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A Questão do Fetichismo e da Eugenia nas Técnicas Reprodutivas
SILVA, Maristhela Rodrigues da1
Análise de algumas repercussões morais na prática da Reprodução Humana Assistida (RHA) na atual
Sociedade de Consumo. Dentre as novidades surgidas com a mudança nos modos de produção está
o consumo de mercadorias sob demanda. Passa-se a chamar, então, de ,
uma sociedade que faz do consumo o seu próprio fim e do consumidor um participante do processo
de idealização da mercadoria, dando início à denominada ³mercadoria virtual´. A Reprodução
Humana Assistida aparece nesse contexto como uma das mercadorias concebidas sob demanda e
envolvida pela tríade ciência-tecnologia-capital. A possibilidade de gravidez sem sexo, a partir do
nascimento de Louise Brown em 1978, mostra-se como a um investimento do Mercado Reprodutivo,
não mais com os parâmetros elaborados pela ³Revolução Sexual´ dos anos 60 e 70 - que queria o
sexo sem gravidez -, mas como renovação e ampliação de bens ofertados. Nesse sentido, apresenta-
se a mudança nos modos de produção e a conseqüência desta nas formas de consumo. Identifica-se
o surgimento e a ascensão do mercado reprodutivo. Analisa-se como através das tecnologias
voltadas para a RHA a vida passa a fazer parte das relações mercantis capitalistas. Conclui-se que a
série de métodos biotecnológicos que possibilitam a realização de gestação, que não ocorreria
espontaneamente, apresenta-se não apenas como uma alternativa para resolver a ausência
involutária de filhos, ou ainda para ultrapassar a barreira de configurar famílias co-sangüíneas, mas
trata-se também de comercialização, fabricação e seleção de filhos com características que os pais
desejam, possibilitando assim um movimento eugênico, desta vez de forma amistosa.
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a cura para um outro filho. Aliás, sua primeira filha, que nascera com Anemia de Fanconi, doença
caracterizada pela incapacidade de formação na medula óssea, o que a levaria à leucemia e,
conseqüentemente, à morte. A solução veio por meio da seleção de cinco embriões compatíveis,
dentre quarenta que foram analisados. Com o nascimento do irmão programado, a família Nash
ganhou um novo membro na família, saudável, e a cura da filha mais velha (DISCOVERY CHANEL,
2005).
O que há em comum entre esses casais é o fato de pagarem somas significativas em
dinheiro para terem acesso à RHA. Cada qual com sua justificativa, dentre as quais a da família
Nash, que muitos podem até considerá-la nobre. Contudo, eles nos ilustram como a RHA vem sendo
transformada em mercadoria capitalista desenvolvida, seguida de perto pela aceitação sutil de várias
formas de eugenia. Pois, se por um lado, trata-se da possibilidade de superação da infertilidade e
infecundidade, podendo com isso restituir a felicidade ou promover a realização pessoal de casais
que vêem na procriação o ápice de suas vidas conjugais. Por outro, como coloca Costa (2006), trata-
se da comercialização da vida, por meio de mecanismos como venda de espermas e óvulos ou
³gestação de substituição´, transformando a procriação assistida em um fetiche capitalista. Além
disso, inaugura a oportunidade de programação eugênica, antes do nascimento, através da
manipulação genética por meio de técnicas, como por exemplo, a biópsia de embrião.
O conjunto dessas mudanças que tem transformado a reprodução em mercadoria não
acontece ao acaso, pois, tanto a comercialização da vida quanto o movimento eugênico, remete-nos
à própria reorganização das formas de consumo, que, por sua vez, é resultado da reorganização dos
modos de produção capitalista. E isto significa que esse processo nada mais é senão um dos
resultados daquilo que Jameson (2006) chamou de ³capitalismo tardio´, cuja característica dominante
é o ³modo de produção pós-industrial´, como a face econômica da ³sociedade pós-moderna´ ou
³sociedade de consumo´. Ou mais especificamente, é resultado da mudança do modo de produção
fordista (no qual a oferta antecipa a demanda) para o modo de produção toyotista (no qual a
demanda antecipa a oferta), ou ³acumulação flexível´, nas palavras de Harvey (1994).
Neste modelo contemporâneo, abandona-se a perspectiva de oferta em larga escala,
justificada pelo mercado em expansão, pela oferta sob demanda, justificada pela saturação dos
mercados e pelos indícios de esgotamento da própria natureza. Em síntese, a era ³pós-moderna´ é
um novo tempo, no qual as normas de consumo agem de acordo com as leis de mercado, o trabalho
é marcado pela automação industrial e informatização da sociedade, ou seja, o ³pós-modernismo´ é
um modelo de sociedade onde tudo se vende, inclusive o fetiche do filho perfeito, de acordo com a
vontade e o poder aquisitivo dos pais.
Esta consciência nos levou a questionar sobre as relações entre as tecnologias de RHA
e o ³mercado reprodutivo´ na atual ³sociedade de consumo´: como as pessoas estão convivendo
dentro desse modelo de sociedade com essa possibilidade de comercialização da própria
progenitura? O que significa, em termos de organização social, essa forma de mercantilização?
Trata-se do fim de uma nova forma de eugenia? Trata-se do próprio ocaso da pessoalidade humana,
colocada acima de qualquer preço, mas agora identificada a um conjunto de itens a serem escolhidos
e negociados entre consumidores e empresários do setor? Ou, em poucas palavras, o que há por trás
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crescimento econômico .
Nesse sentido, apesar de a tendência da ³superacumulação´ não ser eliminada no
capitalismo, é possível administra-lá de modo a não ameaçar a ordem social. É por isto que, quando
diante da ³superacumulação´, o governo parte, com ar de heroísmo, para escolhas nas quais a
primeira opção é sempre a interferência estatal no mercado sob a forma da desvalorização da
mercadoria. No entanto, como todo ato heróico, ele porta inúmeras contradições e elementos de
irracionalidade, nem sempre favoráveis a todos os envolvidos, conforme atesta Harvey (1994, p.170):
Era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significa
consumo em massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma
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nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova
psicologia, em suma um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada,
modernista e populista.
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Existem duas posições a serem adotadas quando se quer falar das origens históricas da
³Sociedade de Consumo´. Uma delas tem sua preocupação voltada para o surgiu esse
modelo de sociedade, enquanto a outra se interessa pelo o mudou na sociedade capitalista para
que agora se denomine assim a uma sociedade que sempre consumiu.
No que diz respeito à primeira, ao se iniciou a ³Sociedade de Consumo´, existem
grandes controvérsias. Há quem defenda que foi antes da ³Revolução Industrial´ e ascensão do
capitalismo, bem como há quem defenda que sua fundação se deu após a consolidação da
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industrialização. Para o primeiro grupo, localizado nos anos oitenta e chamados de ³revisionistas´,
acredita-se que os dados históricos revistos apontam que antes da ³Revolução Industrial´ houve uma
revolução do consumo e do comércio. Seu argumento principal é o de que seria frustrada uma
industrialização sob bases capitalistas sem a existência prévia de uma demanda adequada para a
produção e consumo, e, além do mais, as grandes invenções tecnológicas (invenções mecânicas da
indústria de tecidos, indústria de brinquedos, etc.) atreladas à ³Revolução Industrial´ só ocorreram
depois da explosão do consumo, ou seja, após a consumação de uma demanda plenamente
estabelecida. Já o segundo grupo, além de apregoar uma propensão natural para o consumo e que
este é insaciável, acredita que foi somente após a ³Revolução Industrial´ que o mercado capitalista se
estabeleceu concretamente. Isto teria acontecido graças aos aumentos de renda e a quantidade
maior de bens e mercadorias à disposição. Entretanto, apesar de a existência da ³propensão natural´
para o consumo e sua ³insaciabilidade´ ser reforçada até mesmo por economistas como Marx (1989)
e Keynes (1973), como eles atestam, ela nunca foi um elemento interessante enquanto dado
investigativo. E, longe de ser uma evidência empírica, trata-se apenas de uma preferência cultural
ocidental, que opta por destinar a sua renda ao consumo de bens e mercadorias, conforme atesta
Barbosa (2004, p.17):
E assim, mesmo com as disputas sob o teria de fato surgido a ³Sociedade de
Consumo´ ± se no século XVI, anterior a ascensão do capitalismo e da ³Revolução Industrial´, ou se
no século XVIII, após a ascensão do capitalismo ± permanece entre os autores o consenso quanto às
suas principais características. Ou seja, o consenso está relacionado ao mudou na sociedade,
que foi basicamente a transferência de um ³consumo familiar´ para o ³consumo individualizado´, bem
como a transformação do ³consumo de pátina´ para o ³consumo de moda´.
Explica-se.
Antes da instauração do sistema capitalista, nas ³Sociedades Tradicionais´, o consumo
tinha base no nicho familiar. Cada família produzia somente o suficiente para as suas necessidades
básicas e a aquisição de outros bens dependia do segmento social ao qual cada família pertencia. O
controle do consumo e do acesso a esses outros bens era feito pelas ³Leis Suntuárias´, que definiam
o que era permitido e o que era proibido para as famílias de acordo com o ao qual pertenciam.
Portanto, bens como roupas, móveis domésticos, entre outros, eram definidos pela classe social
familiar, independente de suas rendas.
Na ³Sociedade Contemporânea´, a dependência quanto ao e estilo de vida é
completamente abandonada, e contrário às ³Leis Suntuárias´, o consumo passa a depender
unicamente do quanto se tem para pagar, ou seja, depende somente da renda. Isso se dá
principalmente devido à mudança do ³consumo familiar´ para o ³consumo individualizado´, que tem
como norma apenas a escolha pessoal e o poder aquisitivo do consumidor. Trata-se do ³império do
´, da auto-expressão, da criação de um estilo próprio e auto-consciente.
O segundo acontecimento que marcou a passagem da ³Sociedade Tradicional´ para a
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É válido ressaltar que neste novo ambiente, seguindo uma ³lógica fetichista´, o ³valor-de-
uso´ dos objetos é transformado em ³valor de moda´, o que tem sua base no ³valor-de-uso social´, do
qual fala Marx (1989, p.48). Isto porque, segundo Marx (1989, p.42), o ³valor-de-uso´ de um objeto se
realiza na utilidade deste objeto e é determinado pelas suas propriedades materiais: ³Os valores-de-
uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela´. Além disso,
no ³valor-de-uso´ está materializado o ³trabalho humano abstrato´, o que significa que para este
objeto ser transformado em mercadoria é necessário que o ³valor-de-uso´ seja ampliado a outros:
³Quem, com seu produto satisfaz a própria necessidade gera valor-de-uso, mas não mercadoria, é
mister não só produzir valor-de-uso, mas produzí-lo para outros, dar origem a valor-de-uso social´
(MARX, 1989, p.48). Ou seja, é essencial que ao ³valor-de-uso´ seja agregado o ³valor-de-troca´. E
mais, que seja consumido.
O que a ³Sociedade de Consumo´ tem feito é potencializar o ³valor-de-uso social´ na sua
dimensão fetichista, sob a forma de , aplicando-lhe a regra da efemeridade, pois, até por
questão de sobrevivência ela precisa produzir não apenas em função da utilidade dos objetos, mas
também precisa pensar na destruição e renovação destes. Sabe-se que no âmbito de uma sociedade
baseada no efêmero, a produção de algo duradouro é, no mínimo, descabida. Nesse sentido,
acelerar a renovação de objetos é a atitude mais coerente em meio aos atuais postulados
³racionalistas´ da Economia. A idéia é: a partir de pesquisas junto aos consumidores, descobrir suas
necessidades latentes e lhes agregar símbolos. Assim, a necessidade permanecerá, mas a sugestão
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consumo ± como acontecia em sociedades anteriores, nas quais o consumo era justificado por
necessidades biológicas e sociais ± em favor de um consumo baseado na moda. Não que as
necessidades biológicas tenham deixado de existir, mas agora elas não vendem tanto quanto o
símbolo impresso nos produtos. Agora, o consumo é seu próprio fim e os seus propulsores são os
desejos e os caprichos. Eis a explicação para o porquê de se chamar ³Sociedade de Consumo´ uma
sociedade que sempre consumiu, já que mesmo, apesar de ter sempre acompanhado as sociedades,
nunca tinha sido sua própria finalidade.
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Win Mertens é belga, nasceu em 1953, é além de pianista, guitarrista. A música apresentada no documentário
chama-se ³Usura´, palavra latina que remete a juros cobrados excessivamente em cima de um empréstimo
concedido.
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possivelmente realizar. Justamente por isto, as embalagens que não contêm mensagens são
retiradas da prateleira, e substituídas por produtos que passam a idéia
Sem mensagem,
sem fetiche, tais mercadorias tornam-se invendáveis e por isso precisam ser substituídas por novas
idéias, novas satisfações, novas possibilidades, revestidas pela máscara de novas necessidades.
O ³Bem-Simbólico´ é exatamente isso, uma mercadoria recheada de fetiches, símbolos e
elementos culturais, que, por sê-la, sua utilidade primária é suprimida em prol do simbolismo. Nesse
sentido, ele tende a substituir o ³Mundo real´ por imagens e mensagens que lhe dão ³novos´ e
³outros´ significados, pois, tudo precisa ser reduzido a bens e serviços subservientes à ideologia do
novo, da última geração, da tecnologia mais avançada. A vida, a morte, a reprodução, a história, a
cultura, todos viram signos e por isso todos viram mercadorias, todos viram ³Bens-Simbólicos´.
É nele que os consumidores são orientados e procurarem a possibilidade de selecionar
seu modelo de individualidade e satisfazer seus desejos mais secretos. O que se espera dele é a
satisfação de quimeras, que vêm recheadas de valores de moda, de valores morais, e ainda de
representações sociais relacionadas entre si. Essa é a única escolha moral permitida, sendo
interditado não escolher, não consumir.
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que interdita o uso do preservativo; crenças de que o seu uso está associado à prevenção de
doenças, o que se torna dispensável quando o casal confia um no outro; práticas adolescentes de
que o coito sem proteção é uma prova de amor; o fato de que a indústria farmacêutica de
medicamentos tem maior influência nas políticas governamentais do que a indústria de preservativos;
e, o fato de que se acredita que o problema do sexo sem gravidez estaria tecnicamente resolvido com
os recursos cirúrgicos da laqueadura ou o uso correto das pílulas.
Nesse sentido, o ³Mercado Reprodutivo´ já estaria saturado no plano das ofertas de
mercadoria, precisando apenas ampliar o público territorialmente. Mas não foi isto que aconteceu,
nem é esta a lógica mercantil capitalista. O mercado se renova e amplia tanto territórios quanto bens
ofertados. É assim que, se em um primeiro momento, ele tomou como parâmetro as necessidades
elaboradas a partir da ³Revolução Sexual´ ± que queria o sexo sem gravidez ±, agora investe na
possibilidade de gravidez sem sexo, cuja consolidação veio com o anúncio do primeiro caso de bebê
de proveta.
Dado isto, julho de 1978 é uma data simbólica. Nesse dia a gravidez sem relação sexual
deixou de ser uma possibilidade. Acontecia a primeira gestação completa a partir de um óvulo
fecundado artificialmente. Era o nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta.
Fruto das experiências dos médicos britânicos Steptoe e Edwards, o nascimento de
Louise Brown representou a base para o desenvolvimento biotecnológico da Reprodução Humana
Assistida (RHA). Após esse fato, o crescimento das tecnologias de RHA têm sido gigantesco. E em
1996 tornou-se possível a biópsia em embriões, permitindo-se fazer análises no mesmo em busca de
anomalias, como Síndrome de Down e hemofilia. Posteriormente, usando-se a biópsia do embrião,
tornou-se possível não apenas a descoberta de anomalias nestes, mas a correção por meio de
substituição do material genético com problemas por material saudável de doadores.
A novidade mais significativa da RHA é que ela representa o auge da aliança entre
ciência, tecnologia e capital. Aliança esta, que tem como interesse maior a aplicação desta
miscelânea à produção da vida e à manipulação dos componentes biológicos, e claro, o lucro, como
diz Gálvez (2003, p.111):
Por exemplo. Entre os anos de 1990 e 1991, a Rede Globo de Televisão transmitiu a
telenovela chamada "
na qual a trama central envolvia uma gravidez assistida. O
assunto tratado eram as conseqüências nas relações familiares dada a implantação e gestação do
embrião de um casal no útero alugado de uma outra mulher, a tecnicamente chamada ³Gravidez de
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Substituição´ .
É interessante notar que esta telenovela foi transmitida durante um período no qual o
Brasil buscava representar-se como país do futuro, com projetos de modernização acelerada da
ideologia liberalista do governo Collor, ainda sob a influência dos ³50 anos em 5´ do governo
Kubitschek, que prometia a ascensão social por meio das relações de consumo.
Afirmamos que é interessante notar isto porque, se for verdade que as telenovelas são o
veículo mais popular de divulgação destas novidades, e a mídia a melhor garantia de popularização e
divulgação imediata das mesmas, não haveria de ser diferente com a RHA. Bastou a telenovela ir ao
ar, que mesmo onde as técnicas de RHA ainda nem estavam disponíveis, já havia um conhecimento
básico das mesmas, bem como uma disponibilidade para consumi-las. Sobre isto, por exemplo,
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Gálvez (2003, p.23) cita uma pesquisa elaborada pelo Ministério de Saúde (MS) e pelo Cebrap na
qual a conclusão foi basicamente a mesma:
Em estudo exploratório, realizado nas cidades de Santos (SP) e Jacobina (BA),
foram incluídas algumas perguntas acerca do conhecimento da população sobre
RA. A maioria das pessoas entrevistadas(80%) declarou saber o que era
µinseminação artificial, fertilização in vitro, bebê de proveta ou barriga de aluguel¶. O
último termo, mais conhecido, possivelmente em função do título da telenovela, era
utilizado por esse seguimento para englobar as diversas técnicas de RA.
Surpreendeu às pesquisadoras, o amplo conhecimento desse tipo de práticas, em
locais nos quais esse serviço sequer estão disponíveis.
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Houve um tempo em que, quando questionados por seus filhos quanto à chegada destes
ao mundo, os pais contavam a famosa história da cegonha, que trazia os filhinhos feitos no céu pelos
anjinhos ao casal. A história poderia até durar alguns anos na mentalidade infantil, pelo menos até a
fase em que as crianças, então adolescentes, descobriam os percalços da gravidez indesejada. Ou
então, nas sociedades contemporâneas, quando estas, em idade escolar, tomavam contato com as
aulas de Educação Sexual. Desta vez, a opção era contar a história de que os pais se amam e,
depois de dormirem juntos algumas vezes, a criança vem ao mundo, passando antes alguns meses
na barriga da mãe. Com isto, a conversa constrangedora sobre sexo ficou mais simples, aposentando
a cegonha e sua fábrica de bebês.
Atualmente, tenta-se imaginar uma nova cena que é a curiosa imagem de pais de
crianças fertilizadas em laboratório tentando explicar a vinda de seus filhos ao mundo. Isto é, se já foi
embaraçoso falar que papai e mamãe tinham que dormir juntos para que nascesse o bebê, falar que
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o médico juntou um pedacinho de mamãe e um pedacinho de papai no laboratório, para três dias
depois o projeto de filhinho ser colocado na barriga da mamãe e começar a se desenvolver, e que,
além disso, todo esse processo custou em média R$ 15.000 soa no mínimo estranho. No entanto, é
justamente essa cena que nos interessa. Nela, a vida passa a ser uma questão de consumo, tanto
para os 20% dos casais que são atingidos pela infertilidade ou infecundidade, quanto pelos
constituintes dos 80% restantes que precisam, por qualquer que seja o motivo, selecionar alguma
característica genética de sua prole, de acordo com Oliveira (2001).
Esse consumo passa por diversas biotecnologias, todas envolvidas em uma relação
preço/eficácia, que podem ser divididas, segundo Barchinfontaine (2004, p.123), em métodos de
baixa e alta complexidade. Entre as tecnologias de baixa complexidade estão o Coito Programado e a
Inseminação Intra-Uterina (IIU). Essas tecnologias carregam a vantagem de terem custos reduzidos e
não exigirem a sua execução em um centro exclusivamente dedicado à RHA. Porém, são indicadas
apenas para casos simples, nos quais o casal separadamente não apresenta limitação e
r produtiva,
mas que por motivos ainda não explicados pela Medicina não conseguem êxito na fecundação. Já as
tecnologias de alta complexidade são compostas basicamente pela Fertilização (FIV) e a
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Injeção Intracitoplasmática de Espermatozóide (ICSI) . Estas são assim chamadas por envolver
durante o processo outros procedimentos, as chamadas técnicas auxiliares.
O Coito Programado é feito mediante estímulo hormonal, com utilização de
medicamentos, no qual o organismo feminino é estimulado a ovular. Sendo assim, os gastos com a
aplicação desta técnica se concentra na aquisição dos medicamentos específicos para esse fim. Por
conta disso, a divulgação desta técnica tem sido trabalhada simultaneamente à propagação dos
medicamentos. Ora, ao associar a eficácia do medicamento ao sucesso da técnica, este passa a
incorporar a tecnologia fazendo com que a forma ideológica do consumo de RHA seja também um
consumo de determinados fármacos. A própria indústria farmacêutica se encarrega dessa
associação.
Nesse sentido, a indústria farmacêutica, por meio das parcerias entre os laboratórios e o
médico, procura interferir nas tecnologias de RHA, inclusive na sua indicação ou até mesmo nos
diagnósticos, o que é bastante sério do ponto de vista da Bioética. Collucci (2006), por exemplo,
divulgou que os especialistas da área de RHA estariam recebendo comissões de laboratórios por
receitar determinados medicamentos. Segundo essa jornalista, em sete locais de venda de um
mesmo produto, dependendo do nome do médico indicado, os preços variam de R$ 2 a R$ 20. É o
caso do Gonal-F, que estando entre as drogas de maior circulação, tem mutação de preço por
médico, de R$ 143,00 a R$ 158,00 a ampola. Destaca-se ainda que os gastos com RHA podem
representar até 50% de todo o tratamento, o que varia de R$ 6.000,00 a R$ 20.000,00 por tentativa.
Em nota enviada ao jornal, após a circulação da reportagem realizada por Collucci
(2006), o laboratório Serono, fabricante do medicamento, diz que a diferença de preço se dá por
conta da variação do volume de medicamentos negociados com cada distribuidor, e que por conta
disso essa variação fica a cargo das leis de mercado e das agências regulamentadoras:
(...) a diferença de preços entre distribuidores podem ocorrer, da mesma forma que
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Apesar disto, o Serono não quis se pronunciar com relação aos possíveis acordos
feitos com médicos em troca de prescrição dos seus medicamentos.
Já a técnica de Inseminação Intra-Uterina (IIU) é indicada para mulheres com
doenças inflamatórias pélvicas e homens com oligospermia. A sua comercialização envolve maiores
custos que o Coito Programado, pois pode envolver diversos procedimentos anteriores à implantação
do sêmen ou dos espermatozóides no útero, tais como a preparação em laboratório do
espermatozóide ou sêmen. A IIU também pode utilizar medicamentos para estimular a ovulação em
prol de maior percentual de sucesso da técnica. Justamente por isso a sua divulgação se liga tanto à
propagação de medicamentos quanto ao milagre que pode ser produzido em termos de RHA. Nesse
sentido, como indica Gálvez (2003, p.126), ³os medicamentos e a intervenção médica tornam-se
condições imprescindíveis para sua realização´. A figura 03 pode ser um exemplo disto.
Figura 01: Propaganda Serono: o milagre que precisa de ajuda
dos óvulos, a manipulação dos gametas, a transferência dos embriões e por fim o suporte de fase
lútea. Este processo é o carro-chefe do ³Mercado Reprodutivo´, uma vez que por seu uso desde o
nascimento de Louise Brown, se abriu um novo nicho de mercado.
No Brasil, essa tecnologia foi estreada publicamente com o caso Pelé, representada na
forma de um milagre da Medicina, conforme observamos em Gálvez (2003, p.143):
O terceiro passo da FIV, a ICSI, outra técnica reprodutiva inaugurada em 1988 após
pesquisas desenvolvidas por cientistas belgas, é atualmente a grande solução para a infertilidade ou
infecundidade masculina. Antes da sua descoberta esse passo era executado na FIV da mesma
forma que na IIU.
É necessário ressaltar ainda que, além das tecnologias de fecundação propriamente
dita, foram desenvolvidas, a partir dos anos 80, as técnicas auxiliares na fecundação, que visam
principalmente a garantia da qualidade do embrião. Entre estas estão a " '# (AH), a
remoção de fragmentos dos embriões e o diagnóstico genético pré-implantacional.
A mais polêmica das técnicas auxiliares de RHA tem sido o diagnóstico genético pré-
implantacional, popularmente conhecido como biópsia de embrião. Trata-se da análise das alterações
genéticas do pré-embrião podendo levar a três aplicações básicas, a saber, a ³sexagem´, a
detectação de anomalias cromossômicas estruturais e a correção de defeitos genéticos envolvendo
um único gene como, por exemplo, a fibrose cística, a hemofilia, a anemia falciforme, entre outras.
Enfim, são com estas tecnologias que o ³Mercado Reprodutivo´ vem propiciando o que chama de
³Mercantilização da vida´, bem como possibilitando a projeção de novos seres humanos
geneticamente modificados.
Essa mercantilização reforça e é reforçada tanto por esse avanço tecnológico das
técnicas manipuladoras da produção e reprodução da vida quanto pela propaganda que se faz ao seu
redor. Para se ter uma idéia disto, as chances de sucesso das tecnologias de RHA quando nasceu
Louise Brown, em 1978, era de 5%, e atualmente, segundo a Sociedade Brasileira de Reprodução
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Assistida (SBRA) já está em torno de 30%. Inclusive há clínicas mais otimistas que prometem de
50% a 55% de chances em mulheres de até 35 anos, como é o caso da Clínica Abdelmassih, que
divulga em seu site uma taxa de sucesso, com base em dados de 2007, de até 55%, como mostra o
gráfico 02.
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Fonte:
www.abdelmassih.com.br/tr_taxas_de_sucesso.php
De acordo com o site da Clínica, esse levantamento foi feito sem qualquer tipo de
seleção de pacientes, bem como sem levar em consideração as técnicas aplicadas, tendo como
ponto importante apenas a idade das mesmas. Essa informação funciona como ( comercial
tanto da clínica quanto da própria tecnologia, pois, as tecnologias de RHA desenvolvem-se na mesma
proporção que a taxa de êxito das suas aplicações. No entanto, falar de sucesso ou fracasso das
tecnologias de RHA é apenas parte de um discurso mercantil que envolve múltiplas determinações.
Dentre estas, podemos destacar algumas, tais como: o tipo da tecnologia, as indústrias envolvidas,
os desejos e o poder aquisitivo do casal, as leis locais e a massificação do sonho da reprodução
assexuada.
Somando-se a isto a divulgação dos casos bem-sucedidos dos usos das tecnologias de
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RHA por personalidades públicas , fica evidente a ³ajuda´ proporcionada pela mídia à consolidação
dessas tecnologias como ³bem de consumo´, ou melhor, como ³mercadoria´. Assim, tão desejável e
popular, o ³Mercado Reprodutivo´ procura estampar em sua bandeira as idéias de reprodução como
consolidação de família e, principalmente, como a RHA pode proporcionar a segurança e a
tranqüilidade, produzindo uma prole sem defeitos genéticos. No entanto, sendo a RHA apenas mais
uma ³mercadoria´ disponível na ³Sociedade de Consumo´, é importante que esta também contenha
valores e significantes somados às necessidades individuais. Ou seja, é necessário que a
³mercadoria´ RHA seja um ³Bem-Simbólico´, caindo no seu fetichismo.
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Essa discussão perpassa não só a fuga dos cônjuges da infertilidade, mas também o
debate voltado ao desejo de filhos, como coloca Corrêa (2001, p.74):
Discutir a reprodução assistida a partir do desejo não realizado por filhos obriga,
portanto, a acolher na discussão uma sucessão de tensões e paradoxos. Tudo
seria mais simples se ter filhos fosse um desejo natural que guiasse os
³socialmente adequados´ à reprodução. O paradoxo, aqui, é que se o
desenvolvimento de filhos é visto como ³natural´, como parte da natureza humana,
como explicar que sua expressão esteja restrita aos indivíduos acasalados de
forma monogâmica e heterossexual ± uma forma bem estabelecida de construção
social. Por outro lado, se esse desejo é visto, ao menos em parte, como fruto de
condicionantes socioculturais ligados ao simbolismo do laço familiar, da linhagem e
da descendência, da continuidade individual, como justificar sua exclusão da vida
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Dado isto, é importante ressaltar que mesmo sendo construída recentemente como um
problema do casal, a resposta para a infertilidade, ou seja, as intervenções biotecnológicas, é
realizada no corpo das mulheres. E isso retoma, segundo Corrêa (2001), imediatamente a idéia de
realização feminina dependente da maternidade.
Recorrer ao ³Mercado Reprodutivo´ é a maneira mais prática que a mulher moderna,
realizada profissionalmente, financeiramente e até conjugalmente, encontra para realizar-se
maternalmente. E, obviamente, o próprio ³Mercado Reprodutivo´ aproveita-se desse discurso para
justificar a necessidade de sua existência, como explica Gálvez (2003, p.198): ³A realização das
mulheres modernas que querem expandir os limites da natureza, para dar lugar a sua realização
maternal, conjugal, financeira e profissional é uma retórica que justifica a necessidade dessas
intervenções´.
No caso da mulher, a infertilidade foi, na maioria das vezes, tratada como fatalidade, ou
mesmo, segundo Costa (2006, p.179), ³como um obstáculo à realização do que seria uma meta
essencial da vida´. O estigma sob a mulher era tão forte que se descartava a possibilidade da
infertilidade ser uma limitação por parte do homem. Em alguns casos, elas assumiram a ³culpa´ pela
infertilidade do casal para não machucarem seus maridos, quando se deparavam com o diagnóstico
de infertilidade masculina. No entanto, quando finalmente passou-se a aceitar que o homem podia ser
a causa da falta de filhos de um casal, contornar essa situação passou a ser, entre outras coisas, a
possibilidade de fornecer uma prova de masculinidade.
Isto não tem sido fácil, segundo pesquisas atuais o casal tem 20% de responsabilidade
na infecundidade, o homem e a mulher têm 40% cada um. Ou seja, o homem e a mulher estão em
par de igualdade quando o assunto é limitação reprodutiva. Porém, sendo o corpo feminino a sede do
processo reprodutivo humano, de acordo com Corrêa (2003, p.74), não só o corpo feminino é
comprometido, mas também o controle da sexualidade, da maternidade, e ainda, da responsabilidade
primordial da mulher na educação e socialização das crianças. Desta forma, o elemento motor no
consumo das técnicas de RHA vem ultrapassando o simples desejo individual por filhos e parece
evidenciar, de acordo com Corrêa (2003, p.75): ³uma rede sociotécnica atual que se soma aos
condicionantes sociais mais tradicionais´. Não se trata apenas de reparar a infertilidade, mas,
também, de uma miscelânea de ³fetiches´, envolvidos na mercadoria RHA, e reconhecidos
socialmente, o que culmina em práticas sutis de ³Eugenia´ que trata os filhos como ³Bens-Simbólicos´
dos pais.
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A primeira vez que se ouviu falar em ³Eugenia´ dentro das ciências médicas foi em 1985
quando o autor do termo, Francis Galton (1822-1911) lançou o livro ') *
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que tem como idéia central a defesa de que a inteligência é hereditária e não fruto da ação ambiental.
Em termos gerais, segundo Schramm (1997, p.1), a ³Eugenia´ é a ciência que estuda as condições
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podendo facilmente atingir o nível de intolerância com relação aos bebês com ³defeitos de
fabricação´, como resalta Gálvez (2003, p.55): ³Em outras palavras, e apelando à linguagem
comercial, o cliente só leva o produto se ele está em bom estado e satisfaz suas necessidades ou
desejos´. E isto não é mais ficção. Já ocorreram fatos nos quais os bebês ³imperfeitos de fábrica´
foram parar em tribunais e devolvidos aos pais biológicos (ou melhor, aos pais de onde sairam os
gametas). Um exemplo, foi anunciado pela
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(17.09.2002), em que um casal
branco londrino recorreu à Suprema Corte Inglesa contra uma clínica de RHA, tendo em vista que
tiveram um casal de filhos negros, após serem submetidos a FIV. Ficou a cabo da justiça determinar
o culpado e abrir caminho para as indenizações.
Segundo esse jornal, o equívoco pode ter acontecido por coincidência. Isto porque,
na mesma época em que o casal branco procurou a clínica, um casal de negros fazia tratamento para
também ter um filho, mas por Inseminação Artificial (IA). A hipótese de erro é a de que na fase da FIV
quando o espermatozóide fecunda o óvulo antes da implantação no útero pode ter sido usado o
espermatozóide errado para fertilizar o óvulo certo. De qualquer forma, o caso foi analisado e julgado
em segredo de Justiça. Soma-se a essa polêmica, o fato de que, conforme diz o jornal, ³segundo a
Lei de Fertilização Humana e Embriologia britânica, uma mulher que dá à luz um bebê por fertilização
(FIV) é considerada sua mãe legal, mesmo se o óvulo não for dela´ (FOLHA DE SÃO PAULO,
17.07.2002).
Enfim, a biópsia de embriões tornou totalmente possível a fabricação e seleção de
bebês, e, ao que parece, é apenas uma questão de tempo até que as pessoas consigam digerir a
idéia e comecem a particar ³Eugenia´. Não é a toa que os médicos já vem pouco a pouco sugerindo
essa técnica, primeiro por motivos de doenças hereditárias, depois, sabe-se lá pelo que mais. Os
cientistas, por sua vez, apresentam em grande velocidade novos caminhos para a Medicina
Preventiva e para a RHA, o que torna a combinação de possibilidades de manipulação de caracteres
não só uma realidade, mas, igualmente, uma ³mercadoria´ que se oferece à venda. Assim,
definitivamente, o ³Mercado Reprodutivo´, embalado pelo sonho de escolher o melhor para si e para a
prole, ganha terreno no antigo território do natural, cobrindo ofertas que atendem desde o sexo sem
procriação à procriação sem sexo.
Ora, a funcionalidade da ³mercadoria´ RHA é facilmente encontrada na possibilidade de
reparo em homens e mulheres não-férteis ou casais infecundos. Já o simbolismo agregado à
funcionalidade desta mercadoria remete-nos aos desejos destes casais que se encontram além das
ditas necessidades de um filho. Tais desejos, seguindo a dinâmica do ³Bem-Simbólico´, parecem
ultrapassar a realização simplista do desejo de ter um filho com as características genéticas dos pais.
Tendem, em verdade, a emergirem dos signos relacionados aos elementos culturais e do ³diferente
personalizante´, aos quais Baudrilhard (2007) faz referência.
Nesse sentido, desenvolve-se na ³mercadoria´ RHA os desejos de produção de filhos
selecionados, com características físicas condizentes com o que a cultura em questão considera
atraente, com o sexo que mais agrada aos pais, com garantia da ausência de anomalias genéticas,
entre outras. Pois, desde que se tornou possível analisar tanto o pré-embrião quanto o embrião
através de biópsias, a seleção de características do filho a ser gerado a partir desta técnica tem sido
25
inevitável. Quer seja por necessidade de se evitar doenças congênitas, como a hemofilia, quer seja
por mero capricho dos pais, o fato é que a ³Eugenia´ tem sido a face moral da RHA. Desde então,
não basta a possibilidade de um filho, é necessário que este venha, por exemplo, com os olhos azuis
como o pai, os cabelos castanhos como os da mãe, e assim por diante, até se projetar o filho de
acordo com as fantasias progenitoras, como comenta Oliveira (2001, p.104):
O desejo de uma prole ³carne de minha carne´ e ³sangue do meu sangue´ é o
motor da indústria de bebês de proveta, que auxiliado pela busca de ³bebês sem
defeito de fabricação´ cria o caldo de cultura perfeito para práticas discriminatórias
quanto a sexo, aparência física (³raça´ ou ³grupo étnico´) e, preferencialmente,
inteligência máxima.
Nesse sentido, a determinação do sexo torna-se um signo que pode estar ligado a
valores machistas, ou o que quer que seja, e os médicos acabam cedendo às preferências dos pais
por este ou aquele sexo, como diz Nagy ( OLIVEIRA, 2001, p.16): ³a determinação do sexo só
deveria existir a partir de uma justificativa bem específica. Mas muitas vezes os médicos cedem ao
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24
doação é regida apenas pela Resolução CFM 1.358/92 , já é comum denúncias em jornais contra a
compra e venda de óvulos e espermatozóides por clínicas especializadas em RHA. A
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, por exemplo, denunciou em fevereiro de 2006, a troca de óvulos por #(. Na
reportagem, algumas mulheres disseram ter recebido de R$ 800 a R$ 1.500, em dinheiro, pela
³doação´ dos óvulos. Segundo o jornal, jovens universitárias vêm sendo recrutadas por clínicas de
reprodução para doar óvulos a mulheres acima de 40 anos com problemas de infecundidade o
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infertilidade. Em troca recebem #( ginecológicos e métodos contraceptivos. Em outros casos,
diz a matéria da
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(fevereiro.2006), ³a mulher que precisa do óvulo paga o
tratamento da doadora, em geral uma jovem que precisa de fertilização pois o marido é
infértil´.
25
Abdelmassih confirmou nesta matéria a presença, na época, de 30 universitárias
cadastradas em seu banco de ³doadoras´, com idades entre 23 a 26 anos. Segundo o médico, elas
são abordadas nas universidades por assistentes sociais que lhes propõem uma avaliação de suas
fertilidades: ³Além de saciar a curiosidade de saber se são férteis, Abdelmassih alega que as jovens
doam por altruísmo´ (FOLHA DE SÃO PAULO, 12.02.2006) Mas, mesmo com o altruísmo defendido
por Abdelmassihr, elas levam seus contraceptivos para casa e querem seus #(. Nesse
sentido, mesmo com as ³doações por pareamento´, que são poucas em relação à demanda, o que a
matéria da
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indica é um comércio de gametas visível, visto que doação não
pressupõe qualquer tipo de retorno, quer seja contraceptivos ou R$ 800.
Já a popularmente conhecida ³barriga de aluguel´ tornou-se um negócio altamente
rentável no ³Mercado Reprodutivo´, mesmo sendo proibida na maioria dos países, como mostra a
tabela abaixo:
Tabela 01: A prática da ³barriga de aluguel´
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Fonte: http//inforum.insite.com.br/540204/atom_xml/
O maior desejo meu e de meu marido sempre foi um filho. Durante dez anos, tentei
engravidar, mas sofri três abortos. Foi meu ginecologista que me falou sobre a
barriga de aluguel. Aceitei na hora. Era a única possibilidade de termos uma criança
com nossas características genéticas. Aliás, o bebê é a cara do meu marido. A
gravidez foi muito tranqüila. A menina que serviu de barriga de aluguel foi muito
honesta. Ela se cuidou durante todo o tempo, pensou na saúde do meu filho ± e
apenas isto. Eu era a mãe e exerci esse papel durante toda a gravidez. Era eu que
30
agradava a barriga, conversava com o bebê, cantava para ele... Com meu marido
foi diferente. Ele não quis conhecer a moça. Na hora do parto, eu estava e meu filho
veio diretamente ara os meus braços. Foi uma sensação indescritível. A moça, por
sua vez, não quis ver a criança. Ela virou o rosto para o outro lado. Depois disso,
nunca mais nos vimos. (LOPES, 2008).
31
Diz-se que em Esparta, há aproximadamente dois mil anos atrás, quando nascia uma
criança era feito uma inspeção por membros do governo para verificar seu estado de saúde. Se fosse
constatada sua saúde, a criança receberia os cuidados do Estado, mas se fosse considerada
defeituosa, ou seja, se tivesse alguma doença e deficiência física ou mental, era lançada à própria
sorte, o que significava a sua morte. Sendo isto verdadeiro, pode-se afirmar que em Esparta ainda
nem se tinha ouvido falar em ³eugenia´, e os espartanos já a praticavam. No entanto, eles nos
invejariam se soubessem que avançamos muito, pois, se para eles era impossível selecionar sua
prole antes do nascimento, restando como opção o infanticídio, nós o conseguimos.
Aperfeiçoamos o desejo de criar uma prole dos melhores, como uma tradição espartana
que encontra em Darwin, com a sua teoria da seleção natural na qual o mais forte deve vencer;
Galton, com a teoria de que o ambiente determina as habilidades humanas culminando na ³eugenia
positiva´; e Hitler, cuja tarefa foi por em prática a ³eugenia negativa´ que busca eliminar o mais fraco
como forma de higiene social; os inspiradores que não queremos assumir. Essa inspiração fez com
que, com o tempo a eugenia passasse a ser vista como ciência prestigiosa e conceito médico
legítimo.
O conceito parecia ter sido abalado com as atrocidades praticadas pelo nazismo, ao
ponto de a opinião pública querer esquecer que as idéias eugênicas vinham formando-se muito antes
da ascensão e tomada de poder por Hitler. No entanto, não foi bem isto o que aconteceu: a eugenia
não sumiu de fato da história, criou-se apenas um novo rótulo, a chamada ³genética humana´. Pois,
conforme observamos, a biotecnologia tem caminhado sutilmente para a seleção de pessoas. Porém,
se Darwin defendia uma seleção natural, no século XXI, pratica-se uma seleção artificial, utilizando-se
para isso de aparatos tecnológicos e de investimento de capital, sendo a vitória deste ou daquele
embrião dependente apenas da preferência dos consumidores, no caso das tecnologias reprodutivas,
dependente dos pretendentes a pais.
Avanços científicos, como a biópsia de embriões, vêm sendo direcionados para a
identificação e descarte dos ³indesejáveis´, bem como para a possibilidade de projeções de bebês. E,
à medida que novas tecnologias vão sendo oferecidas no mercado reprodutivo, cada vez mais os
casais desejam filhos perfeitos, adaptados para uma qualidade de vida, seguindo o mesmo ritmo das
relações consumistas, nas quais quanto mais produtos são oferecidos no mercado, mais exigentes se
tornam os consumidores.
Dado isto, destacamos como o problema mais visível surgido com as práticas eugênicas,
é o de saber justamente a quem será dado o poder de decidir pelo que é melhor ou pior; ou seja,
quem escolherá o padrão de perfeição da futura prole. Pode-se até imaginar as clínicas de RHA
garantindo o nascimento de filhos com selos de certificados, os quais garantiriam a qualidade do
produto.
Voltando a Esparta. Diz-se que ali havia agentes do Estado responsáveis por essa
tarefa, e estes tinham os critérios claros para definir qual criança sobreviveria: a que tivesse mais
serventia para o Estado, ou seja, a que possuísse mais força, dado que a educação espartana era
uma educação militar. Já em nosso século, qual seria o padrão de sujeito pelo qual estaria
32
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a
ILLICH, I. 0,,".6
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ISTO É. Ê((
!$ . Pelé conseguiu o que milhares de casais não conseguem, ele terá
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7#
"#) 7-"' *($*
,"$("#)
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Cevasco. São Paulo: Ática, 1996.
LOPES, A. D. Ê!"
;(
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