constituindo um grupo à parte.
A propósito Koehler cita, como exemplos desses todos, os grupos
nórdicos de Cassiopea e Dipper. Em épocas passadas, diz ele, viam-
-se essas constelações como "coexistindo". Hoie em dia, os meninos
não carecem de nenhuma instrução para vê-las como unidades. 10
A percepção estética é, em grande parte. regida por leis de orga-
nização de um modo que pâÍece desinteressado. rr Rignano, ao con-
trário, quer ver a unidade de unra melodia no sentimento que ela
inspira. Ele não explica, porém, como essa unidade é sempre per-
cebida de maneira inalterável, mesmo quando o sentiÍnento do ouvin-
te já não pode ser o que era. Depois de ouvida ininterruptamente, a
melodia perde o encanto, tornando-se muitas vezes uma caceteação.
Mas, podem argumentaÍ, tÍata-se de sentimento musical específico,
9. W. Koehler, Bemerkungen zur Gestslltheorie, Psych. Forsch, YllI,
1928, p 188.
10. W. Koehler, Psicologia de la Forma, B. Aires, Argentina, 1948,
p. 130.
lt. P. Guillaume, ob. cit., p.214
16
inerente a toda estrutura melódica. Que significa, porém, tal expli-
cação? Reconhecer-se, ipso facto, rl.áo seÍ esse mesmo sentimento
simples soma de reações afetivas invariavelmente pÍesâs a cada parte
da melodia (a cada som, intervalo etc. ) . Do contÍário, cada parte é
que passaria a depender de seu lugar e de sua função no complexo so-
noro. Com isso apenas se fez uma transposição muito mais significa-
tiva do ponto de vista estético: deram-se aos próprios sentimentos
os caracteres da forma.
A experiência da melodia ou das nuvens no céu repete-se por
toda a parte. Algumas manchas de cor dispostas irregularmente im-
põem a qualquer pessoa que as olhe como uma organização formal
autônoma obediente às leis figurais, graças à variação sistemática das
tintas e de sua distribuição. De novo, não se pode evocar nem os va-
lores afetivos extras nem as significações adquiridas para se explicar
tal segregação de objetos artificiais, incongrúentes.
t7
I
AS LEIS DA ESTRUTURA
DISTÂNCIA
SEMELHANÇA
Mas há o\tÍÀs maneiras de segregação. Não é só a proximidade
de uma figura ou de um objeto do outro que efetua essas segregações
estnrturais. À semelhança das partes, a identidade das coisas constitui
outro lator de separação percepcional. Há nesse sentido uma série
de experiências, tanto de laboratório como da vida quotidiana, muito
comuns em todos nós se lhes damos atenção.
18
r
I
Os psicólogos das várias escolas da Gestalt; sobretudo, têm feito
nesse sentido urna série de observações com figuras abstratas ou sem
qualquer significação prévia, para mostrar como a semelhança cons-
titui fator espontâneo de organização segregada. São famosas as expe-
riências de Wertheimer, Rubin, Koffka e muitos outros, com pontos,
linhas, círculos etc. Por exemplo: pontos bastante aproximados uns
dos outros tendem a formar linhas. Para que um ponto pertença â
uma linha dada, importa sobretudo que este ponto constitua para a
linha o melhor prolongamento possível, ou a continuação do melhor
movimento. O mesmo se passa com o tom, que ficará pertencendo
a uma sucessão melódica se paÍa isto estiver mais bem colocado do
que outro tom em outro plano.
Essas combinações espontâneas no plano sensorial perceptivo,
que se realizam no homem desde o seu primeiro dia de nascimento,
constituem na realidade as leis fundamentais da forma, essas mesmas
leis que empírica e intuitivamente os artistas vêm aplicando ou de-
senvolvencio desde os primórdios.dô fenômeno artístico. Na forma-
ção de um todo os fatores de proximidade e semelhança podem cho-
car-se; as duas qualidades também p,odem opor-se à tendência de uma
linha a seu prolongamento naturàl, "sem com isso conseguir alterar a
tendência irresistível da linha. 0 efeito desta prevalece, assim, contra
aqueles dois fatores. As leis da psicologia da percepção formplam
assim, nas experiências quotidianas de laboratório, um grande prin-
cípio de morfologia já hoje indiscutível nas teorias estéticas e nas
artes práticas. No conflito possível de lormas, o agrupamento ou a
adjunção obedecem, ao realizarem-se, à tendência à melhor orga-
nizaçào.
Com efeito, a psicologia da percepção nos ensina que sob o
choque de um mosaico de estímulos que impressionam a retina, o
sistema nervoso do organismo desenvolve processos de organização
de maneira que a forma ou o padrão produzido seja o melhor pos-
sível nas condições dadas. Por seu lado, a atividade mental cria, em
contrapartida, os vastos mundos da visão, com que nos defrontamos.
Destarte, cor e lurninosidade, forma e espaço, figura e fundo, local!
zação e movimento são aspectos independentes do padrão organi-
zado, trabalho corriqueiro e quotidiano do estímulo visual.
BOA FORMA
l9
1
ptoveito. "Se o pintor a levar em conta", diz Koffka,2 "verá que o
m(io pelo qual o sistema nervoso desenvolve seus padrões organi-
zados de pÍocesso não é tão diferente do meio pelo qual ele mesmo
pinta seus quadros. A perce, simetria
-+ Ou, expresso diversam en e: eq uilíbrio e simetria são car
perceptivas do mundo visual que se realizarão sempre que as con-
stlcas
20
T
i/
O princípio da boa for.ma é funçáo de uma força coordenadora
interna que prenuncia o dinamismo das mais altas atividades mentâis
no homem. Nada mais errado, porém, do que supor seja a percepção
fruto de atividade intelectual. O poder de coesão, dentro de toda
unidade estrutural, de todo complexo figural, exerce-se interiormente,
graças a forças dinâmicas autônomas que se manifestam pela dialé-
tica do todo e das partes nele integradas e a ele subordinadas. A
percepção não nasce, assim, da necessidade de disciplinar dados caó-
ticos descarregados atabalhoadamente sobre nossos sentidos por expe-
riência anterior, preliminar à percepção. A organização percepcional
não se compara a um chamado urgente à polícia para dominar a
desordem. O mesmo princípio formal encontra-se na física, em que
suas leis se manifestam em muitós fenômenos, como mostrou Koeh-
ler.5 Compare-se, por exemplo, a certas leis físicas que se regem por
um equilíbrio privilegiado, a lei do máximo e do mínimo: uma gota
d'água, em suspenso, num líqúdo de igual densidade, tende para a
forma esférica, isto é, ocupa o maior volume na menor superfície.
Koehler é positivo: "Sempre que um processo se distribú ünami-
camente e se regula por si só, determinado pela situação real em todo
um campo, diz-se que este pÍocesso segue o princípio da teoria da
forma." 6 Em outra ocasião ele reafirma a idéia ainda com maior ni-
tidpz: "O conceito da lorma pode assim ser aplicado para lá dos
limites dos carnpos sensoriais. De acordo com a definição geral da
Gestalt, os processos de aprendizado, de reprodução, do esforço, da
atitude emocional, do pensar, da ação etc, podem ser incluídos como
21
tema da teoria da forma, desde que não consistam de elementos inde-
p."ã"ni"t mai estelam determinaàos numa situação, como um todo"'z
Evidentemente, se a verificação psicológica revela, no campo
p.r""ptiuà mais amplo, o movimento próprio .independente das for-
tnu. not domínios mais variados, encontÍa particulaÍ ênfase no campo
especificamente plástico que é o das artes. A lei psicológica- nos seÍve
paia discernir inieriormente, na realização artística, o segredo do con-
ilito form"l. O mesmo fenômeno se Passa no campo da criação' A arte
consiste em segregaÍ um todo mateiial ou imaginário, o -qual decide
à" .ru. partesideiermina as posições destas e destas ainda recebe os
eflúvios'ou as' pressões nece§sáriás para que o todo seja dotado de
sua qualidade vitat. lá Renan definia a obra de aÍte em teÍmos ges-
taltia'nos: "A condição essencial das criaçóes de arte é que devem
formar um sistema vivo, no qual todas as paÍtes são mutuamente
independentes e relacionadas.; Dentro desse todo se trava, pois,
permanente conflito de tensões e de formas, todas englobadamente
êm busca de equilíbrio, de um estado de repouso equivalente ao mes-
mo dinamismo' sensorial livre, em luta com o material. Nele' como
na psicologia, as exigências da boa forma estão pÍesentes ' No ausência
-regularidade, dá-se uma irresistível tendência à
da simetría ou da
forma. privilegiada, onde se acomodam o todo e suas partes, com -o
máximà de simplicidade e o mínimo de energia concebíveis dentro da
estrutura total. Mach já havia notado que "simetria, independência
em relação ao tempo, mínimo de energias estão quase sempre jun- -
22
/
23
"\
structures est le fait primitif et la perception des qualités (?) absolues est
comme la limite d'effaiement des forúes. La perception des relations enveloppe
celle des qualités. La perception de certaines structures n'est donc pas un acte
synthétiqu; surajouté á des-impressions qui auraient d'abord dans la'conscience
u-ne éxisience indépendante" (b. 287). É pena que o ecletismo do autor não
lhe tenha permitidã maníer-sJ coerente com essa imPortarte verificação que
tirou dos psicólogos da Gestalt, Koehler, Koffka e o francês Guillaume, os
quais cita.- Daí numerosas contradiçõês em que abunda a sua obra, e as
divagações eq)eculativâs e idealistas a que s€ reduz' muitas vezes, a sua
psicologia.
24
Y
FIGURA E FUNDO
DTFERENCIAçÃO lNtCIAL
2s
ó subestimada, A intensidade luminosa, porém, vai crescendo, e en-
tão, na tela, a impressão de superfície começa a precisar -se simul-
taneamente com a da distância istÍa-se um ro esso da Í-
cepÇao Em que consiste? Começam os in uos a perceber uma
prrmerr a diferenciação de textura do papel da tela, ali onde no ins-
tante antenor vl am apenas uma superfície in divisa, homogênea, indife-
renciada. De re pente desenha-se aos olhos dos sujeitos a granulação
típica do papel,
Assim, a erc ão de um ob eto de ende da existência de di e-
re as de intens entr e as múlti las excita
as s o cam o percepç uma s
nos a pressupõe um des nível das excitações. Esse desnível é o for-
necedor da energia necessária à diferenciação do campo. Outras
experiências mostÍaram que diferen de ualidade, não estando
associadas a difere s de intensi e são nesse sent ouco l-
cazes ome eito, figuras colo Íl apresen as contra fundo de
cor muito diferente, mas de igual claridade (medida ao fotômetro),
são muito pouco visíveis. Seus limites são flutuantes. Mas, se mesmo
uma coÍ uniforme é acompanhada de ligeira diferença de grau em
claridade entre a figura e o fundo . isso basta oara psÍqbjliãar..a-r§I-
cg§ão. A diferenciação inicial mostra, pols, que oe nhum ob eto sen- I I
sível se não estiver em rela ao com um "fundo s a Pa-§*.P3L- )
ce
HETEROGENEIDADE DO CAMPO
CLAUSI'RA
Há,uma força rle organização que impele à ordem espacial. É a
, ,
l_el-
,
ou da prenhez da forma. Em todos compactos fe_
fl gtausura
craoos lmpnme-se uma tendência a formar unidades óticas. Em face
de lma situação ótica complexa, o homem pr""üi" a forma
de uni_
dade estável, ou de. relações com o meio menos precárias. Goethe
que uma imagem-segunda ou consecutiva'de um quadrado
:-D^t:-ll?ru
graoualmente se toÍna arredondada, em uma forrna
circulai, embo_
tando-ss-lhe os ângulos. retos. A gota de ág,ru tenàe a adaptar sua
torma à menor superfície.6 Assim também úma upridade ótiôa tende
.l .
Koffka, l eoriu tle lu Lyrur.Í ttt, p. ó0_61.
E. Rubjn, Vísuell u,aht.genontme Fíguren, 7921.
-5.
. 6. Para Sil Iagadis Ch. Bose, a reação mais norável de toda matéria
vrva a qualguer perturbação externa é modi{ical e própria
forma. \)m
27
a formff a clausura mais econômica, segregando-se a si mesma o
mais completamente possível de seus circundantes. Uma área fechada
aparece mais forte, mais estável, do que outra aberta e sem limites.
Nosso espírito preenche psicologicamente os interyalos entre as uni-
dades. Não ceisamos de fabricãr conexões latentes. Ésse fator de
clausura atua também na dimensão plana, gerando a experiência de
formas fechadas constituídas de unidades lineares. Certas conexões
de pontos, linhas, padrões, cores e valores nós as fechamos, psico-
logicamente, em todos bidimensionais ou tridimensionais. A prenhez
é mais importante que os outros fatores de semelhança ou vizinhança.
As leis da organização visual não permitem a uma unidade vi-
sual existir por si masma no plano do quadro. Toda unidade tende a
ultrapassar-se, pedindo todos maiores, seja pela função de seme-
lhantes ou de vizinhos ou pela ambigüidade campal. Assim as uni-
dades não só vivem mas crescem dentro de uma moldura ou de um
quadro. Elas se fundem em um todo vitalizado pelo melhor equilíbrio
dinâmico. Três tons musicais tocados juntos formam um aconteci-
mento novo urn 2s61ds. O caos é-nos intglérável.
*"D O campo - vis.gal em sua qualidade luz é de algum modo hete-
rogcffiãÉtanro, sem t"id"rçu e de uma sdvez que ele se
orgallliza em dois elementos opostos em. uma contra um
Toda imagem se apresenta nesse d smo Co, a unida os
contrários. Uns impulsos se unem num todo visual estável, outros
são largados em estado fluido, inorganizado. Esses servem apenas de
fundo e só por momentos são percebidos.
Na China, já antes da era cristã, tinham os seus sábios o'senti-
mento da vitalidade espacial. "Vazio e oco eis aí palavras e idéias
- é amigo da idéia de
que repugnam aos nossos instintos. Mas Lao-tse
espaço, e faz dela uma boa companheira; ele se absorve nas utili-
zações do vazio. 'Modela-se o barro, fazendo um vaso; a utilidade
deste depende de seu interior oco. Para fazer uma casa, abrem-se
portas e janelas; a utilidade da casa depende dos espaços vazios.
Assim, é o inexistente nas coisas que lhes dá utilidade'." z
28
Os artistas da China acompanharam os seus filósofos no trata-
mento espacial. Assim compreende-se a coragem dos pintores chi
neses e japoneses de deixar amplos claros em suas pinturas de
-
modo a diüdir a superfície de suas telas em iotervalos desiguais.
"Assim, o espaço deixa de ser um muro aterrador e uma parada na
inquirição humana paÍa toÍnar-se a morada do espírito libertado...
o universo é um todo ilimitado. Eis a inspiração da arte da paisagem
chinesa. Eis também o segredo da utilização do vazio no- deSenho
pictórico caracteristicamente chinês." e A função desses espaços é
de, através do plano, arÍastar o olho a movimentos de diferentes ve-
locidades no seguir as relações intermodais, criando assim unidade
pela mais. ampla variação de superfície.
DrssocrAçÃo FIGURA-FUNDO
Fie
29
para fundo. A regularidade leva à figura. Isto se torna visível quando
duas partes de um campo, que _objetivamente não mudam, podem ser
vistas alternadamente, ora figura ora fundo (fig. 1 ) . Vê-se uma
cruz formada de um feixe de diâmetros, destacando-se de um fundo
constituído por setoÍes de círculos concêntricos. A primeira impressão
é de um pseudo-relevo da cruz sobre o fundo. Destacada a figura, o
fundo continua invisível, por baixo dela. Tem-se o sentimento de
que os arcos de círculos continuam por baixo dos quatro setores de
diâmetros, embora na realidade só se vejam uma parte dos círculos,
isto é, os arcos separados pelos diâmetros que limitam a cruz. Os
feixes de diâmetro se apresentam talqualmente são. .
O CARÁTER DO FUNDO
No entanto, fixando-se o modelo durante algum tempo, de Íe-
pente nos defrontamos com algo de novo. Uma figura inesperada
aparece; é outra cnrz que se forma pela combinação dos arcqs con-
cêntricos. Com efeito, a segunda cruz se compõe dos arcos do mo-
delo. É agoÍa a sua vez de dar impressão de relevo, enquanto a
primeira desapareceu como por encanto, passando a fazet o papel de
fundo. Por sua vez, os diâmetros parecem se estender uniforme-
mente sob a segunda figura-cru2. Há aqui, no entanto, uma parti-
cularidade nova: quatÍo dos diâmetros fazem paúe também da fi-
gura úItima, pois constituem os seus contornos. O fundo não tem
contornos próprios. Essas mesmas linhas de contorno, quando de
novo mudarenl os papéis, passam parà a n'ova figura. Sãó, pois, os
contornõs ora de uma ora de outra das cruzes. Assim, a figura tem
forma, o fundo não tem. Não se pode enxergar simultaneamente as
duas cruzes. Ou se vê umâ ou outra. Quando uma âparece, a outra
some. Este é o caráter do fundo: informe, indefinidô, cambiante. s
,4, linha de contorno varia nas suas relações com a figura e com
o fundo. Daí se concluir que deve ter dois lados diferentes, um inte-
30
rior, outro exterioÍ, um que exclui, outro que inclui. Rubin ro mos-
trou que o contorno não é uma entidade separada, mas, na realida-
de, se determina pela natureza da superfície figural a que "pertença".
Se o contorno (ver fig. 2) "pertence" a um campo, é côncavo, con-
forme a designação sugerida por Hornbostel;11 se pertence ao outro, é
convexo. Hartmann 12 dá a respeito um exemplo curioso do fenômeno
relativamente aos líquidos não mescláveis. Examinando-se mais de
perto o contorno, chigou-se a isolar a linha do mesmo. Viu-se que
o caráter de uma linha muda com a figura plana a que "pertencia".
Fis. 2
'10. Rubin, ob. cit.
ll..Hornbostel: "Ueber Optische Inversion". Psych. Forsch., 1921,
r, r 30-36.
12. G. HâÍunann'. Gestolt Psychology, N. York, The Ronald Press, 1935,
p. 28, notâ 31: "Compare this fact with another familiar observation: trf one
pours into a test-tube wâter, mercury, phosphorus, aniline, hexane, and gallium,
six distinct liquid layers are formed. This is a stable system; if the cylinder
is shaken, the layers will again separate. To the lâyman it is astonishing
that six distinct fluids can be found, each of which furnishes so hostile ân
environment to the molecules of the other five that they remain largely
segregated ."
13. Koffka, ob. cit., p.68. Hartmânn, ob. cit., p. 107.
31
-\
32
r
A propósito, Koffka, paÍa pÍovar que elas não são meros atri-
butos nossos, nos tescreve esse excelente exemplo: "um pau, colo-
cado sem utilização sobre o solo, pode ser visto como um pedaço de
madeira que tem peso, mas uma descrição sagaz pode sobrelevar o
fato com pÍestar atenção ao estado de tensão que se deve dar. Fa-
lando em termos mais gerais, um estado de repouso com ausência de
força é diferente de um estado de repouso com equilíbrio de força,
e o mesmo pode dizer-se quanto ao fenômeno. A linha de con-
torno de uma figura desempenha uma função, e esta é uma de suas
propriedades visuais" .ts
Pela psicologia tradicional, as propriedades visuais são assim
simples propriedades nossas. Essa noção apenas servia para colocar
uma venda nos olhos do investigador que, com isso, excluía a pos-
si6ilidade de apreender fatos da maior importância para a compreen-
são do mecanismo percepcional. A descoberta das propriedades dos
contornos, dos fundos ambíguos é uma prova disso. A operação de
conveÍter o convexo em côncavo é mais difícil do que a inversa. A
que atribuir o fato? Segundo Hornbostel, tudo o que olho, o que vi-
gio, ou o que manejo toma posição central diante ds mim, sustém-se,
redobra de fixidez, converte:se em objeto, enquanto o resto retÍo-
cede, esvazia-se, torna-se oco, reduz-§e a fundó.
!'_ Posto que os objêtos me assaltom e venham a mim, explioa
Hornbostel, eles são o que noto e vigio muito mais que os ocos que
se abrem entre eles. Koffka vê nessa descrição o significado positivo
que se pode dar ao conceito de atenção. O exemplo da figura 2 ilus-
tra bem o pensamento do psicólogo. Diante da cruz,- atendendo
à parte negra, adotamos uma atitude-figura para com ela, bonver-
tendo-a em centro de nosso interesse. Áo mesmo tempo, a parte
conveÍtida em figura futa {aru tornar-se o centro de nossa'experiên-
cia. A noção de centro é assim da maior importância e subsiitú o
papel que o vago conceito de atenção exercií na velha maneira psi-
cológica.
os CoMPLEXOS EOUÍVOCOS
33
\
16. 'Qu'elle soit statue isolée, objet d'art ou relief décoratif, qu,elle
se dÍêss€ sur un mru ou suÍ un socle, oute sculpture se détache súr un
fond. Que I'aÍistc le veuille ou noo, qu,il y ait acroid ou désaccord. entre la
soulpture êt le fond, il y a relotion ãntre- anx. Conçue pour un temple ou
pour un paysag€, clle lê complàtc, ellc tcnd à en fairc parüé oü à s,en séparer."
(Baltrusaitis, La Stylistique Ornementale dans la Sãtlpture Romane, 'p. 5.)
35
-l
36
T
37
O movimento plástico envolve as pattes num todo global' O
olhar vai de um estímulo sensorial a outro, e nesse andar tece uma
urdidura que sugere a aÍquitetura musical. Hindemith, por seu lado,
assim desêreve, tÍatando da composição musical, a forma da me'
lodia: "Os grupos de tons harmonicamente ligados em uma melodia
são como oÉ elos de uma corÍente; dão à melodia cor e brilho. São
o verdadeiro corpo da melodia, por estranho que paÍeça falar-se em
corpo a propósitô de um fenômeno linear como é a melodia' É pre-
cisó não esqueceÍ que a melodia só é primaiiamente linear, e que a
comparação com a linha cuÍva apenas é cabível em relação ao asPecto
exteino e mais óbvio de uma cadeia de tons. O fio melódico tem
volume ou espessura onipresente, embora constantemente cam-
biante." zo
38
FORMA E StcNtFtcAçÃo
39
RELAçÃO INALTERÁVEL
' A explicação de experiên cia anteriü do sujeitÓ, quer dizer, de
sua memória, não atende à situação. Koffka, etrtre outÍos, o mo§trou.
A atenção só valeria quando, se tratasse de objetos conhecidos graças
à cadeia ininterrupta de experiências passadas, Nas observações e
experiências aqui já expostaq ümos como o sujeito pode coDcentraÍ
toãa a atençãó sobre o fundo, sem que este perca seu caráter uni-
forme. A atenção, por mais intensa que seja, será impotente para
alterar essa relação. Vejamos, por exemplo, um caso banal. Admita-
-se que a individualização de um chapéu num cabide em corredor
escuro ou de um gato a certa distância no solo se deva ao fato de
longa familiaridade com ambos os objetos. Mas tal admissão não
dispensa a pergunta: onde estão essas experiências passadas? Como
e quando se deram? É uma questão que fica de pé mesmo depois
de admitirmos a individualização de figuras superconhecidas pela fa-
miliaridade com elas. Não se nega que a reprodução de uma per-
cepção com forte unidade natural possa favorecer à constituição de
outra peÍcepção análoga, mas de fraca unidade espontânea. É forçoso
admitirem-se estruturas primitivas. A função organizadora da me-
mória intervém quando se trata de experiência antiga e bem orga-
nizada atuando sobre outra atual, menos bem organizada. A memória
não explica a existência dos objetos. Apenas torna-a implícita. Quan-
do exerce influência sobre a peÍcepção, revive a experiência passada
no que esta tem de comum com a atual. Não é esse elemento comum
que constitui a unidade do objeto neopercebido.
As propriedades intrínsecas do objeto sensível não estão aí; elas,
porém, é que permitiram seu destacar, do fundo, pela percepção que
o ressaltou. O relevo qualitativo em relação ao fundo, a nitidez e con-
tinuidade dos contornos, a simplicidade ou regularidade da forma, e
anteriormente a vizinhança e homogeneidade dos seus elementos, eis o
que sobretudo the deu direito a fazer-se notar à percepção.
O fato de o objeto adquirir significação implica já se tenha ele
afirmado como coisa sensível. Quais foram os pÍotagonistas dessa
ascensão do objeto desconhecido à nossa percepção? Suas proprie-
dades interiores, formais, intrínsecas, já aqui examinadas. A influência
da memória não prevalece contra essas propriedades intrínsecas; não
é ela que otgatiza o objeto em todo separado.
MEMÓRIA E MÁOUINA
VISÂO E SABER
41
titui a natureza mesma do objeto. Uma vez, observa ele, que reco-
nheçamos a aparência externa da coisa, da "forma", muito prova-
velmente nos viramos incontinenti para qualquer outra coisa sem
notÍu a presença de certas relações abstratas por baixo das repre-
sentativas e todo o esforço do artista é em vão. a
-
Ele tem noção dessas relações intrínsecas existentes entre o que
chama de "unidades visuais" de um quadro. Elas se concretizam em
alguns elementos básicos: relações entre formas visíveis, relações
entre as formas e o espaço dentro e em torno delas, relações entre
essas formas e todo o espaço que cai na sua esfera e na do obser-
vador; finalmente, as relações desenvolvidas dentro do observador
em contacto com uma obra de arte. A mais simples e mais evidente
relação entre duas unidades visuais, segundo ele, é a igualdade (rm
dos elementos da organização formal da Gestalt: a semelhança) .
Para ele, ainda, os processos de organização estrutural por meio
de igualdade encontÍam seus limites na sua própria extensão. Mas
verifica que "a chave mais estreitamente Íelacionada à igualdade é
a simetria". De igualdade em igualdade, o pÍocesso termina fatal-
mente na figura simétrica, ou nas igualdades que são completas em
si mesmas. I
Ao lado da simetria, "a mesma similitude é essencialmente in-
completa". Desse caráter incompleto das figuras organizadas por
semelhança nasce a tendência a aproximar-se do completo "e o sen-
timento", explica ele, "que nos obcecara durante todo o processo
torna a sua solução final ainda mais satisfatória". s No fundo, o que
Thurston está tentando formular é a lei da boa forma, embora sua
psicologia associacionista não lhe permita dar ao fenômeno todo o
seu extraordinário alcance no aprofundamento do problema das gê-
neses estruturais, tanto em arte como em psicologia.
42
De qualquer modo, munido embora de clara consciência da auto-
nomia formal, a ponto de reconhecer que o todo criado pelo equi-
líbrio é "imanente em todas as suas partes", e que "se a maior parte
de sua área fosse destruída o pedaço que ficasse ainda seria reco-
nhecível como paÍte de um eqúlíbrio",7 ele cai no eqúvoco inte-
lectualista.
Thurston, na realidade, abandôna suas pÍeocupações com os
elementos estruturais para tentaÍ resolver um problema inexistente.
Apesar de todos os princípios estruturais que teve a pachorra de
desenvolver, acabou fazendo a si mesmo esta pergunta: "Quando
um artista conseguiu finalmente transformar o espaço vazio em parte
integrante de seu desenho, para onde a seguir dirigirá sua atenção?"
E a resposta é inesperada: para a memória. e Por quê? Pela supo-
sição de que não vemos nas aÍtes do espaço de uma só vez. Sempre
que haja up lapso de tempo entÍe a percepção do termo de uma
reação e o outro, a memória preenche o intervalo. Assim, quando
estamos a olhar um quadro, digamos, por cinco ou dez minutos, o
que vemos nele num momento dado depende em larga escala do
que já vimos ali.
Se nos recordamos das experiências no taquitoscópio, à página
41, a influência da memória imediata é visível. No caso das obser-
vações com letras e palavras, tÍata-se de completar pela memória
das experiências adquiridas o que falta à visão inintemrpta do objeto.
Mas mesmo aí as leis da estrutura se impõem; quanto mais bem orga-
nizados e mais nítidos os subtodos da experiência sensorial, tanto
mais perfeita a percepção. É sabido que na leitura ordinária o olho
se desloca em uma série de impulsos, mas somente as pausan são
utilizáveis na visão. Pelo registro fotográfico dos movimentos do
olho, verificou-se que o número de pausas por linha não é bastante
para permitir a formação de imagens centrais distintas se cada letra.
O leitor, porém, não se dá conta dessas diferenças. "Todos esses
resultados implicam que não se lê letra por letÍa; reconhecem-se gru-
pos por alguns detalhes; estes constituem um tecido completado por
uma projeção imaginária inconsciente." s
Agora, Thurston queÍ que se veja uma paÍte do quadro, e se
a guarde na memória; depois outra e mais outra, até o fim de nossa
exploração visual. Para ele, a memória é que decide. Ele que já ha-
via reclamado contra a maneira discplicente e fvgaz com que olha-
mos os objetos de arte, para desespero do artista, quer precisamente
basear sobre o motivo dessa displicência a sua estética. Não distingue
44
argumento. Ninguém que já tenha pintado, desafia ele, hesitaÍá "em
usar efeitos tais como os da figura 4, na qual o equilíbrio em uma
figura e a falta dele na outra são múto mais o produto de nossa
memória, de_ como age a gravidade, do que da estrutura purâmente
geométrica do paúão". t2
Todo o efeito de desequilíbrio
-de é dado, segundo ele, pela me-
mória que temos da força gravidade. Assi-m, sempre que um
retângulo se apresentar apoiando-se assimetricamente sób o-vértice
de um triângulo, como na figura 4, a nossa memória das coisas
em desequilíbrio nos puxa pela perna e nós reagimos ao estímulo.
Tal, porém, não é o caso.
, A mesma figura pode ser vista em outra estrutura, e perder o
poder de nos despertar a menória. O autor esquece-se apenas do
campo geral em que a mesma está organizada. passe-se a segunda
para a esquerda da primeira, de modo que o espaço limitado pelo
lado sem apoio do retângulo fique encerrado dentro dos ladoí do
triângulo- e_ das secções de base dos retângulos, e essa impressão de
d-esequilíbrio desaparecerá. Mas se colocaimos o grupo eà desequi-
líbrio dentro da contextura da figura 5, o sentimenio ãe desequilíbiio
será v_encido sem que a memória tenha contribúdo em naôa para
isso. Não foi o recurso à memória que nos valeu aqui, mas a lei da
c.lausura. Os poderes da memória nem sempre são, pois, ,,extraor-
dinários".
Fig. a
fjs.5
12, Carl Thurston, ob. cit., p. 36
45
mas já caÍregadas de significação. Ele não concebe outra maneira de
perceber as coisas. Daí sua preocupação em atrair a atenção do espec-
tador, despertando suas reminiscências. A contemplação artística trans-
forma-se numa evocação de imagens vistas. Não gosta, entretanto, de
música quem só aprecia as peças ouvidas na mocidade, para da audi.-
ção reavivar recordações do passado. O professor de Chicago não
somente sabe, como está conformado com o fato de os homens só
notarem das formas sua aparência mais comum, indistinta da função
prática dos objetos familiares que as adotam. Ele mesmo dá um exem-
plo de uma figura que na realidade é composta de três segmentos do
mesmo círculo, sendo no entanto imediata e geralmente descartada
como o esboço inacabado de um vaso. E o círculo é, conforme vimos,
a forma mais forte, aquela onde se faz sentir com maior eficácia o
movimento de complementação. Seu exemplo é, por isso mesmo, do
maior valor, para nos dar a prova do artificialismo da visão comum,
inteiramente estereotipada.
Nós não olhamos, não vemos; nós lemos, traduzimos, reprodu-
ámos. Diante do fato o nosso autor resigna-se, procurando ao con-
trário tirar pârtido do vício, agravando-o no domínio precisamente
onde é mais nefasto. Tudo se Íesume para ele em captar a atenção
fugaz do observador. E como a prende? Pela representação de um
objeto natural. Nossa lida variada e prática com o próprio objeto
criou um interesse potencial por sua estrutura e aparência que precisa
apenas ser despertado para tornar-se excitante. O simples fato de
termos passado por cima de suas minúcias lhes dá uma frescura
encantadora "quando afinal nossa atenção cai sobre eles". 1s
"Nossa virtuosidade em reconhecer", diz ele ainda, "torna-se
uma fonte latente de força motriz estética que está apenas esperando
para ser explorada, e a multiplicidade de detalhes em um objeto
passível de inicialmente bloquear a irradiação de qualquer resposta
estética supre-a copiosamente de combustível, uma vez esta lan-
çada". 14 O provecto professor, depois disso, é todo ditirâmbico para
sua própria descoberta, capaz de toÍnar-se, "com alguns aperfeiçoa-
mentos", "a maior invenção na história da arte". 15 Não nos interessa,
porém, o seu entusiasmo, nem se tirou patente pelo invento. Este
é apenas mais um instrumento de conservadorismo artístico. O prazer
estético passa a confundir-se com os prazeres das reminiscências em
família ou uma exposição de formas, em uso ou em desuso, como
um desfilar retÍospectivo de modas.
46
É a sua teoria expressão das mais paradoxais dessa educação
verbal de que padecemos hoje. A impressão que temos das coisas
é terciária, e nos vem indiretamente, já manipulada, através da
memória ou do hábito. Embora deplorasse o fato, tachandorc de
infeliz, pois que, embotada a percepção ingênua primeira, o objeto
entra na série, na classificação das coisas conhecidas, transformado
em conceito vago, sem carne, sem/ interesse, Thurston faz dele a
pedra fundamental de sua estéticar/E, no entanto, foi esse mesmo
homem que, rebatendo os cíticos possíveis do critério por ele ado-
tado de analisar os componentes da obra de arte, começando pelas
figuras mais elementares, mais abstratas e sem significação, escreveu:
"Se as figuras, com que temos de começar, parecem simples demais
para ser consideradas como arte, talvez seja útil lembrar que elas
devem ter parecido radiosas de beleza aos primeiros homens que as
desenharam e fazer yer que vestígios dessa beleza ainda podem ser
novamente apreendidos se as olharmos com bastante intensidade. ..
elas constituem o verdadeiro tronco da árvore de onde as formas
intrincadas e varjadas da arte moderna brotaram, num crescimento
ininterrupto." to1
Ele proclama aqui a importância sem par da experiência pri-
meira quando liúas, formas geométricas rudimentares, surgem ra-
diantes de beleza, ao serem desenhadas pela primeira vez. Assim, é
ele o primeiro a admitir poder estético aos efeitos da imagem da
percepção ingênua inicial. VeliÍicou também que essa mesma emoção
primeira definha, e o que resta das figuras "radiosas" é um conceito
banalizado, geral e frio. No entanto, timbra em buscar a antiga emo-
ção evaporada onde ela não pode estar: em associações automáticas,
do hábito e da superimposição incessante de camadas e mais camadas
de significados estranhos e hostis às propriedades intrínsecas da for-
ma, gntre as quais o seu próprio poder afetivo.
f
/É preciso ver as formas não com o que se sabe, mas com os
sentidos simplesmente. Os olhos, o movimento e o tato participam
da visão. A inteligência é no fenômeno um fator apenas secundário,
poÍ vezes prejudicial, sobretudo em aÍte. Os fenômenos motores,
com efeito, que acompanham a experiência visual têm sua organi-
zação espacial e temporal. Esta, poÍtanto, não pode ser excluída
da ótica e da. acústica. As famosas experiências de Gelb e Goldstein rz
deiam dessa colaboração intersensorial na v.isão demonstração con-
vincente. Elas provaram que lesões graves no centro ótico do cérebro
podem produzir uma espécie de cegueira, embora o doente não esteja
47
pÍivado de visão. O campo visual sofreu alteração profunda; a orga-
nização desapareceu quase por completo, de modo que o campo
oferece caráter mais ou menos caótico.
O doente, fixando a atenção, ê capaz de perceber pequena fração
de uma linha, um desenho, um nome escrito. É, porém, incapaz de
ver todos amplos, com forma bem defin'ida. Para vencer essa inca-
pacidade, instintivamente recorre à experiência motoÍ4. Segue com
ô movimento dos olhos as frações de contornos mais nítidos. Com
o tempo chega a construir todos motores, reconhecê-los. e distingui-los'
Assim-, conségue, seguindo as primeiras letras do próprio nome es-
crito, adivinhàr o resto. Bordem, porém, por cima do nome outros
traços e linhas, não conseguirá mais acompanhar a parte de um
contorno e chegar ao todo, ao resultado final, embora o nome en-
trelaçado nos motivos lineares actescentados esteja facilmente legível
ao observador normal. O paciente tenta acompanhar o contotno de
uma letra, mas logo se desvia, transviado por outras linhas sem
significação que a envolvem ou enlaçam. Não conseguindo nunca ver
o nome oticÀmente dado como um todo, de qualquer modo ainda
o vê agora, porém, como coisa sem significação e, assim, ao
tentar -seguir as linhas que o cnüLam como se fossem de um desenho
à parte, perde-se pelo caminho. Não atina com o§ contornos reais,
e o nome não é percebido em seu significado total. A função motora
que acompanha a vista depende do organismo visual normal, que com-
preende rêgiões extensas de campo. Onde haja apenas frações locais
ão campo em vias ou susceptíveis de organização, o controle da
organização sobre a função motora se faz impossível, nas grandes
áréas. Os resultados são os que vimos. É a explicação que do fenô-
meno dão os experimentadores.
O paciente de Gelb era culto, e sabia recorrer aos instrumentos
intelectuais de interpretação. Precisamente o que ele faz é suprir pela
memória e o raciocínio a precariedade, a insufioiência, a inferioridade
de sua percepção das formas, reduzida às mais sumárias e grosseiras.
No caso do galo (fig. 6), tÍaçâdo em seus contoÍnos apenas,
ele se enganou ao tentar seguir a linha da curvatura superior do
pescoço da ave. Procurou uma forma entÍe o pescoço e a cauda.
Não se orientava corretamente quanto ao que era f,igura e ao que
era fundo. Como se depreende da mesma experiência, sua peÍtur-
bação era na organizaçáo visual das formas. Não se trátava, pois,
das significações adquiridas. Nada mais familiar que um galo. A
primeira funçâo, a organização visual formal, não depende pois da
segunda; é que esta, de ordem aquisitiva, não consegue recon§tituir
a primeira; apenas atenua indiretamente a falha daquela./
Saber e ver, saber conhecer ou ver ou saber ver, são dois pro-
cessos iirdependentes. Para distinguir uma forma, para vê-la, os ele-
48
Fig. 6
49
I
50
FORMA E EXPRESSÃO
51
I
52
tencem a nós mesmos, ao ego, que em psicologia se designam como
terciárias ou fisionômicas. 2
o problema que nos interessa agora consiste em apreender a
existência de propriedades inererltes ao objeto fenomênicó, s organi-
zadas estruturalmente em todos. A obra de arte é o nosso objeto
fenomênico presente. Trata-se (e conhecer as qualidades do seu tódo,
as qualidades formais que o. compõem
Aotes de prosseguirmos somos forçados a fazei uma pausa para
trataÍ do problema que explica o método de nossa investigação. Não
-7pretendemos fazer aqui incursões no domínio do que em geral se
designa como psicologia da arte. Por esses termos ern geral -se con-
sidera o aspecto puÍamente subjetivo da atividade artística. Estudam-
-se as reações subjetivas do criador, do artista, e depois procura-se
penetrar, pela anáüse e a introspecção, os sentimentos do espectador
diante da criação. Nossos propósitos são outÍos. Interessa-nol sobre-
tudo a obra de arte, o objeto de arte. Este existe indepeDdentemente,
e.. são suas qualidades intrínsecas, suas propriedades formais que o
distinguem como um todo à parte, com existência própria, E é aíravés
dessas quaüdades estruturais que ele exerce influência sobre nós. Este
é o nosso_problema. Para esclarecer a questão metodológica recorre-
remos a Koffka, que disse: "Se conhecemos as exaltaçõeó e desapon-
tamentos, os sentimentos de fadiga, de inferioridade e superioridade,
pelos quais possa passar o artiita no seu tra$alho criádor, ou aÁ
'associações' que lhe fornecem a imegrnação e as metáforas, serviÍá
isso para elucidar a criação artística? Ou serão todas as coisas qu"
sucedcm no espírito dos espectadores de importância paÍa o probie-
Ta? Por exemplo, mudará essencialmente a eirperiência'de um icherzo
de Beethoven se o ouvinto estiver em um estâdo de espírito irascÍvel
53
ou tÍiste? Nâo estará ele, em qualquer caso, ouvindo um scherzo?
Não será, então, esse fato de que ele está ouvindo um scherzo o
fato essencial para o psicólogo, essencial no sentido de que faz da
experiência uma experlência de arte, ao passo que de outro modo
seiia uma experiência de tristeza ou irascibilidade? Em outras pala-
vras, eu susténto que se dividirmos a psicologia da arte da maneira
tradicional, em psiêologia do aÍtista e psicologia do espectador, tere-
mos deixado de fora a parte central de nosso campo de estudos, isto
é, a obra de arte. É preciso, então, que haja uma psicologia da obra
de arte, e esta teÍceiÍa tarefa do psicólogo seria a fundamental, üsto
que determinaria o curso que a psicologia do aÍtista e a do esPectador
deveriam seguir." 4
Mantém-se, entretanto, em outras teorias modernas sobre arte,
um sensível descompasso entre o seu aparelhamento psicológico tú-
rico, desgastado, e o reconhecimento das mais sutis experiências de
dialética das formas, noção hoje aceita pela maioria das teses estéticas
ainda com direitos à atualidade. Até a Psicanálise não desdenha o
aspecto formal. 5
4. Koffka, ob. cit., p. 186-187.
5. Até agora, tratândo de problema tão complexo como a forma na arte,
não fizemos nenhuma referência à Psicdnálise. Sem teÍmos a intenção de dis-
cutir os méritos do método analítico no estudo da criação artística o que
nos levaria muito longe de nosso objetivo - PaÍa
aproveitamos o momento
explicar as razões dessâ omissão que a muitos - poderia parecer escandalosa.
Com escândalo ou sem ele, a omissão se deve a uma questão de método.
Nossa atençÉo se côncentra na obra de ârte, na vida de §uas formas, na quali-
dade autônoma dêstas. Â Psicanálise aborda o p"roblema, por definição, do
lado do artista, do sujeito. Não lhe interessa o problema senão pelo seu
asp€cto subjetivo. É na grande autoridade de Ch. Boudouin que nos baseamos
para Íaznr tal afirmação. Ele diz, com efeito, em ssa Psychanalyse de l'Árt:
"Mais !e ne crois pas qu'il y ait un réel conflit entre ces diverses conceptions.
C'est une question de point de vue. Irc point de vue du psychanaliste ne saurait
être que súbiectiviste. Mais une conception objective de la beauté n'est nulle-
mcnt en contradiction avec celle qui vient d'être défendue." (p. 255.) Aliás,
é ele o prirneiro a mostrâr que sua teoria "subjetivista" no fundo não é tão
diferente da concêpção de Monod-Herzen, paÍa quem "le sens esthétique est
un sens de la loi naturelle". Boudouin, depois de reconhecer que Monod-Herzen
levou a "teoria do belo obietivo" mais longe do que ninguém, concluiu: "Ces
simples reflexions montrent combien notre conception psychologique irait re-
joindre une conception biologique ou sociologique de celle+i, voire une con-
ception aussi résolument objectiviste que celle de Monod-Herzen. Le point se
fciait on I'a1»rgoit sâns doute pour les deux notions, étroitemetrt
connexes,- & Íonction et d adaptarion.- Par cet éxemple, on comprend.fa que
notÍe point de vue auquel nous ne sauiions trop fermement nous tenir
tant qúe nous faisons- de la psychanalise n'est nullement exclusif d'autres
pointi de vue et prétend beaucôup moins -s'opposer à eux que les compléter.
Si I'on voulait tenir conpte de ce fait, qui se roproduit à chaque instant dans
I'histoire de la pensée, on s'épargneÍait beaucoup de discüssions parfaitement.
stériles." ( P,ÍJcfr; nalyse de l'Art, p.256.) Boudouin pôs os pontos nos ii. Subs-
54
OBJETIVOS E SUBJETIVOS
A teoria psicológica da Forma é a única, entretanto, que pode
abordar o problema artístico sem cair no unilateralismo subjetivo, A
distinção generalizada entre o subjetivo e o objetivo é incompleta.
Há graus de objetiüdade e subjetividade. Esta mesa é objetiva porque
não depende de mim para existir. Um animal, uma árvore, outras
pessoas são também realidades objetivas, Chamam subjeúvo um sen-
timento de pavor, o ódio que sentimos, a dor que experimentamos.
Tudo aqui se passa dentro de nós. As primeiras coisas, entretanto, lá
estão, queÍ os homens as considerem, quer não. Vivem por si mesmas.
Mas cores e sons são classificados como subjetivos porque dependem
de organismos, ao passo que luz e ondas entram parà a categoÍia
de objetivo. Introduz-se nesse ponto outro critério designativo dos
dois conceitos. Com efeito, cores e sons são num casó subjetivos
porque dependem de organismos, mas também são objetivos quando
deparamos com eles nos objetos; cores de objetos estão na mesma
categoria de uma flor, uma mesa, uma caixa. Nós encontramos assim
cores de objetos como encontramos uma árvore, um papagaio, uma
cadeira. A cor marrom deste chapéu, a azul desse livro e a vermelha
daquela plumagem não me pertencem, mas ao chapéu, ao livro, ao
pássaro dono da plumagem. Assim são elas objetivãs nesse sentido,
mas também subjetivas em outro sentido. O que é verdade para as
cores o é também para objetos coloridos: na -medida em que tomo
conhecimento deles, são subjetivos, .pois ficam dependendo do fun-
cionamento do nosso sistema nervoio. Entretanto, ninguém poderá
negar-lhes o caráter de objetivos, pois nenhum deles precisãrá de
mim para continuaÍ a existir..
. . Daí se concluir que há duas categorias de subjetivo, e duas de
objetivo. Segundo a primeira ilefinição, há coisas ou qualidades que
crevemos as suas palavras, na medida em que ele é o primeiro a delimitaÍ,
com admirável precisão, a intervenção na arte, ..de todõs esses instrumentos
e complexos", dando um lugar também aos problemas da forma. ,,Totites ces
données sont instructives, mais leur abondance est un peu déconcertante. Cert€s,
nous soupço-nnons bien que tous ces instincts et complexes n'intervieonent pas
dans I'aÍt dhne maniêre identique et sur le même plan; que les uns trouvent
simpl€m€nt dans l'oeuvre un mode d'expression et.uoe décharge, tandis que
d'autres doivent conditionaer la genàre même de I'activité propic de I'artiite,
dê s€s tetrdances esthétiques. Des premiêres procédãait, si I'on ieut, la matiàre
ou le contenu de I'oeuvre, des secondes sa forme. C,est une distinction que
nous avons déjà pressentie. Mais elle est délieate. En tous cas la multipliclté
des tendances invoquées .rle nous peÍmet guàre de caractéÍiser l,aÍt, d,emblée,
en le rattachant à certains instincts, certains complexes précis et exclusifs. Cela
est d'autânt moins possible que toutes les tendancrs mentionnées peuvent
également sê üansformer et'se sublimer en des activités Íort étrangàres à I'art,"
(Ob. cit., p. 248.) (Quanto à teoria de Monod-Herzen em questão, está contida
em Principes d'une Morphologie Générale, PaÍis, ed. Gauthier Villars.)
55
se classificam como Pertencentes ou não ao ego;- em uma segunda
d"fi";;à;, essas se dividem em subjetivas porque dependem do orga-
nii-o objetivas porque não dependem. Toda vez que umobjetivo-otjeto
.rtiu " primeira âefiriiçao, seja ôomo ybjetivo seja. como
"" dependa ou nâo do ãgo)' também necessariamente entrará
i"àrrt.tÀã
Àa segunda detiniçao, mas destã vez apeiras na.categ-oria subjetiva'
iÀ s"]g""a" definição' classifica objetividade e subjetividade, conforme
dependa ou não de organismos.)
As coisas que são subjeiivas na primeira definição também. o
são nà segund" t^ ,-" dor, nossa ou dê outrem, é sempre subjetiva
pàr a"p"n?et quer do próprio ego queÍ de outro organismo' Uma
po'rém, eri.a no o'tleii"o dà deliniçao primeira (não . depende
ãor,'nàsso
de ego para existir). Faz pafie, entretanto,- do subjetivo da
segunda aeiiniiao, pois quando um organismo dela. tome conheci-
mãnto vai ficai ná dependência do sistema neÍvoso desse organislo'
Em compensação, umà mesa entÍa na coluna do objetivo da primeira
definiçãó; entia na coluna do subjetivo da gegulda definição e tam-
bém na coluna do objetivo dessa mesma definição. o Substitua-se a
entidade mesa poÍ uma obra de arte. Que acontece? Segundo -a pr'i-
meira definição (dependência ou não do eu) ela é -.fenomenologica'
mente objetíva. Mas-, de acordo com a segunda definição, ê íuncio'
nalmente subietiva. A obra de arte é assim fenomenologicamente
objetiva e funcionalmente subjetiva. z
A obra de aÍte pertence também à categoria do Iuncionalmente
objetivo, que é a caracteística do físico; onde não há mesa não
poâ"moi vãr uma mesa; lá onde não se encontÍa fisicamente n9nh99a
ãbra de arte, também não seremos capazes de apreciá'la ou de vê-la'
E assim voliamos ao problema da percepção que é central não só
para o conhecimento ãas coisas práticas, mas- essencial para.o da
àbra de arte. Através dela é que um objeto físico pode produzir, ao
contato com o nosso ego, um objeto fenomenal. As aquisições da
Gestalt nesse campo respondem pelo caráter senão posit'ivo ao menos
relativamente objelivo das relações formais no objeto de arte.
58
saber. Assim também antes de tê-lo provado, não fazemos a m€noÍ
idéia da impressão que a experiência vai provocar, se favorável ou não.
- _Pode-se equiparar tal experiência com a de olhar uma paisagem
de Constable ou ouvir uma sonata de Scarlati? A emoção, reduáda
a estímulo, e as ielações estabelecidas entre ela e o objeio são de
caráter puramente prático, contingente. Outra teoria liga ô fenômeno
emotivo a um interesse pÍeexistente, um desejo a reaü2ar-se. A obra
de arte desperta emoção porque satisfaz algum desejo profundo, por
vezes oculto em nós. O apelo de uma obra de arte pode, sem dúvida,
em certos casos, servir de mediação. Mas a éxperiência sentida já
não,é_ especificamente estética, pois qualquer outrô objeto pode servir
também de veículo ao desejo. Entreúnto essa teoria iem a vantagem
sobre a outra de estabelecer certa relação entre a obra e a emoção,
pois.ao menos supõe-se ter o objeto suscitador das emoções a pro-
priedade de fazê-lo corresponder aos nossos desejos. A ialha dãssa
doutrina consiste em não ser exclusiva, pois há tántas outras coisas
suscetíveis de satisfazer esses desejos.. . a roleta, a pornografia, o
álcool etc.
^. - Finalmente,
ficado"r que
chegamos à teoria da catarsis,rs ou do efeito puri-
grandes emoções exercem. Dificilmente poder^-se-á
.as
-
identificar tal efeito com a relação emocional em face dà obra de
arte. Nessa concepsão a aÍte passa a ter por função servir ao ego
em alg-uma coisa. Esta função se torna meimo a iazáo precípua ãa
arte. Na realidade, porém, a profundeza do efeito emocio-nal aitístico
não.depende dessa.função de realizar um desejo, e tampouco de-
pende de.seus efeitos purificadores. Essa teoria peca por pesar
demais sobre o lado subjetivo das experiências, nâo tomando em
59
consideÍação os fatos. M. Geiger vem aqui em socorÍo do psicólogo
da Gestalt: "Fenomenologicamente, o prazer estético é o gozo de
uma obra de arte, e não o de uma libertação das paixões." 14
A chave da emoção artíStica está nas propriedades intrínsecas
do objeto de arte. Todas as teorias psicológicas até então expostas
não consideram no seu devido plano as relações específicas que se
criam entre o objeto artístico e a emoção despertada. 15 É precisa-
mente por isso que nenhuma teoria dessa ordem é válida do ponto
de v.ista estético. Elas esquecem simplesmente o essencial: a exisiência
dessa relação específica entre a emoção e o objeto. Esquecem que
ó0
ela é não somente funcional, com o objeto evocando a emoção no
eu, como é também um dado fenomenológico. O ego entra em emo-
tividade ao contato com o objeto; suas emoções são despertadas e
se referem a certos aspectos peculiares à coisa, sendo tais aspectos
em si mesmos, por si mesmos, emocionantes.
No estudo da expressão, a teoria gestaltiana se apóia precisa-
mente em fatos como estes: rimos do que é cômico, recuamos diante
do pavoroso, admiramos o que aparece belo ou harmonioso. Dessa
maneira, a reação emocional não é uma reação qualquer, contingente,
ou automática; ela é um resultado inteligente das propriedades do
objeto. No gozo artístico esta é a característica vital: a reação espe-
cífica, pessoal e intransferível do ego ao apelo, às qualidades pro-
priamente exclusivas do objeto de arte.
61
forme a marcha do desenvolvimento dos centros. Assim o sentido
visual embelezaria a criança com um caos de impressões de luz e
cor, verdadeiras paisagens impressionistas, de fazer inveja às mais
formigantes rutilações cromáticas de um Monet ou de um Pissarro.
Desse caos impressionista brotaria uma percepção ordenada do
mundo, graças à experiência. Por essa concepção, a vida, a cons-
ciência, seria desmontável em elementos psíquicos mais elementares,
despertados, por sua vezr por estímulos primeiros, isto é, as sensações.
Mediante o da associação que reunia ou mesclava essas
processo
sensações primárias e isoladas, átomos soltos, todo o conjunto da
vida psíquica se organizava, do mais simples ao mais complexo. O
comportamento da criança não confirma essa arrumação ulterior e
paulatina. "Os estímulos que ma.is influem no comportamento da
criança", diz KofÍka, "não são os que os psicólogos consideram espe-
cialmente simples, por lhes corresponderem sensações simples. As
primeiras reações sonoras diferenciadas se produzem em face da voz
humana, quer di2er, estímulos (e "sensações") já muito complicados.
À criança nâo interessam cores simples, senão o rosto humano". to
lmagine-se a formidável experiência quc seria necessária para a crian-
ça chegar a separar o rosto do pai e da mãe, e até seus aspectos de
afabilidade e aborrecimento, tivesse ela de distinguir "entre a abun-
dância de elementos caóticos, pois, como se sabe, as sensações variam
continuamente". 1? Já, porém, no segundo mês de vida a criança não
peflnanece indiferente a certas impressões mais freqüentes: a face e
a voz da mãe, que já mesmo a induzem a ligeiro sorriso. No segundo
quarto do ano, a criança se comporta com pessoas conhecidas de
62
modo múto diferente do que com os estranhos. re Para a teoria do
caos, o rosto humano deve ser quanto há de mais complexo e caótico;
um formigar de sensações de cor e de claro-escuro, a mudar a todo
momento, alterando-se a cada moümento da cabeça ou dos olhos,
tanto do dono do rosto como do bebê que o olha, a cada variação
de luz etc. Ora, as experiências mostÍam que já tro correr do segundo
m& ele conhece o rosto da mãe e jâ na metade do primeiro ano
reage de modo diferente para um Íosto afável do que para um rosto
dado fenomenológico pap ele é, pois, na realidade, o
rosto afável ou mau e não uma distribuição de sensações caóticas. 10
Assim, fenômenos cono "afabilidade" e "aborrecimento" são
primitivos, mais pÍimitivos do que, por exemplo, uma manchâ azul.
A tese só pode parecer absurda para.uma psicologia que pretenda
construir a consciência com um amontoado de elementos últimos,
irredutíveis, como números primos. Ele esquece, porém, que os fe-
nômenos estão em estÍeita relação com o comportamento externo.20
A afabüdade e o aborrecimento podem inÍluir sobre o comportamen-
to, mas como um ser vivo primário, tal um bebê pode deixar-se
determinar no seu compoÍtâmento por uma mancha azul? Para Max
Scheler "a expÍessão é aquilo que primeiro o homem apreende no
que existe fora dele". et Expressão é, pois, a tradução fenomeno-
lógica, para a criatrça recém-nascida, das primeiras estruturas e for-
mas que ela distingue. Koffka faz questão de salientar que, ao consi-
derar a afabilidade e o carranquismo como fenômenos primitivos,
"não dit'ide ele por isso esses lenômenos em elernentos perceptivos
e afetivo§'. Não iustapõe, não coloca ao lado um do outro, o senti-
mento "subjetivo" e a percepção "objetiva", apenas afirma que o
mundo primitivo como fenômeno implica não só determinações afe-
tivas como as que costumamos chamar de objetivas. rr
Nós ignoramos tudo do aspecto visual de nossas próprias ex-
pansões emotivas. A nossa penetração simpática desta expressão se
estende a formas muito diferentes das nossas próprias, pois idade,
sexo, cultura, raça e até o próprio espaço fazem mudar a expressi-
vidade fisionômica, numa variação extÍema. "Essas formas têm para
nós diretamente um caráter moral, do mesmo modo que a nossa
experiência íntima." es Não se diz com isso não haver difêrença entre
nossas vivências, nossos estados vividos e de percepção que temos
18. Para todâs essas experiências, ver, além do livro de Koffka, o magni
fico livro de C. Buehler, a que iá fizemos referência várias vezes.
19. Koffka, ob./ctt., p. t28.
20. Koffka, ob. cit., p. 129.
21. Max Schebr, Wesen undlorm der Sympathié, Bon, L923, p. 215.
22. KoÍfka, ob. cit., p. 129.
23 . P, Guillaume, Lo Psychologie de la Forme, p. 188.
63
das atitudes alheias. A experiência da dor é em nós mesmos coisa
muito diferente que a dos outros. E a dos grandes pÍazeres também.
Mas o importante não está aí. O que importa é haver semelhanças.
Uma coisa é certa: a dor que sentimos e suas manifestações são
perceptíveis para nós como para os outros, nos gestos, nos contornos,
nos gritos deixados escapaÍ. Está aí uma relação evidente entre as
duas faces do fenômeno: uma que é vivida por fora, expondo-se à
nossa percepção e à de outrem, e â outra que só a nós concerne e
de nós não sai. Por que seriam dois fenômenos separados, conforme
a tese atomística? Não se trata antes dos dois lados da medalha afe-
tiva? Por que sustentar, ou duvidar que haja entre os dois aspectos
pontos de semelhança, traços comuns, correspondência?
EntÍe outras experiências suscetíveis de revelar essa relação
entre uma forma expressiva e um fenômeno afetivo, a arte se encon-
tra talvez em primeiro lugaÍ. EntÍe nós e o outÍo, o fenômeno artís-
tico apresenta uma mediação incomparável o objeto de arte. Ele
- que tão bem com-
é dotado precisamente desse poder fisionômico
preendemos, que o animal compreende, que a criança compreende,
num Íosto. A forma permite-nos comparar os aspectos sensÍveis e
fisionômicos das coisas e dos seres. Em arte ela é expressamente o
elemento dominador, independente, que obriga os sujeitos a não irem
além dela, não a atravessarem em busca de elementos extrínsecos,
una intenção prática, um conceito abstrato, a satisfação do inte-
resse etc.
As nossas vivências psíquicas em nós mesmos observadas pela
autopercepção não são o método de conhecer os sentimentos e emo-
ções nos outros. É uma analogia falsa. Não é verdade que entÍe o
fenômeno subjetivo e os movimentos de expressâo a ele subordinados
não haja senão uma associaçâo puramente externa. A psicologia ani-
mal e infantil desmente esse empirismo. Quando se afirma que pode-
mos comprovar a associação empírica de nossas vivências com os
fenômenos de expressão de nosso corpo, temos em vista poder ver
os movimentos de nossos braços e pernas. De ordinário, não se vai
ao espelho estudar as próprias expÍessões emocioDais. Um ator pode
fazer experiências mímicas, fingir que chora diante do espelho. Tam-
bém não nos espreitamos chorando. Como admitir-se, então, que os
animais compreendam os companheiros, reajam também às emoções,
recorrendo à analogia consigo mesmos, fazendo um pequeno exercício
de introspecção?
64
que está dentro, está também fora.) Os dois aspectos exprimem um
mesmo dinamismo psicofísico. Freqüentemente as partes do corpo
onde esse dinamismo se manifesta de modo aparente são precisa-
mente aquelas onde ele mais se sente. Estabelece-se uma relação que
por mais rombuda que seja ÍepÍesenta de algum modo uma espécie
de conhecimento do fato físico. Nota-se uma primeira coincidência:
o cuÍso temporal dos processos é paralelo. Uma mesma curva acom-
panha a evolução: há em ambos um crescendo e um decrescendo,
uma fase estacioniíria, e as inevitáveis flutuações. A parte central ou
neutra da emoção obedece ao mesmo dinamismo da paÍte periférica.
A prática do registrar as reações emocionais no organismo, por exem-
plo, os efeitos emocionais das cores e das notas musicais, é de algum
modo um reconhecimento dessa sincronização. 24
Pode-se descrever no pensamento do homem comovido as mes-
mas pulsações que em suas reações musculares. Os movimentos "se-
cretos" da alma, diz Guillaume, e os movimentos manifestos ou ocultos
do corpo são a imagem uns dos outros. É difícil, muitas vezes impos-
sível, separar nos teÍmos aplicados à emoção os que designam exclu-
sivamente a impressão subjetiva ou os sintomas- objetivós. Os dois
se exprimem pelo mesmo termo; daí a ambivalência adquirida deste,
ora servindo para um ora para o outÍo. Essa explicaçãô dupta, po-
rém, não se dá.porque os dois aspectos sejam contíguos, mas porque
são semelhantes.
A tese segundo a qual emprestamos as nossas impressões sub-
jetivas às manifesta@es objetivas percebidas nos outros não satisfaz.
Não se trata de uma projeção de nossa parte, dando a esses sinais
externos nos outros um significado intemo, como emprestamos sen-
tido às palavras de um texto em outra língua.
Aliás, Koehler, discutindo o problema, afirmava não acreditar
constituírem as palavras do próximo nosso melhor guia, especial-
mente se considerarmos ser o conteúdo delas uma descrição de sua
experiência. Nunca se é sincero quando se fala das próprias expe-
riências subjetivas; nós podemos perceber num sujeito uma série de
sentimentos, tais como orgulho, vaidade, ou, ao contrário, Dodéstia,
afabilidade, ou hostilidade, frieza, entusiasmo etc., sem que ele nos
tenha dito uma palavra sequer. Em país estrangeiro, não demoramos
em descobrir se os outros são provocadores ou amáveis, embora não
entendamos uma só palavra do idioma. E mesmo quando entendemos
o significado das palavras do interlocutor, confiamos muito mais na
65
maneira dele falar, por ser um guia mais seguro para nós, do que
no conteúdo das suas palavras. Em outras ocasiões o silêncio é muito
mais eloqüente, diz muito mais sobre os outros, que uma infinidade
de vocábulos.
O comportamento dos macacos demonstrará, ao observador sem
prevenções, que estes também se entendem muito bem entre eles,
embora não usem linguagem, no sentido usual da palavra. Por isso
mesmo, em se tratando de expressão, de manifestações fisionômicas,
a linguagem comum corrente deve ser banida, desde que se trata de
um modo de comunicação por meio da significação das palavras e
sentenças.25
Não procuremos, pois, na torma primitiva, pelo menos, na per-
cepção dos fatos expressivos, nem projeção nem interiorização. O fato
indiscutível é que percebemos realmente propriedades formais do com-
portamento, e essas propriedades têm por si mesmas um sentido, um
valor, uma exigência interior.
66
OÍa, "m6 das funções naturais, espontâneas da arte consiste em
não permitir o desvio'ou a cobertura do sentido intrínseco, saído di-
retamente da percepção lormal primitiva, desembaraçado de todo
associacionismo mecânico e cultural. Só há arte do particular, con-
trariamente à fórmula aristotélica de que só há ciência do geral.
Em psicologia, no estudo da expressão, o ponto de partida não
é diferente. A explicação fenomenológica é a primeira das virtudes
psicológicas.20 As propriedades formais se encontram nas nossas im-
pressões vividas, ou vivências, mas estas não têm o monopólio delas.
Não é, pois, gÍaças a essas impressões vividas que o comportamento
é expressivo. O comportamento é comportamento em viriude preci-
samente daquelas manifestações; é comportamento justamente por
causa dessas suas propriedades fisionômicas.
67
Como já vimos, os psicólogos desprezam esse parentesco, para
considerar os elementos isoladamente, com exclusão das estruturas.
Eles vêem na emoção uma soma de pequenas reações, que se prc-
tendem descrever isoladamente, como se fossem curiosidades e des-
prezando o dinamismo geral, isto é, precisamente o elemento totali-
zador das partes e das fases.
O decisivo do problema não está nesse emaranhado de expli-
cações verbais. O problema deve ser posto em termos que sirvam
para alguma coisa. Toda sorte de seres, objetos, situações, tem sua
fisionomia moral; nenhuma dessas categorias se apÍesenta como idéia
desencarnada. Mas a tese associacionista da transferência, da repre-
sentação de tudo por sinais quaisquer, isolados, abstÍatos como os
sinais da linguagem falada, não considera, não toma conhecimento
dessas peculiaridades intrínsecas, fisionomicamente expÍessivas de cada
ser, de cada objeto, de cada situação. A essa disponibilidade de ele-
mentos irredutíveis, como soldados rasos, prontos a se unirem em for-
mações quaisquer, indiferentemente, conforme a ocasião ou o co-
mando do chefe, a Gestalt opõe a irredutibilidade expressiva de cada
conjunto, ser, coisa, situação, e a impossibilidade de se dissociarem
os elementos componentes para examiná-los. À parte eles não existem.
Os objetos têm por si mesmos, em virtude de sua própria estru-
ttra, independentemente de toda experiência anterior do sujeito qtue
os percebe, um caráter próprio, as qualidades do insólito, do estra-
nho, do assustador, d,o irritante ou do plácido, do gracioso, do ele-
gante, do áspero, do mavioso, do repulsivo, da atraente etc.
Koehler fez, nesse sentido, com os seus chimpanzés,2E experiên-
cias decisivas. Os antropóides se apavoravam, eram sujeitos a pâ-
nicos ao ver pela primeira vez répteis, animais grandes como bois e
câmelos. Os defensores da tese atomística explicam o medo por
associações antgriores misteriosas: recordações de inimigos hereú-
tários da espécie, instinto, resíduos de conexões pré-formadas eritre
certas excitações sensoriais e reações emocionais.20 Mas como expli-
68
câr o pânico... desta vez diante de uma bruxa dé pano, com olhos
saltantes de botôes de botina? Ou de outros brinquedos imóveis
de criança, como um cavalinho de pau? E o episódio da máscara?
Koehler, um dia, como de costume, chegou-se ao cercado onde esta-
vam os chimpanzés e, de repente, pôs na cabeça uma máscara, cópia
da de um demônio mau de uma tribo primitiva. Instantaneamente os
macacos saíram a corÍer espavoÍidos diante de objeto tão horrível.
Por due o pavor? Não será certamente porque se tratasse de
qualquer coiSa de novo, pois coisas novas ocorriam diariamente no
campo, inclusive os assistentes, os homens da estação experimental
mudavam de aspecto diariâmente. Essas inovações que se davam não
costumavam assustar essas criaturas. Por que, então, a máscara do
demônio da praga teve tamanho efeito sobre os antropóides impres-
sionáveis? s0 De novo, a tese associacionista não tem a que apegar-se.
Koehler, depois de examinar sob vários aspectos o caso, tira a única
conclusão ruzoáwel: "Não será admissível a hipótese de que certas
formas e contornos das coisas têm em si mesmos a qualidade de
enfeitiçar e de assustar, não por causa de qualquer dispositivo espe-
cial que lhes permita produzir essas reações; mas porque, dada a
nossa psique e nossa natureza, algumas formas têm inevitavelmente
o caráter de terríveis, outÍas o de graciosas, ou desajeitadas, ou enér-
gicas, ou decisivas?" 31
Como explicar o fato senão consentindo na hipótese da Gestalt?
Os objetos é que têm constituição intrÍnseca, essa qualidade propria
de expressar pavor. O aspecto pavoroso não lhes é atribuído pela
experiência ou por alguma associação do sujeito com o outro objeto
de origem terrível. Não é uma aquisição posterior, justaposta ao objeto
pelo observador. O aspecto fisionômico do terrível ou do pavoroso é
parte do objeto, está na sua natureza, conseqüência de sua forma.
Guillaume também verificou a mesma emotividade diante de um
pequeno urso, "brinquedo de aspecto bonachão, de 30 cm de altu-
ra", não só por parte dos chimpanzés, mas também do próprio gorila,
animal brutal e agressivo, temido pelos guardas, aos quais havia ele
mostrado de repente o brinquedo. s2 Esses pavores não parecem ser
instintivos nem hereditários. ss
30. Segundo informa Hartman, a máscara contra gás usada nos exércitos
produziu o mesmo pânico nos animais domésticos. (GestaU Psychology, p. 16?.)
31. W. Koehler, The Mentalíty ol Ápes, 3.4 ed., 1931, p. 335.
32. Paul Guillaume, La Psychologie des Singes, Presse Universitairê de
France, p. 309.
33. Os chimpanzés se âssustam diante das cobras, É inato tal sentimento?
Nôo parece, pois um jovem chimpanzé, educado à mamadeira, sem qualquer
cOntato com seus congêneres, não manifestou medo nenhum quando viu uma
cobra pela primeira vez. (Observ. de Yosbioka, 1912, cit, por Guillaumê.)
69
Também Yerkes, sa analisando a causa do medo pela experi-
mentação, exibindo um cano de bolracha, um cão também de bor-
racha ô uma cobra viva, estabeleceu uma escala de reaçÓes. Estas são
mais marcadas nos animais de mais idade. Haslernd ( 1938) ' em
suas experiências, coloca ao lado dos objetos um chamariz, um atra-
tivo a fim de verificar a oposição entÍe a âpreensâo do contato e o
desejo de tirar a coisa apltitosa. Os jovens animais temem princi-
palmente o movimento. Oi velhos, porém, temem também os ohjetos
imóveis e persistem mais tempo na atitude de reserva. O fato de os
jovens temerem sobretudo as ioisas com movimento e de Alfa 3s não
ier tido medo da cobra a primeira vez que a viu, ao passo que a
reação dos mais velhos demora mais e e§tende-se igualmente às coi-
sas imóveis, tende a indicar não se tÍataÍ nem de reação inata nem
adquirida: é que os chimpanzés mais velhos têm poder percepcional
mais organizado e sobre eles a expressão fisionômica exerce maior
efeito.
Ogden sugere uma comparaçâo dessas rea@es de pânico diante
da máúara com os pavores de povos primitivos em face das efÍgies
de ídolos estranhos. so De qualquer modo, nenhum perigo real ja-
mais foi associado à apresentação desses objetos inofensivos, nem
quanto à vida dos indivíduos nem da espécie. "Segue-se, Ppis' que
tàis objetos eram por si mesmos assustadores, que certas combinações
de linhas, de cores, de sons, certas formas possuíam por si mesmas
esse caráter." 37
Por outro lado, esses bichos têm certa curiosidade pelas formas.
São capazes de se entreter horas a fio a procurar a própria imagem,
o refleio dos outros seres ou coisas, no espelho, nas poças d'água, em
pedaços de lata e de vidro. Koehler, que foi dos prirneiros a fazer
à experiência, quando um dia apresentou um espelho a seus chim-
panzés, comenta essas atividades assim: "Que seres mais estranhos
esses, que se sentem permanentemente atraídos pela contemplação
70
de fenô_menos que não lhes podem trazer o menor benefício tangível
ou 'prático'!" 38
ROSTO E EXPRESSÃO
7l
consideÍar o caráter material dos segmentos individuais, para discernir
uma identidade formal." (Symposium, l, 1927, 39-60') Comentando
a passagem, Hartmann, de quem tiramos a citação, o faz com certa
ingenuidade, embora com justeza: "A beleza objetiva e o encantÔ
espiritual são fundidos no mesmo molde ou padrão, ainda que suâs
substâncias sejam distintas." 40
Na criança como no animal, a percepção primitiva é sobretudo
de natureza fisionômica. A expressão vem antes de percebermos as
coisas. Ou, como diz Guillaume, essas coisas são realidades expres-
sivas antes de ser determinadas apenas poÍ suas qualidades sensíveis
particulares. Da percepção primária, tudo pode, com o tempo, afas-
taÍ-se, menos a voz e o rosto humanos. É que já na primeira infância,
o que primeiro percebemos é uma expressão global, em um rosto
o materno. A expressão se dissolve, saída de seu contexto. A ale- -
gria ou a tristeza desaparecerão de.um todo fisionômico se alterar-
mos a ordem das partes, ou modificarmos algum traço. Separando
as paÍtes para examiná-las de per si, ou cobÍindo o todo de um re-
tÍato, por exemplo, para consideraÍ os seus componentes, um por
um, a expressão se esvai. K. Dunlap fez, nesse sentido, experiências
interessantes eni fotografias tiradas sem que o fotografado tenha de-
las tomado conhecimento. Ele primeiro pegou o sujeito em atitude
de prazm (leitura divertida) e depois o mesmo em atitude de espanto
ou susto (detonação inesperada). Confronta as expÍessões nas duas
fotografias. Depois combina a paÍte superior do rosto, a metade do
nariz para cima, de uma, coÍÍr a parte inferior da outÍa. É extrema-
mente difícil reconhecer-se, na percepção global, a identidade das
partes comuns às figuras. Os olhos risonhos da foto de expressão
alegre desaparecem pela expressão dominante da boca na figura
assustada. A identidade, porém, reaparece se se tapam as figuras não
correspondentes dos dois rostos, 41
72
mente doentes e uma em estado hipnótico. Em todos esses casos,
foram prontamente obtidos julgamentos de personalidade; nenhum
indivíduo considerou a tarcfa, que se lhe dava, como impraticável ou
mesmo difícil. As formas corpóreas apresentam valores expressivos
para todas as pessoas, independentemente do estado de espíiito des-
tas, normal, mentalidade doente ou em condição hipnótica.4z
Os resultados obtidos .pelos acertos das respostas indicam, se-
gundo Wolff, que as expressões físicas pareóem marcadas por certos
aspectos comuns. É a interpretação da personalidade, na base desses
conjuntos de faces, de caligrafia, de mãos, de perfis, de vozes, apenas
uma projeção subjetiva de quem interpreta? Desses intérpretes que
vão de psicólogos profissionais a leigos, de doentes mentais a crián-
ças,, de desprotegidos da serte a pessoas em estado hipnótico, de lê-
trados a iletrados? Ou, ao contrário, a expressão inteipretada é ine-
Íente a certa forma física? Depois de uma série de provas e contra-
provas, de cujo valor científico não se pode duvidar, Wolff che-
gou a verificações positivas. Em 77 por cento dos casos os resultados
indicavam a correspondência direta êntre a expressão e a forma. .,O.
valor expressivo das formas corpóreas é percebido em tão alto grau
de. concordância por diferentes intérpret€s que o fator de proje-ções
subjetivas por parte destes não parece desempenhar papel deôisivo.,, na
O retrato muda inteiramente de expressão com um arranjo dife-
rente das faces, como juntando duas do mesmo lado, direita com di-
reita e esquerda com esquerda ou a parte superior de um com a
inferior de outro, se se pÍocuram. qualidades fisionômicas de alegria,
espanto etc., como na experiência de Dunlap. Idêntica alteração so-
frem obras de arte cujos lados se alternam. Nesse sentido, Woelfflin
fez interessantes observações sobre o lado esquerdo e o lado direito
dos quadros. Quando uma pintura, observou ele, é projetada às
avessas numa sala de conferências, e aparece de lados trocados, ime-
diatamente surgem vozes protestando contra a inversão. Ele quis
então saber a razão desse protesto espontâneo. Por que um quaãro
nã9 p9{e ser apresentado às avessas? Que é que nele se alterà com
o fato? Se a mão direita de uma figura passa a àpresentar-se à esquer-
da, afinal é coisa secundária. No entanto, veri[ica ele, mesmo uma
simetria visível e pura como a Madona Sistina de Rafael ou o quadro
de Maria de Holbein, em Darmstadt, não pode suportar o ievira-
mento. No quadro de Rafael revirado, com ai figuras-laterais do lado
trocado e a madona voltada para a direita ao invés de para a esquer-
da, "os motivos agem sem coesão e vão contra a corrente',. ,.Em liugar
.. 42. Werner
N. Y.
Psychology,
Wolff, "The Expression of
p. 27.
personality',, Experimental Depth
-
43 . Wolff, ob. cia., p. 27.
73
do movimento de elevação de Sisto, quando se ajoelha à esquerda,
sentimos agora uma massa parada e inerte. E aquelas nuvens amplas,
por baixo de Bárbara, que de início atuam no sentido de tranqiiilizar,
fixar e delimitar, transformam-se num vazio incompreensível no qua-
dro, quando passam a situar-se à direita. E, do mesmo modo, o mo-
vimento auxiliar das cortinas, quando o movimento natural do olhar
é perturbado, torna-se não só incompreensível, mas âté hostil." aa
Woelfflin repete a experiência com outros quadros e outros autores,
em estilo e forma completamente diferentes do equilíbrio simétrico,
imóvel de Rafael, como Rembrandt, Vermeer, etc.
As qualidades fisionômicas do todo não existem num rosto. São
características também na figura geométrica, num quadro, em todo
objeto fenomênico fora e dentro da arte. A percepção sincrética'e
desinteressada, depositária de uma unidade qualitativa, de uma expres-
são, se opõe à análise. Na indomável Íesistência total à dispersão dos
detalhes reside parte do mecanismo da memória; é a expressão que
fica; é ela autora das sugestões mais estranhas, e seu poder catali-
sador é enoÍme.
PROJEçÃO E OBJETO
Pela teoria da Einfühlung, as qualidades sensÍveis do objeto de
arte são uma projeção do ego. Ou, como dizia Lipps: "Todo esse avi-
ventar das realidades que nos cercam se dá, e.só se pode dar na
medida em que atribúmos às coisas exteriores nosso próprio senti-
mento de força, nosso sentimento de luta e de vontade. . . a coluna
parece Íetesar-se, fazer o mesmo que eu faço quando me eÍgo e me
ponho em posição de sentido. . ." 45 O movimento da coluna dórica,
parecendo-nos elevar-se quando a vemos, e o impulso que sentimos
para dançar diante de um minueto mozartiano são fatos já descritos
psicologicamente. É uma descrição justa. Mas a teoria sustenta que
esses movimentos que nos parecem provir do objeto de aÍte são pre-
cedidos de movimentos físicos e de emoções de nossa paÍte. As qua-
75
tério. E como já vimos, são qualidades inerentes ao objeto feno-
menal.
A redondeza do círculo não se descreve e explica senão como
caÍacteÍística do círculo em face do ego. Qualquer objeto é um
portador dessas qualidades; o próprio suj€ito também, por vezes, não
passa de um objeto semelhante aos outÍos, quer dizer, tem como eles
sua oÍientação, é percebido em movimento e seu corpo tem forma.
Temos pois de consentir em veiificar a presença dessas qualidades
terciárias onde as vemos: em outro ego, num triângulo, numa colu-
na egípcia, numa palma ornamental, num todo segregado qualquer.
Nessas condições, não nos fica mal assentir aos ingênuos que atribuem
a ação que determinada coisa exerce so re nós a qualidades dessa
mesma coisa. Os artistas modernos são, nesse ponto, testemunho não
desprezível. Mas não é propriedade dos artistas sentir os efeitos das
qualidades terciárias. Na apreciação de uma obra de arte, todo mun-
do é artista, pois se tem de colocar no mesmo plano dele. Do con-
tiário não está vendo na estátua que contempla um objeto de arte,
mas um amontoado de pedras e talyez calculando o preço da maté-
ria-prima ou admirando o esforço material do homem que talhou
aqueles blocos de pedra. Também pode entregar-se à diversão de
contar os dedos do pé da estátua para ver se estão todos em ordem.
Evidentemente, nem sempre um objeto se apresenta na forma de nos
emocionar, ou se o Íaz é por outras razões. As qualidades terciárias
inerentes a todo objeto fenomenal, não são todas de ordem artística.
Mas a função do artista consiste precisamente em fabricá-las. Qual
o processo dele obter esses resultados é um mistério que nem ele nem
a ciência, nem a psicologia decifram. ez
47. Jeanne Hersch escreveu: "Que peut être cette Íotme esthétiq\e, cette
forme absolue, capable de conférer une existence non dérivée à l'oeuvÍe d'ârt?
Chercher une recette de l'art serâit évidemment âbsurde et contradictoire. L'art
subsiste dans la mesure oü la recette échoue. On se trouve ici dans une si-
tuation comparable à celle de [a morale.-. L'esthétique, elle aussi, au cas oü
elle atteindrait son objel qui est d'étâblir une définition précise du boau en
faisant inlervenir dans cette définition non les effets du beau (comme on le
fait souvent), mais ses éléments intrínsêques, détruirait I'aÍ. Néanmoins, elle
ne peut y renoncer sans se détruire elle-même, sans abandonner son objet
propre, qui est [e beau, pour un autre, qui est l'expression directe de l'affectivité,
le lyrisme de l'admiration, ou bien pour l'élude psychologique des réactions
subjectives devant les oeuvres d'art. Lyrisme et psychologie, parfois même his-
toire anecdotique de la création des oeuvres, telles sont les pentes de paresse,
les lignes de fuite de l'esthétique. Que peut-elle faire, dês lors? Comme la mo-
rale Ie fait pour le bien, elle essayera, malgré sa situation contradictoire, de
déterminer d'ne part les conditions les plus générales du beau dans le champ
de la création huamine, c'est-à-dire les conditions les plus générales conférant
à des oeuvres humaines l'existence artislique. D'autre parl, I'esthétique étudiera
/b
Fiquemos no terreno mais prudente e concreto desse preciso fato
psicológico: as relações do ego e do objeto e de ambos iom o mun-
do. O objeto quando no mesmo campo que o sujeito toca-o emocio-
nalmente por suas qualidades intrínsecas. Tudo se passa no plano
das emoções e do sentimento. A medida porém do contato do ego
com o objeto ou com o mundo, isto é, o campo que os envolve varia
de caso em caso. O ego pode estar mais ou menos isolado desse am-
biente total, desse mundo que é o seu, ou nele envolvido. Pode estar
integrado com o objeto lesse campo, ou em oposição ao objeto.
Koffka, aB ao descrever as possíveis situações em que o ego e o
objeto se acham envolvidos numa situação dada, aponta os seguintes
casos: Um engenheiro olha o jogo de um ponteiro num registto; o
mesmo homem vê seu filho cair no mar. Em contraste, duas pessoas
no alto de uma encosta coberta de uma velha floresta ainda não to-
cada pela mão do homem. Uma delas é esmagada pela grandeza do
espetáculo, e sente-se parte daquele mundo novo e empolgante; a
outÍa apenas se limita a fazer uma inspeção das espécies de árvores
e pensa na possibilidade de explorá-las comercialmente. No primeiro
caso, o engenheiro está numa reação bastante indiferente em relação
ao. objeto_; no segundo, porém, tanto para o engenheiro como para o
primeiro homem da montanha, há um envolviminto profundo ão pai
e do amante da natureza, uma como imersão no ambiente. euanto
ao especulador de madeira, dá-se um envolvimento do objeto no ego.
Mas há uma.diferença entre ele e a madeira e o engenheiro e o apõn-
tador: esse último tem de ser observado tal como ?, sem que o inte-
resse ou o desejo do observador entre na situação, ao passo que para
o especulador a floresta mesma, como objeto fenomênico, é- quâtiti
cada por um sujeito com uma intenção.
Apesar disso, esses dois casos, sob outros aspectos, são da mes-
.,bem em
-ordem. O especulador não teria podido disiinguir o
ma
madeiras" se seu ego estivesse tão direta e forteminte em contato
avec le plus possible de précision comment ces conditions ont été remplies dans
telle ou telle oeuvre pârticuliêre.
L'existence esthétiquê ne peut être un sou,s-produit reflétant l'existence
pratique, conteÍnplative, théorique ou sociale. Elle est spécifique et exige une
recréation du modàle dépouillé de ses modes d'existence ântérieurs. Un danger
couru sur le mode de l'existence pratique comporte, pour être réellement vécu
comme tel, une foule d'éléments, surtout: de réactions, qui manquent au
danger évoqué sur une scàne ou dans un roman. Ces éléments de réalité mo.
dale doivent être compensés par d'autres, sinon l'art serait seulement une
moindre Éalité, un reflet de réalité. Por conféreÍ la plénitude d'existence à
I'ouvre d'art sur son mode propre, il faut donc la recréer en inventant une
forme existânt par soi, qui ne soit ni dérivée ni subordonnée à rien d'extérieur,
qui soit sa propre fin." (L'êfte et la Forme, p. 164-165.)
48. Koffta, Problems oÍ Psycholoer of Árt, p, 220-221.
77
com o mundo quaDto o dos sujeitos do outro exemplo. O ego do
especulador conseguiu tomar-se indiferente ou quase ao ambiente.
Ambos, o especulador e o engenheiro, se encontram em oposição ao
objeto de sua observação. Há aqui uma polaridade entre um objeto
bem definido e um ego também bem definido, com a diferença de
ser no engenheiro o objeto a parte dominante do campo, ao passo
que no especulador o ego é que o é. A situação do engenheiro que
vê o filho cair no mar e do amante da natureza que contempla embe-
vecido a floresta é, por seu lado, diferente da dos outros. Aqui os
egos estão muito mais em contato com o objeto. Dentro do campo
total de cada tipo, a polarização entÍe os objetos e o ego, e entre
este e o campo total, é específica, variando entre maior ou menor
grau de intensidade e de envolvimento do sujeito.
Quando um campo com um ego é fortemente unido, isso signi-
fica que o eu e os objetos não são inteiramente separados. E que
acontece? O sujeito não perceberá objetos de coÍes e formas pre-
cisas em uma localização precisa, como o observador veria num la-
boratório de psicologia, mas os objetos tomariam um aspecto amea-
çador ou atraente, ou que inspirase rep-ulsa etc. Seu mundo se tor-
naria cheio de caracteres fisionômicos, mas em compensação min-
guado dessas outras qualidades que nos acostumamos a consideÍar
positivas, importantes ou unicamente válidas.
Num campo de diferenciação acentuada, dá-se uma tendência
contrária, e o objeto e o ego se distanciam de mais a mais. O resul-
tado é um desaparecimento progressivo dos caracteres fisionômicos,
a atenuação de outros e a predominância de propriedades que os
objetos asssumirão à medida que seus laços com os egos se apÍo-
ximarem.40 Entre eles e o sujeito não há, no ponto extremo, senão
uma relação vaga e abstrata, puramente conceitual ou utilitária. O
objeto deixa de aparecer por si mesmo na sua expÍessão total.
E. Souriau, numa espécie de apólogo entre ele e o camponês,
descreve essas duas relações do ego com o objeto; a que não vê no
objeto senão um meio, um instrumento, e a que se demora na apÍe-
ensão das qualidades expressivas do mesmo. A linguagem do filósofo
e do esteta francês é diferente da linguagem do psicólogo, mas seus
pensamentos, no caso, se encontram.
"Sentado diante de uma moita de junco", diz Souriau, "sobre
esse campo que a primavera aquece, eu me impregno o mais que
posso do que o ar e o vento têm de novo, de vivo, de fecundo, que
não tinham ontem, quando, entretanto, o sol não estava menos quen-
te, nem a terÍa menos rica. Será o cheiro? Talvez; ele tem não sei
que sabor de origem vegetal como depois das chuvas de verão. O
49. Koffka, ob. cit., p. 124
78
verde do mato também se animou; um pouco mais de índigo, porém,
mais goma-guta do que terÍa de siena. E os sulcos. do campo se re-
cortatn, nas sombras, de um modo mais incisivo. Entretanto, dois
camponeses estão voltando. Um deles entra no campo e olha em re-
dor de si, hesitante. Calca a terra com o calcanhar; fareja o ar.
Abaixa-se, apanha um punhado de juncos, que separa e parte em
pedacinhos com ar pensativo, depois limpa os dedos na calça, com
uma expressão de tédio. Volta para a estrada, curvado e meditativo;
pára ainda para lançar uma última olhada ao campo, e, ao reunir-se
ao seu companheiro, diz: "Iá está mais que em tempo de lavrar a
terra."
"Assim, nós somos igualmsnte atentos ao despertar da terra; e
aquele homem conhece essas coisas melhor que eu. Estou certo, to-
daüa, que nada lhe apareceu formalmente ao espírito, de tudo o que
acabo de tentar tornaÍ lúcido, em mim; essa qualidade de luz e de
coÍ, esse leve perfume, esses contornos. Será isso por ser ele um espí-
rito inculto, e et qualis artifex? De modo algum. Aqui, sou eü o
espírito inculto. É porque eu ignoro tudo das coisas da terÍa que,
bastante sensível, entretanto, para notar que hoje está acontecendo
qualquer ciosa, agucei minha sensibilidade a fim de saber em que
consiste essa qualquer coisa. O homem do campo aguçou a sua a
fim de saber a que ela o incíta. Ambos ficamos conhecendo o que
procurávamos, eu a qüididade própria deste momento do ano, ele a
oportunidade de um labor; minha aquisição de saber foi formal, a
dele material. De volta às nossas casas, eu escrevi numa folha 'de
papel: "Sentado diante de uma moita de junco etc. . . "; e ele disse
ao seu criado: "Amanhã nós vamos passar o ancinho no campo lá
de cima." 60
Os homens de nossa civilização vivem cada vez mais como o
camponês de Souriau. Não vêem os objetos e a eles se opõem. Koffka
define essa situação em termos de psicologia: civilização com um
grau relativamene alto de diferenciação do campo e de isolamento
do ego. Por isso, o mundo atual é muito mais pobre em caÍacteres
fisionômicos comparado com o de homens de outÍas civilizações
"mais primitivas", onde o campo é geralmente menos diferenciado,
com outras qualidades dominando nele. A nossa civilização utilitária
lançou o descrédito sobre essas propriedades fisionômicas, estruturais
dos objetos, A arte é o modo específico das mais puras e desinte-
ressadas dessas qualidades das coisas. E por isso mesmo criou-se
até hoje uma quase incompatibilidade entre o nosso sistema racional
e científico e o sistema qualitativo dominante na estética.
19
Binyon, por seu lado, confirma as vistas do psicólogo, e faz esse
confronto entre a mentalidade chinesa e a ocidental: "Na arte eure
péia, antes do século XIX, parece que o homem, preocupado con-
sigo mesmo, com seus atos e aspirações, perdera contato com
essa vida de lá de fora. A curiosidade intelectual mais que a simpatia
natural o levou lenta e gradualmente a estudar esse mundo interme-
dirário. Mas os chineses nunca perderam contato com esse setor inter-
mediário da vida; exploraram-no cada vez mais, não com a curiosi-
dade científica do europeu mas como que desejosos de serem por
assim dizer cidadãos do universo, de modo que não só as feras da
caçada mas os pássaros e os insetos, e para lá, desses as coisas que
chamamoe de inanimadas, viessem a ser incluídos na sua consciência
da üda universal. É esta, pois, uma coisa que eu salientaria na arte
chinesa: a sua continuidade com o primitivo e a sua simpatia com
tudo aquilo que vive, simpatia que lentamente se expande é abarca
todas âs coisas. Suas raízes estão enterradas bem fundo." at
Na crescente separação do homem ocidental com o campo, o
homem nem olha nem entra em relação com o objeto. Os caracteres
estruturais das coisas se perdem nessa relação, e o homem se empo-
brece de todo um mundo profundo de relações e conhecimentos. Na
apreciação da obra de arte, a relação do espectador com a obra não
é a do campo altamente düerenciado, como a do camponês de Souriau
e a do engenheiro com o seu registro, ou a do especulador de madeira.
Ambos estão numa relação direta e estÍeita. Nessa situação, o objeto
de arte exercerá seu efeito sobre nós, e nos ditará as nossas rea@es;
seremos imobilizados pcla monumentalidade estática da estatuária
egípcia, enlevados por uma paisagem de Giorgione etc. "Os objetos
nos lalam através de seus caracteres lisionômicos, Estes, portanto, não
podem, por sua vez, ser causados pelas nossas respostas." 52
O objeto de arte se define, assim, por uma especificidade única:
o que ele exige de nós não provéni de sua capacidade paÍa satisfazer
qualquer necessidade ou desejo nosso, como um guarda-chuva num
aguaceiro ou um refresco gelado numa hora de calor. Os objetos são
nesses casos, para nós, apenas um meio para chegarmos a um fim.
Suas qualidades são transitórias e intermediárias. A ação, a impo-
sição que nos faz uma obra de arte é, porém, exclusivamente em
função de suas qualidades intrínsecas. Não há outro objeto no mun-
do com essas qualidades. Como vimos para o rosto, elas estão inte-
gradas na estrutura do todo, paÍtes que são deste.
O poder de comando que exerce um quadro Sobre nós vem de
dentro de si mesmo. Todo o segredo de sua força atuante, da magia
80
que exeÍce sobre nós, dessa faculdade única que é a sua de nos des-
pertar emoção, reside em s-uã estrutura formal, na sta Gestalt.
Para compreensão do fenômeno artístico, não decidem as nossas
próprias emoções. Pode haver mesmo o caso em que não as senti-
mos ou ú as sentimos em grau relativo, muito abaixo daquele qué
o artista mesmo espeÍaÍia de nós. Uma questão de diferença de tem-
peÍamento ou de sensibilidade ou estado de espírito oposto ao dele
bastaria para que não vibrássemos diante de sua obra. Esta, porém,
continua a teÍ as qualidades específicas da obra de arte, seu poder
de comover.
Um tal objeto existe também fisiçamente. Esta qualidade física é
o conjunto de condições destinadas a produzir um objeto fenomenal
paÍa o espectador. Ao longo desse trabalho procuramos mostrar
como esse objeto, antes de ser realizado em pedra, em cor, em som,
organizava-se na percepção do seu criador. Este, ao tentar realiáJo,
foi também espectador, como nós seremos, uma vez realizada a obra.
Tais objetos físicos reais, esses que chamamos de obras de arte, so
são realmente físicos uma escultura não serve senão como escul-
-
tura devido a sua faculdade específica, aquela que o artista teve em
mira quando a estava criando na medida e:n que exercem esse
poder sobre o espectador. Como - coisa física, o objeto não é senão
uma série de condições que deverão pioduzir num sujeito outro obje-
to fenomenal. Mas que é isto senão o próprio processo da percepção,
estrutura primeira que o organismo fabrica sob o impacto de estí-
mulos externos?
+*a
81
se pense ser este um método sáfaro. Ao contÍário, ele p€rmite fre-
üentemente diferenciações mais sutis e seguÍas que o primeiro, con-
rme nos informa Paul Guilláume
' , Formas geométricas assim elementares são dotadas também des-
se'poder de nos afetar, de nos ditar atitudes. O ato de perceber é já
um\,ato de criação.' A forma percepcional obedece, no rudimentaris-
mo\de sua organização, às mesmas leis da boa forma que regem o
mundo e a obra de arte. Não se atende ao seu chamado, porém, com
o espírito do engenheiro, do especulador ou do camponês, ou mesmo
do cientista. Para penetrarmos o segredo que nos conta uma estátua
grega ou um afresco de Cimabue, os nossos conhecimentos práticos
ou científicos podem, ao invés de nos ajudar, nos servir de obstáculo.
Aquelas coisas falam por si mesmas, pois toda forma é um campo
sensibilizado. Está carregada de afetividade. A palavra ou o conceito
abstrato, a moeda comum de nossas relações mentais, não nos aju-
dam a entendê-la. Sigamos, pois, o conselho de Goethe aos seus com-
patriotas, sempre ciosos por aÍrancar de sua obra conceitos e idéias:
"Tende enfim coragem de vos abandonar às impressões, de vos dei-
xâr distrair, comover, exaltar, instruir, inflamar por alguma coisa de
grande, e não penseis sempre que tudo será vão se não for algum
pensamento ou idéia abstrata." sa Mas não é só o poeta, todo lirismo,
que assim pensa. O filósofo também escreveu: "É preciso comportar-
-se diante de uma obra-prima como dianto de um príncipe; não falar
primeiro, mas esperar que ela nos interpele. Do contrário não ouvi-
íamos senão a nós mesmos." (Schopenhauer.)
Rio de Janeiro, fevereiro de 1949.
82
- -----------7
FORMA E PERSONAI-IDADE
84
sejos recalcados, e que esta participa do mesmo processo causador
dos sintomas neuróticos, sonhos, alucinações e fenômenos semelhanteg
independentemente do valor ou desvalor científico de tais teoriad.
nada, absolutamente nada se disse quanto ao valor plástico da o/ra
analisada, quanto à ordem e qualidaães artísticas da'mesma. Só óm
aquelas afirmativas não se distinguiu, não se isolou, não se definiu
a mesm-a obra ou objeto como arte, e muito meÍros se explicóu a
sua razão de ser, ou se indicou a natureza ou a fonte das emoções
que desperta sobre os que a contemplam. l Os sÍmbolos, po**i*"
presentes, ou descobertos nela pelos analistas, também nàda direm
quanto aos verdadeiros, aos. autênticos impulsos estéticos que mo-
85
veram o seu criador e são os únicos que preocupam realmente os
artistas, os críticos, os apreciadores desinteressados. Essas análises
são, sem dúvida, do maior valor e inteÍesse, mas do ponto de vista
exclusivamente clínico. Ao fazê-las, o psiquiatra não está abordando
o problema da criação nem palmilhando o campo da estética. Não
estiâ dantto qualquer julgamento qualitativo sobre a obra. Ele está
simplesmente no exercício admirável de sua clínica.
É, por isso, de toda conveniência sejam consciente e rigorosa-
mente sóparadas do puro fenômeno artístico e estético, Pois interes-
sam sobietudo ao médico, ao especialista e aos neuróticos, autores
da ou das obras, objeto de investlgação. Fry, a propósito, e referin-
do-se às análises do- Dr. Pfister, 5 da maior importância, "tão úteis
quanto as análises dos sonhos dos pacientes daquele psiqúatra",
ácrescenta: "Mas, precisamente na proporçáo em que são valiosas co'
mo indicações da vida onírica do paciente, são sem qu4lquer valor
como indicações da natuÍeza real da arte." o
Nada mais contrário à essência das faculdades estéticas do que
os sonhos. Estes não participam como colnponentes intrínsems da
obra de arte. Antes de Freuá ter revelado o significado psicológico
do sonho, uma das suas descobertas mais geniais, já o próprio Mal-
larmé, o grande sacerdote da escola simbolista francesa, sustentava a
impropriedade do 'sonho na realização artística. No seu poema em
memóiia de Théophile Gautier, o Puro Poeta, ele bane o sonho do
jardim da poesia.- Sonhar é incompatível com a missão do poeta:
C'est de nos vrais bosquets déià tout le séiour,
Oà le poàte pur a pour gest humble et large
De I'interdire au rêve, ennemi de sa charge.
(Toast Funàbre. à Théophile Gautier).
86
muito pouca gente, enretanto, é capaz de perceber ú o sipificado
das puras relações formais. Como observa Fry, a grande maioria
procuÍa um significado que não está na obra em si, mas é extrínseco
à mesma, tirado principalmente aos valores da üda real. Vive essa
maioria sempre tentando "traduzir" a obra de aÍte em termos de
idéias familiares. A conclusão de Fry é incisiva: "Um artista é puro
na medida em que suâ arte se opõe a todo simbolismo." A forma de
uma obra de arte tem um sentido próprio e â contemplação da forma
em si e por si provoca em ceÍtas pessoas uma emoção especial que
não depende da associação da forma com qualquer outra aoisa, seja
de que espécie for. z
. Embora Fry só considere inerente à obra de arte uma coisa, isto
é, as relações formais, não afasta ele, porém, como insignificante ou
inexistente, outro problema psicológicó bem mais profundo do que
a cata, tão do agrado de certos amadores de psicánálise, das intêr-
pretações simbólicas e dos nexos narrativos inconscientes: as ori-
gens do impulso criador específico e da emoção derivada da con-
templação da obra. Ao contrário, levanta ele, a propósito, certas
-incõnsciente
hipóteses audaciosas, inclusive, como vinos, a do co-
letivo de Jung, embora sem o mencionar expressamente, e as entre-
ga ao estudo dos psicólogos.
87
formalista extremo, concebe que artistas de temperamento realista
podem só produzir obras de pura imaginação. O Poeta francês, po-
rém, subjetiüsta sistemático, faz do modelo interior o supremo prin-
cípio: "A obra plástica, para responder à necessidade de revisão
absoluta dos valores reais, a respeito da gltal hoje todos os espíritos
concordam, há de referir-se, então, a um rÍrodelo puramente interior,
ou não existirá."
"Esse modelo é um verdadeiro isolante graças ao qual, pela pri-
meira vez, o espírito começa a entÍeter-se de sua üda própria, em
que o alcan vel e o dese ável não mais se excluem, as noções do 1J
Assim, por exemplo, Iung, entre outÍos, fala em "modilo primitivg" que seria
recoberto, na zona limítrofe do consciente e incori$iêiGl-Fõi-ãõiilentes exter-
nos. O arquétipo seria assim um 'Ímodelo primitivo". O modelo de que fala
Breton é entendído no sentido estético e poÍ isso tanto pode resultar de fan-
tasi.âs, visões e imagens profundas do inconsciente (coletivo ou não), como, de
caráter mais fresco, do plano do puÍo eidetismo ou até da pós-imagem.
9. A. Breton, Le Suruéalísme et la Peinture, págs. 24-25.
10. Jeanne Hersch justifica magistralmente, no plano filosófico, a posição
formalista rigorosa de Fry, definindo o fator do inconsciente Ílâ esruturação
da obra de arte: "A verdade é que o conteúdo do inmnsiiente, não tendo
sofrido ainda qualquer contágio, mesmo aquele, viíual e vago, que atualiza a
realidade indiferente, encontra-se no momento em que é pressentido em estado
de virgindade, e por conseguinte de diponibilidade maior para a forma estética
que dele se apodera. A veÍdade é também que a própria forma, no momento
em que se cria, vem não se sabe de onde. Não se sabe encontrar-lhe a origem,
e então é preciso admitir que ela vem do inconsciente, isto é, da noite, como
toda idéia nova. Mas não é isto o que confere à forma a sua eficácia cÍiadora,
E se ela se utiliza das profundezas do inconsciente, a única superioridade que
esse elemento obscuro pode ter sobre qualquer outÍo provém de que, estando o
mais perto possível de um elemento puro, ele constitui, quando do processo
de encarnação, uma polaridade tanto Ínais lensa com a forma que se cria
Mas isto só é exato se se elabora verdâdeiramente esta realidade distinta, ma-
nifestada, isolada e total, que é uma forma. Fazer algo de obscuro com o
88
Breton, fazendo, no exflio de Nova York, nos anos terríveis de 1941,
o balanço das atividades pregressas do surrealismo e traçando a pers-
pectiva do movimento, perdia a intransigência dogmática dos pri-
meiros tempos e, recorrendo às últimas contribuições da psicologia,
sobretudo da Gestalt, scÍevra â ocura de uma síntese: "Sustento
que o automatismo gráfic o, tal como o verbal, sem prejuízo das ten-
sões individuais profundas que ele tem o mérito de manifestar e mes-
mo, dentro de certos limites, de resolver, é o único modo de expres-
são que satisfaz plenamente a vista ou o ouvido, realizando a unidade
rítmica (tão apreciável no desenho e no texto automático quanto na
melodia ou no ninho), única estrutura que responde à não-distinção,
cada vez mais aceita, das qualidades sensíveis e das qualidades for-
mais, como a não-distinção, cada vez mais aceita, das funções sensí-
lveis e das funções intelectuais (e é por isso que o automatismo é a
'única coisa que satisfaz igualmente ao espírito).- 11
A uerela do realismo e não-realismo é assim superada, pois nin-
guém escapa à realid ade, muito menos a alma sonora e sensível do
,, artista, nem a realidade tem outÍo meio de se manifestar senão
atra-
I vés da forma, to srn te rmln áveis discussões e admoestações
llsobre a necess idade de o artista ser de seu tempo, refletir as lutas do
llpovo etc., são banalidades que se travam fora do domínio artístico,
do mesmo modo que o chamado realismo social, novo lugar-comum
para o naturalismo acadêmico da mais baixa espécie. Nada disso é
sequer digno de consideração; o- JgSgg4g_dg_rcêliq4Ce tem hoje outra
profundeza, desde a revotução- nã-fiiicolãSã-tã7iã-a pela óbra de
Freud e os teóricos da estrutura..lz
89
O MUNDO FISIONÔ]UIICO E O FEilOf,IEl{O ARTTSTICO
90
chega aquele psiólogo a aventuÍar a hipóicse de que a denominada
arte naturalista dos caçadores pré-históricos derive de imagens eidé-
ticas, destacadamente tÍanspostas nas paredes da caverna que ser-
vem de fundo à obra daqucles aÍistas caçadores. Caberia, então,
com efeito, designar aqueles desenhos como naturais, pois constituíam
uma reprodução real da imagem eidética do objeto em foco. la
Werner, aliás, cita ainda o caso de um pintoÍ, seu amigo, que
costumava recortar, a tesoura, com perfeita segurança, contornos de
figuras imaginárias sobre lisos. Nesse mister, ele seguia à risca as
próprias imagens eidéticas que faziam assim o papel de modelo. 15
Um jovem artista modemo alemão dos mais dotados, Hans
Thiemann, que conhecemos em Berlim, em 1948, ultrapassou esse
processo de recorte direto: seu desenho se origina de uma ú linha,
sem inteÍÍupção, que depois de atravessar todos os meandros neces-
sários completa a imagem, arrematando, como num ponto final, a
composição. Também ele não pode hesitar, nem parar, nem corrigir-
-se. É um pÍoces§o que vem de dentro, mas com a segurança de quem
segue um modelo.
Processo com algo análogo é narrado pelo Dr. Mann, e trans-
crito ainda por Werner, a propósito do modo de trabalhar de um
artista bosquimano. Este começa lançando no papel ou numa lousa
certo número de pontos isolados sem qualquer ligação entre si e sem
indício do mais leve contorno. Ao observador tais pontos parecem
tão arbitrários como as estrelas no céu. Depois de um número sufi-
ciente de pontos, o desenhista começa a traçar uma linha atreüda e
livre, unindo as diversas partes do campo gráfico. 1o Surge, assim,
pâulatinamente, a formação do contorno de um animal, cavalo, bú-
falo, antílope, servindo cada ponto, por assim dizer, de referência.
E tudo isso é feito com um traço preciso, ligeiro e definitivo, que
exclui qualquer emenda ou retoque. Segundo o mesmo Dr. Mann,
esse seria o processo empregado, em suas pinturas, por todos os artis-
tas da tribo. rz
91
Os educadores ultramodernos da Inglaterra e dos Estados Uni-
dos não empregam hoje métodos muito diferentes para despertar o
gosto e a capacidade artística de crianças e adultos. "A garatuja bá-
sica graças à qual o senso aÍtístico da criança pode ser estimulado
nada tem que ver com a visão e a recordação consciente; é uma
coisa puramente física e emocional . . . Qualquer criança, mesmo
que ainda não tenha ido à escola, pode desenhar, ou, se preferem
chamá-lo assim, rabiscar. EntÍetanto, é este mesmo rabisco despre-
zado que é tão importante." E ao f.azer tal coisa, a criança se está
exprimindo a si mesma. O Dr. Johnstone, apoiado na sua própria
experiência pedagógica no campo artístico, assim completa, por seu
lado, essa observação: "qualquer adulto também pode fazê-Io... e
é desses rabiscos que vem a arte verdadeiramente criadora". 18
É fato registrado em todos os meridianos, por exploradores,
antropólogos, psicólogos, sociólogos, a extraordinária capacidade mne-
mônica dos primitivos e selvagens, tanto do domínio visual como audi-
tivo. Por outro lado, sob a influência de impulsos emocionais, o sel-
vagem ou homem primitivo não parece perceber a totalidade dos
signos objetivos de uma coisa ou objeto; bastam-lhe alguns fragmen-
tos, entÍevistos ou salientes, do exterior paÍa que elabore uma totali-
dade ilusória. É assim que Werner explica a significação naturalista
dos ornamentos e "a compreensão mítica da natureza".
As investigações psicológicas modernas estão Íevelando, por toda
a paÍte, com uma constância de lei, o contraste entre a vivacidade
e frescura sensoriais do mundo das representações mentais do homem
primitivo, do selvagem, e a pobreza cinzenta e neutral do nosso. As
imagens subjetivas naquele abundam em visões eidéticas, de tal sorte
que se aproximam das imagens intuitivas típicas do mundo percep-
tivo infantil. Reina na mente do selvagem uma quâse perfeita intimi-
dade entre representações e intuições fenomênicas. Suas imagens sub-
jetivas são por isso mesmo mais complexas. "O mundo peÍceptivo da
criança e do selvagem se acha muito mais determinado pelo sentimento
(é um mundo fisionômico ou expressivo ) que o mundo técnico, frio,
neutro, dos adultos civilizados." 1e
Os objetos, nos selvagens e crianças, nos artistâs freqüenlemente
e nos alienados em geral, são impregnados do "ego" do obsetvador,
ao passo que no adulto culto ou civilizado normal são cada vez mais
desligados. É essa impregnação fenomenista que empresta caráter
fisionômico ao objeto; este nos chega através de um sentimento glo-
bal inicial, pela preponderância do que nele é valor expressivo. Mas
esse caráter fisionômico não se limita às percepções do homem ingê-
ql
nuo e primrtlvo, pois se encontra mesmo nas suas Íepresentações
mentais. Sendo as imagens eidéticas fenômenos de natureza interme-
diária entre representações e percepções, Werner conclui serem esses
estados intermédios eidéticos também fisionômicos.
Os fenômenos fisionômicos são assim intimamente relacionados
com as formações eidéticas. O selvagem, quando imagina, ou pensa,
na verdade está vendo; vendo uma imagem, vivendo um sentimento
global. No fundo, pensa, mas por imagens. Um adulto eidético, exem-
plifica Werner, vê deslizarem por um monte figuras que comunicam
à paisagem uma expressão típica. Essas formai imaginárias tendem
a desaparecer, à medida que a visão se precisa e se iiola.
Os poetas, os visionários estão cheios dessas imagens. Os Lusía-
das são todos um poema eidético; suas paisagens e cenas são con-
taminadas desse poder fisionômico. Camões via literalmente desliza-
rem figuras por montes, como no exemplo do psicólogo. Tais figuras
davam expressão fisionômica à paisagem, exatamente como indica
Werner. Veja-se, por exemplo, o episódio do Adamastor. O caráter
fisionômico da paisagem é bem expresso pela famosa invocação de
Vasco à Potestade sublimada:
93
. Toda a epopéia camoniana está cheia dessa qualidade fisionô-
mica- que os olhos do poeta apreendem em tudo qüe vêem, no cor-
rer da circunavegaçã<r "por mares nunca dantes nãvegados,,. zo
Gauguin também nos revela as origens fisionômicas de algumas
- suas telas. Descrevendo a gênese dé seu famoso quadro
dg ítlano!
Tupapo! conta como, ao ver uma jovem taitiana este-ndida em um
leito, veio-lhe a idéia do quadro. E passa, naturalmente, a pintar a
cena que tem diante dos olhos. No correr da realização, !m que
exclusivas preocupações técnicas o dominam, problemãs de linhàs,
cores e formas, .,expressão
_de repente sente necessidade dó dar afe-
tiva" ao rosto da mulher deitada, ignorante da presençá do pintor.
Que faz o artista para atender àquõla súbita visão fisionômióa que
descobre na taitiana? Introduz o ãeus nativo, e é a aparição dôte
que explica a expressão apreensiva estampada na atltud-e e no rosto
da moça. O processo da criação em Gauguin é assim de pura natu_
reza fisionômica. 0 deus nativo aparece para justificar a expressão
que ele encontra na mulher, impaisível ou indiferente. A expressão
nâo é dada realmente pela_ moça, mas pela pÍesença de uma imagem
invisível que surge aos olhos emotivos do pintor.
As ca§as e os jardins arruinados, os muros velhos davincianos,
as paisagens de infância, as velhas árvores, mangueiras e cajueiroi
do caminho, do fundo do quintal, os bambuzais à-beira-rio, oi mor-
ros do horizonte familiar nativo, tudo aparece aos olhos infantis e
aos homens sensíveis como seres animadôs de extraordinária vivaci-
dade de expressão. por que a velha montanha, a antiga paisagem,
-Eis -
conservam o significado afetivo oriundo daquelas visoes. Ê aisím
que o monte conserva a "sua cara", na precisa expressão de werner.
No fundo, não se vê o que se quer. Vê-se, simplesmente, quer
dizer, é-se tomado pela visão, assaltaáo pela imagem.
. Delacroix, Gauguin, Camões, o super-racionalista Da Vinci, as
crianças, Hoffmann, os selvagens primitivos, os alienados, os artiltas
em geral, tão todos seres dotados dessa riqueza, dessa extrema afeti-
vidade expressiva na visão, nos sentidos afinal. Ainda, segundo Wer-
ner, todos os adultos eidéticos que ele conhece são dolados desse
poder de vivenciar os objetos, conforme os valores de expressão.
- - . O-mundo
frênico!),
Íe_presentativo primitivo (tão análogo ao do esquizo_
de caráter- tipicamenre eidético, tem u mãis íntima reiação
com o mundo fisionômico da percepção. 2r São dois mundos, na rãa_
lidade entranhadam_ente ligados enire si, dificilmente separáveis ou
distinguíveis na prática. Mas é dessa sincronização que provém o
94
caráter fisionômico, afetlvo, de toda forma. Num mundo como no
outro, explica Werner, o primitivismo da vida psíquica se evidencia
pela maiór complexidade e a menor separação dos planos interno e
êxterno. Nos eidéticos, desde a infância, não há diferenciação entre
representação e percepção. Jaensch e Werner explicam essa falta de
diferenciação pelo fato de as imagens externas e as internas se entte-
laçarem nas cãmadas profundas da mente, onde todo objeto aparece
impregnado de vivências fisionômicas. Segundo experiências ainda
de-Jaõnsch e de Krellenberg, eidéticos maduros ou velhos que sabem
observar-se afirmam possuir uma imagem inteÍna 22 que constituiria
uma vivência significativa de tipo afetivo, a qual precederia genetica-
mente o desenvolvimento da verdadeira imagem ótica. Nessat expe-
riências'se verifica que os objetos de importância significativa para
a pessoa se apresentam com maior clareza na visão eidética, enrai-
zada na esfera afetiva profunda, do que os objetos indiferentes.
Essas verificações se confirmam no domínio do plano aÍtístico
puro. No homem primitivo, na criança, as coisas participam da -vi-
vência afetivo-motóra, ao serem PoÍ eles descobertas. Não há conhe-
cimento abstrato, isolado, da coisa. Se uma ârvore ê para nós, oci-
dentais, uma árvore mesma, situada precisamente oum sistema rigo-
roso de conhecimento que elaboramos a régua, compasso e cifras,
para os homens do longínquo passado, entretanto, nas eras pré-his-
ióricas ou proto-históricas, nas culturas primitivas contemporâneas,
a coisa parece mais complicada.
O ocidental só em raros momentos, no ramerrão pardo do quo-
tidiano, tem a visão perturbada por outÍos estados concorrentes de
ordem afetiva. É natuial essa discrepância de atitudes. Deve-se levar
em conta a multidão de coisas, aparências que o primitivo não co-
nhecia, nem criou, em comparação com a multidão de coisas que, o
civilizado de hoje desvendou, destrinçou, analisou e, sobretudo, fa-
bricou no mundo em que vive. Para aquele, a natureza era o novo'
o desconhecido e o súrpreendente. Para nós, hoje, já é quase um
animal doméstico, ou, pelo menos, semidoméstico, "Só em escassas
ocasiões, por isso meslno, o mundo-ambiente é determinado - pelo
homem civilizado em função de sua expressão intetna, isto é, de
seu caráter fisionômico. Tal ocorre, por exemplo, quando se Per-
cebe uma paisagem em atitude estética. Então muda totalmente o
tipo de vivéncia: busca-se e, até ceÍto pontor encontra-se "expressão
nã paisagem", esta aparece à nossa experiência de modo fisionômico.
É éntão que se pode falar de uma paisagem "alegre" ou "triste",
"agradável" ou "feia", excitante. mística ou n<lbre" etc. es
9.5
O homem civilizado é cada vez mais parcimonioso desse tipo
de vivências. Não é comum, em sua vida, deparar com esses objetos
do conhecimento fisionômico. Quase que estão hoje reduzidos, para
a maioria dos homens cultos ou semicultos de nossos centros urba-
nos, ao coÍpo e ao rosto humanos. uma parte cada vez mais Íestrita
do mundo dos objetos é que ainda hoje cai, na nossa civilização, sob
a ação daquela vivência fisionômica, isto é, daquele modo de co-
nhecimento afetivo-expressivo. A atividade artística é a ilha onde
esse conhecimento é ainda empregado, emborâ toda uma parte dela
lhe seja contrária: a atividade acadêmica. Esse processo Íestritivo
tem caráter histórico. Nos tempos mais primitivos, ao contrário de
sua raridade atual, era o üpo de conhecimento mais espalhado, pois
eÍa o que realmente correspondia à concepção geral do universo
predominante.' Tudo tinha caÍa. (Werner)
É preciso, entretanto, evitar uma confusão. Tal modo de conhe-
cimento não se devia ao chamado antropomorf ismo, isto é, a uma
transposição à natureza do pensamento e do modo de ser especÊ
ficos do homem. A concepção fisionômica do mundo primitivo pouco
tem a ver com a idéia do antropomorfismo. É coisa mais profunda
do que uma analogia superficial e engenhosa, fruto de um pensamento
relativamente moderno e mais complicado. Na imagem fisionômica
é onde primeiro se manifesta a intuição contemplativâ, é o primeiro
modo de conhecimento positivo do homem em face da natureza; é
a ligação já criada pelo homem entre o mundo do vivo e o do ina-
nimado.
O fenômeno artístico consiste, no fundo, em ver tudo fisiono-
micamente, como se se tratasse de um conjunto de planos e linhas
animados de expressão, isto é, uma cara, um todo. As formas exte-
riores se apresentam aos nossos sentidos, ao nosso pensamento, do-
tadas de vida, como o corpo, o Íosto dos seres humanos. Se tal
maneira de ver era a mais generalizada no mundo primitivo, ao Passo
que no mundo adulto civilizado é ultra-restÍita, na criança e no alie-
nado de hoje, seres que transpõem os espaços históricos e os tempos'
para afinar com os povos primitivos, é o modo predominante de
"conhecer". A arte é um fenômeno místico-mágico, pois consiste em
ver, classificar as coisas fisionomicamente, apagada ou obscurecida
a diferença, a distinção entre o mundo vivente e o inanimado.
Nesse processo geral fisionômico dá-se uma participação emo-
cional e dinâmica do homem na formaçáo dos objetos. O primitivo
não vê ou verifica, impassivelmente, como um manipulador de labo-
ratório, Do mesmo modo â criança, o esquizofrênico, o artista, nada
96
podem contemplar, de novo, sem emoção; a maioria de nós outros,
porém, tudo vemos, sem nos comover. 2a
Entre os adultos, os
_doentes mentais não precisam de passar
por experimentações de laboratório para perceber as coisas, as for-
mas, sem ou fisionomicamente. Eles não preóisam de
-indiferença,
ser induzidos a uma atitude emocional prévia para perceber a,,cara,'
das coisas. Vêem tudo simultaneamentê por óentró e por fora. Daí
é que tão espontaneamente, tão facilmenà se deixam làvar por uma
atitude €stética; e quando são dotados de talento plástico, realizam
-
obras de
.causar admiração. Movidas pelo mesmô irnpulro ã !*
milhares de pessoas humildes empre§ados públicos, porteiros, ia_
pateiros, jardineiros se dão- anonimamentê ao passa-tempo' do_
-
mingueiro de Íazer objetos novos, inéditos, de pintár, esculpir, pelo
simples prazer de criar. São criadores virgens. §ão homens'que' até
hoje não conseguem contemplar o mundõ sem estÍemecer, cãmovi_
dos.25
.,
24. .Essa. intuição fisionômica das coisas já pode ser provocada nos labo_
ratoflos de psicologia. No Instituto de Hamburgo, a que pertencia Werner, esse
tipo de experiência é feito com. adultos no.."i.I iu!"i".se'f,ririu-"nte à pessoa
da experiência determinada atitude aferivâ. O.p"i§ àpri*J.ú_se-lhe uma série
de figuras que não lembrem objetos naturais à, ."rÍr-ãÃn., convidando_a
então a descrevê-las. Esses objetos ou figuras são
cação em virtude da atitude emocional dãntes preparaOr. -n."üiãà, em sua signifi-
iàm_se assim a de_
monstração .de que são elas determinadas em paÍte de modo fisiohômico.
Sob uma atitude geral ambiental e perceptiva trisie, a linha mais abstrata _
u.ma r€ta descontínua, por cxemplo pode
- Sob aser
trgura mesma da tristeza individualizada.
concebida, sentida, como a
àtitude experimental da cólera
uma flecha adquire extraordinário poder agressivo. É essa dinâmica das coisas
que, integrada significativâmente, dá caráter fisionômim (não nêutro) aos
objetos de linhas expressivas. R. Krauss, colaborador de Werner, fez essa
demonstração naquele laboratório com metais. Ver R. Krauss, Uebear Graphis-
chen Áusdruck. Apêndice 48 psychoit., 1930. Ve; H.
Werner, oá. cít. - Zeitung angewandte
,25. propósito, enr paris, fundou-se, em 194g, uma organização, a
^ ^ de
Conpognie- I'Arr Bntt, hoje com museu instalado
(Paris,7.o), tendo como fundadores André Breton, J. à'Rua del,úiversité,' l7
Dubuffet, J.ean paulfran,
Charles. Ratton, Henry-Pierre Roché e Michel Tapié. Essa asiociação visa
descobrir "obras arlísticas tais como pinturas, desejhos, estátuas e estâtuetas,
toda sort€ de obietos, que nada devarn (ou devam o menoe possível), à imi-
tação das obras de arte qu€ se encontram nos museus, salõeÀ e galeiia; mas
que ao contrário façam apelo ao fundo humano original e à inienção mais
espontânea e pessoal; produçõês cujo autor tenha tirado tudo (invençãd e meios
de expressão) de dentro de si mesmo, de seus impulsos e eitados- de espírito
próprios, sem a preocupação de fazer concessõei aos meios habituâlmente
.aceitos, sem consideração pelas convençóes correntes. As ohras desse tipo nos
interessam mesmo que sejam sumárias o executadas desajeitadamente".
"Procuramos trabalhos em que as faculdades de invençáo e de criação, que a
nosso ver existem em todos os homens (pelo menos em certos momentos), se
nranifeslem de um modo muito imediato, sem diíarce e sem constrangimento."
97
.Ao lado deles temos outro grupo de adultos, que também não
precisam submeter-se a experiências de laboratório para perceber
as coisas sentindo ou expressivamente. São os aÍtistas. Suas auto-
biografias contêm, nesse sentido, um ÍepositóÍio inesgotável de exem-
plos de experiências fisionômicas. O próp1io Werner o reconhece:
"Os verdadeiros artistas mostram em toda a sua pureza esse tipo
(de vivência expressiva) e obrigam o observadoÍ a imergir nos estados
mais profundos do mundo vivencial, para chegar à assimilação de
suas obras". ,6
Exemplo dos mais lúcidos desses testemunhos de artista nos é
dado por um dos grandes mestres da pintura moderna, e um dos
seus teóricos mais profundos, W. Kandinsky. 2? O psicólogo de Ham-
burgo faz dele essa citação: "Não só a estrela contemplada... como
também o cachimbo que se encontra sobre o cinzeiro, o branco e
paciente botão de calça que brilha à calçada da rua, ou aquele humilde
pedacinho de córtex da árvore... tudo me recorda a sua cara." "Os
tubos de cor parecem-se com homens poderosos, mas até então sepa-
rados, que bruscamente e por necessidade descarregassem suas forças
reprimidas e se junta§sem em ativa convulsão.',
"Os trabalhos que nos interessam têm quase sempre por autores indivíduos
muito isolados, cuja atividade ú é conhecida de seus íntimos. Temos, pois, a
maior necessidade de auÍlio nâs nossas pesquisas, e ficaremos muito gratos
às pessoas que, conhecendo um desses criadores obscuros que desejamos aiingir,
nos queiram pôr em contato com ele." "O prospecto assinado pelo pintor mo-
derno J. DLrbuffet, responsável pelo museu, terÍnina por um apelo aos psiquia-
tras: Entre as obras mais interessantes que en@ntramos, algumâs são de autoria
de homens considerados doentes mentsis internados em estabelecimentos psi-
quiátricos. É natural que as pessoas pÍivadas de ocupação e de prazeres mos-
trem maior tendência (o que aliás tamÉm acontece com os prisioneiros) do
que outros a fazer, por intermédio de uma atividade artística, festas para seu
próprío gozo. A i<téia rígida quê se tem, em geral, sobre a saúde do espírito
e a loucura nos parece baseada em distinções freqiientemente arbitrárias. As
razões pelas quais o homem é julgado inapto à vida social são de uma
ordem que não nos interessa. Pretendemos, por conseguinte, ver com os
mesmos olhos e sem estabelecer categorias especiais os trabalhos de autores
reputados sãos ou reputados doentes." (Notice sur la Compagnie de I'Art Brut,
J. Dubuffet, outubro de l94E).
26. H. Werner, ob. cit., p. 59,
27. Werner, a propósito dele, escreve: "Kandins§ foi um artista que não
só concebeu fisionomicamêntê o mundo, como conseguiu exprimir verbalmente
a sua concepção de modo insuperável." A apreciação do teórico e pesquisador
da psicologia genética é, no caso da maior autoridade e faz mais justiça à
lucidez teórica e psíquica do grande artistâ que foi também um professor emi-
nente em Bauhaus; na Alemanha de antes de Hitler, iuntamente com P. Klee,
Gropius, Feinninger e outros mestres, todos ví imas do obscurantismo nazi-
-totalitário.
98
Outros depoimentos diretos abundam no mesmo sentido. Um
.ros jovens pintores modernos franceses, de tendência não-figurativa,
Atlan, teve ocasião de revelar, numa entÍevista a Paru, como suas
formas, suas imagens ditas "abstratas" são impregnadas desse calor
afetivo-fisionômico. Aimé Patri, diretor da revista, o interroga sobre
os problemas da arte contemporânea, especialmente da pintura não-
-figurativa. No fundo, diz o pintoÍ, a arte abstracionista segue aquela
recomendação de Mallarmé aos poetas para cederem "a iniciativa às
palavras". Os pintores "cederão a iniciativa às formas, às cores e às
luzes, sem partir de assunto preestabelecido", sem preocupaÍ-se com
o resultado, isto é, se a obra se parecerá ou não com alguma coisa.
E ao interlocutor que citava Breton, para quem não é dado ao
artista inventar formas para as quais não se encontre qualquer afi-
nidade com as da natuÍeza, Atlan respondia: "Não há dúvida, mas
não é absolutamente necessário atentar para isso de modo excessiva-
mente pÍeciso; tal motivo lembrará tanto penas de pássaros como
escamas de peixes ou dentes de animais. As inteÍpretações semelhan-
tes devem conservar-se polivalentes e o que elas deixam subsistir é,
no sentido da Gestolpsychologie, uma forma inconscientemente caÍre-
gada de certo poder afetivo. É nesse sentido que minha aÍte permanece
'não-figurativa' sem se desviar para outro caminho que seria o da
decoração pura e simples."
Em outro ponto da entrevista, Patri levanta a conhecida objeção
de que, se as puras qualidades formais podem contentar os artistas,
em compensação o espectador se agarÍa a elementos que possam
servir de alusão a formas ou objetos encontrados na natureza. E a
Íesposta do pintor é esta: "A condição do sucesso me parece residir
na combinação, ou melhor, na perfeita coincidência das qualidades
formais com certo valor afetivo de expressão lírica... É preciso
que as formas que se possam inventar sejam capazes de 'viver', tanto
quanto as que se encontram na natureza."
Esse mesmo Atlan ilustrou uma obra de Kafka (A Descrição
do Combate). Aparentemente o assunto estava dado, e competia ao
artista ilustrá-lo, isto é, figurativamente. Cabia-lhe fazê-lo "de modo
anedótico", como de praxe, ou, conforme sua própria expressão,
"encontrando, por outro caminho, pela invenção daquelas formas, o
clima de uma obra à qual sempre fui particularmente sensível. A
ilustÍação anedótica como a que se costuma fazer paÍece-me uma
medida inútil, pois que o texto deve bastar-se a si mesmo nesse plano.
Se se fala de uma faca, de que serviria evocaÍ a faca? Mas eu tentei
uma transposição livre em outro domínio. Ainda uma vez, se essas
formas que aparentemente nada "significam" mas que devem ser
carregadas de um conteúdo lâtente, senão manifesto, conseguem viver,
99
terei triunfado. É nisto que consiste a virtude "mágica" que muitas
vezes se atribui ao empreendimento artístico".28
Assim, mesmo os aÍtistas mais cônscios da pureza de sua arte,
mais hostis a elementos literários, didáticos ou interessados, estranhos
aos problemas pictóricos e plásticos, como ele e os não-figurativistas
ultramodernos, não se fundam em outra coisa senão nesse mesmo
poder de transfiguração expressiva que é a obra de arte.
100
algo extetno, como um todo, independente dos elementos psíquicos,
das alucinações, visões e estados oníricos que lhe possam iumultuar
o ser, isto é, na _qualidade de artista,2e como também por parte do
espectador, é indispênsável essa autodepuração subjetivista
-e
aprio-
rística.
Para a psicologia genética, no entanto, essas naturais influências
afetivas e motivos incidentes, predominantes no mundo do puro eide-
tismo
-pré-percepcional, seriam normais em períodos mais primitivos
da vida psíquica. so Proviriam daí as afinidádes psíquicas àe muitas
das obras de ar_te de povos primitivos, passados ôu ôontemporâneos,
com obras de alienados. É fato já apurádo e comparado, a'analogia,
o parentesco espiritual e formal entre artistas alienados e artistaide
povos ditos selvagens. Prinzhorn nos comunica, entre vários, um caso
extraordinário de semelhança de certas figuras em madeira de um
ex-pedreiro transformado em escultor com -imagens, também em ma-
deira, de ídolos e deuses de povos da Oceaú e da Nova Guiné.
A afinidade é tão grande de Confundir-se. sr
O problema tem para muitos explicação genética. Demonstraria
a evolução ,psíquica paralela do indivíduo e da espécie. para uns, o
fato se esclareceria por uma lei de biogenética iundamental. para
outros, por outra lei de âmbito mais restrito, ou..de recapitulação',. se
Por ela dar-se-ia no psicopático um desenvolvimento unilaterál, exa-
gerado, de modalidades da vida psíquica que foram normais em es-
tados de evolução mais primitivos. Corroborando essa hipótese, Wer-
ner sustenta ser a escassa diferenciação entre os mundos perceptivo
e Íepresentativo-eidético' um dos traços característicos comuns tanto
ao selvagem como à infância. O caso se torna patológico se essa
pequena diferenciação continua ou se agrava na vidà aduú. Nas fases
mais primárias da vida psíquica, tanto individualmente como cultu-
ralmente (sociedades primitivas) predominam as influências externas
ao lado das visões oníricas ou hipnagógicas, as alucinações, ilusões
etc., que n-ão se distinguem da visão ou da interpretaçâo objetiva da
natuÍeza. ss
l0l
O conceito de recapitulação é, sem dúvida, uma generalização
absurda, pois a identificação não se justifica, não se verifica a esse
ponto entre a vida mental e psíquica do selvagem e a do psicótico.
Há, entretanto, certo paralelismo, objetivamente verificável, entre fe-
nômenos evolutivos da psicologia social e genética e a psicopatologia.
Há formas primitivas de representação mental do selvagem que se
encontram no psiótico. Werner fala em hábitos psíquicos lormais
que ficaram na mentalidade do alienado ou do esquizofrênico. Veri-
ficar-se-ia neste um despojamento total de meros acidentes culturais, de
pormenoÍes, conhecimentos superficiais externos, de conceitos acumu-
lados através dos anos, de modo que o espírito ficaria solitário, des-
nudo quase, irredutível, como o dos primeiros homens em face de
um mundo exterior estranho e de homens, também virtualmente des-
conhecidos ou ignorados.
No período do desenho infantil, quando a criança, geralmente
interrogada, diz estar representando animais, homens etc., ou qual-
quer outra figura, por meio de linhas esquemáticas, ou por simples
garatujas, Werner, entre outros, p€rgunta se não há nessa atividade
um fator fundamental que, não se limitando à auto-expressão através
daquelas linhas ou garatujas, tenderia inclusive a estender-se ao pró-
prio tipo de percepção e pensamento. Não haveria aí uma correspon-
dência, uma correlação entre o esquematismo do desenho e aquela
fase evolutiva, também esquemática, dos conceitos fundamentais mal
diferenciados? Uma linha, um esquema indiferenciado serve muitas
vezes para Íepresentar, no desenho infantil, objetos diferentes, um
pássaro ou um homem! uma casa ou um cavalo; mas em plano idên-
tico, certas palavras aparentemente muito gerais não servem muitas
vezes para designar os objetos mais variados?
102
Através das obras gráficas, dos desenhos primitivos, pode-se
obter, desse mesmo modo, a representação das diversas modálidades
do ser pessoal de um adulto. Cada idade na evolução corresponderia
a "um plano arquitetônico do espírito". Não nasceria daí o tonceito
do paralelismo entre as representações visuais e imaginárias do psi-
copata e as dos homens de civilizações primitivas, õontemporântas
ou pré ou pÍoto-históricas? E assim vemos por que Fry, verificando,
por seu lado, a observação tantas vezcs fêita, reconhece que o signi-
ficado emocional sugerido pela obra de arte tem pontoÀ de seáe-
lhança com os sentimentos emocionais oriundos de eitados primitivos
inconscientes, Íepresentações eidéticas, por assim dizer coletivizadas
nas civilizações primárias.
_ . Os
povos primitivos, as primeiras civilizações pré ou proto-his-
tóricas, não consideravam, como nós o fazemoi, os àevaneiôs, as im-
proüsações dos seres tocados de epilepsia ou de outras modalidades
de perturbação mental. Não inspirava piedade, ou desprezo, aquele
que, na comunidade, se destacasse por anomalias e eitravagâicias
mentais, dentro de um corpo fisicamênte são. O profundo anímismo
dominante o tornava, muitas vezes, portador de fãculdades sobrena-
turais. Era amado e venerado ou témido e respeitado, conforme a
forma agressiva ou benigna das manifestações de sua anomalia men-
tal. Era considerado antes um ser superioi, munido de poderes, ma-
lignos ou benignos, maiores do que oi do comum dos m-ortais, ê não
um cnfermo digno de comiseração, objeto de chacota púbiica ou
condenado ao isolamento forçado.
O ministério daqueles poderes só poderia ser acessível aos ini-
ciados, aos sacerdotes, sem relação com qualquer processo psicopa-
tológico ou enfermidade. Com o advento do cristianismo, màs já -na
Idade Média, houve teDdência a confundir suas manifestações com
os pod-eres advindos de pactos com o demônib. Foi a época de per-
seguição a ferro e fogo dos heréticos e loucos, identificados cõmo
bruxos-e bruxas, os quais em verdadeira epidemia deram de surgir
aos milhares e por toda paÍte, enquanto as fogueiras da Inqúsiçáo
não tinham mãos a medir, na perseguição dal almas alienaldas - de
Deus e entregues a sinistras manipulações de demonologia.
Antes, porém, dessa alucinação medieval genpÍalizada de pavor
do diabo na época em que a velha ordem feuddl desmoronava, os
loucos eram possuídos do deüônio, de modo inspirado, sem a cum-
plicidade das bruxarias e dos contratos com os poderes do inferno.
Tratavam-nos com respeito, tidos que eÍam por sagrados, e, de qual-
103
quer foÍma, podeÍosos demais para alguém atreveÍ-se a pretender
reduzilos ao estado de "normalidade". 3{
O problema era de ordem sobrenatural ou, melhor, cultural'
O homà primitivo e, parcialmente, o homeú antigo e o medieval
não distingúiam entre o normal e o anormal, entre comportamentos
padronizaãos e não padronizados conforme nossos hábitos de hoie'
Às culturas primitivai não conheciam acidentes ou acasos. Tudo era
predeterminado. O critério Por que se distinguiam, enumeÍavam ou
àatalogavam as coisas, era árbitrãrio, animistã, expressionista, subje-
tivo. úesmo em fase mais evoluída da cultura, entre profetas e sa-
cerdotes da Antigüidade, cujos nomes eminentes nos chegaram- até
hoje através dos-textos leigos ou sagrados, dificilmente se poderia
diitinguir os sãos psiquicamente dos não sãos. A própria Bíblia nos
inforria que Ezeqúiel- era coprófago. Saul era sujeilo a abatimentos
periódicos, com tendências suicidas e homicidas.
Como separar, nos profetas e poetas daqueles tempos' o louco,
o neurótico, o doente mental do homem são, quando seus contem-
porâneos não faziam essa distinção, e, muitas vezes, nem sequer
iuspeitavam que alguém pudesse Íazê-la? Os estados estáticos dos
profetas indicariam "estados mentais patológicos". sr
Sócrates demonstrou, na srta Apologia, segundo Platão, que os
poetas não sabiam o que faáam, nem o que diziam_ nos seus poemas'
i.tão é pelo conhecim-ento laboriosamente adquirido qu€. os artistas
criam poemas ou estátuas. "Não é pelo engenho, diz Sócrates, qu€
os poetas escrevem versos, mas por uma espécie de gênio e inspi-
raçâo. Os poetas são como os adívinhos e os videntes que também
diiem muiias coisas belas, mas não lhes compreendem o sentido.
E os poetas me pareceram estar muito no mesmo caso." 30
Para Platão a loucura não é mero estado de apagamento da
inreligência. Os poetas e os profetas, os dizedores de sorte agram
por iáspiração, poÍ uma espécie de irradiação inconsciente divina-
iOriu. Á loücura não é só um mal. Há também uma loucura, diz
Sócrates a Fedro, que é dom especial dos céus, e a fonte das maiores
bênçãos entÍe os hômens. Pois á profecia é uma loucura e os profetas
de Delfo e a sacerdotisa de Dadona, quando fora dos seus sentidos,
derramam grandes benefícios sobre a Hélade, tanto na vida pública
como privaãa, mas quando em pleno juízo, poucos ou nenhum' Os
antigoJ inventores de nomes, prossegue Sócrates, não consideravam
104
a. loucura uma d€sgÍaça ou uma desonra, pois do
contrário não teriam
chamado-.a profecia, a mais nobre das' ártes, pelo mesmo nome
da
loucura, ligando assim inseparavelmente uma'càisa a outra. E, deba_
tendo o parentesco do vocãbulo grego para uma e outra coiia,
dis_
tingue ele.também entre profecial ãdiíinlaçao. Aquela é rnril
e mals p-erlelta que esta, tanto em nome como na realidade,
;ita
na mesma
proporção em. que a loucura é superior à mente sã, pois
a ,iftúa ã
apenas de_origem humana,
.ao pàsso que a primeià é ã"-;;;;
a propósito, ôs mom'entos tiaÊi"L. em que pragas
l,:T::t_:,f^*":1
e catamldades caem sobre um povo. Então a loucura, e.guendo
íuu
preces ê ritos, vem em socoÍro aos que estão
ly:-:i!Tdjld"1r:
em arrrçao. Mas há"T ainda uma terceira espécie de loucurâ, que
"um dom das musas: esra apodera-se a. o-ááirnu J"ricaaa e'viilem,é
e aí, inspirando frenesi, desperta as coioas iíri;;r- rantas outras,
com elas enfeitando as míria_des de ações de hiróis " ,"tig;;;;;
d-a posteridade". Mas aquàle q;", ;ã; .""ao
:":Pt1lp lo.piirao
r,.r9o nenhum toque de loucura elrr sua alma, vem àté às
-T: do tempro, pensando que nele pode entrar com o auxírio
:porras.
do
engenho, não será afirma Sócrates _ na*.t"-n". sua poesia,
-
j:ff*.:X? não chega , p"'1"'uil,,u quandô entrá
lt,Ti:','*:':";"
. Pela sua teoria, ao lado de rma loucura produzida
mrdade }umana,
pela enfer_
há outra, fruto da divina liberlaçâã dos
raflos do homem. A última, a divina, subdividiá_se em meios ordi_
quatro va-
riantes: profética, propiciatória, poética e eróricã, cada umà
seu
patrono, Apolo, Dionisios, as Musas e Eros. "om
.Era assim generalizado nas civilizações antigas o respeito quc.
se tinha aos devaneios da _loucura sagrada, uoa- t.urae, e êxtases
de profetas, e poetas e iluminados. Recoiheciám-se em tais
fenômenos
autênticos elementos culturais.
Com o Renascimento é que começaram as anomalias mentais
a ser mais sistematicâmente ofieto doj cuidados do médico. Essa
atitude univeÍsalizada de respeiio, admiração oo t"..or, comum a
povos do alto.passádo não estaria a indicar que algo de
1"_1?:_9:
pÍotundamente substancial, para compreensão da vida ão es[írito,
esconder-se-ia sob esses fendmenos de transviamento mentais?
O insinuador _da. questão, prinzhorn, observou a propósito o
fato de estados_ psíquicos de grande riqueza, tidos por miúrares de
an9:.no mais alto valor, serem hoje simplesmente deiunciados como
mórbidos, como se tal enunciaçãô esgótasse todos os aspectos do
fenômeno. Na. realidade, se os antigo; pecaram por ignoiância
ou
superstição, nós pecamos por grossei-ro émpirismo' e urí empobreci_
J05
mento espiritual que de dia para dia se torna mais chocante, perni-
cioso e abominável. Que reação tem o público em face'das mesmas
manifestações consideradas no passado como altamente inspiradas
ou dignas de consideração? A mais Íeles possível, a mais acanhada,
preconceituosa e maléfica. E por isso é-se tão propenso a escarneceÍ
de seus manifestantes, e tão brutalmente solícito em isolá-los, esma-
gá-los pela camisa-de-força e o confinamento, a destruiçâo rnoral,
espiritual e física; é o reino do utilitarismo racionalista burguês, em
uma de suas expressões mais baixas e vulgares,
Pondera, entretanto, com toda a moderação, o autor de A Ima-
ginária dos Doentes Mentais: tal desmascaramento, denúncia assim
sistemática e sem freios ao que sai fora da norma convencional, deve
ser por isso mesmo falso. Pelo menos, conclui, algo de essencial
há de se perder com essa exclusiva maneira de ver do racionalismo
dominante. ss
Felizmente, a psicologia moderna está empenhada em estudar e
em colocar no centro de suas cogitações a importância, o conteúdo
irredutível de todos aqueles fenômenos aparentemente marginais,
extraordinários, ineÍentesà inspiração, à poesia e à ciência, consi-
derados pelos antigos como legitimamente pertencentes à vida psíquica
do homem mas que a cultura ocidental moderna passou a considerar,
ao contrário, como aberrações, fenômenos teratológicos afastados dos
tipos normais da espécie.
1u6
de um doente mental, porque está impregnada desse característico."
Ao contrário das idéias a respeito por aí circulantes, se alguma coisa
de característico pudesse marcar as obras oriundas de um estado
mental mórbido, não seria a desordem ou o desequilíbrio, por exem-
plo, mas uma espécie de legalidde lormal (Prinzhorn ) automática,
que não busca a unidade exterior, de sentido. Ao arrumarem-se as
idéias (formais), na pintura ou na escuttura, brota espontaneamente
da rítmica ingênua da direção do traço uma unidade éstrutural. Nos
casos favoráveis, ligam-se ambas as tendências divergentes entre si
(a da forma significativa externa e a da pura unidade formal espon-
tânea) e daí então originam-se obras que só podem e só devem ser
julgadas no plano da grande arte. le
Como exemplo concreto dessa conclusão (que nós também aqui
verificamos com os artistas de Engenho de Dentro), ao fim do eitudo
dos desenhos e pinturas de Franz Pohl, quando analisa as últimas
criações daquele grande artista, seu cliente, Prinzhorn não pode deixar
de invocar, a propósito, grandes nomes do passado, para terminar
levantando a pergunta fatal: que há aqui de esquizofrênico? É difícil
dizê-lo, responde a si mesmo. No entanto, em O Anjo Exterminador,
de Pohl, artífice serralheiro internado havia trinta anos, como louco,
no hospício de Heidelberg, via o grande psicólogo e grande crítico
a culminação de tudo o que poderia ser impulsionado pela consti-
tuição psíquica esquizofrênica no sentido da criação. Se aquela obra,
por exemplo, que Prinzhorn entende poder ser colocada, sem blas-
fêmia, ao lado das criações de Duerer e de Gruenwald é apenas
expÍessão do mundo afetivo do esquizofrênico, então é a conclusão
inexorável dele - por diante,
nenhum cultivado será capaz de, daqui
considerar essas- manifestações estranhas a que se empresta caráter
esquizofrênico como degenerescência mórbida. Devemos então, insiste
ele, muito pelo contrário, decidir-nos de uma vez paÍa sempre a
considerá-las como elementos mesmos da criação, e a procuÍaÍ, ex-
clusivamente no plano da forma, a única escala de valores possível
para as soluções artísticas, inclusive dos doentes mentais.
Essas conclusões não foram até hoje postas em xeque. Ao con-
trário, as pesquisas psicoplásticas no domínio da psicologia e da
estética as vêm confirmando de dia para dia. Nós mesmos tivemos,
recentemente, na exposição dos artistas do Centro Psiquiátrico do
Engenho de Dentro, uma confirmação das mais decisivas daquelas
conclusões. A questão ultrapassa o domínio das discussões acadêmicas
e puramente psiquiátricas, e de algum modo escapa ao próprio do-
mínio da psicanálise, a não ser nos limites já definidos por Roger
Fry. A solução do mistério só pode ser encontrada no exame crítico
I0l
das obras produzidas. E diante delas a reação dos homens sensíveis
à forma artística em nada se diferencia da emoção que sentem diante
de uma tela de Delacroix, Goya ou Picasso, ou de uma escultura
medieval européia.
As análises simbólicas, a procuÍa de nexos narrativos suscetíveis
de explicar os motivos subjetivos que levaram o pintor ou escultor
àquela sucessão de imagens, do ponto de vista artístico, não nos
interessam. Não é a interpretação, certa ou errada, do drama psico-
lógico no inconsciente que nos vai dizer se estamos ou não em frente
de uma obra de arte. Os psicanalistas esgotam as possíveis signifi-
cações extemas das imagens, para eles sempre estereotipadas em
símbolos. Mas, na maioria das vezes, não se pronunciam ou pouco
dizem sobre o valor artístico intrínseco da obra. Explicam o processo
subjetivo do criador independentemente de seu valor plástico, abs-
traindo as exigências irreprimíveis da forma. De ordinário, preferem,
por hábito e interesse profissional, as produções mais ricas em sim-
bologia, embora menos equilibradas nos seus componentes técnicos
e mais pobres nos seus elementos plásticos. É natural que achem
mais pasto às suas análises nas obras de psicóticos do que na obra
de seres normais ou que passam como tal. Mas não é essa possível
maior riqueza de material para análise que nos desperta emoção e
admiração quando em frente dessas realizações.
Só pressentimos a presença de uma obra plástica, em sua essên-
cia e segredo, se recebemos o seu impacto por assim dizer passiva-
mente, ou se para nós ela se apÍesenta como uma estrutura ou
um todo completo em si mesmo, sem outro objetivo ou interesse
particular. As peripécias da vida íntima do criador não seÍvem para
essa experiência. Ai daquele que não sente, que não consegue viver
uma obra de arte simplesmente contemplando-a, e pÍecisa Íecorrer
deliberadamente, intelectualmente, a elementos extÍínsecos de justi-
ficação e decifração! Pode ser um sábio, um gênio da psicopatologia,
nem por isso terá entrevisto sequer o cerne do fenômeno. As expli-
cações psíquicas sobre o estado de espírito do artista e seu incons-
eiente são sem dúvida de maior importância do ponto de vista clínico
ou psiquiátrico. Para nós, porém, elas se desviam da obra em si
paÍa um conhecimento em outro plano, que pouco tem a ver com
o julgamento estético.
A vida é uma hierarquia de formas (Prinzhorn ). Só estas nos
oferecem base para um julgamonto preciso, para uma avaliação
sensível e concÍeta das relações das coisas entre si. Os fundamentos
psíquicos desses fenômenos formais se concentram nessa incoercível
necessidade de expressão pÍesente em todo ser humano. Por mais
que se justifique em outros planos dessa fenomenologia, o finalismo
é inteiramente estranho à essência da forma. O sentido desta encontra-
108
-se nela mesma. A perfeição de uma obra se enquadra nesta equação:
a vitalidade mais alta na estrutura mais ineütável. Tudo o mais é
secundário.
Essa urgência de expressão se manifesta pelos meios mais ele-
mentares e inesperados. Para Wundt cada movimento automático,
instintivo ou arbitrário, pode ser um meio de exteriorização formal
de vida. Nas exteriorizações desse tipo o elemento de expressão não
falta. E daí. sua tendência a organizar-se estruturalmente em forma.
Para Prinzhorn, qualquer descarga motoÍa de nossos nervos, ou mes-
mo no sistema vegetativo, simples fenômeno reflexo como o enru-
bescer, pode ser veículo de expressão. A necessidade primordial de
expressão é a exteriorização do que na psique é essência irredutível'
ou a ponte de comunicação do "eu" com outrem. Não há expressão
sem estrutuÍa, por mais rudimentar que seja. E todo fenômeno ex-
pressivo se organiza pela simbiose do elemento psíquico e do elemeDto
formal.
Nas circunstâncias mais simples da vida, encontramos sinais
desse fenômeno. A criança, ao brincar, acaba descobrindo uma dança
rítmica agradável. Facilmente rabiscos adquirem um todo configural.
O primitivo dá com a máscara de dança expressão ao seu mundo
afetivo, povoado de imaginações demoníacas e mágicas. Através des-
sas manifestações de pura forma é que ele enquadra a sua vivência
subjetiva.
Assim, do ponto de vista psicológico pode-se falar da necessidade
de expressão da alma. Entenda-se aquele fenômeno vital instintivo
que não se subordina a outro fim além de si mesmo e que, ao con-
trário, só se aplaca, realizado, quando alcança encarnar-se num molde
perfeito e único. Impulso obscuro, a vocação expressiva não possui,
entretanto, processo específico de realizar-se. Ao contrário, ela se serve
de quaisquer veículos instintivos de exterioÍização. É por essa mul-
típlice disponibilidade que esse impulso se diferencia dos outros, cada
um com seus fins específicos, ajustâdos ou satisfeitos. Ê da natureza
desses se satisfazerem em manifestações unilaterais, pois são imanen-
temente finalistas. Com efeito, se os instintos lúdico, imitativo e sexual
têm finalidades específicas, a necessidade de expressão não tem ne-
nhuma, pois seu tÍaço mais profundo consiste precisamente em não
ter particularismos característicos nem órgãos preferenciais de ma-
nifestação. Prinzhorn a define vagamente como uma espécie de .,Eros,',
um fluido onipresente. E nos assegura que jamais se chegará a com-
preendê-la ou mesmo a verificá-la, sem que se viva essa experiência.40
109
OS VEÍCULOS DE EXPRESSÃO
110
ponente subjetivo, com outros elementos, do processo de elaboração
õriadora. Sua presença, quando pressentida, tem uma significação
supra-individual, pois caracteriza uma fase dada do Pensamento, isto
é, do pensar primitivo, que assim se distingue do conhecimento cien-
tífico iacional. Com ele estamos ainda no ciclo do pensar mágico.
Nesse sentido, ele é um elemento que não participa diretamente da
criação plástica. É anterior ao pÍocesso da realização formal. Sob
esse aspecto é aqui apenas um elemento cultural, uma das coorde-
nadas daquele pensar mágico ainda hoje ativo em certos meios e
atividades atuais, como na celebração de cultos, em terreiros ou
recintos fechados, nas cerimônias cívicas e ritos políticos coletivos,
na pÍaça pública ou em locais privilegiados, onde só têm entrada
irmãos, iniciados e correligionârios.
Mas voltemos ao nosso tema; cabe-nos aqui insistir sobretudo
nessa extraordinária descoberta da psicologia de arte moderna: as
representações simbólicas abstratas, encontradas nesta ou naquela
obra, podem também ser derivadas por assim dizer do acaso. Podem
sair, de fora, do pÍocesso mesmo da elaboração gráfica ou plástica.
Derivam-se, enÍão, a posteriori, da organização significativa que to-
mam os rabiscos inconscientes, as garatujas gratuitas. De repente,
estas se subordinam, pela irresistível vontade interpretativa do espírito,
aos apelos simbólicos.
Dá-se um encontro por assim dizer involuntário dos mais diver-
sos fatores. Irmanam-se com outra propriedade irresistível .das coisas:
a de se aglutinarem, propriedade essa enraizada, poÍ sua vez, no
próprio fenômeno perceptível inicial. No fundo as atividades gráficas,
construtivas ou plásticas, do homem consistem em arrumar-se numa
ordem ideal. É a tendência à boa forma (a aÍte sacÍa, por exemplo,
é um produto desse feixe de tendências e elementos que convergem
no sentido de um todo simbólico formal ). Constantemente o garatu-
jista, o autor, o criador de imagens e sinais gráficos, é atraído, no
curso desse processo, para a figuração simbólica.
Assim, um sinal, que de outra maneira permaneceria neutro,
torna-se portador de um sentido extra que não é dado visivelmente,
por apoiar-se apenas em convenções, na memória e em tradições.
Oferece-se com isso à vontade de intercomunicações dos homens uma
base de partida. Assim, o símbolo não faz a obra de aÍte; pode,
entretanto, nascer no processo de elaboração desta em função do
acaso e da vontade incoercível de comunicação. Não entÍa ele, porém,
de modo algum, para a valorização estética da obra. E toda vez que
nesta aparece de início e dominadoramente, é com prejuízo de sua
organização plástica e, pois, de seu intrínseco valor artístico.
O espírito, inundado pela contribuição dos sentidos, sobretudo
da vista e da audição, é uma máquina de interpretar. A visão obje-
lll
tiva de qualquer situação cai facilmente sob aquilo que John Muller rz
chamou de "plasticidade da fantasia". As disposições pessoais desem-
penham nessas atividades interpÍetativas papel de relevo. Absorvidos
nelas, quantos não se deixam prender, horas a fio, na contemplação
e estudo das figuras, Iinhas e formas que se apÍesentam no céu ou
nos muros, no ar ou na luz incerta, nas árvores ou nas portas, no
papel, ao acaso, ou no chão? Os motivos mais fantasistas ou grotescos
são tirados de qualquer combinação de linhas, e cores, e planos, e
disposição de objetos ou materiais. Toda essa gente, dada a seme-
lhantes jogos interpretativos, coincide num ponio: as suas relações
afetivas com o mundo exterior são mais pronunciadas que as meras
relações objetivas. E será preciso dizer que os artistas, entre essa
gente, entram com um dos contingentes mais numerosos? Prinzhorn,
aliás, tem razão em assinalar como todo esse grande grupo de vivên-
cias, experiências interpretativas, já tem, de certo modo, do ponto
-de
de vista da psicologia normal, caráter algo inquietador. as Mai não
é esse um dos traços mais peculiares aos artisias, poetas, filósofos?
I- eonardo falou, a propósito, de uma "nova espécie dê contemplação',,
da qual resultou, nos seus efeitos mais proiundos, precisamente o
despertar do "espírito da descoberta", que marcou a iua época.
O homem como que não existe ainda, enquanto não obedece
a esse impulso interior invencível que o manda afirmar-se. Esse im-
pulso afirmativo já aparece, entretanto, nos primeiros movimentos do
corpo. É, como sabemos, um dos traços específicos da infância. Com
a aqúsição de hábitos, ele começa a desaparecer, e, na sociedade
mecanizada de hoje, se esvai sorvido como água em terreno árido.
Essa vontade de afirmação que o adulto perde tende ele a
transferi-la simbolicamente a entes externos, coletivos, abstratos, ou
personalidades investidas irracionalmente dessa faculdade, com pro-
curação para afirmar-se abusivamente, por cima de tudo e de todos,
a fim de afirmar por esse modo indireto e intermediário a persona-
lidade inexistente dos homens da multidão. Mas mesmo sem esses
casos extremos, o impulso afirmativo, tão violento, tão intransigente
na criança, desaparece quando o adultó, cômpelido, enquadrado pelos
hábitos, assume um papel, uma tarefa externa, um dever social a
cumprir na vida. A vida interior passa a ser subordinada a finalidades
externas.
A afirmação, sem objetivo, a primeira e a mais irresistível, que
vem das profundezas da natureza humana, é um toque nas corilas
da harpa psíquica paÍa que os espaços circundantes se encham com
a ressonância da personalidade. É um acorde harmonioso que sgbe,
tt2
de onda em onda, até as alturas secretas da intuição. Por isso mesmo,
nada mais oposto à afirmação pragmática, com objetivo certo € claro'
do que essa afirmação grâtuita. Não se pode conceber contradição
maiJ viva e concÍeta entre a esfera desinteressada, completa em si
mesma, da expressão, e a esfera dos fatos quantitativos' mensuráveis,
utilitários.
Por isso mesmo somente os acontecimentos que se passam no
doinínio da afirmação lúdica, não objetiva, podem ser classificados
como movimentos de exteriorização expressiva; só eles aPresentam
o signo daquela
-O vitalidade primeira tão evidente nas manifestações
da ciiança. mecanismo dessas manifestações de jogo, desinteressa-
das, dificilmente pode ser apreendido ou desmontado racionalmente,
pois se apresentam não apenas nos rabiscos sem sentido mas nas
altas criações aÍtísticas.
il3
Pouco se tem extraído dos desenhos lúdicos infantis porque os
adultos só costumam dar atenção a essas manifestações se a criança,
já sob influência deles, inteÍpÍeta seus rabiscos como um objeto real.
Alguns autores mais modernos, mesmo debruçados sobre desenhos,
como Prudhomeau, não se detêm bastante sobre esse aspecto do
problema.
Com efeito, estudando ele, muito mais recentemente, os movi-
mentos gráficos da criança, reconhece que apesaÍ de ser dado a uma
delas, de um ano e dez meses, um modelo a desenhar, não obteve
senão o que chama de "desenho de memória". Reconhece ele que as
primeiras tentativas qualificadas de escrita se verificam igualmente
fora da presença de qualquer modelo. Assim mesmo com esta expe-
riência já intetessada, já conduzindo a criança a uma atividade ex-
trínseca não expressiva, ela reage, contudo, instintivamente, desper-
cebendo o modelo, e garatuja o que lhe vem à mão ou à cabeça.
A obra de Prudhomeau é de 1947.45 A de Prinzhorn é de
1923 (segunda edição). Prinzhorn, entretanto, continua a ter razão
quando escreve que se se evitasse qualquer influência na direção
intes)retativa, a criança continuaria, ainda depois de quatro anos, a
desenhar sob o impulso puramente afirmativo, sem pensar em qual-
quer outra coisa. Aí estão também, para confirmar essas atividades
inconscientes em busca da forma, os miolos de pão com que as pessoas
distraídas ou em conversa plasmam objetos e figuras.
O mesmo acontece com os povos selvagens. Mesmo no Brasil
se conhecem desenhos na pedra à beira dos rios, que são relativa-
mente arranhados na rocha, como uma espécie de gravura. Eles se
compõem em parte de figuras geométricas, em parte de formas hu-
manas. {6 Acredita-se que o ponto de partida de tais desenhos eram
riscos que o atrito da corda de que se serviam os selvagens ao puxar
a canoa para a margem produzia na pedra. A esses desenhos foram
acrescentadas interpretações de significado mágico. Não se pode, en-
tretanto, pretender que essas interpretações esgotem todas as possi-
bilidades daquelas imagens. De qualquer modo, nessas diferentes afir-
mações gráficas o que é comum é que nem o fim prático nem o
signo a priori estivesse ali contido de saída. Dá-se, no entanto, nessas
manifestações, uma interpenetração de tendências.
As garatujas gratuitâs de forma tão inceÍta e sem caráter figu-
Íatiyo Nabam exigindo interpretação. Essa exigência de interpÍetação
se impõe com diferentes graus de pressão, na coisa observada e no
próprio desenhador, seja criança ou adulto, são ou doente mental,
tt4
selvagem ou culto. Ela pertence de qualquer modo a fenômenos
arraigados nessas manifestações e impressões gratuitas. Essa tendên-
cia à interpÍetação vem na verdade de fora para dentro, do objeto
para o indivíduo, enquanto o impulso de afirmação gratuita sai de
dentro para fora. O exemplo dos riscos na pedra do rio, oriündos
de esforços práticos que acabam interpretados como parte de uma
figura que assim é completada, é muito ilustrativo da tendência. O
poder de expressividade que as coisas têm paÍa nós é extraordinário.
O homem não pode ver nada, perceber formas ou asPectos
de coisas inéditas ou desconhecidas, sem imediatamente Pensar em
lhes dar um sentido qualquer, ou mesmo emprestar-lhes fabulação.
Aliás, reside nisso, como já vimos, a êssência do pensamento mágico
que enxerga sentido ou vontade de ação em todos os fenômenos
exteriores e acontecimentos da natureza.
Tais manifestações gratuitas também não se restringem ao fenô-
meno da afirmação, mas se prendem até à percepção das coisas
paradas do mundo exterior. Nas obras de arte primitivas, nas mais
célebres representações de animais da arte das cavernas. as formas
ditadas pelos acidentes naturais dos muros e rochas seriam, segundo
Prinzhorn, completadas para nos dar aquelas figuras de extraordiná-
rio vigor.
À medida que vamos riscando, que nos afirmamos por meio
de qualquer atividade gráfica gratuita, cresce a complexidade da com-
binação e esta sugere a colaboração ativa de nosso espírito. Então
as idéias e imagens suÍgem, sucessiva e simultaneamente, como se
estivessem na ponta dos dedos. Desse modo, a criança, o primitivo,
o ingênuo, o alienado e o grande aÍtista consciente vão sendo con-
duzidos fatalmente a completar, corrigir, equilibrar, por intuição, o
que a mão impulsionada pelo mero desejo inconsciente de afirmação
vai traçando na superfície sobre que desliza ou pesa. É o poder
disciplinador do processo'de ciistalização da forma que, presente
e ativo, se impõe sobre tudo mais. Dá-se aqui uma contradição ine-
lutável e que não pode ser vencida aprioristicamente, entre o impulso
afirmativo gratuito e a necessidade de dar sentido às coisas exteriores,
primeiro, e depois às coisas ou às formas que o homem mesmo cria.
Daí sobressaírem como numa revelação de chapa fotográfica, os de-
senhos, contornos, linhas, planos, garatujas, a imagem da própria
personalidade do seu autor.
É que os meios próprios do artista plástico, isto é, as linhas, a
forma, a cor, têm em si poderes por assim dizer imanentes. Na
medida em que se combinam, constituem um todo, uma unidade
viva à parte, e este Íeclama interpretação. Segundo a coesão da
imagem obtida, da contemplação desses elementos desprende-se uma
il5
enéçgia potencial interior.A arte, toda representação gráfica, dispõe
assiÀ dé uma espécie de mitologia fantástica que, criando personi-
ficações arbitrárias, nos deixa entÍever um modo de conhecimento
difeiente do conceitual. E é ela que nos dá a chave da emoção artís-
tica, dos fenômenos centrais da forma. Esses seriam para §empre
inacessíveis enquanto abordados pelo método das deduções concei-
tuosas.
Combine-se esse impulso de afirmação com outÍo impulso tam-
bém primordial, o da ornamentação, e dá-se ao homem esquisito
podei de ação sobre o meio exterior. O gosto da ornamentação signi-
iica que o homem não se submete pâssivamente ao mundo de fora.
Uma vontade vital o leva a tentar marcar a sua existência com um
signo que ultrapassa os atos de meras finalidades práticas. Graças
a essa propensão oÍnamental, o sujeito exerce ação sobre o homem
como pessoa,' sobre si próprio ou um outro, sobre os instrumentos
e as instalações da vida (casas, roupas etc.) e, finalmente, sobre o
fundo mágico demoníaco que está poÍ tÍás de todas as manifestações
que lhe paÍeçam superindividuais. Ao lado do que a mão do homem
iealiza sem determinação finalista, como o fenômeno lúdico, está
o que o homem produz, em obediência ao instinto do ornamental
parà enriquecimento do seu próprio universo, como impulso de aqui'
sição.
Da combinação, poÍ sua vez, desses dois impulsos, como que
fundidos, num coroamento superior, aparece, em todos os povos e
todos os tempos, um teÍceiro fenômeno: o de ordenação formal.
Seu caráter fatal explica essa enigmática fascinação do espírito hu-
mano pela ordem. Os princípios da série, das variações alternadas,
da simetria e da proporcionalidade constituem nesse plano a síntese
da tendência afirmativa e da tendência ornamental. E são redutíveis
ao número, a severas relações matemáticas. Coincidindo com a ordem
cósmica, deduzem-se da própria estrutuÍa do corpo humano, e se
traduzem naquela sentença orgulhosa de ser o homem a medida de
todas as coisas. Regulam o curso rítmico de todos os fenômenos do
univeÍso e da vida e modelam as leis da configuração foÍmal abstrata.
Se o sentido do ornamental se realiza primeiramente na sua aptidão
a modificar ou exercer ação sobre o mundo, a enfeitá-lo, poÍ outro
lado introduz uma lei, isto é, uma ordem não dependente de repre-
sentação física ou figurativa externa, mas ditada por princípios for-
mais abstratos. Essa lei não está no modelo ou na sua coerência,
mas em uma ordem ideal. Indiferentemente ao que as linhas podem
significar, produz-se um "fluxo rítmico unitário" (Prinzhorn), capaz
de emprestar ao conjunto tamanha força de coesão que dispensa
outro componente externo qualquer do todo. E quando isso acontebe
é precisamente poÍque os movimentos de expressão se manifestaÍam
l16
no caso com toda pureza, sem mesclas com quaisquer outras Íelaçoes
finalistas ou pragmáticas. rz
Esse fluxo rítmico constitui o segredo ütal, a pulsação,mais
íntima de todo o organismo. E para ele não há fórmulas nem receitas,
pois do contrário seria conceber regras para criar. Pertence ao próprio
segredo intransmissível de toda criação. Eis por que a existência estê
tica não pode ser um subproduto que reflete a existência prática,
contemplativa, teórica ou social. Ela é uma recriação do modelo
despojado de seus modos de existência anteriores. A arte não é com-
pensação a outros modos de realidade, ou um reflexo desta. Como
diz Jeanne Hersch, para conferir a plenitude de existência à obra de
arte no seu modo próprio, é preciso recriá-la, inventando-se uma
forma que exista por si, nem derivada, nem subordinada a nada de
externo, que seja seu próprio fim. aB
Não vem de outro lugar essa intimação de coerência, suprema
condição de toda existência. E, conseqüentemente, nasce daí a impe-
riosa necessidade de transmutação do elemento bruto dado, da ma-
téria empírica, parcial, isolada, em totalidade, por ocasião do caldea-
mento estético. Como, porém, não há para o homem totalidade sem
limites, a coesão da obra de arte exige limitação, quer dizer, escolha
prévia, com exclu§ão e recusa. Entretanto, essa mesma limitação não
é ato negativo; antes resulta de "certa" transferência modal dos ele-
mentos escolhidos, os quais, em lugar de buscar sua realidade no
exterior, se põem a existir por si mesmos e a valorizar-se gtaças às
relações necessárias que eles mesmos tecem. Mas não basta. A exis-
tência artística, como toda existência empírica, exige autonomia. A
obra de arte vive subjetivamente. Se assim não fosse, não poderia
pretender a outro aspecto da coesão que é a legalidade autônomâ.
É o que Hersch chama uma "intencionalidade" dá obra para consigo
mesma, decorrente da transformação do objeto em sujeito, da obje-
tivação do objeto tomado por modelo. A obra quer-se tal qual é,
ela mesma se escolheu assim. E é a adesão que a si mesma se dá
que faz dela uma totalidade coerente, limitada, autônoma. Ela se
dirige, ela fala, com "essa absoluta liberdade de uma necessidade
procurada". Eis as condi@es de existência no plano da arte. Alguma
tt7
coisa atualizada por pura alegria criadora, pat pute puissonce
foi
de donner l'éte (Hersch).
Coesão e fluido rítmico são as qualidades profundas, necessárias,
de todo organismo vivo. A arte é, no homem, o meio pelo qual ele
também sopra vida ao barro, como criador. Ele, porém, não tem
o segredo dessa criação, que surge, aos seus próprios olhos espan-
tadoi, como algo de fora, de imanente à matéria em que trabalha,
que assim se anima e se organiza, e lala, magicamente, sob os seus
dedos inspirados. Até hoje não conseguiu o próprio criador cons-
ciente descobrir a receita dessa mágica e utilizá-la à vontade, pelo
saber e engenho, na ausência da intuição, do mistério e da loucura.
O homem cria na obscuridade. De olhos vendados e os faróis inte-
lectuais amortecidos.
118
a
PANORAMA DA PINTURA MODTRNA
119
J
gratuidade imaginária, um estado de inocência necessário aos homens
(ue estavam déstruindo uma arte exangue para substituí-la por outra
mais rica, mais viva e, sobretudo, mais acorde com o teEpo.
Mas naquele Paris do Moulin Rouge, fora do círculo estreito dos
revolucionários, ainda isolados da sociedade, cercados pelos aÍames
farpados dos preconceitos estéticos e da rotina acadêmica, que havia?
Quem dava as cartas no mundo das artes consagradas e dos salões
oficiais? Seguidores de Millet, na repetição de temas sentimentais à
moda dos rudes lavradores do Angelus; os netos e bisnetos do pai
Corot; os enamorados dos luares de Daubigny, Bouguerau, a execra-
ção de Cézanne, com os seus "nus perfeitos". E mais Gerôme, de
palmatória à mão, esse Javer do academismo, à porta da Escola de
Belas-Artes; Meissonier, o horror de Baudelaire. Os mais "requin-
tados" já preferiam, contudo, o americano SaÍgent e Zorn ou Boldini. *
Como não preferir diante desses "vitoriosos" a eteÍna infância do
Douanier Rousseau e as explosões mais ferozes e violentas do expres-
sionismo latente dos jovens da época e a irreverência desabusada do
desenho de Lautrec?
Duas correntes entre os "inovadores" assinalavam, segundo Barr,
a frente revolucionária, na entrada do século. De um lado, os her-
deiros de Gauguin; de outro, os de Seurat. Entre os primeiros, tendo
Maurice Denis como o teórico e intérprete fiel do mestre exilado nas
Ilhas Marquesas, destacavam-se Vuillard e Bonnard. Esses serão, com
o tempo, os que levarão o movimento impressionista inicial às suas
conclusões,mais felizes.
Não são revolucionários, sào os legítimos usufruidores da le-
volução.
Bonnard, se anuncia uma nova vaga revolucionátia com o tau'
visme, náo foi nunca um teórico nem um reformador; é o mais pintor
dos pintores, e a pintura para ele ficará sempre no plano das sensações
coloridas, das quais nos deu algumas das imagens mais risonhas,
mais transbordantes da arte pictórica em todos os tempos. A outra
corÍente pÍopaga, incessantemente, a prática do divisionismo dos tons
para dar às cores o máximo de brilho e intensidade. Entretanto, quan-
do, de novo, artistas mais jovens consagraram Seurat como um dos
seus mestres, na fase ascendente do cubismo, já não o fazem pelas
mesmas razões do primeiro grupo pós-impressionista como Signac e
Cros. O que eles descobrem em Seurat é o rigor estrutural, a monu-
mentalidade de suas formas esquematizadas nas "esferas, cilindros e
cones" de que falou Cézanne; eles viam no criador da Grande latte
121
Nesse Bateau-Lavoir, com seus ateliês duvidosos, viviam Qo
início do século alguns dos nomes maiores da arte e da literatura de
hoje. Juan Gris, por volta de 1906, habitou o barraco EootmaÍ-
trense, onde nasceram a fase azul, a fase rosa, a fase negra e o
cubismo picassiano. Eugênio d'Ors, hoje de bem com Franco, foi
hóspede também do glorioso barracão. Van Dorlgen, desembarcado
de Haia em 1893, parece teÍ sido o seu mais antigo locatário. Mar-
coussis e Pascin por lá também passaram, bem como Max Jacob,
Pierre Reverdy, Pierre Mac Orlan. Em 1908, Picasso deu mesmo no
seu ateliê um famoso banquete ao Douanier Rousseau. Matisse,
Braque, Modigliani, Severini, Picabia, Laurens, Lipchitz, Ozenfant,
Dàrain, Utrillo, Suzanne Valadon, Friez, Dufy "et puis les marchands
toujours attendus et qui achetaint à fonds" (na espera do futuro) e
mais a equipe dos poetas e escritores, Alfred Jarry, Fernand Fleuret,
René Dalize, Pierre Roché, Paul Fort, André Warnod, Francis Carco,
Gustave Coquiot e Jean Cocteau viüam também na coDfratemização
da miséria, da boemia, da expectativa de glória e dos entusiasmos
criadores, ao redor da singela Place de Ravignan, entre o Bateau-La-
voir e os botecos do lugar. Nessa lista estão quase todos os protago-
nistas da revolução modernista. Quem falta? Os da Alemanha, da
Suíça, da ltália, da Rússia e da Holanda.
DrssoluçÃo Do NATUBALISMO
122
ilusão dos corpos, â ilusâo do espaço, a ilusão da matéria, o acabado
desenho do pormenor, a justeza das propor@es anatômicas e da pers-
pectiva e a exatidão da cor dos objetos. O diretor do Museu das
Belas-Artes de Basiléia diz: "A história da pintura européia, de De-
lacroix a Picasso, não é outra coisa, precisamente, senão o desmante-
lamento progressivo do naturalismo ." (Histoire de la Peinture Mo-
derne, t. II.) Com efeito, só a pintura ao ar liwe liquidou com três
dos componentes do naturalismo: o acabado dos detalhes, a ilusão
da matéria e o absoluto da cor dos objetos, atingindo gravemente a
ilusão do corpóreo.
O impressionismo chega, e prosseguindo nas conquistas dos pin-
toÍes ao ar livre, laz da htz solar o seu deus: a pintuÍa tonal se esvai
para dar lugar à descoberta fascinante dos contrastes diretos de cor.
Manet e seus êmulos têm também, pela primeira vez, contato com o
produto de uma cultura inteiramente estranha àqueles parisienses pro-
vincianos as estampas japonesas. A franqueza do desenho destas
e os acordes- exóticos de áreas claras e escuras encantam Manet e
amigos. Posteriormente, essas estampas seriam apreciadas, sobretudo
na geração pós-impressionista, pelas superfícies sem sombÍas e pelas
coÍes puras. Hoje é que sabemos admirar{hes também, como acen-
tuou Schmidt, o poder expressivo das linhas.
As cores são descobertas na sua ptrÍeza, e os aÍtistas Percebem
que, sempre carregadas de luz, elas podem exprimir pelo contraste
as intensidades mais claÍâs, como faz o branco. Outra descoberta
sensacional é que as sombras não são absolutâs. Podem ser dadas
pela cor. Na decomposição do claro-escuro que dessas descobertas
resulta, o modelado dos objetos torna-se secundário, quando não
desaparece. A telâ é tomada pelas pequenas manchas de cor da nova
fatura; o artista não respeita mais a parte do quadro destinada à pers-
pectiva aérea. Tudo se colora, enquanto a cor local se evapora. A cor
natural é um fantasma que se dissolve.
A transformação do mundo visível em cores representa o esforço
mais grandioso, mais revolucionário, para supeÍar o naturalismo, para
libertar a pintura da escravidão da imitação da natureza, para tornaÍ
independentes os meios do artista (Schmidt). Os objetos naturais, sob
a influência da cor, perdem sua existência particular, sua autonomia
local. Cézanne veio destruir os dois últimos anteparos naturalistas:
a ilusão do espaço sensorial e a correção das proporções anatômicas
e da perspectiva que escaparam à avalancha impressionista. Nessa
depuração, o mestre de Aix contou com a cooperação espontânea de
Gauguin e Van Gogh, Toulouse-Lautrec e Seurat. A obra de des-
truição estava consumada.
Com a inauguração do século XX, o drama da arte modeÍna
chega ao seu "clímax". Era forçoso que da dissolução do ideal esté-
123
rico do natuÍalismo surgisse também uma oova atitude espiÍitual do
artista em face de sua própria criação e em face do mundo. Os
homens que vêm diretos da filiação impressionista não tiram, poÉm,
os olhos da natureza, brinquedo, caleidosópio, caixa encantada de
luz e de cores. Nela é que buscam estímulo ou inspiração. O mundo,
quer dos seres üvos, quer do físico ou inorgânico, continua a en-
cantá-los, e é com admiração algo bocó que assistem à marcha do
progÍesso: o crescimento dos largos "boulevards" e novíssimas ave-
nidas, as novidades do urbanismo crescente, o trem, as estações,
os barcos a vapor, a iluminação elétrica, todas as invenções de um
capitalismo ainda florescente. Cézanne não comunga, porém, desse
otimismo pequeno-burguês. Incompreendido não só tecnicamente na
realização de uma pintura, mas também espiritualmente na sua con-
cepção do mundo, ele se isola, para tornar-se contemporâneo apenas
das gerações vindouras.
O quadro não é mais para ele uma transposição artificial da
realidade externa, é um universo à parte, com seu plano imaginário
próprio, alheio, portanto, à coordenação externa da perspectiva linear
com seu ponto de fuga único. Mas se o objeto para ele não vale pela
sua realidade natural, sua colocação no espaço externo, vale, contudo,
por uma nova qualidade concreta que adquire no quadro, a realidade
plástica. E Cézanne passa, então, a construir não somente com linhas
e planos, mas também com a cor, um mundo independente, pura-
mente pictórico. O movimento para a autônomia da pintura toma,
assim, com ele, um impulso extraordinário. Se o bisonho revolucio-
niírio ainda conserva a ilusão corpórea como última reminiscência
naturalista, as deformações anatômicas e outras de proporção e pers-
pectiva já nem sequer são mais conseqüências de suas necessidades
interiores, de seu ímpeto barroco de expressão: elas simplesmente
obedecem a um jogo puro de ritmos e de planos, quer dizer, de
formas. No mundo exterior ele só busca, não o objeto em sua Íea-
lidade intrínseca, mas uma pequena sensação. ÉJhe o bastante, pois
com ela realiza o seu mundo.
Com Gauguin, a perspectiva naturalista é deliberada e radical-
mente suprimida, pois o que o artista v.isa é precisamente a repÍesen-
tação da imagem rigorosamente limitada ao plano. Não é em vão que
ele é considerado como a maior vocação de muralista de sua época.
Nele, a pesquisa do estilo, a busca espiritual do estilo já é não só
visível como também predominante. Para isso, ele espanca precisa-
mente o elemento essencial, inseparável da representação natural do
objeto o espaço. As áreas de cor separadas poÍ contoÍnos pesados,
-
a inexistência das sombras projetadas e a vista do alto, criando uma
perspectiva frontal que sobe verticalmente, aproximam-no da maneira
dos primitivos.
t24
Essa aproximação não é só tecnica, mas sobretudo de orden:
espiritual, sendo ele talvez o primeiro grande europeu para quem a
arte dos povos exóticos, primários, não é mera curiosidade, mas tão
criadora quanto a dele, regida por uma necessidade plástica e espi-
ritual tão autêntica e alta quanto a ocidental. AIiás, diga-se logo de
passagem que Gauguin revela nessa atitude uma das características
mais profundas e pennanentes da sua e nesse sentido, igualmente de
nossa época: o contato espiritual direto, pela primeira vez na história
humana, de todas as culturas, passadas e pÍesentes, pré-históricas ou
contemporâneas, no tempo e no espaço. As conseqüências dessa
interpenetração de culturas ainda não acabaram de revelar-se em todo
o seu desenvolvimento. Não se pode, entÍetanto, compreender a arte
moderna sem ter o fato benr presente no espírito.
E Van Gogh, que trouxe? Do ponto de'vista propriamente tecnico-
-pictórico, não muita coisa, pois segue a lição seuratiana do divisio-
nismo cromático, é fiel à cor pura e ao jogo das complementares.
Dá-se por tarefa combinar a cor e a linha. Van Gogh não é um
esteta como Gauguin; é um missionário da verdade. No entanto, o
óleo, o cavalete e um pincel cheio de tinta são para ele o meio.de
pregar, ao passo que as afinidades pictóricas de Gaugin o aproximam
dos piedosos muralistas da alta Renascença. É na técnica de cores
cruas e übrantes e no linearismo vangoghianos que os Fanves já no
início deste século vão buscar recursos para o seu movimento. O
expressionismo nórdico adotou-o como seu profeta, em virtude da
vocação evangélica e revolucionária do artista.
Toulouse LautÍec é o último dos grandes pÍecur§ores. É o pri-
meiro que se utitiza de modo magistral de um dos meios de expressão
mais eficientes, oferecidos pela técnica moderna: o czÍtaz. Ele é raro
até nessa peculiaridade que quase o isola entre os contemporâneos,
em toda eisa evolução: a cor não tem, para esse formidável dese-
nhista, cujo traço é dotado de um poder conviÍicente sem rival, a
mesma significação primordial que tem para Cézanne, Van Gogh,
Gauguin, seurat. Seu parentesco, nesse ponto, é lalvez com Degas.
Schmidt diz que em Uautrec "o ritmo é tudo, a melodia pouca coisa".
Mas, com isio, o revelador da poesia noturna dos cafés e cabarés
montmartrianos, onde vicejam os marginais da sociedade moderna'
antecipa o novo século, impregnado dos ritmos obsedantes e frené-
ticos do jazz, do boogie-woogie, que tanto encantou os últimos anos
do austero Mondrian.
O século XIX dá o balanço de sua técnica, de seu poder indus-
trial, de sua civilização urbana, de sua arte com a grande Exposição
Universal de 1900. Lautrec faz o retrato da elite que goza ou usúrui
os prazeÍes dessa civilização. Mas Cauguin, Cézante e Van Gogh
ficam de fora, pois transpõem os umbrais do século. Sua mensagem
pertence iá às primeiras geraçócs do novecentos.
r25
DESCOBERTA DAS CULTURAS PBIMITIVAS
E ARCAICAS
126
Também da Oceania, sobretudo a Melanésia e Polinésia, vieram
para a Europa âs mensâgens artísticas mais autênticas. Cls esquimós,
por outro lado, com suas máscaras de cerimonial, conquistaram a apre-
ciação dos conhecedores ocidentais pelo vigor das suas realizações.
E, assim, quase todos os povos de culturas primitivas mostraram ao
europeu orgulhoso de sua pretensa superioridade artística que eÍam
também dotados das 'mais a'ltas aptidões criadoras.
A apreciação da arte negra, como aÍte mesmo, é do início do
século. Já, porém, em outubro de 1897, Gauguin, em carta, a Daniel
de Montfreid, escrevia: "La grosse erreur c'est le grec, si beau soit-il.
Ayez toujours devant vous Ies Persans, les Cambodgiens, un peu
I'Egyptien." Ele ainda é quem dá aos amigos e discípulos de Pont
Aven @retanha), antes de partir para os mares do sul, o conselho
de opor-se às concepções tradicionais gregas e italianizantes. Preco-
niza a volta às formas arcaicas e hieráticas, tanto a oceânica como
a bretã. O apelo é a todas. as culturas.
Em 1906, Matisse adquire algumas estatuetas negras num anti-
quário da Rue de Rennes. Entre 1907 e 1910 é o período da des-
coberta da arte africana pelas elites culturais de Paris. Os artistas
foram os primeiros a desvendá-la, quando deram para visitar, leva-
dos pela curiosidade, os museus de etnografia. O interesse desper-
tado pelos objetos africanos é enorme. É que esses objetos vinham
responder às preocupações estéticas, então dominantes nos meios
vanguardeiros. A discussão e troca de idéias em torno das másca-
ras e das estatuetas em madeira da África, de linhas tão puras e
formas de tão pleno desenvolvimento plástico, acende-se por toda
parte, constante e viva. Modigliani, Dêrain, Wlaminck, Braque, Pi-
casso, Lhote, Marcoussis, Grommaire começam, conta-nos Made-
leine Rousseau (Le Musée Vivant) , a rodear-se de objetos de arte
negra. As galerias, os connaisseurs, críticos, escritores seguem-lhe o
exemplo. Por fim, as máscaras, estatuetas, objetos esculpidos negros
são expostos nas galerias de arte em pleno pé de igualdade com a
pintuÍa e escultura da época, obras fauves, cubistas, expressionistas,
abstracionistas etc. As obras arcaicas gregas também conhecem uma
grande voga.
Esse movimento de reconhecimento do valor artístico das cultu-
ras arcaicas passadas ou primitivas de povos contemporâneos não é
ditado por nenhum esnobismo, nem se restringe aos círculos "sofis-
ticados" de Paris. Ao contrário, de início, a apÍeciação se limita ao
punhado de artistas vitalmente preocupados com altos problemas
estéticos, de especialistas e investigadores científicos do porto de
Frobenius, Boas, Von Sydonv e outros, antiquários e colecionadores
competentes.
127
Por uma coincidência bem signiÍicativa, pois é espontânea, na
Alemanha também os jovens artistas estão interessados nas mesmas
pesquisas. Já em 1904, antes, portanto, da conquista pela arte negra
àa vãnguarda artística parisiensé, um jovem pintor alemão, em Dresda,
tem a ievelação do vàlor plástico das madeiras esculpidas dos indí-
genas das Ilhas Palaos (Oceania) e dos africanos, que ele encon-
irou no Museu Etnográfico do Zwinger, naquela cidade. Esse jovem
artista é Ernest Ludwig Kirchner, um dos fundadores em 1905, com
Enich Heckel, Karl Schmidt, Rottluff e Fritz Bleyel, do primeiro
grupo expressionista alemão Die Brücke (A Ponte). Assim, por
- para ir aos museus oficiais, mas aos
toda parte, os artistas dão, não
científicos e etnográficos, à cata de inspiração e, sobretudo, de apoio
e estímulo às suas pesquisas e interrogações, aos seus projetos e con-
cepções. E as obras aí encontÍadas são como que mentalmente trans-
feridas para as salas dos puros museus de aÍte, os Louvres, as Na-
tional Gallery, os Kaisergalerien das grandes capitais européias.
Paul Guillaume (não o psicótogo, mas o conhecido crítico e
connaisseur de Paris) em colaboração com o esteta americano Thomas
Munro, num livro admirável (Primitive Negro Sculture), fez justiça
à contribuição da aÍe negra para o desenvolvimento da arte no iní-
cio deste século. Por volta de 1910, as principais figuras do movi-
mento modernista estavam possuídas de um entusiasmo extraordiná-
rio. A revolução cubista havia começado, e prosseguia em ascensão.
A "honra daquela renascença", reconhecem esses autores, "Pertence
à arte negra". "Pode-se dizer, sem medo de exageÍar, que o melhor
do que sã desenvolveu na arte contempôrânea nos vinte anos passa-
dos (o livro de Guillaume-Munro é de 1928 ) deve sua inspiração
original à escultura negra primitiva. Isso é, naturalmente, de particular
eviãência nas artes plásticas, não somênte na escultura de Lipchitz. e
outros líderes, mas também no campo da pintura, onde Picasso, Matis-
se, Modigliani e Soutine considerados como os de maior influência
entre os jovens -
adotaram o motivo negro, com as alterações de
sua criação." O -Ballet Russo de Diaghilev pagou tributo a essa in-
fluência, bem como Stravinsky e outros grandes compositores da épo-
ca que assimilaram as qualidades rítmicas da música negra. Poetas,
como Apollinaire, Reverdy, Max Jacob, Cendrars, arquitetos como
Perret e Le Corbisier tomaram conhecimento e foram sensíveis ao
poder emocional expressivo da forma negra. Por volta de 1925 esse
reconhecimento tornou-se tão generalizado que decaiu em moda. Na
Exposição de Artes Dêcorativas de Paris, naquele ano, a inspiração
negra estava em toda parte, inclusive nos móveis, cartazes e objetos
industriais.
Mas a grande contribuição dessa escultura para o desenvolvi-
mento artístiôo modcrno, nas primeiras décadas do novecentos, foi
r28
a de dar uma compreensão maioÍ da natureza do desenho, da forma
em função de cada mateÍial. Os artistas ocidentais sentiram naquelas
estatuetas e máscaras a pÍesença concreta, real, de ..uma forma de
sentimento, uma arquitetura do pensamento, uma expressão sutil das
forças mais profundas da vida", extraídas de uma ciüiização até então
desprezada ou desconhecida. Esse poder plástico e espiriiual imanente
naqueles objetos esculpidos era para elei como a révelação de uma
mensagem nova. O sentido formal do desenho havia sido perdido
pela escultura ocidental, presa então a um jogo pueril ou giacioso
de superfície, mas sem grandeza, sem purezâ; s;m síntese: Ainda
estava escravizada demais à louçania de atitudes e planejamento da
estatuária grega clássica e helênica, e sobretudo amarradi às exigên-
cias da representação natuÍalística ou literal do assunto (tipos,
comemorativas etc. ) .
úes
A ru2.ão profunda do interesse dos aÍtistas modernos pelas escul-
turas arcaic,as ou passadas, do antigo Egito, da China, india, poli-
nésia e África não foi assim pelo eiotisÃo do assunto ou do tema.
Mas, como sustentam Paul Guillaume e Munro, ,.reside no fato de
que essas remotas tradições acentuam mais o desenho do que a re_
presentação literal, apresentando efeitos de formas, qualiàades de
linh-a e superfície, combinações de massa, que são dãscbnhecidas da
tradição grega".
Assim como a revolução modeÍnista se processou pelo contato
simultâneo de tantas cultuÍas diferentes, tanto no tempo como no
espaço, subitamente contemporaneizadas, também pôs fim aos com-
partimentos estanques em que viviam separadas ás artes nacionais
dos d_iv_ersos países europeus. A Alemanha seguiu, no curso do sé-
culo XIX, uma evolução artística à paÍe, apãsar da influência no-
tada de Courbet sobre Leibl e do impressionismo sobre Libermann.
Suas etapas evolutivas passaram pelo movimento dos .,Nazarenos",
os românticos, com Schwind e Bôcklin até Von Marées, o artista em
torno qual se cristalizou, com A. Hildebrant e Fiedler, a reação
-do
formalista dos teóricos da estética alemã no fim do século passadó e
início deste. Somente no início do novecentos é que as portaj se abrem
à intercomunicação com os acontecimentos aíísticoj que se desen-
rolam na França, Itália e outros países. por cima das ironteiras, as
jovens gerações artísticas européias comungam, sem o saber, de um
cstado de espírito idêntico, «las mesmas i-nquietações, dos mesmos
ansetos.
A arte moderna cria ou cÍistaliza uma consciência estética real-
mente continental. É talvez o mais profundo e inesperado indício, de-
pois da formação dos Estados nacionais europeus, de que no subsirato
estão os fundamentos de uma cultura efetivamente euiopéia. Esta, no
entanto, sente-se em crise, e daí o empenho de seus artistas em re-
129
vivescê-la pela contribuição de outras culturas até então consideradas
primitivas ou esteticamente inferiores. Die Brücke é, com efeito, a
"ponte" de comunicação com Paris, então porta dos mares mun-
diais reoxigenadores. Através dela, a Alemanha e o norte e centro
europeu tentam sair de seu cansado provincialismo nórdico-gótico-
-barroco-germânico. Esse grupo levantou em seu país os problemas
que o fauvismo levantara na França e desse modo a revolução toma
definitivamente um caráter continental. No norte, Munch, com o seu
romantismo incurável, seu simbolismo, já havia, entretanto, entrado
em contato com Paris. A Alemanha desconhecia os pioneiros herói-
cos e geniais como Cézanne, Seurat, Gauguin, Van Cogh. Mas de
um ponto de vista puramente teórico ela já tomara conhecimento das
formulações estéticas de Conrad Fiedler, de A. Hildebrandt, de Alois
Riegl e outros. Depois de dois anos de pesquisas e ensaios, os artis-
tas de Die Brücke, englobando o que havia de melhor nas forças
novas do país, chegaram à posse daquilo que na França já se haviam
apoderado os artistas numa geração anterioÍ: a cor Pura.
Desde então a arte moderna é um movimento só através dos
países decisivos do continente, com as variações locais de cultura ou
temperamento. Assim, da desintegração do naturalismo, do impacto
das artes de culturas estranhas, aÍcaicas ou primitivas, sobre a velha
cultura ocidental cujas raízes provinham do tronco greco-romano, Íe-
sulta um fenômeno cultural novo: c internacionalizttÇAo da arte.
A VAGA EXPRESSIONISTA
130
berdades com a tela, ao ver-se de posse dessa máquina de formidável
poder explosivo que é a cor pura. Eram como crianças de posse de
uma pistola carregada. Eles pretenderam deixar que a "cor se expan-
disse conforme as leis da própria emoção criadora" (A. Rüdlinger).
Sentindo-se liberados da sujeição ao mito natuÍalista, acreditaram
poder opor, não só ao objeto como ao plano, sua própria vontade que
Rüdlinger chamou, excelentemente, de "figuradora". Essa vontade
figuradora era guiada ou determinada pela cor, base da expressão.
Os jovens artistas expressionistas pÍocuraram assim armados re-
novar os temas, modernizá-los, a fim de "ser de seu tempo", refletir
a vida de nossos dias. (Foi esse elemento de sua estética o que mais
envelheceu. Não se é de seu tempo só porque se catalogam assuntos
da atualidade. Na verdade, eles refaziam, do ponto de vista temático
e sociológico, a revolução impressionista quase meio século depois: o
episódio revelava o atraso da consciência social e política da AIe-
manha em relação à França. )
Quando olhamos hoje dessa altura do século, todo o movimento
passado, as divisões de grupos e escolas se perdem paÍa arrumar-se
dentro de conjuntos tendenciais muito mais amplos é marcantes. Fi-
cam para nós apenas as grandes linhas do movimento. Assim em
relação aos vários cubismos e aos vários expressionismos ou fauvis-
mos. O grande expressionismo de Rouault, de Nolde, Kokoschka,
Soutine faz parte da mesma família espiritual do chamado expres-
sionismo subjetivo de James Ensor, belga, de Eduard Munch, no-
rueguês, como daquele dos homens de Die Brücke e da Nova Asso-
ciação dos Artistas de Munique, com Kandinsky, Jawlensky, Kubin,
Franz Marc, Le Fauconnier e outros. O traço comum nelei, que de
início não se conheceu, é uma tendência subjetiva pronunciaàa de
projetar-se no quadro, identificar-se com o objeto. É uma projeção
idêntica ao processo da Empatia (Einlühtung)-. O quadro rêfleie- as
emoções e a participação psíquica do artista. Para eles só conta ..a
expressão", desprezada qualquer lei estética ou técnica. A vaga expres-
sronlsta, encabeçada por Rouault em 1905, ainda mais violenta que a
primeira, chega a tocar, embora de leve, o. jovem picasso da-fase
azul e Matisse, num certo momento.
A violência do expressionismo de então foi antes uma explosão
animista. Esses expressionistas ao querer impor ao quadro §ua von-
tade soberana, derivavam em grande parte para a naÍÍação, outra
vez- Muitos deles, com efeito, se atiraram à gravura, às artes gri4ficas
mais propícias à ilustração, à prédica, ao combate, à propaganda. Em
outÍos como nas grandes telas-cenas de Munch, de F. Hodler, e até
de Kokoschka tem-se como que uma antecipação ou transposição do
cinema. Os meios plásticos da pintura são então usados nã ausência
de outros. mais apropriados aos fins morais e psicológicos desses artis-
r3l
tas. O Gúinete do Dr. Caligari, de 1919, sob a direção de Robert
Wiene, por exemplo, obra que teve; aliás, a colaboração de alguns
pintores da época, é uma realização cinematográfica do expressio-
nismo muito mais autêntica e eficiente do que telas célebres da escola
de grandes nomes como Munch, Kokoschka, Nolde e mesmo Rouault.
' Se na Alemanha os expressionistas se apoiavam exclusivamente
na exaltação da cor delimitada por uma construção simplificada, a fim
de dar o máximo de expansão ao turbilhão emocional do artista, na
França, a matriz do movimento, esse se apresenta sobretudo como
uma gramática pictórica nova que leva a velha arte aos seus últimos
desenvolvimentos. Matisse em comparação aos outros companheiros
já é um artista senhor de seus meios e de seus fins. Embora Dêrain,
mais moço do que ele, compaÍe então as cores cÍuas saídas dos tubos
com "cartuchos de dinamite", já se disse que o expressionismo francês
reinventou a arte de pintar. Matisse não está interessado em teorias
e nunca em meio às maiores exaltações perde a cabeça. Mas o des-
ptezo pelo aspecto inlustrativo, a técnica sistemática por à-plats, o
uso metafórico das cores que. define o problema da profundidade e
do espaço pelo poder contrastante dos tons, a subordinação da fun-
ção luminosa tradicional à mera intensidade, o despojamento sem
piedade de tudo o que é acidental e o arrojo lírico espantaram críticos
e conhecedores que em 1905 foram visitar o Salão de Outono. Ali
estavam Matisse, Rouault, Braque, Marquet, Friesz, Duffy, Dêrain,
enfeixados numa sala que lhes fora reservada. Um crítico eminente
da época, Luiz Vauxcelles ao chegar no antro, deparou com uma
cabeça esculpida, de inspiração florentina, da autoria de Marquet,
ao lado das obras segregadas, e, incontinenti: "Donatello no meio das
feras!" O epíteto pegou imediatamente, como muitos anos antes ha-
via pegado, pela mesma maneira irônica, o de "impressionismo".
Assim nasceu o fauvisme" .
De novo aqui o protagonista principal da violência eÍa uma cor
"não natural", audaciosa, agressiva, encerÍada num desenho aparen-
temente desgrenhado de contornos pesados. É costume dar hoje aos
lauves de 1905 longínquos predecessores: os vitralistas medievais, os
primitivos italianos, as estampas japonesas e a cerâmica persa. Eles
reagiram simplesmente contÍa as doçuras supeÍficiais do impressio-
nismo e a inocuidade pomposa dos salões oficiais.
O lauvisme em si mesmo não teve desenvolvimento ulterior. País
de individualistas, a França não conserva os grupos por muito tempo.
Matisse toma em breve um caminho que é só seu. Dos primeiros a
descobrir a aÍte negra, ele deixa-se encantar pelo maior rigor arqui-
tetônico dos artistas anônimos africanos. Mas não chega até o cubis-
mo. Sua base estrutural continua a cor. Entre os Íauves só Braque
atÍavessa a linha divisória e pouco depois se torna o segundo criador
132
do cubismo, ao lado de Picasso. Só Rouault, esse úaico autêntico
expressionista francês,. é que permanece fiel ao movimento, levando
ao máximo a lição de Gauguin, no aprofundamento das coÍes for-
temente cercadas.
Para dcfinir bem sua posição em face dos ismos virulentos da
época, num artigo quE fez sensação, Matisse considera que "a obra
de arte deve ser para o homem de negócios, tanto quanto paÍa o
artista de letras, um calmante cerebral, algo de análogo a um bom
lauteuil que o poupa das fadigas físicas". Se ele ainda procura "aci-
ma de tudo a expressão", sustenta que a composição não é mais do
que "arte de combinar de um modo decorativo". Tirando à pintura
qualquer pretensão metafísica ou idealista, confessa-se "incapaz de ir
além de uma pura satisfação visual". E, com efeito, sua pintuÍa pas-
sou a seÍ cada vez mais pura alegria dos olhos, um banho de sensua-
lidade no messiânico cerebralismo da hora.
Se Matisse pára num hedonismo perverso e rico de substância
vital, o movimento expressionista continua a espraiar-se pelo mundo.
Em 1909 ele chega a Nova York, levado por Max Weber, que desde
então é um dos pioneiros da arte moderna nos Estados Unidos. No
Brasil também é por volta de 191,2 que temos contato pela primeira
vez com toda essa geneÍosa fermentação. Lazar Segall, jovem pintor
que paÍticipou das batalhas expressionistas na Alemanha, faz na-
quele ano em São Paulo a sua primeira exposição, que é também a
primeira manifestação no Brasil do movimento moderno.
As leis próprias irrevogáveis do fenômeno cromático impõem, no
entanto, um limite às experiências egocêntricas dos expressionistas ao
pé da letra.
O fetichismo da cor do impressionismo, em suas várias ramifi-
cações, distingue-o de outra explosão revolucioniária que irrompeu na
Europa, depois da catástrofe da Primeira Guerra Mundial. Dada, nas-
cida em Zurique, em 1919, com Picabia, Arp, Ball, Tzara e outros,
não foi propriamente um movimento artístico, mas antes um "bafafá"
de artistas e poetas, deslocados morais, contra as limitações do'poder
criador do homem. Seu sucessor, o surrealismo, tem já outra profun-
didade, mas é também sobretudo um movimento de poetas. Se os
expressionistas exaltam a personalidade do artista através do único
meio plástico poderoso que resta, a coÍ, os surrealistas desprezam as
aquisições puÍamente técnicas, proclamando contra tudo e contra
todos as exigências incontroláveis do inconsciente que foram buscar
nas revelações surpreendentes de Freud.
O surrealismo é sobretudo um movimento de sondagem na vida
interior do homem, desde o automatismo psíquico, o deslocamento
geral dos objetos de seus fins normais à captação das imagens oní-
133
Íicas, os estados hipnagógicos, a imaginária do inconsciente. Seu obje-
tivo declarado é revolucionário tanto no domínio moral, social e po-
lítico como no estético. Para os surrealistas reunidos em torno do poeta
André Breton, autoÍ do Manifesto do Surrealismo , de 1924, as
preocupações puramente estéticas são deliberadamente subordinadas
à ética do subversivo, do não conformismo, dos apelos do incons-
ciente. Eles não querem criar uma arte nova, mas revolucionar o
homem por dentro. Apesar de ter atraído para a sua órbita pintores
do valor de Miró, Tanguy, Masson, Ernst e de ter contado durante
certo tempo com o nome fulgurante de Picasso, a contribuição maior
dele se fez no plano das imagens poéticas. Nesse sentido, ele reno-
vou a imaginária da poesia moderna, ampliando extraordinariamente
o campo das metáforas literárias.
134
forçosamente alterada ou se abantlona a fidelidade à aparência do
objeto para atender-se à exigência das cores.
Estas se movem em direções bem determinadas, hoje averigua-
das nos laboratórios dê ótica: no sentido de sua posição no círculo
cromático; segundo o seu maior ou menor grau de claridade;. segundo
o maior ou menoÍ grau de puteza e segundo o seu comportamento
espacial. Pelo jogo dos complementares, pelos contrastes simultâneos,
pela propriedade de avançar ou Íecuar no sentido da retina e outros
fenômenos derivados, elas não se amoldam ao meÍo capricho do
artista.
Assim, ao fim da revolução antinaturalista, quando a perspecti-
va linear foi abandonada, o claro-escuro, o modelado e os rrccourcis
postos de lado, isto é, quando os meios próprios à representação da
pintura ilustrativa foram abolidos, os artistas tinham, com maior ou
menor consciência, chegado a descobrir ou intuitivamente a sentir
que as cores viviam um mundo próprio, regida por outÍas leis que
a da velha pintura. Elas não se deixam isolar e tendem sempre ao
branco, à luz, conforme o prova a lei dos complementares. O olho
repele o estímulo prolongado de uma só çor. E por isso tende esta a
expandir-se, através do complementar, até o bÍanco, onde recupera o
equilíbrio. Ela almeja acima de tudo ao nirvana tranqüilo da luz
branca. Como levá-la a construir sua própria arquitetura no plano,
sem violar-lhe a naturezâ íntima que é de não se isolar para servir
às necessidades externas da figuração?
Na pintura clássica ou naturalista passada a cor não tinha auto-
nomia. Para W. H. Wright, no seu Tlre Future ol Painting, toda a
pintura até Turner e Delacroix era uma arte de branco e preto. A
cor não desempenhara nenhuma parte orgânica na concepção pictó-
rica clássica. Os meios de obter a solidez e estrutuÍa eram dados
pela escala dós cinzas. Em regra geral, a cor colocada como uma
idéia complementar, em imitação da natureza, uma espécie de de-
coração, ou embelezamento, era fatalmente subordinada aos recla-
mos da representação naturalista e da reprodução do volume. Ao
isolar-se o modelo pelo claro-escuro, o sombreamento, a fim de criar-
-se a verossimilhança com o objetivo, as leis cromáticas são negadas.
O artista despe-se de sua experiência direta e pessoal da percepção
cromática, e fatalmente se separa do mundo, substituindo a realidade
fenomenológica palpitante por uma realidade convencional apaÍent€
e rotineira. A grande descoberta foi, como explica Paul Renner
(Ordnung und Harmonie der Farben), que existe uma arte das cores,
e esta começa lá onde a essência secreta delas se pode desenvolver
livremente. Cézanne teve a intuição genial dessa verificação cien-
tífica.
I35
Foi diante dessa complexidade nova surgida corn a dissolução
do naturalismo, quando a cor pura, liberta da velha subordinação em
que andou durante séculos, mostrava-se rebelde às pÍetensões indi-
vidualistas do artista, que Kandins§, então o líder do movimento
expressionista de Munique, abriu uma nova avenida à evolução mo-
derna. Depois de alguns ensaios de cor pura combinada em compo-
sições cheias de uma poesia narrativa (lembrança da arte popular
e do folclore de sua terra russa), Kandinsky pouco a pouco vai afo-
gando os elementos no quadro.
' Em 1911, juntamente com Franz Marc, a grande figura alemã
da época, morto depois na guerra, Kubin, G. Munter e outros, ele
funda um novo gÍupo, que vai exeÍceÍ enoÍme influência nos países
germânicos. O novo grupo dito do Blau Reiter (Cavaleiro Azul, ti
tulo de um pequeno quadro de Kandinsky) corresponde na Alema-
nha, por suas tendências já mais formalistas, ao movimento cubista
na França. Kandinsky, que canta a coÍ "cÍiadora do brilho e da
flama", como diz Rüdlinger, está à vontade no caos e no infinito.
Seu caso é típico. Ele começa como bom eslavo a desprezar a disci-
plina da plásticâ ocidental. Entregue a orgias cromáticas, esse novo
bárbaro vota-se à destruição do objeto. Compraz-se no delírio emo-
cional instintivo, anárquico das cores. Mas cedo verifica que elas
pedem uma configuração de relações próprias. Ele suprime então de
vez o figurativo. Cria, a princípio, uma série de pinturas a que chama
de improvisações, nas quais só a pura relação cromática existe. Vem
daí a conhecida analogia da pintura com a música. Em 1911, ele
publica seu famoso livro sobre O Espiritual em Árte. Nele condensa
suas idéias sobre a pintura e as afinidades da escala musical com a
cromática. Já então ele visava também ao equilíbrio estrutural. A so-
lução achada para coordenar, no plano do quadro, o dinamismo das
cores com as necessidades arquitetôniias da forma, foi o recurso aos
motivos geométricos. Com ele nasce o movimento não figurativo ou
abstracionista que depois de um período de relativa obscuridade, entre
as duas guê[as, é hoje uma das correntes artísticas mais vivas e mais
atuais de nossos dias.
o Novo EsPAço
136
dramático ou desabusado como o de Rouault, Nolde e Schmidt
Rottluff. Picasso abandonava aquele expressionismo prudente, mais
diretamente inspirado em Lautrec, sua grande admiração na época da
fase azul. Ele marcha agota paÍa um sentido mais ,viril da estrutura.
É um desenvolvimento esse que, iniciado na fase rosa e prênegra, vai
terminar na grande tela decisiva das Demoiselles d'Ávignon. E,le
tenta, como Braque começot a fazer, depois de umâ temporada no
Estaque onde viveu Cézanne, reduzir o velho mestre de Aix total-
mente ao plano, suprimindo assim a última das ilusões que ainda res-
tara daquele a corporeidade física.
O "x" da- questão é agora o espaço. A revolução se espraiara
até aqui em ondas avassaladoras para a libertação da cor. E com o
abandono do velho espaço apaÍente da perspectiva, com a condena-
ção da profundidade fictícia das linhas a entÍarem no quadro em
busca de um ponto de fuga, coube à cor sugerir a forma. Matisse
com ela sugeriu também alguma noção de espaço, e propõe e
assim age -
dar do corpo as suas paÍtes essenciais. Para ele trata-
- sinteticamente "pintar um corpo de mulher". Picasso,
-se ainda de
a esta altura, republica: O que tenho de pintar é um quadro. Esta
atitude define a nova posição.
Gino Severini observa que, por volta de 1908, um desejo de
construir arquitetonicamente as formas domina certos artistas, inclu-
sive Dêrain, Picasso e outros, no sentido da acentuação .geométrica
cézanneana. A fase negra picassiana foi a transição para uma pintura
de pura idealização estrutural. Segundo Maurice Reynal, é em 1907
que o mestre espanhol inicia suas primeiras experiências, mais tarde
chamadas cubistas.
Era uma reação contra o impressionismo e os paroxismos do
fauvismo. Fala-se muito então de restaurar a disciplina do clássico.
No fundo o que pÍocuram é dar imagem permanente do que é tran-
sitório, do objeto destacado de suas relações no espaço. É o proble-
ma severo do "estilo", mas na multiplicidade dos aspectos contra-
ditórios e sucessivos de nossa época. Picasso estava talhado para
atacar, um dos primeiros, essa alta questão. Vinha da Espanha, for-
mado na tradição apaixonada e austera de uma arte dilacerada entre
os arroubos do misticismo e a violência de um realismo sensual indo-
mável. Ele é dos raros dentre os nomes que contam ter iniciado sua
carreira sem arrebatamentos pela cor. Ao contrário, então ele se ape-
ga a um monocromismo azul e, depois, rosa. A cor é adiada, até que
ele assimile toda a lição de Lautrec, um artista também mais preso
ao jogo das linhas do que das variações cromáticas. üante do der-
rame sentimental de sua fase azul, com aquela intensa humanidade
pelos seres marginais que revela, o exemplo da escultura negra vem
para impeli-lo a dar à sua obra uma ordem arquitetônica mais ütal.
Dsso resultará o início do cubismo.
1,37
A denominação vem aqui também de uma piada do mesmo crí-
tico que batizou os fauves. Braqlue mandara ao Salão de Outono de
1908 algumas telas construídas ao calor da inspiração cézanneana,
quando passou algum tempo no "Estaque", antiga moradia do avô
da arte moderna. As telas foram recusadas. Kahnweiler, um dos "mar-
chands" que sustentavam os renovadores, resolveu então expor as
telas recusadas. A pequena mostra tornou-se histórica, como a pri-
meira apresentação pública da nova escola. Uma das paisagens de
Braque de L'Estaque, espécie de Cézanne depurado das últimas preo-
cupações com o motivo e a corporeidade, contém planos de casas
sem janelas e portas. Os jurados que a recusaÍam não deixaram de
referir-se àquelas "casas sui generis". Vaucelles, ao criticar, por sua
vez, â mostra da Galeria Vignon, fez menção dos "cubos". Estava
achado o nome da coisa.
A REYOLUçÃO DO CUBTSMO
138
Ao tentar resolveÍ o problema do objeto no quadro, depois do
revogadas as técnicas tradiôionais que serviàm para reproduzii a apa-
rência da realidade, os primeiros cubistas dedicaram todo o seu esfoç-
ço à criação de um novo espaço. Achar um eqúvalente do volume,
eis a questão. Por meio de uma arquitetura mental, aprosenta o obiêto
em todas as suas facetas. Mas a resolução do problema assim posto
se transfoÍmava numa tentativa de alcançar o movimento. O voluFe
pelo sombreado na maneira tradicional é impossível diante da reali-
dade intransponível do quadro. Maurice Reynal define assim a so-
lução encontrada: O objeto será integrado sob todas as suas faces,
evocado no desenvolvimento de diversos planos que Íeagem uns so-
bre os outros à maneira da cor nos impressionistas. Na verdade o
objeto nfo será, como pensa o crítico francês, integrado, mas antes
desmontado paÍa ser visto de todos os lados.
Severini, com a sua precisão costumeira, explica: "Os objetos
eram seccionados anatomicamente paÍa que sua aparência visível se
mostrasse uma vez em perspectiva e ao mesmo tempo de perfil, a
seguir numa posição de frente em projeção vertical e depois na sua
espessuÍa, de acordo com a projeção horizontal. Faziam-se assirn in-
tuitiva e aproximadamente opeÍações análogas ao que em geometria
descritiva se chamam projeções ortogonais conjugadas, com rotações
de planos em toÍno de um "eixo" (Ver y Estimar, "Balanço do
Cubismo").
O plano do quadro, que cumpre respeitar também, rechaça a
ilusão perspectiva clássica e obriga as relações formais a compor-
tarem-se de determinada rhaneira. Para dar o objeto, ainda não de
todo abandonado, ou, por outra, para guardar dele apenas sua "for-
ma primária", como diria Picasso a Florent Fels (Propos d'Artiste) ,
descobriram a sua projeção em torno de um eixo na superfície plana
da tela. Mas, não esqueçamos, a cor o novo grande meio de
expressão Iibertado é outra realidade -intransigente. Severini ainda,
no seu formoso livro- Du Cubisme au Classicisme, propõe, então, para
decidir o impasse, subordinar outra vez o elemento- cromático:- "A
cor deve ser sêmpÍe contida e dominada pela forma. A paixão pela
cor obriga o pintor a inventar sua forma, a violentar, a deformar sua
composição mediante a cor, e isso constitui uma usurpação do re-
lativo ao absoluto, da aparência passageira à forma permanente e da
sensação ao espírito." O pintor e teórico italiano defende a idéia, o
conceito, como base indispensável da arte cubista. Apollinaire também
pretendia distinguir o cubismo da antiga pintura pelo fato de não ser
aquele uma arte de imitação, mas conceitual, de que tendia a elevar-
-se até a criação. O medo desses teóricos é que a cor invada o plano
e force a dissolyer os últimos vestígios do objeto, pedestal da idéia
conceitual. A forma era paÍa eles um conceito platôtrico, ideaüsta,
e não uma realidade sensorial, base da percepção. Eis por que nas
139
olimeiras fases os cubistas mantiveram de alguma maneira as cores
ã [stância. Suas obras ünham então, com efeito, uma gama simples
h6ngs, negro, terÍas (restauradas depois 'de banidas pelo impre-s-
-sionismo), veíde, cinza. Evitam os toni puros. Para a construção
do quadio a função da htz é de centrar os -planos arquitetônicos do
conjunto. Não há gradação de valores, mas decomposição de volumes
il"nor inteÍ-rúcion;dos,
PoÍ vezes EansParentes. A sugestão do
"-
espáço é sobretudo de ordem mental, pois recusam os. pintores a
itúsaã do espaço aparente, imitado pela perspectiva clássica' Per-
manecendo cientro ão plano da pura criação, só há para-.eles um
verdadeiro espaço: o artístico. E éabe a este delimitar a realidade da
obra pintada no plano do quadro.
Formas justaPostas são formas que tendem a modificar-se na
percepção. Elas se ligam entre si nos limites espaciais das bordas
ào quadro, desintegtam-se para que parte de uÍna constitua, com
parté da outra, um novo todo; anulam-se reciprocamente, fundem-se'
ilos quadros cubistas, o jogo dessas transformações formais constitui
um d-os segredos de sua cativante ambivalência. Os planos e linhas,
as áreas dé cor, os perfis ou pedaços da figura ou do objeto arru;
mados na. tela se junlam ou se repelem sob fatores óticos da distân-
cia ou da vizinhança, da simetria, do contraste ou da semelhança,
num constante jogo de combinações formais, independentemente de
qualquer sujeiçâo ao objeto ou ao tema da tela. Gleizes e Metzinger,
teóri"os praticistas do cubismo, não tardaram por isso mesmo em
verificar. que "uma elipse pode mudar-se em circunferência porque
inscrita num polígono". A organização plástica do quadro terá assim
de ser subordinada à distribuição calculada desses diversos proces-
sos formais e rítmicos, e tudo submetido à concepção preliminar da
arquitetura do conjunto. Verificava-se assim sujeitarem-se as formas
no quadro à mesma incoercível inter-relação das cores'
O cubismo chegava, pois, ao impasse a que havia chegado o
expressionismo. R. belauney, com os americanos RussçI,
-Morgan
Bruce e Maldonald Wright, o tcheco Kupfka, Sonia Terk, numa insu-
bordinação aos cânoneJidealistas do cubismo, criaram então o orfis-
mo, talvez sob a inspiração da exposição do futurismo italiano em
Paiis, em 1912. Delauney não tinha nenhum encanto pelas seduções
do liiismo cúbico-picassiàno. Ele era precisamente um daqueles pin-
tores que tinham
;'paixão pela cor", e que tanto apavoravam Gino
Severini. Para resolver a contradição relevada por aquele mestre
italiano, residente em Paris, Delauney foi às do cabo e suprimiu
simplesmente o objeto, seguindo um caminho paralelo ao de Kan-
diniky e ao dos homen s de Blau Reitet na Alemanha'
140
- -7-
ORFISIf,O E FUTURISIIO )
141
tica. O futurismo pictórico pretende acumular as sensações visuais
simultâneas, dando-nos imagens dessas sensações. Na realidade, ele
tem a intuição da concepção visual moderna, fundada no movimen-
to, na visão exclusivamente binocular, pois o automóvel, o subma-
rino, o avião, o paraquedismo estão de hora para hora a nos prgjetar
das coisas uma imagem inteiramente inédita ou diferente da habitual,
de ângulos os mais variados e contraditóÍios. Desde 1910, o sistema
cubista, diz-nos Maholy-Nagy (Vision in Motion), no intuito de nos
dar o moümento, consistiu numa soma de esforços para resolver o
problema de apresentar o objeto em movimento de todos os pontos
de vista. Para o futurismo, a solução é quase inversa: ele quer ver o
desfile do objeto. No cubismo, a visão do espectador é que se move;
no futurismo seria o objeto que se desloca. Daí a idéia de desfile, pa-
rada, epetáculo, com o espectador no meio, imóvel, a assistir.
O futurismo foi, sem dúvida, uma das primeiras e das mais im-
portantes correntes estéticas, no início do século, a marcarem o de-
senvolvimento das artes plásticas, sobretudo a pintura e a escultura.
Apesar de manter, como preliminar, uma realidade externa a atendeÍ,
ele tÍouxe uma contribuição valiosa ao mostrar a tremenda impor-
tância do dinâmico na nossa civilização mecanizada. Os meios plás-
ticos pictóricos tradicionais, no entanto, não estavam em condições
de alcançar aquela imagem visual feita de uma sucessão de sensações
simultâneas, por ele proclamadas como a finalidade moderna da arte.
Aliás, um dos seus mais lúcidos e talentosos representantes, Boccio-
ni, talvez pressentindo essas limitações, previu uma pintura direta-
mente com luz projetada no espaço.
O SURREALISMO E O ABSTRACIONISIIO
142
e aos desenhos de cerâmica, enquanto os companheiros de aventura
também já não avançam. Recolhem-se na glória e no cuidado dos
detalhes.
Um movimento, entÍetanto, surge, além do surrealismo, como
para concluir a linha de evolução que vem do fauvismo e do cubis-
mo. Essa coÍrente é como o aÍremate de todo o moümento. Trata-
-se do grupo em torno da revista Die Stijl, chefiado por Mondrian e
Van Doesburg, ambos holandeses. Eles representam á ala mais radi-
cal da arte abstrata, com bases puramente geométricas. Mondrian
defende uma arte inteiramente impessoal, Iógica, em que o tempera-
mento ou os caprichos do artista não entram. Para Mondrian, qual-
quer alusáo, mesmo posterior à obra acabada, a figuras ou objetos
externos, é um deslize em relação à autonomia absóluta da obra de
arte.
Com Kandinsky, Mondrian e parcialmente KIee, todo esse mo-
vimento artístico em sua purezâ chega ao apogeu. Kandinsky foi o
primeiro que postulou as premissas de uma arte na qual a imaginação
giatuita seria substituída por puras relações abstratai ou mesmo ma-
temáticas. Em Klee ou numa escultura de Brancusi as reminiscências
do real que ainda existem são recriadas num sentido inteiramente
novo e estritamente subordinadas ao mundo, plano do quadro, ou às
formas embrionárias ou primárias irredutÍveis; Mondrian, que é o
jacobino da revolução modernista, faz a depuração final. pàra ele,
a obra de arte é apenas um conjunto de ritm-os inteiramente destaca-
dos de qualquer relação exterior.
Até mesmo o espaço sugerido é condenado por esse asceta da
pureza estética. É, entretanto, aqui que sua tarefa de recriar as bases
estruturais primárias da pintura entÍa em choque com a própria rea-
lidade percepcional do homem. Basta, pois, um ponto numa superfície
plana para criar uma sugestão espacial. Na realidade, a pintura
chega ao ponto extremo de seu desenvolvimento.
Mondrian pensou ter levado a pintura ao seu último capítulo.
Max Bill e outros mais modernos vêm, e abrem outra vez a porta
fechada pelo mestre holandês. Iniciam a busca fascinante de uma nova
dimensão que concilie a dinâmica e a estática, numa noção de espaço
já inseparável do tempo. São os artistas, pintores-escultores da
arte concÍeta que criam objetos no espaço e procuÍam na ambiva-
lência percepcional sugerir o que se tem chamado de quarta dimensão.
AS ÚLTII'AS EXPERIÊNCIAS
143
ticos libertados, como a cor e a luz, já ultrapassam as limitações da
pintura. Como Boccioni e Malevitch, Moholy-Nagy, um dos colabo-
iadores da Bauhaus pré-hitleriana, também é da mesma opinião. Todas
as suas pesquisas plásticas posteriores, nos Estados Unidos, visavam
superÍr o problema fundamental moderno de integrar o espaço na
obla plástica rem quebra da pureza desta e sem concessões à imitação
ilustràtiva da velha pintura. "Desde a invenção da fotografia, a pin-
tura foi evoluindo da cor para a luz. Dito de outra maneira, em vez
de se pintar com pincéis e cotes, dever-se-ia pintar agora com a luz,
transfórmando, assim, em estrutuÍas luminosas as superfícies colori-
das de duas dimensões." (Moholy-Nagy, caÍla a Kalivoda, Cíclo n.o I
BusÍr6s Aires. ) E ele, no mesmo artigo, confessa sonhar com apa-
-relhos que permitissem, graças a um dispositivo manual ou automá-
tico, projetar visões luminosas no ar, em vastos salões, sobre telas de
substâncias inusitadas: bruma, gases, nuvens. Nagy prevê também
outros processos dessa plástica de luz, inclusive ao ar livre.
Esses vaticínios ou esses anelos são indícios de que as aÍtes plás-
ticas, tal como nós as conhecemos até hoje; estão numa fase de tran-
sição. Já a fotografia e o cinema abriram novas possibilidades à ima-
ginação plástica criadora dos homens. A arte tende cada vez mais a
deixar para trás esse longo período que poderíamos chamar de arte-
sanal ou manual. A mecânica moderna apresenta novos meios de
expressão para o homem, e esses mal estão começando a ser utili-
zados.
Uma série de tentativas no novo domínio da pintura com luz se
vem verificando desde que Wallace-Rimington construiu um aparelho
a que denominou de "órgão-cor". Depois dele, Thomas Wilfred cons-
truiu o seu clavilux. Os sincromistas foram a primeira "escola de pin-
tura" a imaginar essa futura arte da luz-cor. Desde então, nos salões
das Réalités Nouvelles, nas mostras mais modernas de arte em Suíça,
Holanda, Estados Unidos, e também no Brasil * a idéia nova vai sur-
gindo e empolgando os espíritos mais audaciosos.
EPILOGO
r44
mental. Pode-se, pois, subscrever, talvez com algum orimismo, esse
pensamento generoso de Moholy-Nagy a respeito do movimento mo-
dernista: "Félizmente, é uma qualidade inesperada do moúmento de
arte moderna o fato de que algumas de suas facetas possuam relações
ocultas com a vida prática. (Com efeito, pode-se dizer que todo o
esforço criador de hoje é parte de um pÍograma de preparação indi-
reta e gigantesca para remodelar, através da visão em movimentô, os
modos de percepção e de sentiÍ, e para conduzir a novas maneiras
de viver. ) " ,
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