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Resumo: Neste ensaio busco destacar uma interessante proposta que perpassa a obra de
Manoel Bomfim, mas que me parece ser mais saliente em seu ensaio O Brasil na
História: deturpação das tradições, degradação política (1930). Bomfim compreende
que as experiências humanas, o passado, as memórias e o conhecimento histórico (não
somente aquele realizado por historiadores) são espaços de encontros entre projetos,
disputas e expectativas humanas. Com a mediação adequada deste saber através de uma
escrita da história não somente racional, mas também sensível e afetiva, seria possível
potencializar a capacidade solidária entre os sujeitos. Bomfim entende que isto é
necessário para uma maior sociabilidade ser gerada entre os sujeitos. Segundo a
interpretação da obra de Darwin realizada por Bomfim, desde o início da nossa espécie,
a solidariedade seria a principal habilidade humana que explica a sua capacidade de
adaptação, transformação e sobrevivência.
Palavras-chave: Manoel Bomfim; Solidariedade; História
Abstract: In this essay I try to highlight an interesting proposal which runs through the
work of Manoel Bomfim, but which seems to be more salient in his essay “O Brasil na
História: distortion of traditions, political degradation” (1930). Bomfim understands that
human experiences, the past, memories and historical knowledge (not only that made by
historians) are spaces for encounters between projects, disputes and human
expectations. With the appropriate mediation of this knowledge through a history
writing that is not only rational, but also sensible and affective, it would be possible to
enhance the capacity for solidarity among the subjects. Bomfim understands that this is
necessary for greater sociability to be generated among the subjects. According to
Bomfim's interpretation of Darwin's work, since the beginning of our species, solidarity
would be the main human skill which explains his capacity for adaptation,
transformation and survival.
Key-Words: Manoel Bomfim; Solidarity; History
1
Doutor em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Este texto é resultado de minha
tese e de meus primeiros estudos durante o estágio de pós-doutorado.
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uma ética da ação transformadora da realidade tanto para o nível individual quanto
comunitário. A história poderia, assim, apresentar projetos e desejos humanos em
experiências diversas para os sujeitos do presente, produzindo um compartilhamento,
onde, de forma apropriada, criaria condições pertinentes para gerar uma habilidade que
Bomfim aponta como central para o sucesso da espécie humana: a solidariedade. 2 O
foco deste estudo se encontrará especialmente no livro onde o autor deu maior destaque
a estas questões, o ensaio O Brasil na História: deturpação das tradições, degradação
política (1930).
Acerca das possibilidades e limites do agir, o autor intui que “o homem sempre
produziu na medida da confiança que dá ao próprio mérito”, e sendo assim “o talento
não basta, e o desejo será perdido anelo, se não nos sentimos capazes do esforço preciso
para alcançar o desejado” (BOMFIM, 1930, p. 9). O conceito “desejo”, de central
importância para seu argumento, parece definir-se como uma disposição mental, tanto
individual quanto comunitária, a qual diz respeito a uma relação de ordem afetiva e
também racional sobre o cotejamento constantemente realizado entre um passado
referencial - estabelecido na tradição, identidade, memória e história escrita - e
expectativas futuras. Para os projetos de transformação da realidade social, econômica,
política e cultural entre os grupos de sujeitos “a realização é o constante resultado da fé
que o indivíduo tem na ação a desenvolver”. O intelectual sergipano compreende que
há, aqui, uma antropologia filosófica – a ação está necessariamente ligada a uma
educação sentimental estimulante, “o homem, na ação humana, é um valor de
consciência” (BOMFIM, 1930, p. 9).
Bomfim desenvolve a interessante ideia de que, da maturidade individual ao
desenvolvimento coletivo, aquilo que é humano põe-se em movimento através de
estímulos “conscientemente sentidos”, fundamentos robustos para constantemente
intensificar a ação adequada para àquilo que se precisa enfrentar em sua temporalidade.
Esta noção de estímulos “conscientemente sentidos” não indica uma contradição entre
uma suposta (e equivocada) oposição entre razão e afeto. Para Bomfim, a categoria
“conscientemente sentido” diz respeito a ideia de que a ação humana, muitas vezes
fundamentada ou determinada por desejos, precisa ser confrontada pela ética através de
um esforço racional o qual, antes de tudo, necessita ter sua origem no âmbito da
2
Acredito que há grande potencial nestas reflexões de Bomfim, especialmente em experiências de
intensificação de violências sociais e institucionais contra determinados grupos que buscam resistir a esta
dura realidade (afro-brasileiros, etnias dos povos originários, comunidade LGBTQI+, entre outros), e
ainda, de dissenso político e afetivo tão grande como a que vivemos no Brasil.
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sensibilidade. É a sensibilidade que indica à razão aquilo o que precisa ser tematizado,
onde a intuição destaca ao pensamento a necessidade de enfrentamento de um
determinado tema ou questão. Para a realização de tal estímulo, a intuição se forma a
partir da sensibilidade, das características sensoriais, mas também através da
experiência.
Esta habilidade, que não se realiza necessariamente, mas é um esforço a ser
exercitado, pode mover os seres humanos a “elevar-se”, a criar novas possibilidades no
agir naquelas múltiplas constituições e entraves de sua época, especialmente quando se
movem no interior de um tempo profundamente acelerado, ou seja, onde as
transformações são constantes e a sensação de instabilidade é vertiginosa.
Para os fins da atividade inteligente e social, todos os motivos têm que tomar um
aspecto consciente. (...) Foi pela pronunciada energia desses motivos conscientes
que o homem se elevou, e fez valer a sua eficiência sobre as coisas puramente
materiais, subtraindo-se, subjetivamente, ao determinismo brutal das influências
exteriores, cósmica, subordinando-as, aparentemente, ao seu interesse moral. No
homem, a natureza orgânica superpõe-se a vida psycho-social, cuja formula ativa é o
próprio eu (...) (BOMFIM, 1930, p. 10).
É possível compreender que para o autor, o bom uso da razão, e mais do que
isso, o posicionamento ético-moral (decisões racionais no que tange ao que pode e deve
ser feito, tendo em vista a solidariedade entre sujeitos), são, por conseguinte,
fundamentais. Os motivos e estímulos deste “vir a ser” ou devir da realidade são
orientados, entre outras medidas, pela experiência, tanto do indivíduo quanto daquela
sociedade a qual pertence: a história é “capaz de orientar, estimular e defender”; já que
parte do passado diz respeito a “desejos e realizações através dos tempos e das classes
sociais” (BOMFIM, 1930, p. 38). O passado, portanto, compartilha desejos, projetos e
disputas entre seres humanos do presente e passado, os quais podem ser negados ou
retomados, apropriados e ressignificados para a coesão e/ou para a violência.
Para uma orientação mais apropriada no presente, Bomfim acredita que é
necessário ampliar o conhecimento acerca das dimensões das experiências passadas, a
fim de potencializar as expectativas e a capacidade de realizá-las em algum nível. Sendo
assim, há uma relação direta entre o saber sobre o passado, o entendimento de parte das
diferentes dimensões do tempo (passado, presente, futuro), as possibilidades de ação e a
consciência de tais possibilidades.
O saber considerado adequado, aquele que produz sociabilidade e solidariedade
entre os sujeitos, especialmente aquele sobre o passado, pode despontar uma reeducação
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sentimental e ética que potencializa o indivíduo e o coletivo. É preciso dizer que isto é
uma possibilidade, já que o autor compreende que o passado também pode ser
ressignificado e apropriado de forma considerada inadequada, produzindo, por exemplo,
insociabilidade, violência entre os sujeitos e grupos. Ou melhor, o passado precisa ser
retomado no processo de constituição de norteamento no que tange a posturas racional-
pragmáticas e ético-políticas no presente. Postula-se isto devido à noção de que, para
Bomfim 1) há uma relação de intimidade entre desejos constituídos no passado e no que
Koselleck nomeia “horizonte de expectativas”; 2) o que significa dizer que há projetos
anteriormente constituídos que ainda possuem relevância e são desejados no presente,
por isto, caso sejam percebidos como adequados, há necessidade de retomá-los para o
estímulo e a orientação, especialmente em um tempo profundamente acelerado. Para tal,
esta direção deve ser realizada com base no que Gumbrecht entende hoje como efeitos
de presença e efeitos de sentido, ou seja, respectivamente, através do racional, do
lógico-formal, mas também a partir do estético, portanto, de experiências afetivas e
sensoriais (GUMBRECHT, 2009, p. 13).
Com isto, Bomfim acredita que é possível constranger parte do egoísmo
(sentimento que degenera comunidades) e prezar pela solidariedade social para os
progressos de suas expectativas históricas3. Para Bomfim, o equilíbrio entre o
desenvolvimento das faculdades pessoais e da coletividade é essencial para a
constituição de uma sociedade orgânica, saudável. Para ambos, o pessoal e o social, é
necessário estimular o sujeito a suprimir parte de sua individualidade para a plena
sociabilidade. Portanto, os motivos de valor ético são um “estímulo no sentido do plano
geral de ação, ou no desenvolvimento de pensamento” (BOMFIM, 1930, p.29 – 31).
O individualismo extremado precisaria ser mediado pelo próprio sujeito (e não
pelo Estado, é preciso dizer) em favor da ideia ou do objetivo coletivo. Para tal é preciso
criticar, apreciar os valores comuns e organizar as animações em prol do que se
3
Através desta consideração é importante apontar que, apesar de sua formação em medicina, Bomfim
estudou psicologia e pedagogia, atuando a maior parte de sua carreira como professor, autor de ensaios (A
América Latina: males de Origem em 1905, Lições de Pedagogia, em 1915, Noções de Psicologia, em
1917, A Cartilha, em 1922, Lições e Leituras, Crianças e Homens, Livro dos Mestres, todos em 1922;
Pensar e Dizer, em 1923, O Método dos Testes, em 1928, O Brasil na América, em 1929, O Brasil Nação
em 1931, Cultura e educação do povo brasileiro, em 1932) em, artigos em revistas (a maior parte com
temática educacional - colaborou com a fundação da revista Pedaggogium em 1897, A Universal em 1901
e O Tico-Tico em 1905)e livros didáticos (Livro de composição para o curso complementar das escolas
primarias, de 1899, Livro de leitura: para o curso complementar das escolas primárias, em 1901,
Através do Brasil, em 1910), diretor do Pedagogium (instituição que reuniu tecnologias educacionais) e
redator de diversos jornais (onde escreveu artigos de cunho educacionais). Devido a sua formação, nota-
se analogias e metáforas interessantes acerca da saúde de um “corpo social” através da relação mais
harmoniosa entre as partes individuais (AGUIAR, 2000, p. 521–525).
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Foi Darwin o primeiro a romper com a clássica filosofia inglesa, que vem desde
Bacon, Hobbes, Locke, Adam Smith até Stuart Mill, Spencer, e que formula como
base da moral o utilitarismo. Para ele, a base da moral é o pendor natural - o instinto
altruístico – que leva o homem a procurar a companhia, e a interessar-se por eles,
fora de qualquer cálculo, ou de motivos egoísticos (BOMFIM, 1930, p. 249 -250).
4
Aponto que, para o autor, apesar do Estado possuir grande importância para este movimento de
sociabilidade, este projeto não é realizável em um Estado conservador, militarizado e violento. É preciso
produzir um espaço que conviva naturalmente com as necessidades de atualização ético-políticas com o
devir das transformações e novas expectativas, o que não é possível no Estado ultracentralizado. Para tal
argumento, é interessante o fato de que, com o golpe que depôs Washington Luís em 1930, Bomfim
resolve adicionar um apêndice ao ensaio o Brasil na História apontado que, apesar de todas as suas
críticas à república oligárquica, o governo conservador e militarizado de Vargas era uma escolha negativa
e imensamente oposta às necessidades dos sujeitos e grupos do país (BOMFIM, 1930, p. 529-560).
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Da tradição se diria, com toda a propriedade: são almas que se continuam através
das idades; são os veios que traçam o viver da humanidade. Ou, melhor, é a trama
viva onde se tecem as consciências, para todos os efeitos de realização humana –
moral, política, religião, arte, produção econômica... que tudo se faz como expressão
patente de tradições. A sociedade humana existe e se desenvolve em sociedades
parciais, de valor nacional que englobam agrupamentos menores, ou de valor mais
restrito. E a vida da humanidade se reduz ao desenvolvimento desses agrupamentos,
em que se incorpora a vida de uma tradição. Destarte, é a tradição mesmo que se
desenvolve, e progride, e se apura, como se amesquinha, e decai, e deperece. (...)
Finalmente, a substância da história é feita desses embates em que, sob a rubrica de
povos, ou de classes, as tradições se afrontam, e lutam, para o avassalamento de
umas pelas outras, com o resultado de substituições, fusões, eliminações, extinções –
lentas ou súbitas, até que prevalece a tradição que representa um maior progresso
humano, ou, pelo menos, a virtualidade de progresso, em energias jovens, próprias
para a indispensável renovação de formas – políticas, sociais, econômicas
(BOMFIM, 1930, p. 18-20).
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A história seria um luxo perdido, inútil dispêndio de inteligência a que o homem não
se entregaria, si não houvera a tradição, com a sua indiscutível utilidade – estimulo e
orientação. Com esta compreensão cinemática da tradição, tudo nos parece lógico:
ela é a forma de uma marcha orientada. A realização social se faz, necessariamente,
em esforços individuais; mas é na tradição que se definem as possibilidades de
harmonia entre o indivíduo e o conjunto social. Podemos considerá-la, pois, como a
própria sociedade em continuação, tanto se condensam nela, as afinidades ativas,
graças às quais se mantem e se desenvolve, em cada grupo, a vida social (BOMFIM,
1930, p. 14).
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Referências bibliográficas:
UEMORI, Celso Noboru. Darwin por Manoel Bomfim. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 28, n. 56, p. 327-348, 2008.
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