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TEORIA

A ciência como
bifurcação: uma
homenagem a
Ilya Prigogine* DEDICO ESTE TEXTO a Vinciane Callebaut, pre-
sença sutil em momentos igualmente sutis
de minha vida acadêmica, e a Ariel, meu
RESUMO pequeno “cientista”.
A Universidade Livre de Bruxelas e o Instituto de Química, em
particular, perderam um professor que honrava a instituição “Gostaríamos de fazer compartilhar
por suas pesquisas nas fronteiras da química, da física e da não uma ‘visão de mundo’ mas uma
filosofia. A comunidade científica mundial conta agora com a visão de ciência. Da mesma maneira
ausência de um dos cientistas mais brilhantes do século XX. que a arte e a filosofia, a ciência é an-
tes de tudo experimentação criadora
ABSTRACT de questões e significações.” Ilya Pri-
This paper pays tribute to the well-known influential thinker gogine e Isabelle Stengers
Ilya Prigogine.
O céu de Bruxelas, conhecido por ser
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) bucolicamente cinzento durante grande
– Ilya Prigogine parte do ano, deve ter expressado uma at-
– Filosofia (Philosophy) mosfera de tristeza na quarta-feira 28 de
– Ciência (Science) maio passado. Morria Ilya Prigogine. Para
os físicos, ele era o “poeta da termodinâmi-
ca”; para Edmond Blattchen, “a primeira
personalidade belga de renome internacio-
nal e um dos maiores sábios desde Albert
Einstein”.
A Universidade Livre de Bruxelas e o
Instituto de Química, em particular, perde-
ram um professor que honrava a instituição
por suas pesquisas nas fronteiras da quími-
ca, da física e da filosofia. A comunidade
científica mundial conta agora com a ausên-
cia de um dos cientistas mais brilhantes do
século XX.

Quem foi Ilya Prigogine

Filho de judeus, nasceu em Moscou, em


1917, ano da revolução russa. A família
Prigogine transferiu-se para Bruxelas em
1929. O interesse pela música, literatura, ar-
queologia, psicologia, direito e história tece
Maria da Conceição de Almeida a formação humanista de um cientista que
UFRN
centra suas pesquisas na química orgânica

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e depois na físico-química. Avançando nas gar Morin, com quem partilhou da tarefa de
investigações de Théophile de Donder, seu uma reorganização fundamental do conhe-
mestre e pai da Escola de Termodinâmica cimento rumo às ciências da complexidade,
de Bruxelas, Prigogine se interessa pela “di- Ilya Prigogine aposta na “religação dos
nâmica dos sistemas longe do equilíbrio”; saberes” proposta por Morin. “A ciência de
trata dos fenômenos irreversíveis e das es- hoje”, diz Prigogine, “não pode mais se dar
truturas dissipativas. Descobre que a ordem ao direito de negar a pertinência e o interes-
pode nascer da desordem; que o tempo é se de outros pontos de vista e, em particu-
irreversível; que a “flecha do tempo” indica lar, de recusar compreender os das ciências
probabilidades e nunca certezas, porque a humanas, da filosofia e da arte.”
evolução do universo abriga desvios, flutu- Do interior dessa “nova aliança”, o ousado
ações, bifurcações e acontecimentos criado- cientista russo-belga problematiza a ética
res de novas ordens. Em 1977, Ilya Prigogi- da responsabilidade na ciência e questiona
ne recebe o Prêmio Nobel de Química. a separação entre ciências humanas, ciên-
No centro de sua teoria sobre o tem- cias da vida e ciências da natureza. Pergun-
po, espaço e matéria estão interlocutores ta: “Se os cientistas das ciências físicas ou
como Jacques Monod, Schrödinger, Henri biológicas são incapazes de ousar conceber
Bérgson, Isaac Newton e Albert Einstein, que a ciência física possa ser também uma
em relação aos quais Prigogine se afasta, ciência social, podem eles ter os instrumen-
em parte, ou se opõe radicalmente. Aliança tos para pensar os problemas de sua res-
e Reconciliação são palavras centrais na sua ponsabilidade?”.
obra. Para ele, vivemos um tempo de re-
conciliação do homem com a natureza e da
ciência com a filosofia. Ele próprio viven- O lugar da liberdade
ciou um diálogo fecundo com a filosofia. A
parceria intelectual com Isabelle Stengers, O futuro não está determinado. “O futuro
química e filósofa da ciência, faz da obra de não é dado.” Imerso na incerteza, o futuro
Prigogine um exemplo de ciência transdis- está aberto. O universo está em construção.
ciplinar, tecida em conjunto, complexa. A história humana, acontecimento particu-
Marcado por uma ética do reconheci- lar da história do universo, acompanha essa
mento e da cumplicidade intelectual, abre mesma dinâmica de inacabamento, desvios,
mão das honras que o distinguem como gê- incertezas, flutuações. Bifurcações, diz Ilya
nio individual. Credita suas descobertas aos Prigogine: “Essa mistura de determinismo e
trabalhos em equipe. Especialmente com de imprevisibilidade. A criação do universo
o colega e amigo Paul Glansdorff partilha é antes de tudo uma criação de possibilida-
a descoberta das “estruturas dissipativas”, des, as quais algumas se realizam, outras
um conceito revolucionário no domínio da não”. Nisso, Prigogine está de acordo com
física, no fim dos anos 60 do século passa- Henri Bérgson, para quem “a realidade é
do. Nos prefácios, apresentações de livros apenas um acaso particular do possível”.
e entrevistas, faz questão de assinalar que Por isso, falar de realidades virtuais é falar
“foi ao longo dos anos” e “graças a meus de pré-realidades que fazemos acontecer
colaboradores” que conseguiu chegar a tal em parte.
resultado, a tal concepção de universo, a tal O possível está sempre em potência,
representação matemática. Não é sem ra- em suspensão, em estado de flutuação. “Par-
zão que entre as obras de maior circulação tículas podem se separar, forjar estrelas, for-
do poeta da termodinâmica estão “Entre o mar planetas e finalmente engendrar a vida.
tempo e a eternidade” e “A nova aliança”, Eu diria que a criação do mundo é a criação
escritas em parceria com Isabelle Stengers. da liberdade. A liberdade, porque essas mo-
No mesmo diapasão intelectual de Ed- léculas reais podem ir em todos os sentidos,

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criar estrutura, especialmente estruturas bifurcações a vida emergiu da não-vida, é
dissipativas, logo, a vida e o homem, as certo que a liberdade da qual fala Prigogine
culturas humanas.” O vazio é, nesse sentido, é a mesma e outra, se considerarmos o aca-
um mundo em potência. Aparecem claras, so da criação do universo e a emergência
aqui, as bases para a construção da noção da história da nossa espécie. Isso porque
de emergência, tão cara à compreensão do somos um ponto de bifurcação na história
que seja complexidade. da vida, uma construção que se tornou pos-
A emergência é a expressão de uma sível num turbilhão de possibilidades.
propriedade nova a partir de elementos “Há uma história cosmológica, no in-
preexistentes que, no entanto, de forma terior da qual há uma história da matéria,
alguma manifestavam, isoladamente, tal no interior da qual há, finalmente, nossa
propriedade. O astrofísico Hubert Reeves própria história.” Desse lugar (o interior do
explica de forma clara o que é emergência interior) o homem gesta sua própria vida
usando o exemplo da água. “A molécula acometido de todas as incertezas, ordens,
de água é um excelente solvente, o que não desordens, acasos e flutuações que igual-
são, de forma alguma, o hidrogênio e o oxi- mente acometeram o tempo que precedeu o
gênio que a compõem.” aparecimento da espécie e a história cultu-
Os conceitos de bifurcação (o que é da ral por nós herdada.
ordem do acontecimento novo) e o de flu- Longe da causalidade linear e em
tuação (o que diz respeito ao não previsível oposição ao determinismo de Newton, as
que está em potencial) constroem as bases idéias de Prigogine discutem as condições
epistemológicas do pensamento prigoginia- de possibilidades, apostam na intervenção
no e se constituem em ferramentas para a criativa do sujeito no mundo; incitam a de-
emergência das ciências da complexidade. cisão e a vontade dos humanos. Já que nos
Observada a espécie humana, a histó- distinguimos das estrelas por essas proprie-
ria da sociedade e da cultura é certamente dades tornadas conscientes, sobre nós recai
aí que se configura a relação incerta, é ver- o peso de assumir “a escolha, a liberdade
dade, mas ao mesmo tempo mais instigante e a responsabilidade” diante da trajetória
entre o que está em potencial (e não é previ- incerta das sociedades humanas. “A condi-
sível) e o domínio da liberdade explorató- ção humana reside em abrir-se à possibili-
ria, operativa e intencional. Se as partículas dade da escolha. Pensar o incerto é pensar a
podem se separar e forjar estrelas, formar liberdade”, diz Prigogine. Contrariando as
planetas e engendrar a vida, o que poten- teorias que apregoam o fim da história, ele
cialmente não pode a espécie humana, esse a concebe como uma sucessão de bifurca-
amálgama de “pó de estrelas” dotado de ções. Ele se diz otimista e aposta no projeto
uma complexidade maior, de uma imprevi- humano. “Cabe ao homem tal qual é hoje,
sibilidade estonteante e da liberdade dotada com seus problemas, dores e alegrias, ga-
de consciência? rantir que sobreviva ao futuro. A tarefa é
Se há liberdade entre as moléculas, encontrar a estreita via entre a globalização
porque elas podem ir em todos os sentidos, e a preservação do pluralismo cultural, en-
o que não dizer da liberdade nos huma- tre a violência e a política, e entre a cultura
nos, eles próprios uma Caixa de Pandora da guerra e a da razão.”
que abriga a diversidade das experiências
do cosmo, da matéria, da vida, da história Um encontro inesquecível
cultural e também da experiência da lingua-
gem, do inconsciente, das barbáries e vicis- Em julho de 2001, após ter participado de
situdes de seu nomadismo sobre o planeta uma cerimônia, em Paris, patrocinada pela
Terra? Se não viemos do mesmo, mas do UNESCO para homenagear Edgar Morin
outro, e na cadeia dos acasos, flutuações e pelos seus oitenta anos, fui a Bruxelas para

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rever amigos. Levava comigo alguns exem- uma segunda lição: os livros são veículos de
plares do livro Ciência, Razão e Paixão, de criação de imagens que nem sempre permi-
Ilya Prigogine, recém-publicado no Brasil tem antecipar o perfil de seus criadores. No
e organizado por mim e Edgard de Assis caso de Ilya Prigogine, por que imaginar
Carvalho. Minha intenção era apenas fa- um homem muito alto e muito forte?
zer o livro chegar às mãos do autor, deixar Prigogine recebeu os livros (dois vo-
em algum lugar para que isso se tornasse lumes do dele e um meu que acabava de
possível. Vinciane Callebaut, minha “filha” sair pela mesma editora). Elogiou a quali-
belga, ligou para a residência do professor dade gráfica e estética da edição (Editora
para falar sobre o livro e perguntar onde da EDUEPA - Belém - PA). Perguntou do
poderíamos deixá-lo. Ilya Prigogine sugere que tratava meu livro e o porquê do título
um encontro e marca no Instituto de Quí- “Complexidade e Cosmologias da Tradi-
mica da Universidade Livre de Bruxelas. ção”. Disse que estava curioso e pediria
Acompanhada por Vinciane, que gen- a seu filho, que entendia português, para
tilmente traduziu grande parte de minha lê-lo para ele. Deu-nos o seu livro “Ilya Pri-
conversa com Prigogine, cheguei um pou- gogine: Do ser e do devir”. Sobre o Brasil,
co antes da hora marcada no Instituto de perguntou sobre as universidades, a antro-
Química. Na ampla sala de trabalho, pude pologia e falou de maneira visivelmente
sentir a atmosfera de uma ciência ancorada afetiva do seu amigo brasileiro, o físico Má-
numa nova aliança, num diálogo do homem rio Schemberg, falecido em 1990.
com a natureza e na simetria respeitosa en- Uma única vez vi Ilya Prigogine. Mas
tre várias representações do mundo. O es- a intensidade daquelas duas horas operou
paço de circulação da sala, o ambiente aco- mais um ponto de bifurcação em minha
lhedor, os objetos de arte das culturas pré- vida acadêmica e pessoal. Enuncio assim
colombianas, as estantes cheias de livros, uma terceira lição: compreendi que a ciên-
tudo estava em simbiose, tudo lembrava cia pode e deve ser exercitada com inteire-
um acontecimento novo no âmbito da velha za, simplicidade e generosidade.
ciência dura demais, pesada em demasia, Quando acabei de escrever essa última
fragmentada, esquizofrênica. parte do texto, pude compreender que mais
Logo na entrada da sala, do lado direi- do que a intenção de registrar meu encontro
to e num lugar imediatamente visível, uma com Ilya Prigogine estava eu confirmando a
fotografia: Ilya Prigogine e Isabelle Sten- importância da vivência dos fenômenos e
gers. Olhando aquela imagem, pude com- das situações que nos são dados.
preender o sentido da parceria intelectual Prestar atenção, observar com cuidado
tão destacada na obra do Prêmio Nobel de e intensidade o conjunto, o entorno e a for-
Química de 1977. Refleti sobre a natureza ma como os experimentamos em nosso in-
coletiva do fazer ciência, sobre a partilha da terior, pode se tornar uma atitude precató-
autoria, sobre a necessária humildade do ria contra a superficialidade de nossos atos
intelectual. Cheguei à conclusão óbvia de - sejam eles científicos, políticos, lúdicos,
que o gênio sozinho é uma ilusão. trágicos ou amorosos. Aqui, e nesse aspec-
Não sei quanto tempo passei naquela to, me rendo à fenomenologia de Merleau-
sala antes da chegada do dono da casa. Ele Ponty.
chegou leve, sem fazer barulho. Caminhava Bifurcações pós-prigoginianas
apoiado em uma bengala, expressava ele-
gância, um sorriso discreto, um rosto sere- O que têm a ver com as ciências sociais as
níssimo. Tive um impacto ao vê-lo, porque idéias de Ilya Prigogine?
esperava um homem enorme, do tamanho Para quem o enxerga restrito à sua
de suas teorias e ali estava ele, um pouco especialidade de químico e tem na “deli-
mais alto do que eu. Aprendi naquela tarde mitação do objeto” o critério definidor da

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lida acadêmica, certamente desautorizará as comum dos saberes à nossa volta; e de que
reflexões desse químico sobre cultura, polí- também devemos disponibilizar e socializar
tica e ética, entendendo que, como reserva o conhecimento que transpiramos de forma
demarcada do saber, essa é a nossa parte, singular, faz toda a diferença se tivermos
nosso “objeto”, nosso métier, a especialida- como meta uma “democracia cognitiva”.
de das ciências sociais. Nisso reside a distinção entre um conheci-
Entretanto, para quem está, como in- mento exotérico, isto é, de domínio amplia-
telectual, a serviço de um projeto de ciência do e público, e um conhecimento esotérico,
capaz de instaurar uma “nova aliança” en- quer dizer, hermético, fechado, reservado
tre cultura científica e cultura humanística, aos íntimos, à comunidade de iguais, aos
enxergará nas idéias do Prêmio Nobel de iniciados.
Química um passo firme nessa direção. A O que se espera da ciência (aliás, essa
reflexão sobre a ética do trabalho científico, é a sua condição sine qua non) é que ela seja
a função política da ciência e “a escolha, a exotérica, nunca esotérica. Por conseguinte,
liberdade e a responsabilidade” do intelec- a abertura, o diálogo e a partilha devem
tual são explícitas, criativas e corajosas na promover juntos a cópula da cumplicidade
obra de Ilya Prigogine. das idéias, nas idéias e pelas idéias. Mas
Como cientistas sociais, podemos sim isso, na condição de entender que a cumpli-
realimentar nossas reservas cognitivas so- cidade supõe unidade e harmonia no essen-
bre esses temas cruciais para nós, e de resto, cial, mas também recusa e dissintonia nas
conforme diz Prigogine, para todas as ciên- contingências, no periférico, no secundário.
cias, humanas todas elas. Compreender que o gênio individual é
Ao invés de me alongar sobre a impor- uma ilusão e que somos, como intelectuais,
tância da leitura da obra de Prigogine para parasitas das idéias dos outros, mas tam-
todos nós, exponho o que poderia de forma bém parasitados por outros, reduz o peso
metafórica ser entendido como dois pontos da fictícia sabedoria oracular.
de bifurcação necessários na construção do O segundo ponto de bifurcação chamo
conhecimento nas ciências sociais. de Manifesto Contra a Tirania do Conceito.
O primeiro ponto de bifurcação do Para fazer valer a natureza coletiva das
qual trato brevemente diz respeito ao tra- idéias, me torno parasita de Gaston Bache-
balho em equipe, à construção coletiva do lard e Gilles Deleuze para construir os ar-
conhecimento. É necessário ter consciên- gumentos que exponho agora.
cia de que tudo que produzimos (da idéia Comecemos por Gaston Bachelard, no
mais simples até a construção da tese mais livro “Poética do Espaço”. “Os conceitos
brilhante) o fazemos a partir de um débito são gavetas que servem para classificar os
enorme com outras idéias e outras pes- conhecimentos; os conceitos são formas de
quisas que nos antecederam no tempo ou confecção que desindividualizam os conhe-
com as quais convivemos no presente. Por cimentos vivos. Para cada conceito há uma
isso, faz sentido Prigogine atribuir o seu gaveta no móvel das categorias. O conceito
reconhecimento como Nobel de Química ao é um pensamento morto, já que ele é, por
“trabalho em equipe” e “ao longo do tem- definição, pensamento classificado.” (op.
po”. É importante aprender essa lição. cit. p. 88)
A consciência de que o avanço indi- Os conceitos são ferramentas cogni-
vidual na produção do conhecimento está tivas, operadores do pensamento, instru-
ligado a condições e possibilidades coleti- mentos do trabalho intelectual, modelos
vas, certamente ameniza (ou desautoriza?) abstratos que permitem ordenar e compre-
o discurso de autoridade e a arrogância do ender o mundo fenomenal. Como sabemos,
intelectual. A consciência de que somos um ferramentas, instrumentos e modelos são
elo da corrente; de que bebemos no poço meios e nunca fins. Qualquer sacralização

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do conceito ou defesa conceitual concerne nos fazem mover nas águas dos saberes, pe-
a uma atitude intelectual que amesquinha las quais navegamos, e no mundo fenomê-
o pensamento, pois os meios não devem se nico. Ao contrário da âncora, os remos nos
sobrepor aos fins. permitem avançar, percorrer e ultrapassar
Os conceitos, como potencializadores círculos, rodopiar, remover os obstáculos
da pesquisa científica, precisam ser lapida- superficiais. Essa metáfora ajuda a pensar a
dos, refeitos, ampliados e adequados ao ob- natureza nômade dos conceitos.
jetivo de compreender o fenômeno do qual Para Deleuze, o nomadismo é uma qua-
tratamos. lidade essencial para a filosofia. Pensar den-
Os conceitos são construções huma- tro do espaço da incerteza, também. “É pre-
nas. Têm historicidade. Eles nascem, cres- ciso pensar em termos incertos, imprová-
cem e vivem por meio de nós. Mas também veis: eu não sei o que sou, tantas buscas ou
morrem quando chega a sua hora, quando tentativas necessárias, não narcísicas, não
não oferecem mais campo de luminosida- edipianas - nenhuma bicha jamais poderá
de para a compreensão do que queremos dizer com certeza ‘eu sou bicha’. O proble-
conhecer. No livro “Conversações”, Gilles ma não é ser isto ou aquilo no homem, mas
Deleuze fala da vida dos conceitos nos sis- antes o de um devir inumano, de um devir
temas abertos de idéias. Assinala sua força universal animal: não se tornar um animal
crítica, política e de liberdade, desde que mas desfazer a organização humana do cor-
eles estejam ligados à imanência e à circuns- po, atravessar tal ou qual zona de intensida-
tância e nunca à essência. de do corpo, cada um descobrindo as suas
próprias zonas e os grupos as populações e
“Todo mundo sabe que a filosofia as espécies que o habitam.” (idem p. 21)
se ocupa de conceitos. Um sistema é Nada contra os conceitos. Eles são
um conjunto de conceitos. Um siste- nossas ferramentas de trabalho, mas é pre-
ma é aberto quando os conceitos são ciso mantê-los em seu lugar. Se abrirmos
relacionados a circunstâncias e não mão da tirania do conceito para nos acer-
a essências. Mas, por outro lado, os carmos do valor operativamente aberto das
conceitos não são dados prontos, eles noções, talvez aí encontremos os alimentos
não preexistem: é preciso inventar, de sentido que permitem, agora sim, vol-
criar os conceitos, e nisso há tanta tar para o conceito para abri-lo e deixá-lo
criação e invenção quanto na arte ou respirar o oxigênio da história da realidade
na ciência. Criar novos conceitos que e do fenômeno do qual fala o conceito. Há
tenham uma necessidade, sempre foi “dois tipos de noções científicas, mesmo se
a tarefa da filosofia. É que, por outro concretamente elas se misturam. Há noções
lado, os conceitos não são generalida- exatas por natureza, quantitativas, equacio-
des à moda da época. Ao contrário, nais, e que não têm sentido senão por sua
são singularidades que reagem sobre exatidão: estas, um filósofo ou um escritor
os fluxos de pensamento ordinários: só pode utilizá-las por metáfora, o que é
pode-se muito bem pensar sem con- muito ruim, porque elas pertencem à ciên-
ceito, mas desde que haja conceitos há cia exata.
verdadeiramente filosofia...Um concei- Mas há também noções fundamental-
to é cheio de uma força crítica, política mente inexatas e, no entanto, absolutamente
e de liberdade.” (1996, p. 45 e 46) rigorosas, das quais os cientistas não podem
prescindir, e que pertencem ao mesmo tem-
Dessa perspectiva, os conceitos não po aos cientistas, aos filósofos, aos artistas.
devem nos servir como âncoras, uma vez Trata-se de dar-lhes um rigor que não é di-
que a função da âncora é manter o barco pa- retamente científico, e quando um cientista
rado. Eles se assemelham mais a remos que chega a esse rigor, ele é também filósofo, ou

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artista” (idem, p. 42). permanência das sociedades humanas.
É bom lembrar que o mundo das te- Mas como acredito que é preciso ad-
orias e dos conceitos é ao mesmo tempo vogar em favor do novo, uma vez que a re-
produto do mundo vivido e produtor de re- sistência a ele já está dada e é da ordem da
alidades. Por isso mesmo é na relação entre contingência, trago de volta Gilles Deleuze
o espaço da historicidade coletiva e da singu- para nos lembrar que há um preço a pagar
laridade individual que faz sentido a produ- pela inovação na ciência: “No momento
ção da ciência. Além disso, os conceitos e em que alguém dá um passo fora do que
as teorias excedem por vezes o vivido, ou já foi pensado, quando se aventura para
se constituem em apenas um fragmento da fora do reconhecível e do tranqüilizador,
vida. Eles são sempre mais, ou menos, que a quando precisa inventar novos conceitos
vida e os fenômenos que pretendem expli- para terras desconhecidas, caem os méto-
car. dos e as morais, e pensar torna-se, como diz
O compromisso do intelectual e do Foucault, ‘um ato arriscado’, uma violência
cientista-cidadão não é pois com a teoria que se exerce primeiro sobre si mesmo. As
nem com os conceitos, mas por meio deles, objeções feitas a um pensador ou mesmo às
com uma sociedade mais justa, mais livre, questões que lhe colocam vêm sempre das
mais feliz, mais leve, mais viva. Para nutrir margens, e são como bóias lançadas em sua
as sementes de uma insatisfação funda- direção, porém mais para confundi-lo e im-
mental e de uma ira criadora que politiza o pedi-lo de avançar do que para ajudá-lo: as
pensamento, e fazer do conhecimento um objeções vêm sempre dos medíocres e dos
meio de transformação e não um fim em si preguiçosos” (op. cit. p. 128).
mesmo, é necessário ao mesmo tempo hu- Trata-se de uma escolha. Bifurcar ou
mildade e obstinação. permanecer na repetição. Bifurcar, para
Entretanto, se é fundamental ser par- fecundar novos acontecimentos (interpre-
cimonioso e humilde quando fazemos ciên- tativos, teóricos ou práticos) ou permanecer
cia, não é necessário nos acovardarmos nem no aconchego tranqüilizador da certeza e
abrir mão de nossas convicções por mais do estabelecido pelo “consenso”, pela cul-
radicais que elas possam parecer. Pode- tura, pelas regras e metodologias científicas.
mos e devemos sair fora da linha, inventar Produzir bifurcações conceituais e interpre-
novos caminhos, anunciar conhecimentos tativas ou fortalecer a couraça dos conceitos
proibidos, discutir hipóteses não plausí- que tanto nos têm ajudado a ver o mundo
veis, idéias inacabadas, impertinentes, ou é um dos desafios com os quais temos que
ir no contrafluxo do estabelecido. Foi assim dialogar no cotidiano da construção da ci-
que se deram os avanços na ciência, que se ência. Esse desafio não é tão grande assim.
anunciaram novas interpretações para os Ele é o tamanho de cada um de nós e supõe
mesmos fenômenos. a difícil, mas prazerosa, arte do exercício da
Foi assim que fizeram Descartes, Ga- liberdade. É oportuno lembrar que a ciência
lilleu, Copérnico, Comte, Marx, Beethoven, ainda é o espaço onde a liberdade é menos
Newton, Einstein, Prigogine. É certo que vigiada, uma vez que ela inicia sua fecun-
aos contrafluxos criadores se opuseram, e dação no nicho do pensamento, “lugar”
se oporão sempre, as forças de resistência inacessível a qualquer controle.
ao novo, ao que desestrutura a certeza ante- Bifurcar e abrir-se à incerteza ou per-
rior. Essas forças de resistência (os paradig- manecer na repetição do que nos basta, por-
mas) são importantes apesar de indesejadas que reafirma nossas verdades: essa é uma
por parte do cientista criador. São elas que questão inaugural da ciência em qualquer
completam o anel antropológico que se momento da sua história. Cabe ao intelectu-
autofecunda pela inovação e conservação, al fazer a sua escolha e a sua aposta. Qual-
responsáveis principais pela dinâmica e quer que seja ela (bifurcação ou repetição)

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estaremos, ainda e sempre, no domínio da ses).
ciência como uma produção humana que
abriga, simultaneamente, vida e morte, cria- PRIGOGINE, Ilya; STENGERS, Isabelle. Entre o tempo e a eterni-
ção e permanência. dade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
De qualquer forma, é do impulso da
bifurcação que advém o fenômeno novo, a _______. A nova aliança. Brasília: Editora da UnB, 1997.
nova interpretação, a originalidade da pes-
quisa. E se para isso é necessário reafirmar a PRIGOGINE, Ilya. Ciência, razão e paixão (Organização de
descontinuidade como a alavanca de novas Maria da Conceição de Almeida e Edgard de Assis Carvalho).
cartografias do pensamento; se é preciso Belém: EDUEPA, 2001.
reconhecer que a ciência é a habilidade de
lidar com o difícil, nada mais estaremos fa-
zendo senão trazer de volta as reflexões de
Gaston Bachelard. “Encarem a química difí-
cil e reconhecerão que entraram num reino
novo de racionalidade. Essa dificuldade da
ciência contemporânea será um obstáculo à
cultura ou representa um atrativo? Segun-
do acreditamos, ela é a própria condição
do dinamismo psicológico da pesquisa. O
trabalho científico exige precisamente que
o pesquisador crie dificuldades. O essencial
é que essas dificuldades sejam reais, que
sejam eliminadas as falsas dificuldades, as
dificuldades imaginárias.” (1977, p. 176)
Não estando no domínio do senso co-
mum, o conhecimento científico opera uma
mudança de rota do conhecimento huma-
no. Podemos, dessa perspectiva, conceber a
ciência como bifurcação .

Notas

* Palestra de abertura do I Seminário Doutoral do Programa


de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, julho de 2003.

Referências

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins


Fontes, 1979.

_______. Epistemologia: trechos escolhidos. Rio de Janeiro: Zahar


Editores, 1977.

Ilya Prigogine: do ser e do devir. Entrevistas a Edmond Blattchen.


São Paulo: UNESP/EDUEPA, 2002. (Coleção: Nomes de Deu-

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