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1998 - Autoridade e Alteridade - Interações
1998 - Autoridade e Alteridade - Interações
Autoridade e Alteridade
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DUNKER, C. I. L.- Autoridade e Alteridade. Interações (Universidade São Marcos). , v.I, 1998.
Por exemplo, o pequeno Hans constitui-se como sujeito ao integrar o particular de sua
experiência ao universal da condição humana. O produto desta conjunção é o que
podemos chamar de um sujeito singular. Ele revive uma epopéia ancestral ao mesmo
tempo em que a torna única: eis aí uma definição de sujeito. Resta desta operação uma
pergunta: até que ponto a lei universal da castração é de fato universal, ou seja,
estruturante de todos os universos culturais e sociais, presentes no tempo e no espaço ?
Incidentalmente era esta a pergunta em pauta na grande polêmica entre
psicanálise e antropologia nas décadas de 40 e 50. Uma polêmica que gravitava, no seu
ponto crucial, sobre a universalidade da expressão paterna face à diversidade das culturas
humanas. Paralelamente à descoberta de que o que nós chamamos de pai poderia se
apresentar, em certas sociedades, nas formas mais diversas, do tio paterno ao avô por
exemplo, começa a ganhar força a decomposição teórica do conceito de pai. Percebe-se
que sob este termo Freud infiltrava noções distintas como as de castração, ideal de eu,
superego, consciência moral, pais na fantasia, pais no romance familiar, etc. É neste
quadro que Lacan, ainda na década de 50 propõe a distinção entre pai real, pai simbólico
e pai imaginário, separando assim as esferas particular, universal e mítica da paternidade.
Ora, o que este movimento teórico sinaliza é que, entre outras coisas, o histórico
pai freudiano estava em processo de desaparição e que o preço a pagar pela
universalidade do Édipo correspondia ao refinamento do conceito de sujeito. Lidas
empiricamente as teses freudianas eram insustentáveis, virtualmente etnocêntricas, seria
portanto necessário decidir o que formalmente delas poderia ser reabilitado. Este esforço
de formalização, retratado nos movimentos teóricos, aponta para a retomada da noção de
lei como um universal e ao mesmo tempo atesta a relatividade cultural de certas acepções
do pai em Freud. Digo que o histórico pai freudiano estava em processo de desaparição
pois penso num artigo de Lacan intitulado “Os Complexos Familiares na Formação do
Indivíduo”, de 1938, onde um dos principais escopos de suas considerações é o chamado
“declínio da imago paterna” verificado na cultura de sua época. Trabalhando sobre este
declínio Lacan constatou duas consequências:
a) que ao desinvestimento das imagens carregadas de afeto, que apresentam o pai
para a criança, corresponde o fortalecimento do caráter insensato e devastador do
superego;
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apenas da figura paterna, mas do aspecto particular desta em sua relação com a
representação da lei. Negação que submete este pai à castração, posto que
simbolicamente o mortifica, ao mesmo tempo em que institui miticamente tal operação
como universal. Obtém-se assim um sujeito que não é nada mais que efeito desta
operação, dividido portanto pelas suas condições de execução.
Ampliando mais ainda esta divisão poderíamos supor que a psicanálise
reencontra aqui a antinomia entre família e sociedade. O sujeito se localizaria então neste
espaço de tensão irredutível entre o particular familiar e o universal social, tese aliás que
demonstramos viável a partir do texto de Freud sobre A Novela Familiar do Neurótico
(Dunker e Passos, 1998).
Se o argumento se sustenta isso significa que a função particularizante,
enraizadora do sujeito tem primazia sobre o que se pode denominar convencionalmente
de uma família. A família define-se assim como função capaz de particularizar formas de
interdição, estilos de gozo, modos do narcisismo e formações de ideais. A família não é
nem a gênese nem a condição da sociedade, mas seria melhor definida como a negação
desta. Os modos que são negados em seu particularismo são assim reabsorvidos na forma
de universais da cultura.
No entanto diversas formações da cultura contemporânea parecem,
insidiosamente, contradizer esta tese. Em primeiro lugar a colonização de atributos
familiares tradicionais por saberes anônimos oriundos da vida administrada, regulada e
homogeneizada. A desautorização dos pais, que se veêm impossibilitados de localizar a
autoridade num ato subjetivamente sustentado. O horror à autoridade de nossos tempos se
traduz no horror ao ato, à autoria ao compromisso com o imponderável de uma ato
particular cujo destino no universal torna-se imprevisível.
A cultura burocrática na família é um exemplo da colonização que estamos
abordando. Exercer a paternidade ou a maternidade é uma questão de autoria no entanto
há claros sinais de ela torna-se cada vez mais uma questão para atores, para boas ou más
representações de papéis. O autor, de onde emerge a noção de autoridade, corresponde à
uma forma de produção de particularidades, o ator, por sua vez, de onde emerge a noção
de papel, é via de regra, alguém que representa um texto, que do seu ponto de vista pode
ser anônimo. A cultura burocrática que aludimos anteriormente como infiltrada na
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família, não é apenas um sistema pra gerir os negócios humanos, mas é antes de tudo uma
ética. Uma ética onde a alteridade é anônima, onde a responsabilidade é diluída ao ponto
em que os atos se processam sem sujeito e onde a dimensão da verdade está excluída.
Adicionemos a este cenário social a forma reticular do desenvolvimento de
famílias atuais. Filhos de pais diferentes, convivendo em diferentes espaços com
diferentes estilos de vida. Transformações rápidas e sucessivas de modos de
agenciamentos humanos entre gêneros. Tipos inomináveis de relações, antes chamadas,
conjugais tais como: ficar, estar com, morar com, morar com de vez em quando, morar
com mas não se encontrar, casar com papel, casar sem papel, namorar de modo virtual,
namorar sem compromisso, namorar com compromisso parcial, namorar com dedicação
exclusiva; e posto que são inomináveis detenho-me apenas nas bordas do problema.
Uma descrição mais profunda dos cenários social e familiar a que estou aludindo
encontra-se de forma exaustiva em autores como Lipovetski, Baudrillard, Sennett,
Jameson, Maffesoli e de forma geral talvez seja o que de melhor os pensadores pós-
modernos podem nos oferecer: uma descrição coerente posto que descompromissada.
Mas o que importa, para voltar ao nosso argumento, é como tais modos de
agenciamento constituem novas formas de alteridade e de autoridade e se tais formas
preservam a contradição entre o particular e o universal própria para a constituição de
sujeitos. Penso que tal contradição permanece mas muda seu eixo de expressão: o
particular não é mais o indivíduo mas o estilo onde ele se inscreve, o universal não é mais
a massa mas o gênero com qual o estilo se diferencia. A alteridade não é mais o outro
indivíduo, mas o outro olhar, a outra voz, a outra tela. A autoridade não é mais dada pela
interiorização da lei mas pela imagem que a veicula. Imaginar que isso significa o fim da
utilidade da noção de sujeito, de mito ou de história, ou mesmo de família é apenas
desconhecer o ideal que perpassa nossos tempos.
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Bibliografia