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MATERIAL DE APOIO

PROF. DAVID MEDINA DA SILVA


david@mprs.mp.br
TEORIA DA NORMA PENAL - LEITURA COMPLEMENTAR
INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS PENAIS, PRINCÍPIOS E CONFLITO
APARENTE DE NORMAS PENAIS

HERMENÊUTICA E INTERPRETAÇÃO TRADICIONAL

No Estado Constitucional do pós-guerra, diante dos abusos do nazismo amparados pelo Direito de
cunho nacional-socialista, a comunidade jurídica internacional adotou o pós-positivismo e recuperou a
dimensão ética do direito. A esse movimento somou-se a crise da hermenêutica jurídica tradicional,
estruturada a partir da ideologia liberal da separação dos poderes, que influenciou Savigny na criação
dos métodos tradicionais de interpretação, quais sejam, gramatical, histórico, lógico, sistemático e
teleológico. As novas concepções entendem que o intérprete está inserido num contexto histórico,
político, social e tem sua própria pré-compreensão, que não pode ser ignorada na busca da interpretação
da lei, com destaque para o pensamento de Hans-Georg Gadamer, que desenvolve o método
hermenêutico-organizador, pelo qual a compreensão não reflete um processo subjetivo do intérprete
frente a um objeto, mas sim trata-se do próprio modo de ser do homem, sendo a compreensão o
resultado de um diálogo entre o intérprete e o texto, sendo condicionada por preconceitos e pré-juízos.

Pode-se afirmar que o desenvolvimento histórico da hermenêutica moderna começa com


Schleiermacher, o primeiro autor a entender a hermenêutica como compreensão em geral da estrutura de
interpretação que caracteriza o conhecimento e não como simples técnica de interpretação de vários
tipos de escrito. Schleiermacher afirma que a interpretação é um ato que envolve duas dimensões. Ela
está ligada primeiramente a um pré-conhecimento necessário da totalidade da obra a interpretar, o que
dá origem ao círculo hermenêutico no qual a interpretação de cada parte depende da interpretação do
todo. A interpretação exige, ainda, que o intérprete tente se colocar no mesmo âmbito do texto, para que
possa compreender aquilo que o texto quer dizer, ao invés de cair em ideias pré-concebidas.
Schleiermacher faz, sobretudo, uma diferenciação expressa entre a práxis mais laxista da hermenêutica,
segundo a qual a compreensão se realiza por si mesma, e a práxis mais estrita que parte da ideia de que
o mal-entendido se produz por si mesmo, chegando inclusive a definir a hermenêutica como a arte de
evitar o mal-entendido. (GADAMER, 1997, p. 197).

A hermenêutica evidenciou a insuficiência do modelo tradicional de interpretação, revelando que a


compreensão se funda na práxis da vida e em conformidade com determinados momentos históricos e
culturais. Para a hermenêutica, o processo de interpretação dos textos tem na pré-compreensão o seu
momento inicial, a partir do qual ganha dinamismo um movimento circular, que compõe o círculo
hermenêutico, refletindo, nesse sentido, a experiência conflituosa vivida pelo intérprete. A decisão
judicial é resultado desse conflito, que envolve as palavras da lei e os antecedentes judiciais; a figura
delitiva que se imputa; as interpretação elaboradas pelas partes em conflito; as regras processuais; as
expectativas de justiça existentes na sociedade; as convicções do próprio juiz que podem ser decisivas,
como preceitos de ética religiosa ou social; esquemas doutrinais em voga ou instâncias de ordem
política.

Como resultado dessa concepção, interpretar é muito mais dar sentido do que extrair sentido das
normas, já que o intérprete não interpreta apenas os textos, mas os fatos em conjunto com os textos.
Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação
sistemática de textos normativos, de modo que normas são o resultado da interpretação.

a) Interpretação quanto ao sujeito


- autêntica: interpretação advém da própria lei. Ex.: § 4º do art. 150 do CP.
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- doutrinária: advém da doutrina.
- jurisprudencial: advém da jurisprudência.
ATENÇÃO: A exposição de motivos do Código Penal não é interpretação autêntica,
e sim doutrinária.
b) Interpretação quanto ao resultado
- declarativa: declara o sentido da lei (Ex.: art. 141, III – “várias pessoas”)
- extensiva: amplia o sentido da lei (Ex.: art. 176 – refeição em “restaurante”)
- restritiva: restringe o sentido da lei (Ex.: art. 352 – evasão mediante “violência”)
c) Interpretação quanto aos meios:
- gramatical: baseia-se nas palavras (interpretação literal).
- lógica: busca o sentido da norma com base no raciocínio lógico.
- teleológica: busca a finalidade da norma no contexto social.

PRINCÍPIOS DE DIREITO PENAL


Os princípios constitucionais permeiam todo o ordenamento jurídico, gerando o fenômeno da
constitucionalização do Direito, de tal sorte que a doutrina constitucional vive o que se
convencionou chamar na atualidade de “Estado Principiológico”(ÁVILA, 2009, p. 30) dada a
importância dos princípios na aplicação do direito. Diante disso, impõe-se uma distinção entre
direito processual constitucional e direito constitucional processual, em que o primeiro regula
os procedimentos a serem observados na solução de questões de natureza jurídico-
constitucional, como o controle abstrato de constitucionalidade, enquanto o segundo
estabelece os valores que se irradiam por todo o sistema a fim de orientar tanto a elaboração
das leis pelo legislador, quanto a aplicação do direito pelo juiz.

Função dos princípios: servem para orientar a interpretação e para reduzir a


aplicação da “letra fria” da lei. Destacam-se os seguintes:
Origem: os princípios se originam da Constituição ou são derivações.
Dignidade da pessoa humana: é o principal princípio constitucional, constituindo
fundamento republicano (CF, art. 1º, III).
Legalidade: desdobra-se em reserva legal (CF, art. 5º, XXXIX) e
anterioridade/irretroatividade (CF, art. 5º, XL)
Intranscendência: nenhuma pena passará da pessoa do condenado (CF, art. 5º,
XLV)
Individualização da pena: ocorre na elaboração do tipo, na fixação da pena (CP,
art. 59) e na execução penal (CF, art. 5º, XLVI)
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Humanidade ou personalidade: proíbe penas de morte (salvo guerra declarada –
CF, art. 84, XIX), cruéis, de banimento, de caráter perpétuo e de trabalhos forçados
(CF, art. 5º, XLVII).
Presunção de inocência: também chamado de presunção de não-culpabilidade,
(CP, art. 5º, LVII).
Proporcionalidade: princípio oriundo do Tribunal Constitucional Alemão,
relacionado a dois subprincípios: proibição de excesso e proibição de proteção
deficiente; funda-se na necessidade e adequação do direito penal. Ex.: art. 59 do
Código Penal.
Intervenção mínima: desdobra-se em dois subprincípios:
a) Subsidiariedade: ultima ratio
b) Fragmentariedade: nem todos os ilícitos são abarcados pelo Direito Penal,
apenas os mais graves;
Princípio da insignificância: afasta a tipicidade de fatos bagatelares. Requisitos: a)
mínima ofensividade da conduta; b) nenhuma periculosidade social da ação; c)
reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão
ao bem jurídico (STF, HC 114.241; STJ, HC 250.574).
Obs.: Não se admite o princípio da insignificância em crimes de roubo, crimes contra
a administração pública, tráfico de drogas, moeda falsa; o furto de pequeno valor,
por si só, não é insignificante, mas privilegiado. O princípio aplica-se aos atos
infracionais.
Adequação social: afasta a tipicidade de condutas que, embora típicas, são aceitas
socialmente.
Responsabilidade subjetiva: art. 18 do CP.
Alteridade: atribuído a Claus Roxin, significa que ninguém pode ser punido se não
causar mal a outrem. Ex.: autolesão não é crime, salvo na hipótese do art. 171, § 2º,
V.
Lesividade: ninguém pode ser punido sem que haja lesão a um bem jurídico
tutelado.
Non bis in idem: ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato.

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CONFLITO APARENTE DE NORMAS
Conceito: ocorre quando duas normas penais incidem, aparentemente, sobre o
mesmo fato, devendo se aplicar apenas uma delas para evitar bis in idem. O conflito
aparente se resolve seguintes princípios:
Princípio da especialidade: norma especial revoga a norma geral. Ex.: infanticídio
(art. 123) é especial em relação ao homicídio (art. 121).
Princípio da subsidiariedade: a norma subsidiária é “soldado de reserva” que se
aplica quando não for possível aplicar a norma de caráter principal. Espécies de
subsidiariedade:
a) Expressa: está expressa na norma penal. Ex.: art. 132.
b) Tácita: “Na subsidiariedade tácita, fato previsto em uma norma menos grave
funciona como elemento constitutivo, circunstância qualificadora ou causa de
aumento de pena de outra norma mais grave. De conformidade com essa definição,
o crime de dano (art. 163) é subsidiário do furto qualificado pelo rompimento ou
destruição de obstáculo (art. 155, § 4º, I); o sequestro (148) e a extorsão (158) são
subsidiários do delito de extorsão mediante sequestro (art. 159); o dano (art. 163) é
subsidiário do incêndio (art. 250), e assim por diante” (Flávio Augusto Monteiro de
Barros).
Princípio da absorção ou consunção: ocorre quando há uma relação de meio a
fim ou de conteúdo a continente entre duas normas, ficando um deles subsumido no
outro. Ocorre nas seguintes situações:
a) Crime progressivo: um crime é passagem necessária para outro. Ex.: lesão
corporal (art. 129) em relação ao homicídio (art. 121).
b) Progressão criminosa: o agente quer um crime e, após praticá-lo, decide praticar
outro, mais grave que o primeiro. Ex.: o agente quer lesionar a vítima e, depois de
fazê-lo, decide matá-la.
c) Antefato impunível: ocorre quando o crime anterior é considerado ato preparatório
do posterior. Ex.: Súmula 17 do STJ.
d) Pós-fato impunível: ocorre quando o crime posterior é mero exaurimento da
conduta punível (crime exaurido). Ex.: só responde pelo art. 289, caput, o agente
que, após falsificar, introduz o dinheiro falso em circulação (§ 1º); depois de efetuar a
subtração, o agente vende, como seu, o objeto subtraído. Obs.: Francisco de Assis

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Toledo considera que, nesse caso, o agente deve ser punido pelo furto e pelo
estelionato, não se cogitando absorção.
Observações:
1. Distinção entre especialidade e subsidiariedade: no princípio da especialidade,
pode ser aplicada a norma menos grave (ex.: infanticídio em relação ao homicídio);
na subsidiariedade, sempre irá prevalecer a mais grave (ex.: furto qualificado em
relação à violação de domicílio).
2. Distinção entre subsidiariedade e consunção: na subsidiariedade, a norma
excluída integra o tipo principal ou é circunstância deste, enquanto na consunção a
norma excluída é etapa anterior ou posterior da norma aplicável.
3. Distinção entre crime progressivo e antefato impunível: no crime progressivo, o
fato anterior é etapa necessária (lesões em relação ao homicídio, pois para matar é
preciso ferir), enquanto no antefato impunível é etapa ocasional (ex.: disparos em
relação ao homicídio, já que se pode matar sem arma de fogo).

BIBLIOGRAFIA:
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. da 5ª ed. Alemã Theorie
der Grundrechte por Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2006.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 10ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009.
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal, parte geral: v. 1. 8ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2010.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Trad. Flávio Paulo Meurer. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1997.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 13ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2011.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. 5ª ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais: 2007.
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal. 5ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1994.

ACÓRDÃOS
STF, HC 114.241 (princípio da insignificância).
STJ, HC 250.574 (princípio da insignificância).
STJ, HC 207.444 (princípio da insignificância).
STJ, HC 109.639 (princípio da insignificância).
STJ, HC 135.056 (princípio da insignificância).

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