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Revista Pontes, Paranavaí, 2021, v. 9, p.

74-83 – ISSN 1808-6462

SOLIDARIEDADE E AÇÃO: A PRAGMÁTICA DA SOCIABILIDADE


HUMANA DE MANOEL BOMFIM

Clayton José Ferreira1

Resumo: Neste ensaio busco destacar uma interessante proposta que perpassa a obra de
Manoel Bomfim, mas que me parece ser mais saliente em seu ensaio O Brasil na
História: deturpação das tradições, degradação política (1930). Bomfim compreende
que as experiências humanas, o passado, as memórias e o conhecimento histórico (não
somente aquele realizado por historiadores) são espaços de encontros entre projetos,
disputas e expectativas humanas. Com a mediação adequada deste saber através de uma
escrita da história não somente racional, mas também sensível e afetiva, seria possível
potencializar a capacidade solidária entre os sujeitos. Bomfim entende que isto é
necessário para uma maior sociabilidade ser gerada entre os sujeitos. Segundo a
interpretação da obra de Darwin realizada por Bomfim, desde o início da nossa espécie,
a solidariedade seria a principal habilidade humana que explica a sua capacidade de
adaptação, transformação e sobrevivência.
Palavras-chave: Manoel Bomfim; Solidariedade; História

Abstract: In this essay I try to highlight an interesting proposal which runs through the
work of Manoel Bomfim, but which seems to be more salient in his essay “O Brasil na
História: distortion of traditions, political degradation” (1930). Bomfim understands that
human experiences, the past, memories and historical knowledge (not only that made by
historians) are spaces for encounters between projects, disputes and human
expectations. With the appropriate mediation of this knowledge through a history
writing that is not only rational, but also sensible and affective, it would be possible to
enhance the capacity for solidarity among the subjects. Bomfim understands that this is
necessary for greater sociability to be generated among the subjects. According to
Bomfim's interpretation of Darwin's work, since the beginning of our species, solidarity
would be the main human skill which explains his capacity for adaptation,
transformation and survival.
Key-Words: Manoel Bomfim; Solidarity; History

As dimensões do tempo como encontro de desejos, projetos e expectativas


Manoel Bomfim (1868-1932), historiador/intelectual do início do século XX
brasileiro, possui uma importante compreensão teórica acerca da habilidade de
convergência entre passado e presente do sujeito moderno, ao menos do latino-
americano. Mais do que isto, Bomfim propõe que o saber histórico possui uma função
ético-política, ou seja, o saber histórico adequado pode articular os sujeitos para pensar

1
Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Este texto é resultado de minha
tese e de meus primeiros estudos durante o estágio de pós-doutorado.

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uma ética da ação transformadora da realidade tanto para o nível individual quanto
comunitário. A história poderia, assim, apresentar projetos e desejos humanos em
experiências diversas para os sujeitos do presente, produzindo um compartilhamento,
onde, de forma apropriada, criaria condições pertinentes para gerar uma habilidade que
Bomfim aponta como central para o sucesso da espécie humana: a solidariedade. 2 O
foco deste estudo se encontrará especialmente no livro onde o autor deu maior destaque
a estas questões, o ensaio O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação
política (1930).
Acerca das possibilidades e limites do agir, o autor intui que “o homem sempre
produziu na medida da confiança que dá ao próprio mérito”, e sendo assim “o talento
não basta, e o desejo será perdido anelo, se não nos sentimos capazes do esforço preciso
para alcançar o desejado” (BOMFIM, 1930, p. 9). O conceito “desejo”, de central
importância para seu argumento, parece definir-se como uma disposição mental, tanto
individual quanto comunitária, a qual diz respeito a uma relação de ordem afetiva e
também racional sobre o cotejamento constantemente realizado entre um passado
referencial - estabelecido na tradição, identidade, memória e história escrita - e
expectativas futuras. Para os projetos de transformação da realidade social, econômica,
política e cultural entre os grupos de sujeitos “a realização é o constante resultado da fé
que o indivíduo tem na ação a desenvolver”. O intelectual sergipano compreende que
há, aqui, uma antropologia filosófica – a ação está necessariamente ligada a uma
educação sentimental estimulante, “o homem, na ação humana, é um valor de
consciência” (BOMFIM, 1930, p. 9).
Bomfim desenvolve a interessante ideia de que, da maturidade individual ao
desenvolvimento coletivo, aquilo que é humano põe-se em movimento através de
estímulos “conscientemente sentidos”, fundamentos robustos para constantemente
intensificar a ação adequada para àquilo que se precisa enfrentar em sua temporalidade.
Esta noção de estímulos “conscientemente sentidos” não indica uma contradição entre
uma suposta (e equivocada) oposição entre razão e afeto. Para Bomfim, a categoria
“conscientemente sentido” diz respeito a ideia de que a ação humana, muitas vezes
fundamentada ou determinada por desejos, precisa ser confrontada pela ética através de
um esforço racional o qual, antes de tudo, necessita ter sua origem no âmbito da

2
Acredito que há grande potencial nestas reflexões de Bomfim, especialmente em experiências de
intensificação de violências sociais e institucionais contra determinados grupos que buscam resistir a esta
dura realidade (afro-brasileiros, etnias dos povos originários, comunidade LGBTQI+, entre outros), e
ainda, de dissenso político e afetivo tão grande como a que vivemos no Brasil.

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sensibilidade. É a sensibilidade que indica à razão aquilo o que precisa ser tematizado,
onde a intuição destaca ao pensamento a necessidade de enfrentamento de um
determinado tema ou questão. Para a realização de tal estímulo, a intuição se forma a
partir da sensibilidade, das características sensoriais, mas também através da
experiência.
Esta habilidade, que não se realiza necessariamente, mas é um esforço a ser
exercitado, pode mover os seres humanos a “elevar-se”, a criar novas possibilidades no
agir naquelas múltiplas constituições e entraves de sua época, especialmente quando se
movem no interior de um tempo profundamente acelerado, ou seja, onde as
transformações são constantes e a sensação de instabilidade é vertiginosa.

Para os fins da atividade inteligente e social, todos os motivos têm que tomar um
aspecto consciente. (...) Foi pela pronunciada energia desses motivos conscientes
que o homem se elevou, e fez valer a sua eficiência sobre as coisas puramente
materiais, subtraindo-se, subjetivamente, ao determinismo brutal das influências
exteriores, cósmica, subordinando-as, aparentemente, ao seu interesse moral. No
homem, a natureza orgânica superpõe-se a vida psycho-social, cuja formula ativa é o
próprio eu (...) (BOMFIM, 1930, p. 10).

É possível compreender que para o autor, o bom uso da razão, e mais do que
isso, o posicionamento ético-moral (decisões racionais no que tange ao que pode e deve
ser feito, tendo em vista a solidariedade entre sujeitos), são, por conseguinte,
fundamentais. Os motivos e estímulos deste “vir a ser” ou devir da realidade são
orientados, entre outras medidas, pela experiência, tanto do indivíduo quanto daquela
sociedade a qual pertence: a história é “capaz de orientar, estimular e defender”; já que
parte do passado diz respeito a “desejos e realizações através dos tempos e das classes
sociais” (BOMFIM, 1930, p. 38). O passado, portanto, compartilha desejos, projetos e
disputas entre seres humanos do presente e passado, os quais podem ser negados ou
retomados, apropriados e ressignificados para a coesão e/ou para a violência.
Para uma orientação mais apropriada no presente, Bomfim acredita que é
necessário ampliar o conhecimento acerca das dimensões das experiências passadas, a
fim de potencializar as expectativas e a capacidade de realizá-las em algum nível. Sendo
assim, há uma relação direta entre o saber sobre o passado, o entendimento de parte das
diferentes dimensões do tempo (passado, presente, futuro), as possibilidades de ação e a
consciência de tais possibilidades.
O saber considerado adequado, aquele que produz sociabilidade e solidariedade
entre os sujeitos, especialmente aquele sobre o passado, pode despontar uma reeducação

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sentimental e ética que potencializa o indivíduo e o coletivo. É preciso dizer que isto é
uma possibilidade, já que o autor compreende que o passado também pode ser
ressignificado e apropriado de forma considerada inadequada, produzindo, por exemplo,
insociabilidade, violência entre os sujeitos e grupos. Ou melhor, o passado precisa ser
retomado no processo de constituição de norteamento no que tange a posturas racional-
pragmáticas e ético-políticas no presente. Postula-se isto devido à noção de que, para
Bomfim 1) há uma relação de intimidade entre desejos constituídos no passado e no que
Koselleck nomeia “horizonte de expectativas”; 2) o que significa dizer que há projetos
anteriormente constituídos que ainda possuem relevância e são desejados no presente,
por isto, caso sejam percebidos como adequados, há necessidade de retomá-los para o
estímulo e a orientação, especialmente em um tempo profundamente acelerado. Para tal,
esta direção deve ser realizada com base no que Gumbrecht entende hoje como efeitos
de presença e efeitos de sentido, ou seja, respectivamente, através do racional, do
lógico-formal, mas também a partir do estético, portanto, de experiências afetivas e
sensoriais (GUMBRECHT, 2009, p. 13).
Com isto, Bomfim acredita que é possível constranger parte do egoísmo
(sentimento que degenera comunidades) e prezar pela solidariedade social para os
progressos de suas expectativas históricas3. Para Bomfim, o equilíbrio entre o
desenvolvimento das faculdades pessoais e da coletividade é essencial para a
constituição de uma sociedade orgânica, saudável. Para ambos, o pessoal e o social, é
necessário estimular o sujeito a suprimir parte de sua individualidade para a plena
sociabilidade. Portanto, os motivos de valor ético são um “estímulo no sentido do plano
geral de ação, ou no desenvolvimento de pensamento” (BOMFIM, 1930, p.29 – 31).
O individualismo extremado precisaria ser mediado pelo próprio sujeito (e não
pelo Estado, é preciso dizer) em favor da ideia ou do objetivo coletivo. Para tal é preciso
criticar, apreciar os valores comuns e organizar as animações em prol do que se

3
Através desta consideração é importante apontar que, apesar de sua formação em medicina, Bomfim
estudou psicologia e pedagogia, atuando a maior parte de sua carreira como professor, autor de ensaios (A
América Latina: males de Origem em 1905, Lições de Pedagogia, em 1915, Noções de Psicologia, em
1917, A Cartilha, em 1922, Lições e Leituras, Crianças e Homens, Livro dos Mestres, todos em 1922;
Pensar e Dizer, em 1923, O Método dos Testes, em 1928, O Brasil na América, em 1929, O Brasil Nação
em 1931, Cultura e educação do povo brasileiro, em 1932) em, artigos em revistas (a maior parte com
temática educacional - colaborou com a fundação da revista Pedaggogium em 1897, A Universal em 1901
e O Tico-Tico em 1905)e livros didáticos (Livro de composição para o curso complementar das escolas
primarias, de 1899, Livro de leitura: para o curso complementar das escolas primárias, em 1901,
Através do Brasil, em 1910), diretor do Pedagogium (instituição que reuniu tecnologias educacionais) e
redator de diversos jornais (onde escreveu artigos de cunho educacionais). Devido a sua formação, nota-
se analogias e metáforas interessantes acerca da saúde de um “corpo social” através da relação mais
harmoniosa entre as partes individuais (AGUIAR, 2000, p. 521–525).

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considera progresso. Sem o equilíbrio entre o individual e o coletivo “perde-se o sentido


da solidariedade moral, que assegura o progresso social, e o grupo decai em valor”
(BOMFIM, 1930, p.29 – 31). Bomfim compreende, ao fim, que o sucesso humano, se
explica pela capacidade de produzir solidariedade entre sujeitos e grupos quando estes
articulam desejos, projetos, suas disputas e dissensos em espaços e tempos diferentes.

Solidariedade e potencialidade humana


No nível cultural, pessoal ou coletivo, onde as diversas interpretações da
história, inclusive a profissional (historiografia) se entrecruzam, o autor aponta que a
relação com o passado se dá através da intensificação da “distância histórica” ou
redução da “distância histórica”. Em O Brasil na História este esforço procura romper
com experiências históricas depreciativas e valorizar aquelas que podem despontar
perspectivas ético-políticas consideradas mais adequadas aos desafios da
contemporaneidade. A tradição precisaria ser reorganizada para uma maior adaptação
(uma categoria que Bomfim ressignifica a partir de Darwin) às experiências que podem
positivar as perspectivas comunitárias no interior do presente.
Deste modo, no ensaio de Bomfim, especialmente em suas determinações
historiográficas, há uma orientação ético-política para provocar o leitor à consciência
dos desafios do seu tempo e a disponibilizar, assim, reflexões acerca das possibilidades
de atuação. Como citado anteriormente, esta orientação é expressa a partir de duas
estratégias discursivas autônomas e, a um só tempo, complementares – a pragmática
mais propriamente racional ou lógico-formal e aquela que aponta para os aspectos
sensoriais e afetivos do leitor, aquilo que, como mencionado anteriormente, Gumbrecht
chama de efeitos de sentido e efeitos de presença (GUMBRECHT, 2009, p. 13). Nas
palavras do próprio Bomfim:

A experiência, na atividade do espírito, renova-se como a própria vida, e o EU


aparece-nos na função subjetiva bem explícita – de escolher motivos de proceder, a
luz da consciência, orientado pela mesma experiência, tanto a pessoal como a da
espécie, sobretudo a que nos fala proximamente, nos termos da tradição a que
pertencemos. Em verdade, todos os motivos de ação repercutem na consciência;
mais os interesses gerais da espécie – moral, justiça, humanidade... como não são
irradiações imediatamente egoístas, tornaram formas de inteligência, em ideias, e,
com isto, multiplicam-se em representações, nítidas, correntes, como as mesmas
ideias. Então, repetidas em todas as relações sociais, multiplicadas e explicitas como
valores mentais, elas se contrapõe vantajosamente aos puros motivos individuais,
ainda que sejam estes mais intensos e vivaces. E, assim, obtém-se que prevaleçam as
necessidades de justiça e solidariedade. Destarte, está assegurado o progresso
essencialmente humano – pelo apuro e reforço constante dos sentimentos
socializadores (BOMFIM, 1930, p. 10 – 11).

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Os interesses gerais transformam-se em ideias as quais podem se opor ao


egoísmo, indicando algum norteamento para a sociabilidade. Nesta operação, a relação
(lógico-formal e sensorial-estética) com a experiência desdobra sugestões para as
expectativas e o agir, tanto individualmente como comunitariamente. Este processo
permite generalizar conceitos e ideias “gerais da espécie” que convergem os sujeitos a
projetos de coexistência e avanço social.4 Para Bomfim, instintivamente procuramos
motivos (egoístas ou solidários, pessimistas ou otimistas, e aquilo que se encontra entre
eles) para estimular nossas ações – trata-se de uma característica de nossa espécie.
As escolhas adequadas que mediam simultaneamente a existência individual e
social são imprescindíveis para a explicação da natureza humana e do desenvolvimento
da própria espécie em variadas comunidades que se adaptaram ocuparam os mais
diferentes e desafiadores espaços no globo. Esta noção que entendo como uma
adaptabilidade solidária, produzida por Bomfim a partir de Darwin, é de extrema
importância para os argumentos do autor, que deixou inacabado um ensaio intitulado
Moral de Darwin. Darwin foi um importantíssimo referencial para a obra de Bomfim,
especialmente para suas considerações a respeito da sociabilidade humana e o papel do
conhecimento para tal e, ainda, contra os racialismos hierarquizantes (UEMORI, 2008).
Isto porque, através do trabalho de Darwin, Bomfim conclui que a capacidade ou
incapacidade humana não são determinadas pela etnia (ou pela “raça”, como era
tematizado em sua historicidade), mas pela possibilidade de agir de forma solidária, em
conjunto. Segundo Bomfim, Darwin demonstrou em seus estudos, portanto, que a razão
não foi o principal diferencial entre a espécie humana e os outros animais e nem mesmo
esta explicaria o sucesso de nossa espécie.

Foi Darwin o primeiro a romper com a clássica filosofia inglesa, que vem desde
Bacon, Hobbes, Locke, Adam Smith até Stuart Mill, Spencer, e que formula como
base da moral o utilitarismo. Para ele, a base da moral é o pendor natural - o instinto
altruístico – que leva o homem a procurar a companhia, e a interessar-se por eles,
fora de qualquer cálculo, ou de motivos egoísticos (BOMFIM, 1930, p. 249 -250).

4
Aponto que, para o autor, apesar do Estado possuir grande importância para este movimento de
sociabilidade, este projeto não é realizável em um Estado conservador, militarizado e violento. É preciso
produzir um espaço que conviva naturalmente com as necessidades de atualização ético-políticas com o
devir das transformações e novas expectativas, o que não é possível no Estado ultracentralizado. Para tal
argumento, é interessante o fato de que, com o golpe que depôs Washington Luís em 1930, Bomfim
resolve adicionar um apêndice ao ensaio o Brasil na História apontado que, apesar de todas as suas
críticas à república oligárquica, o governo conservador e militarizado de Vargas era uma escolha negativa
e imensamente oposta às necessidades dos sujeitos e grupos do país (BOMFIM, 1930, p. 529-560).

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O desenvolvimento do homem não se deu através da disputa natural entre seus


pares, nem pelo domínio ou a sobrevivência do mais forte, mas sim pela sociabilidade,
pela capacidade de agir no mundo pela coletividade. Sendo assim, Bomfim conclui que
as ideias do chamado “Darwinismo social” seriam uma deturpação da teoria de Darwin
em favor da legitimação do ataque das nações mais poderosas sobre outras, além de
uma falácia para tentar legitimar a superioridade étnica dos povos destas mesmas
nações. Portanto, estas apropriações das pesquisas de Darwin seriam inadequadas, já
que produzem violência e insociabilidade, se apropriando de um saber em favor de uma
política de Estado bélica, opressora, colonizadora.
Também, para Bomfim, o saber e a educação escolar possibilitariam uma
sofisticação do indivíduo sobre si mesmo, a respeito da coletividade da qual participa,
acerca de seu tempo e as experiências de outros homens no tempo, o que potencializaria
a sua capacidade ética e moral e seu papel como agente da sociedade. A partir de novas
relações com experiências históricas, estes sujeitos poderiam sedimentar novos aspectos
da tradição, realizando uma intensificação da intimidade com determinados passados:

Da tradição se diria, com toda a propriedade: são almas que se continuam através
das idades; são os veios que traçam o viver da humanidade. Ou, melhor, é a trama
viva onde se tecem as consciências, para todos os efeitos de realização humana –
moral, política, religião, arte, produção econômica... que tudo se faz como expressão
patente de tradições. A sociedade humana existe e se desenvolve em sociedades
parciais, de valor nacional que englobam agrupamentos menores, ou de valor mais
restrito. E a vida da humanidade se reduz ao desenvolvimento desses agrupamentos,
em que se incorpora a vida de uma tradição. Destarte, é a tradição mesmo que se
desenvolve, e progride, e se apura, como se amesquinha, e decai, e deperece. (...)
Finalmente, a substância da história é feita desses embates em que, sob a rubrica de
povos, ou de classes, as tradições se afrontam, e lutam, para o avassalamento de
umas pelas outras, com o resultado de substituições, fusões, eliminações, extinções –
lentas ou súbitas, até que prevalece a tradição que representa um maior progresso
humano, ou, pelo menos, a virtualidade de progresso, em energias jovens, próprias
para a indispensável renovação de formas – políticas, sociais, econômicas
(BOMFIM, 1930, p. 18-20).

O intelectual sergipano entende que o conhecimento sobre o passado,


especialmente as potencialidades de determinadas tradições, expande a sofisticação e a
qualidade da atividade ético-politica do homem. Este influxo do agir através de certo
vínculo com o passado ocorre necessariamente, ou ainda, por maior que seja o
estranhamento em relação ao passado na modernidade, há sempre algum tipo de
conexão com este, de modo que o papel de quem investiga o passado é, também,
tematizar este ou aquele pretérito eticamente profícuo, com o intuito de evidenciá-lo,
intensificando-o.

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No entanto, toda interpretação, representação ou apropriação do passado, através


da memória ou da historiografia, em diferentes intensidades, influem neste vínculo com
o passado. É partindo desta noção que Bomfim produz uma crítica historiográfica em
seu ensaio buscando apontar a necessidade de se produzir (especialmente de forma
profissional) reflexões sobre as experiências passadas que, além de prezarem por serem
as mais fidedignas possíveis, valorizem dimensões adequadas para intensificar as
relações dos sujeitos com os diversos aspectos temporais. Está ai a valia que torna a
ação no presente profícua.

Do estudo das sociedades na sua marcha evolutiva induzem-se as duas verdades: a)


todo progresso social e político se faz ao influxo de uma tradição, na definição que
nela se contém: b) nessa altura da civilização, o influxo da tradição tem de ser
nitidamente, intensamente consciente (...). Quando um processo social, ou
instituição histórica tem valor natural e correspondente a necessidade indeclinável,
encontramos sempre, a dar-lhe base, um iniludível instinto, pois que o instinto
significa exigência direta e formal da própria vida... Ora, desde os primeiros dias da
humanidade, como no que ainda existe de almas primitivas, quando a ação exprime
imediatamente imposição instintiva, verificamos o zelo constante pela tradição, com
os ânimos a exaltarem-se nela, a levarem-se no influxo e na orientação que dela
recebem. (...) O fundo, porém, é o da mesma fatal necessidade com que a vida se
propaga. E tudo assim se resume: progredimos humanizando-nos, quer dizer,
procedendo por motivos de consciência (BOMFIM, 1930, p. 13 – 140).

É necessário ter consciência das energias que estimulam ou podem estimular,


mas também é indispensável apurá-las, ou seja, é preciso destacar a tradição que
fomenta, motiva o progresso social e a coletividade. Quase como (e muito
provavelmente) se respondesse a alguns modernistas que acusavam tais argumentos de
“passadistas”, no ensaio o autor defende que a tradição não é um ponto de estagnação
que impossibilita a modernização (LAHUERTA, 1997, p. 96-110). Trata-se de um
fenômeno histórico não estático, plástico e que, ao invés de atravancar o que é moderno,
oferece reflexões para que este seja alcançado de modo orientado e mais ajustado. As
sociedades naturalmente se transformam através dos mais diversos contatos entre elas, à
vista disso, “(...) as tradições derivam umas das outras, qual os povos mesmos”
(BOMFIM, 1930, p. 21).
Naturalmente há dimensões do passado as quais são rememoradas, debatidas,
tematizadas em detrimento de outras que, em certa medida, não o são. Enquanto ocorre
a redução da “distância histórica” acerca de algumas experiências, simultaneamente se
produz a intensificação de certa “distância histórica” (acentuação de afastamentos). Este
processo ocorre necessariamente, porém, através das escolhas dos agentes em suas

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respectivas temporalidades. Não é possível estar completamente distante de certo campo


de experiências - para Bomfim uma relação adequada com o passado orienta e explica,
inclusive, o próprio progresso.

A história seria um luxo perdido, inútil dispêndio de inteligência a que o homem não
se entregaria, si não houvera a tradição, com a sua indiscutível utilidade – estimulo e
orientação. Com esta compreensão cinemática da tradição, tudo nos parece lógico:
ela é a forma de uma marcha orientada. A realização social se faz, necessariamente,
em esforços individuais; mas é na tradição que se definem as possibilidades de
harmonia entre o indivíduo e o conjunto social. Podemos considerá-la, pois, como a
própria sociedade em continuação, tanto se condensam nela, as afinidades ativas,
graças às quais se mantem e se desenvolve, em cada grupo, a vida social (BOMFIM,
1930, p. 14).

No interior da sensibilidade moderna surge uma nova forma de se relacionar


com o passado: apesar de necessariamente (fenomenologicamente) produzirmos de
alguma forma esta vinculação, este elo, há uma intensa atividade da inteligência, a qual
também a negocia. A saber, com inteligência o autor se refere a formas de intervir no
mundo a partir da atualização das faculdades intelectuais apresentadas,
institucionalizadas e, muitas vezes, e generalizadas, como a imprensa, o mercado
editorial, a alfabetização e a educação em geral.
Mais uma vez, é importante notar nesta passagem que ambas as pragmáticas
(lógico-formal e estética) são constituídas a partir de um norteamento ético-político.

Progresso e valimento ou perfeição não se fazem no vazio. (...) E compreende-se que


todo progresso mental e social, para cada grupo humano, tem de fazer-se como
reforço e apuro dos valores de consciência definidos na respectiva tradição. Dai a
necessidade de buscar todos os fatos em que se torna sensível essa mesma tradição,
e que as consciências mergulhem nela, até que a incorporem e lhe deem vida: a vida
indispensável para o prosseguimento de fados próprios, pela plena expansão dos
dons já revelados no passado. Não há que temer o termo: incluída no pensamento, a
ideia não nos leva à reação, nem tende ao chauvinismo. Sim: a formula – tradição
nacional não será para nós dique de estagnação, mas, nitidamente, formula de
prosseguir orientação indispensável, pois que o progresso humano – moral, político
e social, só é possível como desenvolvimento e expansão da tradição em que o
grupo nacional se definiu. Lucidamente consciente, não podemos realizar verdadeiro
progresso humano (...) senão conhecendo-a bem, parta, conscientemente,
desenvolvermos todos os esforços no sentido em que ela se orienta (...) (BOMFIM,
1930, p. 12).

A valoração do passado se estabelece através do autoconhecimento, e aqui


também há espaço significativo para o que temos chamado de uma pragmática lógico-
formal. Isto, claro, junto a uma reeducação sentimental, a qual também é realizada, em
temos Gumbrechtianos, pela presentificação do passado (por recuperar passados, por

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torna-los presente) e a diminuição da “distância histórica” entre esta ou aquela tradição


e o seu leitor (GUMBRECHT, 2009, p. 15). Ou seja, aquilo que, através de uma
estratégia discursiva do estético, realiza uma relação de intimidade com o passado pelas
experiências sensoriais.
Neste sentido, Bomfim cria uma pragmática que articula as dimensões do tempo
(passado, presente e futuro) em um encontro de desejos, projetos e expectativas
humanas. Para ele, no interior dos mais diversos dissensos que se encontram nestes
tempos e espaços diversos, é a capacidade de desenvolvimento da solidariedade humana
como uma habilidade que capacita os sujeitos para a transformação dos desafios e
entraves e para a produção de uma realidade mais adequada para a convivência entre
indivíduos e grupos.

Referências bibliográficas:

AGUIAR, Ronaldo Conde. O Rebelde Esquecido: tempo vida e obra de Manoel


Bomfim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000.

BOMFIM, Manoel. O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação


política. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1930.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. A presença realizada na linguagem: com atenção


especial para a presença do passado. História da historiografia, Ouro Preto, n.º 3,
setembro, 2009.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos


históricos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

LAHUERTA, Milton. “Os intelectuais e os anos 20: moderno, modernista,


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A década de 1920 e as origens do Brasil moderno. São Paulo: Editora da UNESP, p.
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UEMORI, Celso Noboru. Darwin por Manoel Bomfim. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 28, n. 56, p. 327-348, 2008.

Artigo recebido em 25/02/2021 e aprovado para publicação em 10/03/2021

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