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A Questão do Fetichismo e da Eugenia nas Técnicas Reprodutivas
SILVA, Maristhela Rodrigues da1



Análise de algumas repercussões morais na prática da Reprodução Humana Assistida (RHA) na atual
Sociedade de Consumo. Dentre as novidades surgidas com a mudança nos modos de produção está
o consumo de mercadorias sob demanda. Passa-se a chamar, então, de ˜    ˜ ,
uma sociedade que faz do consumo o seu próprio fim e do consumidor um participante do processo
de idealização da mercadoria, dando início à denominada ³mercadoria virtual´. A Reprodução
Humana Assistida aparece nesse contexto como uma das mercadorias concebidas sob demanda e
envolvida pela tríade ciência-tecnologia-capital. A possibilidade de gravidez sem sexo, a partir do
nascimento de Louise Brown em 1978, mostra-se como a um investimento do Mercado Reprodutivo,
não mais com os parâmetros elaborados pela ³Revolução Sexual´ dos anos 60 e 70 - que queria o
sexo sem gravidez -, mas como renovação e ampliação de bens ofertados. Nesse sentido, apresenta-
se a mudança nos modos de produção e a conseqüência desta nas formas de consumo. Identifica-se
o surgimento e a ascensão do mercado reprodutivo. Analisa-se como através das tecnologias
voltadas para a RHA a vida passa a fazer parte das relações mercantis capitalistas. Conclui-se que a
série de métodos biotecnológicos que possibilitam a realização de gestação, que não ocorreria
espontaneamente, apresenta-se não apenas como uma alternativa para resolver a ausência
involutária de filhos, ou ainda para ultrapassar a barreira de configurar famílias co-sangüíneas, mas
trata-se também de comercialização, fabricação e seleção de filhos com características que os pais
desejam, possibilitando assim um movimento eugênico, desta vez de forma amistosa.

Palavras-Chaves: Mercadoria; Sociedade de Consumo; Mercado Reprodutivo; Reprodução Humana


Assistida; Eugenia.


 

A fonoaudióloga Mônica Regina Bertolildi de Souza, 27 anos, e o Professor de Inglês
Francisco José de Souza, 30 anos, procuraram ajuda nas tecnologias voltadas para a Reprodução
Humana Assistida (RHA) por conta dos cinco anos de tentativa de gravidez espontânea sem sucesso
(VEJA, 1995). O motivo principal do casal para essa busca foi o desejo de ter filhos consangüíneos,
inicialmente sem nenhuma pretensão seletiva quanto ao sexo ou a garantias especiais relacionadas à
saúde do bebê. Já o casal Gwen Berkowitz e Jeff Berkowitz, de acordo com documentário da
Discovery Chanel (2005), viu nestas tecnologias a possibilidade de evitar a concepção de mais um
bebê com distrofia muscular, tendo em vista que ambos possuem os genes dessa doença. Gwenem
uma quantidade significativa, porém não incapacitante, ao passo que Jeff em quantidades menores, o
que possibilita uma vida livre da doença. No entanto, somados os genes de Gwen e Jeff a
possibilidade de gerarem uma prole com a doença e, portanto, condenada à morte, ultrapassa 60%.
Outro casal, de acordo com o mesmo documentário, chamados por Lisa Nash e Jack Nash, tinha um
motivo diferente. Eles procuraram as tecnologias de RHA porque tanto queriam um filho sadio quanto

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a cura para um outro filho. Aliás, sua primeira filha, que nascera com Anemia de Fanconi, doença
caracterizada pela incapacidade de formação na medula óssea, o que a levaria à leucemia e,
conseqüentemente, à morte. A solução veio por meio da seleção de cinco embriões compatíveis,
dentre quarenta que foram analisados. Com o nascimento do irmão programado, a família Nash
ganhou um novo membro na família, saudável, e a cura da filha mais velha (DISCOVERY CHANEL,
2005).
O que há em comum entre esses casais é o fato de pagarem somas significativas em
dinheiro para terem acesso à RHA. Cada qual com sua justificativa, dentre as quais a da família
Nash, que muitos podem até considerá-la nobre. Contudo, eles nos ilustram como a RHA vem sendo
transformada em mercadoria capitalista desenvolvida, seguida de perto pela aceitação sutil de várias
formas de eugenia. Pois, se por um lado, trata-se da possibilidade de superação da infertilidade e
infecundidade, podendo com isso restituir a felicidade ou promover a realização pessoal de casais
que vêem na procriação o ápice de suas vidas conjugais. Por outro, como coloca Costa (2006), trata-
se da comercialização da vida, por meio de mecanismos como venda de espermas e óvulos ou
³gestação de substituição´, transformando a procriação assistida em um fetiche capitalista. Além
disso, inaugura a oportunidade de programação eugênica, antes do nascimento, através da
manipulação genética por meio de técnicas, como por exemplo, a biópsia de embrião.
O conjunto dessas mudanças que tem transformado a reprodução em mercadoria não
acontece ao acaso, pois, tanto a comercialização da vida quanto o movimento eugênico, remete-nos
à própria reorganização das formas de consumo, que, por sua vez, é resultado da reorganização dos
modos de produção capitalista. E isto significa que esse processo nada mais é senão um dos
resultados daquilo que Jameson (2006) chamou de ³capitalismo tardio´, cuja característica dominante
é o ³modo de produção pós-industrial´, como a face econômica da ³sociedade pós-moderna´ ou
³sociedade de consumo´. Ou mais especificamente, é resultado da mudança do modo de produção
fordista (no qual a oferta antecipa a demanda) para o modo de produção toyotista (no qual a
demanda antecipa a oferta), ou ³acumulação flexível´, nas palavras de Harvey (1994).
Neste modelo contemporâneo, abandona-se a perspectiva de oferta em larga escala,
justificada pelo mercado em expansão, pela oferta sob demanda, justificada pela saturação dos
mercados e pelos indícios de esgotamento da própria natureza. Em síntese, a era ³pós-moderna´ é
um novo tempo, no qual as normas de consumo agem de acordo com as leis de mercado, o trabalho
é marcado pela automação industrial e informatização da sociedade, ou seja, o ³pós-modernismo´ é
um modelo de sociedade onde tudo se vende, inclusive o fetiche do filho perfeito, de acordo com a
vontade e o poder aquisitivo dos pais.
Esta consciência nos levou a questionar sobre as relações entre as tecnologias de RHA
e o ³mercado reprodutivo´ na atual ³sociedade de consumo´: como as pessoas estão convivendo
dentro desse modelo de sociedade com essa possibilidade de comercialização da própria
progenitura? O que significa, em termos de organização social, essa forma de mercantilização?
Trata-se do fim de uma nova forma de eugenia? Trata-se do próprio ocaso da pessoalidade humana,
colocada acima de qualquer preço, mas agora identificada a um conjunto de itens a serem escolhidos
e negociados entre consumidores e empresários do setor? Ou, em poucas palavras, o que há por trás
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do mercado de reprodução humana?


    

O que é isto ± o ³Modo de produção Pós-Industrial´ ± no qual as questões éticas que


aqui são colocadas fazem sentido? Qual o significado do que se quer dizer quando se afirma ³Pós-
Industrial´, que antes houve um ³Industrial´, bem como um ³Pré-Industrial´? Em outras palavras, qual
o ³conjunto das circunstâncias´, nas palavras de Vanderveken (2005), no qual dizer que a vida se
tornou uma ³mercadoria capitalista desenvolvida´ pode ser assumido como verdadeiro? Por isto,
como primeira tarefa filosófica, urge explicitarmos o contexto que, diante de nós, coloca-se como a
terra sobre a qual o nosso discurso precisa ser forjado e fazer algum sentido.
Esse contexto, há algum tempo, recebeu por meio das afirmações de Jameson (2006) o
nome de ³capitalismo tardio´, cujo significado primário é o de ser uma fase do sistema capitalista
marcado pelo modo de produção no qual a demanda antecipa a oferta, movendo a cadeia de
produção a partir da lógica do consumo. Isto não quer dizer que a dinâmica da produção capitalista
foi, em uma fase anterior produtivista e agora se encontra na fase consumista. Ao contrário, significa
que o capitalismo reconhece mais do que nunca a necessidade de integrar a circulação da
mercadoria ao seu processo de produção, portanto, as mudanças são mais conjunturais do que
realmente estruturais. Tais mudanças são marcadas por isto que se conhece como ³Modo de
produção Pós-Industrial´ como a face econômica da ³Sociedade Pós-Moderna´ ou ³Sociedade de
Consumo´, ao que trazemos à fala.
É preciso retomar à memória que, desde o seu surgimento, em meados do século XVII,
o capitalismo mantém, segundo Harvey (1994), pelo menos três características essenciais, a saber:
a) a orientação voltada para o crescimento no qual os lucros são garantidos e a acumulação
sustentada; b) a exploração do trabalho na produção e no mercado como base para o crescimento e
expansão do produto; e, c) o dinamismo, ou necessidade de mudanças tecnológicas e
organizacionais. Inclusive é dessa necessidade, ressalta Harvey (1994, p.169), ³que em parte deriva
a ideologia de que o progresso é tanto inevitável como bom´. Contudo, Marx (1989), logo no primeiro
volume de Ô
   , já alertava para o fato de que esses três elementos têm sido inconsistentes e
contraditórios e que por isso o capitalismo é intrinsecamente propenso a crises. Estas, por sua vez,
podem aparecer como resultado do dinamismo tecnológico do próprio capitalismo, que ao substituir a
³força de trabalho humana´ por ³maquinaria´ gera ³trabalho´ e ³capital´ ociosos. Ou seja, trata-se da
chamada ³superacumulação generalizada´, com um excesso de mercadorias estocadas e grande
desemprego (MARX, 1989, p.492).
Esta é uma regra geral para os países capitalistas, tanto os centrais quanto os
periféricos. No Brasil, por exemplo, percebemos isto claramente quando, nos idos anos 30, os
cafeicultores abalados pela ³Grande Depressão Mundial´ de 1929 enfrentavam um processo de
³superacumulação generalizada´, graças ao grande estoque de café, o aumento da produção desses
grãos e do desemprego. A solução pactuada entre governo e produtores, em 1931, para essa crise
foi a queima dos excedentes invendáveis, o que, a curto prazo, trouxe ao país um expressivo
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crescimento econômico .
Nesse sentido, apesar de a tendência da ³superacumulação´ não ser eliminada no
capitalismo, é possível administra-lá de modo a não ameaçar a ordem social. É por isto que, quando
diante da ³superacumulação´, o governo parte, com ar de heroísmo, para escolhas nas quais a
primeira opção é sempre a interferência estatal no mercado sob a forma da desvalorização da
mercadoria. No entanto, como todo ato heróico, ele porta inúmeras contradições e elementos de
irracionalidade, nem sempre favoráveis a todos os envolvidos, conforme atesta Harvey (1994, p.170):

A desvalorização da mercadoria tem um alto preço político e atinge amplos


segmentos da classe capitalista, da classe trabalhadora e das várias outras classes
sociais que formam a complexa sociedade capitalista moderna. Uma certa
sacudidela pode parecer uma boa coisa, mas as falências descontroladas e a
desvalorização maciça expõem o lado irracional da racionalidade capitalista de uma
maneira demasiado brutal...

Nesse sentido, para a lógica do capitalismo, a desvalorização da mercadoria é uma


opção que, em curto prazo, traz de volta a estabilidade financeira e o lucro. Já o que acontecerá com
relação ao político e ao social, principalmente com a classe operária, do ponto de vista do sistema e
dos donos do capital, isto pouco importa desde que o retorno ao lucro seja garantido.
Uma segunda opção para contornar as crises econômicas geradas pelo próprio processo
de produção capitalista é o controle macroeconômico da ³superacumulação´. Tal controle pode ser
operacionalizado por meio de instituições governamentais que ditem o ritmo das mudanças
tecnológicas e organizacionais necessárias. A idéia é produzir, de acordo com essa regulação, um
crescimento macroeconômico equilibrado e uma ³pactuação´ entre as classes (como tentativa de
diminuir ou sanar a luta pelo controle do trabalho), sendo o Estado o grande articulador entre as
mudanças tecnológicas e os direitos das classes.
Em termos de eficácia, o controle macroeconômico significou para o ³modo fordista de
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produção´ alguns anos de tranqüilidade, aproximadamente de 1945 a 1975, durante os quais foi
responsável pela garantia de emprego, seguro e proteção sociais, ampliando assim os direitos dos
trabalhadores. Contudo, o que fez nascer em 1914 o ³Fordismo´ e o que o diferencia dos demais é a
sua dedução de que a produção em massa implica em consumo também em massa, como destaca
Harvey (1994, p.121):

Era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significa
consumo em massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma

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nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova
psicologia, em suma um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada,
modernista e populista.

Porém, o período de êxito acabou quando a onda de desemprego conseqüente da


diminuição da acumulação do capital e do crescimento da produção se fez presente em meados dos
anos 70.
Ironicamente, foi da maior aposta de Ford, a produção em massa, que sobreveio a crise.
Nos anos 70, com pouco mais de 50 anos de existência, o ³Fordismo´ encontrava um mercado já
saturado, com produção crescendo ininterruptamente, e, principalmente, com número significante de
desempregados. Esse cenário foi decisivo para abalar os fundamentos do ³Fordismo´ como escolha
político-econômica dos países capitalistas, visto que neste modelo o consumo deve ser proporcional
à produção, e, estando os consumidores desempregados, seria inevitável a discrepância entre
quantidade de produção e quantidade de consumo. Além do mais, a inserção das tecnologias±
automação, microinformática, técnicas novas de organizações gerenciais, etc. ± na produção foi outro
grande responsável pelo desequilíbrio da relação produção-consumo.
À crise do ³Fordismo´, como crise  capitalismo, não sobreveio uma crise 
capitalismo. Sobreveio uma reestruturação da produção capitalista em novos paradigmas. Isto
porque, segundo Harvey (1994), as inovações organizacionais e tecnológicas de Ford não passaram
de uma ampliação de tendências que já estavam estabelecidas, uma vez que, a forma corporativa de
organização de negócios já vinha sendo aperfeiçoada desde as estradas de ferro do século XX. E,
além disso, Taylor (1911) expôs como a produtividade do trabalho podia ser aumentada, desde que
se aplicasse uma decomposição do processo de trabalho, fazendo com que a organização das
tarefas da cadeia produtiva fosse fragmentada segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do
movimento. Assim, como resposta à crise do ³Fordismo´ nos países capitalistas centrais, ainda nos
anos 70, e ampliada aos países capitalistas periféricos a partir dos anos 90, é proposta a
reestruturação do sistema produtivo. Entra em cena o ³Toyotismo´ como a grande possibilidade de
reorganização do capital, e agora com um imenso arcabouço tecnológico a disposição. Este, por sua
vez, é marcado, principalmente, pela flexibilização do trabalho, dos produtos e pela modificação nos
padrões de consumo.
Se no ³Fordismo´ a produção acontecia em larga escala, no ³Toyotismo´ evita-se o
desperdício de todos os tipos de recursos (de materiais, de mão-de-obra, de tempo, etc.) optando
pela produção sob demanda. Nesse caso, o ³trabalhador especializado´ do ³Fordismo´ é substituído
pelo ³trabalhador polivalente´ ± aquele que executa várias funções em várias máquinas ao mesmo
tempo. Ou seja, o trabalhador fabril não é mais um especialista em apertar parafusos4 , mas, além de
apertar os parafusos, ele agora tem que ser capaz de operar a máquina que aperta parafusos ao
mesmo tempo que realiza várias outras tarefas, operando quantas máquinas forem necessárias.
Vale ressaltar ainda que, se no ³Fordismo´ a perspectiva de um mercado em expansão

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justificava a oferta em larga escala, no ³Toyotismo´ a situação é diferente. Pois, considerando-se a


saturação dos mercados e os limites da própria natureza se esgotando, o contexto é de uma
demanda que condiciona a oferta, de onde vem a importância que é dada à indústria de marketing,
no que diz respeito à descoberta de desejos e exigências da demanda.
Em suma, o ³Toyotismo´ é o que Harvey (1994, p.140) chamou de ³acumulação flexível´.
Ou seja, trata-se de um sistema produtivo apoiado na flexibilidade dos processos de trabalho, bem
como dos mercados de trabalho, dos produtos e até mesmo das formas de consumo. Este, por sua
vez, traz consigo uma nova ideologia social, o chamado ³Pós-Modernismo´.
Nesse sentido, a chamada era ³Pós-Moderna´ se configura como um novo tempo no
qual as normas de consumo agem de acordo com as leis de mercado; o trabalho é marcado pela
presença da automação industrial e informatização da sociedade; e, o mercado é o substituto da
cultura, sendo esta, por sua vez, a própria mercadoria. Como ³forma simbólica´ do capitalismo que
conseguiu expandir globalmente a forma mercadoria, o ³Pós-Modernismo´ significa, portanto, um
modelo de sociedade no qual tudo se vende. Nas palavras do próprio Jameson (2006, p.14) isto soa
assim:

(...) na cultura pós-moderna, a própria µcultura¶ se tornou um produto, o mercado


tornou-se seu próprio substituto, um produto exatamente igual a qualquer um dos
itens que o constituem: o modernismo era, ainda que minimamente e de forma
tendencial, uma crítica à mercadoria e um esforço de forçá-la a se autotranscender.
O pós-modernismo é o consumo da própria produção de mercadorias como
processo. O µestilo de vida¶ de superpotência tem, então, com o µfetichismo¶ da
mercadoria de Marx, a mesma relação que os mais adiantadas monoteísmos têm
com os animismos primitivos ou com as mais rudimentares formas de idolatria.

É importante destacar que, quando se refere a ³mercadoria´ e ³mercado´ neste texto,


faz-se referência a concepção marxiana destas duas categorias. Assim, ³mercadoria´ é qualquer
objeto de necessidade humana ou meio de vida (³valor-de-uso´) agregado a um ³valor-de-troca´
(relação quantitativa na qual valores de uso são trocáveis entre si) e produzido por ³trabalho social´.
E, por sua vez, ³mercado´ é o local onde a ³mercadoria´ está à venda, seja ela um diamante ou a
³força de trabalho´.
Por fim, é na tríade mercadoria-cultura-mercadoria que será fincada a base daquilo que
se convencionou chamar, desde esse modelo de substituição do ³Fordismo´ pelo ³Toyotismo´, ou de
acentuação na demanda sobre a oferta, de ³Sociedade de Consumo´.

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Existem duas posições a serem adotadas quando se quer falar das origens históricas da
³Sociedade de Consumo´. Uma delas tem sua preocupação voltada para o  surgiu esse
modelo de sociedade, enquanto a outra se interessa pelo o  mudou na sociedade capitalista para
que agora se denomine assim a uma sociedade que sempre consumiu.
No que diz respeito à primeira, ao  se iniciou a ³Sociedade de Consumo´, existem
grandes controvérsias. Há quem defenda que foi antes da ³Revolução Industrial´ e ascensão do
capitalismo, bem como há quem defenda que sua fundação se deu após a consolidação da
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industrialização. Para o primeiro grupo, localizado nos anos oitenta e chamados de ³revisionistas´,
acredita-se que os dados históricos revistos apontam que antes da ³Revolução Industrial´ houve uma
revolução do consumo e do comércio. Seu argumento principal é o de que seria frustrada uma
industrialização sob bases capitalistas sem a existência prévia de uma demanda adequada para a
produção e consumo, e, além do mais, as grandes invenções tecnológicas (invenções mecânicas da
indústria de tecidos, indústria de brinquedos, etc.) atreladas à ³Revolução Industrial´ só ocorreram
depois da explosão do consumo, ou seja, após a consumação de uma demanda plenamente
estabelecida. Já o segundo grupo, além de apregoar uma propensão natural para o consumo e que
este é insaciável, acredita que foi somente após a ³Revolução Industrial´ que o mercado capitalista se
estabeleceu concretamente. Isto teria acontecido graças aos aumentos de renda e a quantidade
maior de bens e mercadorias à disposição. Entretanto, apesar de a existência da ³propensão natural´
para o consumo e sua ³insaciabilidade´ ser reforçada até mesmo por economistas como Marx (1989)
e Keynes (1973), como eles atestam, ela nunca foi um elemento interessante enquanto dado
investigativo. E, longe de ser uma evidência empírica, trata-se apenas de uma preferência cultural
ocidental, que opta por destinar a sua renda ao consumo de bens e mercadorias, conforme atesta
Barbosa (2004, p.17):

(...) a insaciabilidade, que constitui uma das características da sociedade de


consumo moderna, é o resultado de um processo histórico, no interior do qual
podemos observar transformações que começam a se delinear nos dois séculos
anteriores ao XVIII, quando atingem o seu apogeu e se consolidam.

E assim, mesmo com as disputas sob o  teria de fato surgido a ³Sociedade de
Consumo´ ± se no século XVI, anterior a ascensão do capitalismo e da ³Revolução Industrial´, ou se
no século XVIII, após a ascensão do capitalismo ± permanece entre os autores o consenso quanto às
suas principais características. Ou seja, o consenso está relacionado ao  mudou na sociedade,
que foi basicamente a transferência de um ³consumo familiar´ para o ³consumo individualizado´, bem
como a transformação do ³consumo de pátina´ para o ³consumo de moda´.
Explica-se.
Antes da instauração do sistema capitalista, nas ³Sociedades Tradicionais´, o consumo
tinha base no nicho familiar. Cada família produzia somente o suficiente para as suas necessidades
básicas e a aquisição de outros bens dependia do segmento social ao qual cada família pertencia. O
controle do consumo e do acesso a esses outros bens era feito pelas ³Leis Suntuárias´, que definiam
o que era permitido e o que era proibido para as famílias de acordo com o ˜  ˜ ao qual pertenciam.
Portanto, bens como roupas, móveis domésticos, entre outros, eram definidos pela classe social
familiar, independente de suas rendas.
Na ³Sociedade Contemporânea´, a dependência quanto ao ˜  ˜ e estilo de vida é
completamente abandonada, e contrário às ³Leis Suntuárias´, o consumo passa a depender
unicamente do quanto se tem para pagar, ou seja, depende somente da renda. Isso se dá
principalmente devido à mudança do ³consumo familiar´ para o ³consumo individualizado´, que tem
como norma apenas a escolha pessoal e o poder aquisitivo do consumidor. Trata-se do ³império do
˜ ´, da auto-expressão, da criação de um estilo próprio e auto-consciente.
O segundo acontecimento que marcou a passagem da ³Sociedade Tradicional´ para a
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³Sociedade de Consumo´ é a mudança do ³consumo de pátina´ para o ³consumo demoda´. Enquanto


a pátina está ligada às marcas do tempo e ao longo ciclo de bens que eram passados de geração a
geração registrando a passagem do tempo e reivindicando a posição da família perante a sociedade;
no ³consumo moderno´, é a expressão de uma curta temporalidade, do efêmero, de algo
propositalmente programado para ter pequena duração. A ³moda´ rejeita a ³tradição´ em prol do
presente, e esse é justamente o seu referencial, e não mais o passado (como na tradição pátina).
Nesse sentido, a ³Sociedade de Consumo´, nada mais é senão algo dominado pelo lucro, que,
através de mecanismos como a publicidade e a propaganda, reforçam novas necessidades no
sujeito, sem lhes garantir, quando do seu suprimento, a satisfação, a felicidade ou a harmonia.
A partir dos anos 70 a ³Sociedade de Consumo´ sofreu expressiva mudança, que
determinou os novos rumos para o consumir. Esta mudança vem se dando ± como já mostramos
anteriormente ± nos modos de produção, mais especificamente, na passagem do modelo ³Fordista´
de produção para o atual modelo ³Toyotista´. Pois, se na produção em larga escala a mercadoria era
apresentada aos consumidores nas prateleiras para que estes escolhessem o que melhor atenderia
suas necessidades, com o ³Toyotismo´ o consumidor é inserido no processo de produção, interfere
diretamente nele, visto que o produto é, primeiro, virtual e produzido somente depois de sua venda.
Esse produto virtual, não é somente algo imaterial, mas está revestido de valores e idéias do
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consumidor, se transformando no chamado ³Bem-Simbólico´ .
Com a consolidação da ³Sociedade de Consumo´ a partir das mudanças históricas
apontadas acima, o consumo vira o foco central da vida, como disse Baudrillard (2007, p.15): ³os
homens da opulência não se encontram mais rodeados, como sempre acontecera, por outros
homens, mas mais por objetos´. E as características dessa nova sociedade perpassam a

superabundância representada pela idéia do bem estar e materializada no ˜  ; o ³valor-de-
uso´ substituído pelo ³valor de moda´ de acordo com a ³lógica fetichista´; um crescimento apontado
pelo oferecimento cada vez mais diversificado de bens de acordo com o estabelecimento de novas
necessidades; a produção voltada para a elaboração de diferenças personalizantes em detrimento
das reais; a perda de um ³bem natural´ como fundamento para o oferecimento de ³mercadorias
desigualitárias´; e, por fim, o signo como proporcionador de tranqüilidades imediatas, harmonia e
felicidade.
Como traço mais evidente dessa sociedade a superabundância representa o
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amontoamento dos grandes supermercados , sendo que este ³super´ denota não só a quantidade
total dos produtos oferecidos, mas também a evidência do excedente, do raro, do luxo.
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Na ³panóplia´ , traço da ³Sociedade de Consumo´ localizado no interior da
superabundância, é indicado uma totalidade indissociável de objetos diferentes que fazem alusão a
outros objetos simultaneamente. Ou seja, os objetos deixam de ser meros ³utensílios´ e passam a
possuir um sentido global, de modo que ofereçam significado um ao outro, objetivando causar

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motivações mais complexas no consumidor, levando-o à compra de grandes porções de objetos


(organizados em panóplia) e não apenas um ³utensílio´:

Os vestidos, os aparelhos, os produtos de beleza compõe assim fileiras de objetos,


suscitando no consumidor constrangimentos de inércia: de maneira lógica,
encaminhar-se-á de objeto para objeto. Ver-se-á apanhado um cálculo de objetos ±
ocorrência totalmente diversa da vertigem de compra e de apropriação que deriva
da própria profusão das mercadorias (BAUDRILLARD, 2007, p.17).

O encontro da superabundância e da ³panóplia´ se dá nos novos centros comerciais, o


˜ . Nele as mercadorias não são justapostas, mas são misturadas aos signos, se transformam
no próprio signo, vendendo-se conjuntamente. Para tanto, a publicidade quer, nessa lógica, não
apenas vender produtos como no ³espetáculo feirante da mercadoria´ (BAUDRILLARD, 2007, p.18),
mas propõe o signo nos objetos em detrimento da utilidade desse objeto. Em síntese, como
denunciou Baudrillard (2007, p.18): ³vender só produtos não nos interessa, queremos também
introduzir um pouco de matéria cinzenta...´.
O ˜  oferece alimentação, mobílias, roupas, flores, possibilidades de romances,
livros, cultura, desportos, ar puro, cinema, distração, etc, tudo em um só ambiente, em um só espaço.
O consumo invade toda a vida, seja na aquisição de bens, seja nas relações sociais, conforme atesta
Baudrillard (2007, p.19):
Na fenomenologia do consumo, a climatização geral da vida, dos bens, dos objetos,
dos serviços, das condutas e das relações sociais representa o estádio completo e
consumado na evolução que vai da abundância pura e simples, através dos feixes
articulados de objetos, até ao condicionamento total dos actos e do tempo, até à
rede de ambiência sistêmica inscrita nas cidades futuras que são o drugstore, os
parly 2, ou os aeroportos modernos.

É válido ressaltar que neste novo ambiente, seguindo uma ³lógica fetichista´, o ³valor-de-
uso´ dos objetos é transformado em ³valor de moda´, o que tem sua base no ³valor-de-uso social´, do
qual fala Marx (1989, p.48). Isto porque, segundo Marx (1989, p.42), o ³valor-de-uso´ de um objeto se
realiza na utilidade deste objeto e é determinado pelas suas propriedades materiais: ³Os valores-de-
uso constituem o conteúdo material da riqueza, qualquer que seja a forma social dela´. Além disso,
no ³valor-de-uso´ está materializado o ³trabalho humano abstrato´, o que significa que para este
objeto ser transformado em mercadoria é necessário que o ³valor-de-uso´ seja ampliado a outros:
³Quem, com seu produto satisfaz a própria necessidade gera valor-de-uso, mas não mercadoria, é
mister não só produzir valor-de-uso, mas produzí-lo para outros, dar origem a valor-de-uso social´
(MARX, 1989, p.48). Ou seja, é essencial que ao ³valor-de-uso´ seja agregado o ³valor-de-troca´. E
mais, que seja consumido.
O que a ³Sociedade de Consumo´ tem feito é potencializar o ³valor-de-uso social´ na sua
dimensão fetichista, sob a forma de ˜  ˜  , aplicando-lhe a regra da efemeridade, pois, até por
questão de sobrevivência ela precisa produzir não apenas em função da utilidade dos objetos, mas
também precisa pensar na destruição e renovação destes. Sabe-se que no âmbito de uma sociedade
baseada no efêmero, a produção de algo duradouro é, no mínimo, descabida. Nesse sentido,
acelerar a renovação de objetos é a atitude mais coerente em meio aos atuais postulados
³racionalistas´ da Economia. A idéia é: a partir de pesquisas junto aos consumidores, descobrir suas
necessidades latentes e lhes agregar símbolos. Assim, a necessidade permanecerá, mas a sugestão
10

de novos símbolos será constante. Ou seja, apresenta-se a necessidade de um objeto, agrega-se a


ele um ³valor simbólico´, diminui-se o seu valor tempo, e o resultado será o ³valor de moda´ e a
renovação acelerada.
Em síntese, a ³sociedade de consumo precisa de seus objetos para existir e sente,
sobretudo, necessidade de os destruir´ (BAUDRILLARD 2007, p.43). Somente assim, os objetos não
são consumidos apenas como ³valor-de-uso´, mas como signos, que se manipulam e que aliados à
publicidade produzem industrialmente as diferenças, as reais e as personalizantes. As ³diferenças
reais´ são aquelas que fazem das pessoas seres contraditórios e singulares e só ocorrem quando na
relação concreta com os outros e com o mundo. Como seria um problema produzir satisfação com
base no contraditório, cria-se uma nova diferença, ao que Baudrillard (2007) denominou de ³diferença
personalizante´. Nesta, por sua vez, os indivíduos não se opõem, e, diferenciar-se passa a ser adotar
um dos modelos industrialmente pré-estabelecidos. A lógica é simples: destroem-se as ³diferenças
reais´ para possibilitar a abertura do mercado das ³diferenças personalizantes´. Ou seja, é na falta
das diferenças que se consome diferenças.
É assim que a perda ou a impossibilidade de posse de um ³bem natural´ passa a ser
³mercadoria desigualitária´ na ³Sociedade de Consumo´. Nesse sentido, quando se fala em direito à
saúde, direito ao espaço, direito à beleza, direito à reprodução, direito à morte digna, ao que parece,
é quando já não há espaço, saúde, beleza, reprodução e morte digna para todos. E, portanto,
espaço, saúde, beleza, reprodução e morte digna vão constituir privilégios de uns em detrimentos de
outros, tornando-se mercadorias luxuosas, raras, e conseqüentemente, ambicionadas. Assim, não é
de se estranhar o aparecimento de tantos ˜ ˜ falando de novos direitos sociais, os quais são os
responsáveis pelo grande agito da ³Sociedade de Consumo´. Estes, quando concretizados em forma
de lei, são aplaudidos e apontados como ³progresso social´, mas, na realidade não passam de
estratégia capitalista para a ³inserção social´ na ³Sociedade de Consumo´, de fonte de lucro
econômico e privilégio social.
Tudo é convertido em mercadoria, em signo. E este, por sua vez, tomado como o
proporcionador de tranqüilidade imediata marcada pela distância e recusa do ³mundo real´. Ora,
distanciado e recusando o ³mundo real´, o consumidor passa a se relacionar com este mediado pela
indústria dos tablóides, o que faz com que política, cultura, história, responsabilidade social e ³coisas´
sejam tão ³reais´ quanto são os títulos dos tablóides, como se fossem assuntos para serem lidos nas
horas vagas como diversão  . Enquanto isso, a cotidianidade ± a qual Baudrillard (2007) retrata
como relação cotidiana do sujeito com a sociedade e com o mundo como todo ± é dissociada da
³ ˜ social´ e posta na esfera fechada e abstrata. Isto tudo é feito com o simulacro de uma
participação no mundo, desde que esta participação se dê sob a forma ditada pela ³lógica do
consumo´, direta do confortável quarto do consumidor através das imagens digitais da TV LCD de
alta resolução:

O indivíduo reorganiza o trabalho, o lazer, a família, as relações, de modo


involutivo, aquém do mundo e da história, num sistema coerente fundado no
segredo do privado, na liberdade formal do indivíduo, na apropriação protetora do
ambiente e no desconhecimento (BAUDRILLARD, 2007, p.25).

Enfim, a ³Sociedade de Consumo´ é a desvinculação de qualquer função prática do


11

consumo ± como acontecia em sociedades anteriores, nas quais o consumo era justificado por
necessidades biológicas e sociais ± em favor de um consumo baseado na moda. Não que as
necessidades biológicas tenham deixado de existir, mas agora elas não vendem tanto quanto o
símbolo impresso nos produtos. Agora, o consumo é seu próprio fim e os seus propulsores são os
desejos e os caprichos. Eis a explicação para o porquê de se chamar ³Sociedade de Consumo´ uma
sociedade que sempre consumiu, já que mesmo, apesar de ter sempre acompanhado as sociedades,
nunca tinha sido sua própria finalidade.

Ô m   

Se nas ³Sociedades Industriais´ o valor dos objetos era encontrado principalmente em


suas funcionalidades, nas suas quantidades e nas necessidades e prazeres envolvidos, na
³Sociedade de Consumo´ ele é baseado em uma relação significante de objetos/signos e nas
³diferenças personalizantes´ que estes objetos/signos possam determinar. Nesse sentido, o ³Bem-
Simbólico´ não é o objeto com ³valor-de-uso´ e ³valor-de-troca´ apenas, mas sim, além disto, a
abstração da mercadoria envolvida por toda uma fantasia preparada para alcançar determinadas
³diferentes personalizantes´, como atesta Barbosa (2004, p.53): ³(...) o desejo dos consumidores é
experimentar na vida real os prazeres vivenciados na imaginação, e cada novo produto é percebido
como oferecendo uma possibilidade de realizar essa ambição´.
O ³Bem-Simbólico´ resgata o que Marx (1989) chamou de ³fetiche´, que a grosso modo,
seria um elemento abstrato agregado a mercadoria com fins de torná-la atrativa pelo significado
social que tenha e não apenas por sua utilidade. Além disto, remonta-nos também ao que Adorno &
Horkheimer (1985) chamaram de ³Indústria Cultura´, aquela na qual todos os produtos culturais são
transformados em mercadorias e submetidos às mesmas leis de produção capitalista. Para estes
autores, o valor econômico da mercadoria cultural não é definido por sua serventia, mas por um ³valor
simbólico´ reconhecido socialmente, cujo significado está relacionado aos efeitos psíquicos que
possa produzir nos indivíduos.
Uma ilustração de ³Bem-Simbólico´ é encontrada em um documentário brasileiro que
tem como cenário um ˜  exatamente como é visto pelos consumidores dessa nova sociedade.
Dirigido por Masagão (2003), o documentário tem como título    ˜     
 ˜, e apresenta as mercadorias não como matérias ou objetos, mas como embalagens com
configurações de idéias, como bens e serviços carregados de valores e estilo pessoal (individual,
9
personalizante), como linguagem, como palavras, como mensagem. Ao som de Mertens , as
mercadorias são expostas nas prateleiras não mais como bens de necessidades básicas, mas com
mensagens ideológicas, tais como: ³você é demais´, ³pense desiludidamente´, ³seja você mesmo´,
³você faz e acontece´, ³você é a única pessoa do mundo que pode fazer o que você faz´. Sempre
com o investimento nos sonhos de um homem ³ágil´, ³divertido´, ³único´, etc. Não interessa agora
somente a utilidade e necessidade dos objetos, importa antes a quimera que eles podem

9
Win Mertens é belga, nasceu em 1953, é além de pianista, guitarrista. A música apresentada no documentário
chama-se ³Usura´, palavra latina que remete a juros cobrados excessivamente em cima de um empréstimo
concedido.
12

possivelmente realizar. Justamente por isto, as embalagens que não contêm mensagens são
retiradas da prateleira, e substituídas por produtos que passam a idéia ‰    ˜ Sem mensagem,
sem fetiche, tais mercadorias tornam-se invendáveis e por isso precisam ser substituídas por novas
idéias, novas satisfações, novas possibilidades, revestidas pela máscara de novas necessidades.
O ³Bem-Simbólico´ é exatamente isso, uma mercadoria recheada de fetiches, símbolos e
elementos culturais, que, por sê-la, sua utilidade primária é suprimida em prol do simbolismo. Nesse
sentido, ele tende a substituir o ³Mundo real´ por imagens e mensagens que lhe dão ³novos´ e
³outros´ significados, pois, tudo precisa ser reduzido a bens e serviços subservientes à ideologia do
novo, da última geração, da tecnologia mais avançada. A vida, a morte, a reprodução, a história, a
cultura, todos viram signos e por isso todos viram mercadorias, todos viram ³Bens-Simbólicos´.
É nele que os consumidores são orientados e procurarem a possibilidade de selecionar
seu modelo de individualidade e satisfazer seus desejos mais secretos. O que se espera dele é a
satisfação de quimeras, que vêm recheadas de valores de moda, de valores morais, e ainda de
representações sociais relacionadas entre si. Essa é a única escolha moral permitida, sendo
interditado não escolher, não consumir.


   

Com a expansão da ³mercadoria´ como ³Bem-Simbólico´, novos mercados foram


abertos, principalmente em virtude do fato de que a mercadoria sob encomenda abre espaço para
que se possa comprar e vender de acordo com qualquer necessidade da clientela, seja um rim,
cabelos loiros e lisos ou a possibilidade de reprodução. Nasce nesse contexto o ³Mercado
Reprodutivo´, que por sua vez, baseia-se no desenvolvimento biotecnológico de alta complexidade,
ou seja, na intervenção e no controle humano sobre os aspectos biológicos dos seres vivos,
principalmente os envolvidos com os ciclos naturais da vida, como é o caso da reprodução.
Submerso na ³Sociedade de Consumo´, o ³Mercado Reprodutivo´ está envolvido
principalmente pelas idéias de ³bem-estar´ e de ³felicidade´, bem como submisso às mesmas leis de
mercado que quaisquer outras trocas de bens ou serviços. Nesse sentido, a manutenção e
recuperação da saúde como ³mercadoria´ nos remete à mercantilização da própria Medicina, como
aponta Gálvez (2003, p.110):

Essa lógica presente na mercantilização da medicina, passa a ocupar espaços


crescentes na vida dos indivíduos e da sociedade, configurando o fenômeno que foi
chamado de mercantilização. A "medicalização da mulher" seria uma ilustração
farta da transformação da vida numa seqüência de eventos que demandam formas
peculiares de consumo de bens e serviços diagnósticos e terapêuticos que, em
algumas ocasiões, pouco contribuem para um efetivo melhoramento na qualidade
de vida.

Dado isto, com a ³mercantilização da Medicina´, os eventos relacionados aos ciclos da


vida (fecundação, reprodução, nascimento, puberdade, menopausa, morte, entre outros) passam a
ser viabilizados através de relações de consumo. De um lado, clientes com desejos e capital para
investimento, de outro, como atesta Gálvez (2003, p.110), a ³produção de atos médicos, que
13

implicam a comercialização e consumo de serviços, fármacos e equipamentos´. E, embora controlar a


reprodução não seja uma característica específica de nossa época, visto que todas as sociedades ao
longo da história exerceram algum tipo de controle sobre ela, nem sempre essa relação foi mercantil.
Teria sido somente com o desenvolvimento de métodos contraceptivos, e mais tarde com a
Inseminação Artificial e a Fertilização   que o ³Mercado Reprodutivo´ se consolidou.
Esse processo, historicamente determinado, pautado por inúmeras contradições, tem
algumas variáveis comuns que apontam para o enfraquecimento da relação orgânica entre Estado e
Igreja, desenvolvimento biotecnológico de alta complexidade, políticas mundiais de combate à fome e
controle da natalidade, fortalecimento daquilo que Illich (1975) chamou de ³empresa médica´, da
expansão da ³indústria farmacêutica´ e, principalmente, da criação de um público consumidor de alta
tecnologia de saúde. Tal processo, do ponto de vista fenomênico, começou com comercialização da
pílula anticoncepcional, que pode ser considerada a primeira mercadoria propriamente dita do setor
médico vinculado à reprodução.
No Brasil, a comercialização destes bens teve início em 1962, com a venda da pílula
Enovid ± produzida pelo Laboratório Searle ± logo após a sua aprovação nos Estados Unidos pela
FDA ( !" ˜   )10. E, apesar das criticas recebidas por uma parte da comunidade
científica, principalmente aquela ligada à Igreja Católica e Protestante, que alegava falta de avaliação
adequada do produto antes de colocá-lo à disposição das consumidoras, o que representava, no
mínimo, grande exposição da saúde das mulheres, o produto foi aprovado pela Anvisa11. Por outro
lado, havia o descontentamento de boa parte da sociedade que assistia seus valores machistas
ruírem com os avanços dos direitos reprodutivos e sexuais femininos. O fato é que as pílulas
anticoncepcionais tiveram boa receptividade, tanto é que o seu consumo disparou. Para se ter uma
idéia disto, segundo Pedro (2003), as brasileiras de classe média, em 1970, compraram 6,8 milhões
de pílulas, e em apenas 10 anos, esse número subiu para 40,9 milhões. Lembrando que esses
números não computam as mulheres de classes populares, já que recebiam a pílula gratuitamente do
governo.
Outros métodos e tipos de anticoncepcionais ampliaram esse mercado. Atualmente eles
são formulados com base em hormônios (como a pílula) e disponibilizados sob diversas
apresentações, tais como injetáveis e adesivos, entre outras. Nesse meio tempo surgiu também a
proteção masculina, popularmente conhecida como ³camisinha´, que além de prevenir o
engravidamento, é uma aliada contra as Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) e a Aids. Ela,
diferente da pílula que teve alta receptividade na classe baixa, sua receptividade foi maior entre as
classes média e alta. Isto pode ser explicado em virtude de inúmeras variáveis, dentre as quais
podemos destacar o fato de que o uso da pílula é menos custoso do que o do preservativo (ao passo
que uma cartela com 28 drágeas custa R$ 11,00, uma caixa com três preservativos dos mais
populares custa, em São Luis/MA, R$ 1,10); a resistência de um machismo nas classes populares

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14

que interdita o uso do preservativo; crenças de que o seu uso está associado à prevenção de
doenças, o que se torna dispensável quando o casal confia um no outro; práticas adolescentes de
que o coito sem proteção é uma prova de amor; o fato de que a indústria farmacêutica de
medicamentos tem maior influência nas políticas governamentais do que a indústria de preservativos;
e, o fato de que se acredita que o problema do sexo sem gravidez estaria tecnicamente resolvido com
os recursos cirúrgicos da laqueadura ou o uso correto das pílulas.
Nesse sentido, o ³Mercado Reprodutivo´ já estaria saturado no plano das ofertas de
mercadoria, precisando apenas ampliar o público territorialmente. Mas não foi isto que aconteceu,
nem é esta a lógica mercantil capitalista. O mercado se renova e amplia tanto territórios quanto bens
ofertados. É assim que, se em um primeiro momento, ele tomou como parâmetro as necessidades
elaboradas a partir da ³Revolução Sexual´ ± que queria o sexo sem gravidez ±, agora investe na
possibilidade de gravidez sem sexo, cuja consolidação veio com o anúncio do primeiro caso de bebê
de proveta.
Dado isto, julho de 1978 é uma data simbólica. Nesse dia a gravidez sem relação sexual
deixou de ser uma possibilidade. Acontecia a primeira gestação completa a partir de um óvulo
fecundado artificialmente. Era o nascimento de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta.
Fruto das experiências dos médicos britânicos Steptoe e Edwards, o nascimento de
Louise Brown representou a base para o desenvolvimento biotecnológico da Reprodução Humana
Assistida (RHA). Após esse fato, o crescimento das tecnologias de RHA têm sido gigantesco. E em
1996 tornou-se possível a biópsia em embriões, permitindo-se fazer análises no mesmo em busca de
anomalias, como Síndrome de Down e hemofilia. Posteriormente, usando-se a biópsia do embrião,
tornou-se possível não apenas a descoberta de anomalias nestes, mas a correção por meio de
substituição do material genético com problemas por material saudável de doadores.
A novidade mais significativa da RHA é que ela representa o auge da aliança entre
ciência, tecnologia e capital. Aliança esta, que tem como interesse maior a aplicação desta
miscelânea à produção da vida e à manipulação dos componentes biológicos, e claro, o lucro, como
diz Gálvez (2003, p.111):

A tríplice aliança (ciência, tecnologia e capital) possibilita a massificação desses


serviços, não só mediante a crescente oferta de técnicas de RA e centros onde elas
são disponibilizadas, como também na colonização do imaginário das pessoas que
incluíram a RA como parte do repertório de possibilidades de escolha reprodutiva.
O número de bebês nascidos mediante estas técnicas tem crescido de maneira
acelerada nos últimos anos em todo o mundo.

Todos os serviços oferecidos pela ³tríplice aliança´ são baseados em pesquisas de


mercados e no imaginário popular, como qualquer outro tipo de mercado, com a vantagem da
popularização e curiosidade que movem a busca por serviços tecnológicos, fator que é intensificado
ao se fundir à tecnologia a ciência. Mas não exclusivamente. Há uma interferência bilateral entre o
Estado a a indústria médico-farmacêutica ou uma ³pactuação´, nas palavras de Mészáros (2002,
p.983-1011 ), entre o capital e o Estado para que esta massificação ocorra. Pois, assim como a
massificação da pílula anticoncepcional se deu graças aos discursos e gastos governamentais com
saúde reprodutiva da população, a massificação da RHA também precisa deles, principalmente
através dos anúncios e apelos veiculados pela mídia de massa.
15

Por exemplo. Entre os anos de 1990 e 1991, a Rede Globo de Televisão transmitiu a
telenovela chamada   "   na qual a trama central envolvia uma gravidez assistida. O
assunto tratado eram as conseqüências nas relações familiares dada a implantação e gestação do
embrião de um casal no útero alugado de uma outra mulher, a tecnicamente chamada ³Gravidez de
12
Substituição´ .
É interessante notar que esta telenovela foi transmitida durante um período no qual o
Brasil buscava representar-se como país do futuro, com projetos de modernização acelerada da
ideologia liberalista do governo Collor, ainda sob a influência dos ³50 anos em 5´ do governo
Kubitschek, que prometia a ascensão social por meio das relações de consumo.
Afirmamos que é interessante notar isto porque, se for verdade que as telenovelas são o
veículo mais popular de divulgação destas novidades, e a mídia a melhor garantia de popularização e
divulgação imediata das mesmas, não haveria de ser diferente com a RHA. Bastou a telenovela ir ao
ar, que mesmo onde as técnicas de RHA ainda nem estavam disponíveis, já havia um conhecimento
básico das mesmas, bem como uma disponibilidade para consumi-las. Sobre isto, por exemplo,
13
Gálvez (2003, p.23) cita uma pesquisa elaborada pelo Ministério de Saúde (MS) e pelo Cebrap na
qual a conclusão foi basicamente a mesma:
Em estudo exploratório, realizado nas cidades de Santos (SP) e Jacobina (BA),
foram incluídas algumas perguntas acerca do conhecimento da população sobre
RA. A maioria das pessoas entrevistadas(80%) declarou saber o que era
µinseminação artificial, fertilização in vitro, bebê de proveta ou barriga de aluguel¶. O
último termo, mais conhecido, possivelmente em função do título da telenovela, era
utilizado por esse seguimento para englobar as diversas técnicas de RA.
Surpreendeu às pesquisadoras, o amplo conhecimento desse tipo de práticas, em
locais nos quais esse serviço sequer estão disponíveis.

Na imprensa escrita a divulgação também foi significativa e cresceu proporcionalmente


ao aumento da aplicação das técnicas de RHA, da sua própria sofisticação, e mesmo das polêmicas
que o uso destas têm levantado. É tanto que, das notícias vinculadas na imprensa escrita sobre RHA,
Gálvez (2003) elaborou um gráfico que mostra como o número de matérias relacionadas ao assunto
aumentou à medida que as técnicas foram sendo mais diversificadas. Para essa autora, o número de
matérias publicadas cresceu ano após ano devido aos escândalos e polêmicas surgidos com o uso
dessas tecnologias, permitindo fazer uma ligação entre o aumento da divulgação da mídia e o
crescimento e consolidação do ³Mercado Reprodutivo´.
As matérias analisadas são todas do jornal " #  m  $ durante os anos de
1994 a 2001, conforme mostra o gráfico:
Gráfico 01: Número de matérias sobre RHA publicadas pelo jornal a #m $ ,
1994 a 2001

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16

Fonte: GÁLVEZ, 2003, p.28

O disparo na quantidade de matérias em 2001, quase o dobro do ano anterior, é


interpretado por Gálvez (2003, p. 29) como sendo produto das discussões sobre a possibilidade de
realização da clonagem humana, cujo destaque são as matérias especiais publicadas em dias dos
pais e das mães. Vale ainda lembrar, que neste mesmo ano a mesma Rede Globo de Televisão
exibiu outra telenovela, dessa vez voltada para o debate sobre a possibilidade de clonagem humana,
chamada Ô .
Essa telenovela rendeu à #  m  $ uma série de matérias, devido aos
equívocos passados ao público. Como por exemplo, há uma cena em que a mãe do clone explica a
avó dele que este não tinha pai por ter nascido de uma inseminação artificial. Segundo a colunista da
14
#m $ , Collucci (2000), essa cena serve para indicar a distância existente entre a nova
ciência e o conhecimento laico sobre o assunto. Justamente por isto, cabe perguntar, o que
realmente é vendido no ³Mercado Reprodutivo´? O que realmente ele tem a oferecer?

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Houve um tempo em que, quando questionados por seus filhos quanto à chegada destes
ao mundo, os pais contavam a famosa história da cegonha, que trazia os filhinhos feitos no céu pelos
anjinhos ao casal. A história poderia até durar alguns anos na mentalidade infantil, pelo menos até a
fase em que as crianças, então adolescentes, descobriam os percalços da gravidez indesejada. Ou
então, nas sociedades contemporâneas, quando estas, em idade escolar, tomavam contato com as
aulas de Educação Sexual. Desta vez, a opção era contar a história de que os pais se amam e,
depois de dormirem juntos algumas vezes, a criança vem ao mundo, passando antes alguns meses
na barriga da mãe. Com isto, a conversa constrangedora sobre sexo ficou mais simples, aposentando
a cegonha e sua fábrica de bebês.
Atualmente, tenta-se imaginar uma nova cena que é a curiosa imagem de pais de
crianças fertilizadas em laboratório tentando explicar a vinda de seus filhos ao mundo. Isto é, se já foi
embaraçoso falar que papai e mamãe tinham que dormir juntos para que nascesse o bebê, falar que

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17

o médico juntou um pedacinho de mamãe e um pedacinho de papai no laboratório, para três dias
depois o projeto de filhinho ser colocado na barriga da mamãe e começar a se desenvolver, e que,
além disso, todo esse processo custou em média R$ 15.000 soa no mínimo estranho. No entanto, é
justamente essa cena que nos interessa. Nela, a vida passa a ser uma questão de consumo, tanto
para os 20% dos casais que são atingidos pela infertilidade ou infecundidade, quanto pelos
constituintes dos 80% restantes que precisam, por qualquer que seja o motivo, selecionar alguma
característica genética de sua prole, de acordo com Oliveira (2001).
Esse consumo passa por diversas biotecnologias, todas envolvidas em uma relação
preço/eficácia, que podem ser divididas, segundo Barchinfontaine (2004, p.123), em métodos de
baixa e alta complexidade. Entre as tecnologias de baixa complexidade estão o Coito Programado e a
Inseminação Intra-Uterina (IIU). Essas tecnologias carregam a vantagem de terem custos reduzidos e
não exigirem a sua execução em um centro exclusivamente dedicado à RHA. Porém, são indicadas
apenas para casos simples, nos quais o casal separadamente não apresenta limitação e
r produtiva,
mas que por motivos ainda não explicados pela Medicina não conseguem êxito na fecundação. Já as
tecnologias de alta complexidade são compostas basicamente pela Fertilização    (FIV) e a
15
Injeção Intracitoplasmática de Espermatozóide (ICSI) . Estas são assim chamadas por envolver
durante o processo outros procedimentos, as chamadas técnicas auxiliares.
O Coito Programado é feito mediante estímulo hormonal, com utilização de
medicamentos, no qual o organismo feminino é estimulado a ovular. Sendo assim, os gastos com a
aplicação desta técnica se concentra na aquisição dos medicamentos específicos para esse fim. Por
conta disso, a divulgação desta técnica tem sido trabalhada simultaneamente à propagação dos
medicamentos. Ora, ao associar a eficácia do medicamento ao sucesso da técnica, este passa a
incorporar a tecnologia fazendo com que a forma ideológica do consumo de RHA seja também um
consumo de determinados fármacos. A própria indústria farmacêutica se encarrega dessa
associação.
Nesse sentido, a indústria farmacêutica, por meio das parcerias entre os laboratórios e o
médico, procura interferir nas tecnologias de RHA, inclusive na sua indicação ou até mesmo nos
diagnósticos, o que é bastante sério do ponto de vista da Bioética. Collucci (2006), por exemplo,
divulgou que os especialistas da área de RHA estariam recebendo comissões de laboratórios por
receitar determinados medicamentos. Segundo essa jornalista, em sete locais de venda de um
mesmo produto, dependendo do nome do médico indicado, os preços variam de R$ 2 a R$ 20. É o
caso do Gonal-F, que estando entre as drogas de maior circulação, tem mutação de preço por
médico, de R$ 143,00 a R$ 158,00 a ampola. Destaca-se ainda que os gastos com RHA podem
representar até 50% de todo o tratamento, o que varia de R$ 6.000,00 a R$ 20.000,00 por tentativa.
Em nota enviada ao jornal, após a circulação da reportagem realizada por Collucci
(2006), o laboratório Serono, fabricante do medicamento, diz que a diferença de preço se dá por
conta da variação do volume de medicamentos negociados com cada distribuidor, e que por conta
disso essa variação fica a cargo das leis de mercado e das agências regulamentadoras:

(...) a diferença de preços entre distribuidores podem ocorrer, da mesma forma que

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- E intracytoplasmatic Sperm injection
18

se observam em outros canais de distribuição farmacêutica, como por exemplo, nas


farmácias e drogarias. Em nenhum caso o preço praticado pelo distribuidor pode
ser superior ao chamado µpreço máximo ao consumidor¶, regulado pelas
autoridades brasileiras competentes na alçada do Ministério da Saúde (FOLHA DE
SÃO PAULO, 12 02.06).

Apesar disto, o Serono não quis se pronunciar com relação aos possíveis acordos
feitos com médicos em troca de prescrição dos seus medicamentos.
Já a técnica de Inseminação Intra-Uterina (IIU) é indicada para mulheres com
doenças inflamatórias pélvicas e homens com oligospermia. A sua comercialização envolve maiores
custos que o Coito Programado, pois pode envolver diversos procedimentos anteriores à implantação
do sêmen ou dos espermatozóides no útero, tais como a preparação em laboratório do
espermatozóide ou sêmen. A IIU também pode utilizar medicamentos para estimular a ovulação em
prol de maior percentual de sucesso da técnica. Justamente por isso a sua divulgação se liga tanto à
propagação de medicamentos quanto ao milagre que pode ser produzido em termos de RHA. Nesse
sentido, como indica Gálvez (2003, p.126), ³os medicamentos e a intervenção médica tornam-se
condições imprescindíveis para sua realização´. A figura 03 pode ser um exemplo disto.
Figura 01: Propaganda Serono: o milagre que precisa de ajuda

Fonte: Gálvez, 2003, p.128.

A técnica Fertilização     (FIV), que custa em média R$ 15.000, consiste na


fertilização do óvulo pelo espermatozóide em laboratório. Após vinte e quatro a vinte e oito horas os
pré-embriões com quatro a oito células são transferidos para a cavidade uterina. No processo de FIV
acontecem no mínimo cinco procedimentos auxiliares, a saber, a estimulação da ovulação, a coleta
19

dos óvulos, a manipulação dos gametas, a transferência dos embriões e por fim o suporte de fase
lútea. Este processo é o carro-chefe do ³Mercado Reprodutivo´, uma vez que por seu uso desde o
nascimento de Louise Brown, se abriu um novo nicho de mercado.
No Brasil, essa tecnologia foi estreada publicamente com o caso Pelé, representada na
forma de um milagre da Medicina, conforme observamos em Gálvez (2003, p.143):

(...) a tecnologia supera a natureza ou, como apontou o Dr. Roger na


teleconferência, as chances de gravidez seria 3 vezes maior do que a natureza
³oferece´. Esses valores são usados para justificar a inclusão e desenvolvimento de
tecnologias consideradas auxiliares ± biópsia pré-implantacional, assisted hatching,
criopreservação, etc. na perspectiva da clínica, os resultados superiores dessa
técnica favorecem sua adoção como rotina em qualquer situação.

O terceiro passo da FIV, a ICSI, outra técnica reprodutiva inaugurada em 1988 após
pesquisas desenvolvidas por cientistas belgas, é atualmente a grande solução para a infertilidade ou
infecundidade masculina. Antes da sua descoberta esse passo era executado na FIV da mesma
forma que na IIU.
É necessário ressaltar ainda que, além das tecnologias de fecundação propriamente
dita, foram desenvolvidas, a partir dos anos 80, as técnicas auxiliares na fecundação, que visam
principalmente a garantia da qualidade do embrião. Entre estas estão a "˜˜˜  ' # (AH), a
remoção de fragmentos dos embriões e o diagnóstico genético pré-implantacional.
A mais polêmica das técnicas auxiliares de RHA tem sido o diagnóstico genético pré-
implantacional, popularmente conhecido como biópsia de embrião. Trata-se da análise das alterações
genéticas do pré-embrião podendo levar a três aplicações básicas, a saber, a ³sexagem´, a
detectação de anomalias cromossômicas estruturais e a correção de defeitos genéticos envolvendo
um único gene como, por exemplo, a fibrose cística, a hemofilia, a anemia falciforme, entre outras.
Enfim, são com estas tecnologias que o ³Mercado Reprodutivo´ vem propiciando o que chama de
³Mercantilização da vida´, bem como possibilitando a projeção de novos seres humanos
geneticamente modificados.
Essa mercantilização reforça e é reforçada tanto por esse avanço tecnológico das
técnicas manipuladoras da produção e reprodução da vida quanto pela propaganda que se faz ao seu
redor. Para se ter uma idéia disto, as chances de sucesso das tecnologias de RHA quando nasceu
Louise Brown, em 1978, era de 5%, e atualmente, segundo a Sociedade Brasileira de Reprodução
16
Assistida (SBRA) já está em torno de 30%. Inclusive há clínicas mais otimistas que prometem de
50% a 55% de chances em mulheres de até 35 anos, como é o caso da Clínica Abdelmassih, que
divulga em seu site uma taxa de sucesso, com base em dados de 2007, de até 55%, como mostra o
gráfico 02.

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Gráfico 02: Taxa de sucesso de RHA em 2007 da Clínica Abdelmassih

Fonte:
www.abdelmassih.com.br/tr_taxas_de_sucesso.php

De acordo com o site da Clínica, esse levantamento foi feito sem qualquer tipo de
seleção de pacientes, bem como sem levar em consideração as técnicas aplicadas, tendo como
ponto importante apenas a idade das mesmas. Essa informação funciona como (  comercial
tanto da clínica quanto da própria tecnologia, pois, as tecnologias de RHA desenvolvem-se na mesma
proporção que a taxa de êxito das suas aplicações. No entanto, falar de sucesso ou fracasso das
tecnologias de RHA é apenas parte de um discurso mercantil que envolve múltiplas determinações.
Dentre estas, podemos destacar algumas, tais como: o tipo da tecnologia, as indústrias envolvidas,
os desejos e o poder aquisitivo do casal, as leis locais e a massificação do sonho da reprodução
assexuada.
Somando-se a isto a divulgação dos casos bem-sucedidos dos usos das tecnologias de
17
RHA por personalidades públicas , fica evidente a ³ajuda´ proporcionada pela mídia à consolidação
dessas tecnologias como ³bem de consumo´, ou melhor, como ³mercadoria´. Assim, tão desejável e
popular, o ³Mercado Reprodutivo´ procura estampar em sua bandeira as idéias de reprodução como
consolidação de família e, principalmente, como a RHA pode proporcionar a segurança e a
tranqüilidade, produzindo uma prole sem defeitos genéticos. No entanto, sendo a RHA apenas mais
uma ³mercadoria´ disponível na ³Sociedade de Consumo´, é importante que esta também contenha
valores e significantes somados às necessidades individuais. Ou seja, é necessário que a
³mercadoria´ RHA seja um ³Bem-Simbólico´, caindo no seu fetichismo.

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O ³fetiche´ é um ídolo, um objeto inanimado ou animado ao qual se atribui poderes


sobrenaturais, é algo enfeitiçado que tem poderes inexplicáveis. Marx (1989) o postulou para explicar
o porquê do surgimento e da consolidação do mercado como melhor alternativa para a provisão e
distribuição de riquezas. É assim que ele propôs no ³fetiche´ a base do sucesso da ³mercadoria´, que
por sinal, o toma forma reflexa do próprio trabalho:
Reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como
características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades
naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos
produtos com o trabalho total como uma relação existente fora deles, entre objetos
(MARX, 1989, p.159).

Nesse sentido, o ³fetiche´ aparece na ³mercadoria´ apenas durante, ou no processo de


troca. Com as palavras do próprio Marx (1989. p.71):
Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca de seus
produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos
privados só aparecem dentro dessa troca. Em outras palavras, os trabalhos
privados só atuam de fato, como membros do trabalho social total por meio de
relações que a troca estabeleceu entre produtos do trabalho e, por meio dos
mesmos, entre produtores.

Em síntese, o ³fetiche´ é o motor do processo de troca. É a ³fantasia ideológica´ que


envolveu misteriosamente a ³mercadoria´ de poderes sobrenaturais.
No caso específico da ³mercadoria´ RHA, o ³fetiche´ revela a preocupação do indivíduo
em dar a resposta que a sociedade capitalista espera dele, de acordo com o papel social que lhe é
atribuído. Dessa forma, o motor do processo de aquisição das tecnologias de RHA, pode ser a
constituição familiar, a realização feminina ou a prova da masculinidade, entre outros. Isto porque a
idéia tradicional de família, socialmente construída nas sociedades capitalistas ocidentais cristãs, é
18
composta, prioritariamente , por um homem, uma mulher e os filhos oriundos desse relacionamento.
Sendo assim, acredita-se que a concretização deste modelo somente é completa quando o casal traz
um filho ao mundo, como coloca Neto & Franco (1998, p.114):

A ausência de filhos fragiliza a estrutura familiar e influi na relação entre os


cônjuges. É comum as separações de casais que não podem conceber. E cada um
dos participantes procura acreditar que o µdefeito¶ é do outro, em uma busca
desesperada para livrar-se da maldição da esterilidade.

Essa discussão perpassa não só a fuga dos cônjuges da infertilidade, mas também o
debate voltado ao desejo de filhos, como coloca Corrêa (2001, p.74):

Discutir a reprodução assistida a partir do desejo não realizado por filhos obriga,
portanto, a acolher na discussão uma sucessão de tensões e paradoxos. Tudo
seria mais simples se ter filhos fosse um desejo natural que guiasse os
³socialmente adequados´ à reprodução. O paradoxo, aqui, é que se o
desenvolvimento de filhos é visto como ³natural´, como parte da natureza humana,
como explicar que sua expressão esteja restrita aos indivíduos acasalados de
forma monogâmica e heterossexual ± uma forma bem estabelecida de construção
social. Por outro lado, se esse desejo é visto, ao menos em parte, como fruto de
condicionantes socioculturais ligados ao simbolismo do laço familiar, da linhagem e
da descendência, da continuidade individual, como justificar sua exclusão da vida

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22

de solteiros ou de homossexuais, em sociedades como as nossas?

Dado isto, é importante ressaltar que mesmo sendo construída recentemente como um
problema do casal, a resposta para a infertilidade, ou seja, as intervenções biotecnológicas, é
realizada no corpo das mulheres. E isso retoma, segundo Corrêa (2001), imediatamente a idéia de
realização feminina dependente da maternidade.
Recorrer ao ³Mercado Reprodutivo´ é a maneira mais prática que a mulher moderna,
realizada profissionalmente, financeiramente e até conjugalmente, encontra para realizar-se
maternalmente. E, obviamente, o próprio ³Mercado Reprodutivo´ aproveita-se desse discurso para
justificar a necessidade de sua existência, como explica Gálvez (2003, p.198): ³A realização das
mulheres modernas que querem expandir os limites da natureza, para dar lugar a sua realização
maternal, conjugal, financeira e profissional é uma retórica que justifica a necessidade dessas
intervenções´.
No caso da mulher, a infertilidade foi, na maioria das vezes, tratada como fatalidade, ou
mesmo, segundo Costa (2006, p.179), ³como um obstáculo à realização do que seria uma meta
essencial da vida´. O estigma sob a mulher era tão forte que se descartava a possibilidade da
infertilidade ser uma limitação por parte do homem. Em alguns casos, elas assumiram a ³culpa´ pela
infertilidade do casal para não machucarem seus maridos, quando se deparavam com o diagnóstico
de infertilidade masculina. No entanto, quando finalmente passou-se a aceitar que o homem podia ser
a causa da falta de filhos de um casal, contornar essa situação passou a ser, entre outras coisas, a
possibilidade de fornecer uma prova de masculinidade.
Isto não tem sido fácil, segundo pesquisas atuais o casal tem 20% de responsabilidade
na infecundidade, o homem e a mulher têm 40% cada um. Ou seja, o homem e a mulher estão em
par de igualdade quando o assunto é limitação reprodutiva. Porém, sendo o corpo feminino a sede do
processo reprodutivo humano, de acordo com Corrêa (2003, p.74), não só o corpo feminino é
comprometido, mas também o controle da sexualidade, da maternidade, e ainda, da responsabilidade
primordial da mulher na educação e socialização das crianças. Desta forma, o elemento motor no
consumo das técnicas de RHA vem ultrapassando o simples desejo individual por filhos e parece
evidenciar, de acordo com Corrêa (2003, p.75): ³uma rede sociotécnica atual que se soma aos
condicionantes sociais mais tradicionais´. Não se trata apenas de reparar a infertilidade, mas,
também, de uma miscelânea de ³fetiches´, envolvidos na mercadoria RHA, e reconhecidos
socialmente, o que culmina em práticas sutis de ³Eugenia´ que trata os filhos como ³Bens-Simbólicos´
dos pais.


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A primeira vez que se ouviu falar em ³Eugenia´ dentro das ciências médicas foi em 1985
quando o autor do termo, Francis Galton (1822-1911) lançou o livro ' ) *    +˜,
que tem como idéia central a defesa de que a inteligência é hereditária e não fruto da ação ambiental.
Em termos gerais, segundo Schramm (1997, p.1), a ³Eugenia´ é a ciência que estuda as condições
23

mais propícias à reprodução e melhoramento da espécie humana, e sua forma contemporânea é


denominada ³Eugenética´, que por sua vez, representa o encontro entre Genética, Biologia Molecular
e Engenharia Genética.
Existe, ainda segundo Schramm (1997, p.02), duas formas distintas de ³Eugenia´ (ou
³Eugenética´), a saber, a ³Eugenia negativa´, que se ocupa em prevenir e curar doenças e
malformações de origem genéticas, e a ³Eugenia positiva´, que visa melhorar as competências
humanas, como a inteligência, a criatividade artística, traços relacionados a caráter, entre outros.
A RHA tem se mostrado o melhor método para fazer acontecer tanto a ³Eugenia
negativa´, quanto a ³Eugenia positiva´. Evitar genes defeituosos antes do nascer, ou seja, praticar a
³Eugenia negativa´, já é um consenso entre a população e não tem rendido grandes problemas ou
questionamentos morais. Tanto é que o Discovery Chanel, divulga em documentário de 2005, !,""
 ˜˜   &  que 42% dos americanos e 80% dos dinamarqueses concordam em saber,
através de técnicas reprodutivas, sobre a saúde de seus embriões antes de suas gestações. Porém,
no que se refere a ³Eugenia positiva´, as questões morais são sempre mais polêmicas. No mesmo
documentário, o Discovery Chanel, divulga que 78% dos ingleses não teriam filhos se soubessem
que estes teriam riscos de nascerem com doenças. O problema está em como uma sociedade, com
aceitabilidade voltada somente para pessoas saudáveis e inteligentes, aceitaria crianças que, por
algum motivo, viessem a nascer com problemas genéticos, como a Síndrome de Down, por exemplo.
O fato é que, desde a descoberta do DNA em 195319, a Medicina Preventiva ganhou
impulso em termos de prevenção de doenças envolvendo genes específicos. Esta tem apresentado a
possibilidade de se calcular, por meio de árvores genealógicas, os riscos que o sujeito tem de herdar
uma doença, e não apenas diagnosticar o risco da doença, bem como cuidar para que este não
venha a ter problemas com ela no futuro. Nesse sentido, em prol da prevenção de doenças, pré-
embriões vêm sendo analisados antes de sua inplantação no útero, sendo que, de cada 11 pré
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embriões coletados, normalmente 10 amostras são analisadas, e delas, pelo menos metade estão
saudáveis e metade afetadas. Das saudáveis, pelo menos uma será implantada no útero da mulher
que buscou o tratamento, as outras quatro, podem acabar em algum banco de embriões. Porém, os
demais serão simplesmente descartados.
Um percetual que surpreendeu as pesquisas divulgadas no documentário do Discovery
Chanel foi o de que 90% dos brasileiros concordam que pais possam ter um filho para curar um irmão
já doente, esperando por transplante. Nesse documentário é apresentdo o argumento de que os
casais têm filhos por diversos motivos, seja para salvar o casamento, seja por desejo de um dos
cônjuges, ou mesmo por acidente (o que acontece aos montes no Brasil, diga-se de passagem). Ter
um filho para salvar outro, diz o médico entrevistado, seria o motivo mais nobre dentre todos esses. O
problema, não mencionado, no entanto, é o poder financeiro e a indústria médico-farmacêutica
necessários para que esses pais possam conceber eugenicamente uma criança para salvar outra.
Existe ainda outro problema levantado com a possibilidade da ³Eugenia´. Trata-se do
fato de que, seguindo a lógica de consumo, o número de exigências e necessidades se multiplicam

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24

podendo facilmente atingir o nível de intolerância com relação aos bebês com ³defeitos de
fabricação´, como resalta Gálvez (2003, p.55): ³Em outras palavras, e apelando à linguagem
comercial, o cliente só leva o produto se ele está em bom estado e satisfaz suas necessidades ou
desejos´. E isto não é mais ficção. Já ocorreram fatos nos quais os bebês ³imperfeitos de fábrica´
foram parar em tribunais e devolvidos aos pais biológicos (ou melhor, aos pais de onde sairam os
gametas). Um exemplo, foi anunciado pela #  m  $ (17.09.2002), em que um casal
branco londrino recorreu à Suprema Corte Inglesa contra uma clínica de RHA, tendo em vista que
tiveram um casal de filhos negros, após serem submetidos a FIV. Ficou a cabo da justiça determinar
o culpado e abrir caminho para as indenizações.
Segundo esse jornal, o equívoco pode ter acontecido por coincidência. Isto porque,
na mesma época em que o casal branco procurou a clínica, um casal de negros fazia tratamento para
também ter um filho, mas por Inseminação Artificial (IA). A hipótese de erro é a de que na fase da FIV
quando o espermatozóide fecunda o óvulo antes da implantação no útero pode ter sido usado o
espermatozóide errado para fertilizar o óvulo certo. De qualquer forma, o caso foi analisado e julgado
em segredo de Justiça. Soma-se a essa polêmica, o fato de que, conforme diz o jornal, ³segundo a
Lei de Fertilização Humana e Embriologia britânica, uma mulher que dá à luz um bebê por fertilização
  (FIV) é considerada sua mãe legal, mesmo se o óvulo não for dela´ (FOLHA DE SÃO PAULO,
17.07.2002).
Enfim, a biópsia de embriões tornou totalmente possível a fabricação e seleção de
bebês, e, ao que parece, é apenas uma questão de tempo até que as pessoas consigam digerir a
idéia e comecem a particar ³Eugenia´. Não é a toa que os médicos já vem pouco a pouco sugerindo
essa técnica, primeiro por motivos de doenças hereditárias, depois, sabe-se lá pelo que mais. Os
cientistas, por sua vez, apresentam em grande velocidade novos caminhos para a Medicina
Preventiva e para a RHA, o que torna a combinação de possibilidades de manipulação de caracteres
não só uma realidade, mas, igualmente, uma ³mercadoria´ que se oferece à venda. Assim,
definitivamente, o ³Mercado Reprodutivo´, embalado pelo sonho de escolher o melhor para si e para a
prole, ganha terreno no antigo território do natural, cobrindo ofertas que atendem desde o sexo sem
procriação à procriação sem sexo.
Ora, a funcionalidade da ³mercadoria´ RHA é facilmente encontrada na possibilidade de
reparo em homens e mulheres não-férteis ou casais infecundos. Já o simbolismo agregado à
funcionalidade desta mercadoria remete-nos aos desejos destes casais que se encontram além das
ditas necessidades de um filho. Tais desejos, seguindo a dinâmica do ³Bem-Simbólico´, parecem
ultrapassar a realização simplista do desejo de ter um filho com as características genéticas dos pais.
Tendem, em verdade, a emergirem dos signos relacionados aos elementos culturais e do ³diferente
personalizante´, aos quais Baudrilhard (2007) faz referência.
Nesse sentido, desenvolve-se na ³mercadoria´ RHA os desejos de produção de filhos
selecionados, com características físicas condizentes com o que a cultura em questão considera
atraente, com o sexo que mais agrada aos pais, com garantia da ausência de anomalias genéticas,
entre outras. Pois, desde que se tornou possível analisar tanto o pré-embrião quanto o embrião
através de biópsias, a seleção de características do filho a ser gerado a partir desta técnica tem sido
25

inevitável. Quer seja por necessidade de se evitar doenças congênitas, como a hemofilia, quer seja
por mero capricho dos pais, o fato é que a ³Eugenia´ tem sido a face moral da RHA. Desde então,
não basta a possibilidade de um filho, é necessário que este venha, por exemplo, com os olhos azuis
como o pai, os cabelos castanhos como os da mãe, e assim por diante, até se projetar o filho de
acordo com as fantasias progenitoras, como comenta Oliveira (2001, p.104):
O desejo de uma prole ³carne de minha carne´ e ³sangue do meu sangue´ é o
motor da indústria de bebês de proveta, que auxiliado pela busca de ³bebês sem
defeito de fabricação´ cria o caldo de cultura perfeito para práticas discriminatórias
quanto a sexo, aparência física (³raça´ ou ³grupo étnico´) e, preferencialmente,
inteligência máxima.

O documentário do Discovery Channel reserva um de seus capítulos para tratar da RHA,


mais especificamente, da possibilidade de seleção de características do embrião. Ele joga com
imagens que seriam uma suposição do futuro, no qual um casal ao aderir aos serviços de uma clínica
de RHA pode, junto ao profissional, projetar o seu filho. Na figura 05, retirada do documentário, o
casal e o profissional selecionam a cor dos olhos do bebê.
Figura 02: Seleção da cor dos olhos

Fonte: Discovery Chanel, 2005


Por essa técnica, diferente do que pensou Huxley (2007), os bebês do futuro não
estariam expostos em uma prateleira para serem escolhidos e comprados por seus pais, mas antes,
seguindo o ritmo da ³Sociedade de Consumo´, eles podem ser projetados e imaginados antes mesmo
da fecundação. Voltando ao documentário e as suas imagens do futuro, o profissional da clínica após
receber as informações dos pais das características desejadas, apresenta-lhes a projeção da imagem
do protótipo do bebê-mercadoria que irá nascer.
Figura 03: Formação da imagem do protótipo do bebê.
26

Fonte: Discovery Chanel, 2005.


O caso da escolha do sexo do embrião (³sexagem´) é outro signo agregado à RHA, visto
que a sua escolha não traz em si a simples necessidade de procriação, mas um conjunto de valores
envolvidos nessa escolha. A #  m  $ anunciou, em outubro de 2006, que 40% das
clínicas dos Estados Unidos oferecem aos clientes a possibilidade de ³sexagem´, mesmo sendo esta
recriminada pela maior parte dos Comitês de Bioética daquele país. Segundo a reportagem, a
³sexagem´ pode ser considerada em alguns casos, especialmente quando existem riscos de doenças
genéticas ligadas a cromossomos sexuais, tais como a hemofilia. Porém a maior ³parte dos testes
realizados partem da vontade dos casais em determinar o sexo dos filhos´, diz o jornal.
No Brasil, não há lei que impeça essa prática, apesar de o Conselho Federal de
Medicina (CFM) condená-la, por meio da Resolução 1.358/92, e o MS, por meio da Resolução CNS
196/96, procurar regulamentar as pesquisas envolvendo as tecnologias de RHA20. No entanto,
denuncia Oliveira (2001, p.105), nada impede que o hábito de preferir meninos prevaleça, afinal, ³(...)
nascer homem é importante em quase todas as culturas´. Assim, sem legislação, as clínicas de RHA
continuam a oferecer esse serviço tendo em vista os apelos da clientela, como aconteceu nesse
caso:

Edson Borges21 viveu uma de suas mais chocantes experiências profissionais. Ao


comunicar ao casal de pacientes o sucesso as segunda tentativa de fertilização in
vitro, esperava uma explosão de alegria diante dos três embriões saudáveis, do
sexo feminino, prontos para serem transferidos para o útero da mulher. Mas ao
ouvir a notícia, o marido da paciente disse apenas: ³pode jogá-los fora´. Ele queria,
sim, um bebê desde fosse menino. Borges ainda tentou convence-lo a, ao menos,
congelar os embriões, mas enquanto falava ele já se retirava da clínica, sua mulher
o seguia aos prantos (OLIVEIRA, 2001, p.106).

Nesse sentido, a determinação do sexo torna-se um signo que pode estar ligado a
valores machistas, ou o que quer que seja, e os médicos acabam cedendo às preferências dos pais
por este ou aquele sexo, como diz Nagy (  OLIVEIRA, 2001, p.16): ³a determinação do sexo só
deveria existir a partir de uma justificativa bem específica. Mas muitas vezes os médicos cedem ao

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apelo dos pais por este ou aquele sexo´.


Em se tratando de anomalias genéticas, a quimera é tanto por tentar evitar o nascimento
de uma criança com problemas congênitos, como a Síndrome de Down ou a hemofilia, quanto por
tentar preservar um mal genético de família. Como vem acontecendo nos Estados Unidos, onde,
segundo reportagem da #m $ (12.12.2006), uma pesquisa sondou 190 clínicas de RHA
nas quais 3% dos clientes haviam selecionado embriões com defeitos genéticos como forma de
manter as crianças mais próximas dos pais. Segundo este jornal, a solicitação tem partido de casais
com nanismo ou surdez hereditária e que tratam suas anomalias como traços culturais, e não
exatamente como doença. A reportagem faz uma colocação importante, ³(...) nenhum dos médicos,
porém, se opõe a encaminhar um casal que solicita o serviço a outros que o façam´ (FOLHA DE SÃO
PAULO, 12.12.2006).
Em síntese, a procura pelos serviços citados, sem justificativa funcional, revela
claramente o aspecto da RHA enquanto ³Bem-Simbólico´, revelando nessa mercadoria valores e
símbolos que já mostram indícios de reconhecimento social, à medida que os próprios médicos,
responsáveis inclusive moralmente pela propagação de tais serviços, concordam com o pedido dos
clientes e atendem prontamente à solicitação. Este reconhecimento social está diretamente ligado às
representações sociais da ³mercadoria´ RHA, que por sua vez remete ao seu caráter fetichista, e que
são de alguma forma o móvel para a sua aquisição.

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A série de métodos biotecnológicos que possibilitaram a realização de gestação que não


aconteceriam espontaneamente, não parece ser apenas uma alternativa para resolver a ausência
involutária de filhos. Ou ainda, a possibilidade de configurar famílias co-sangüíneas. Mas trata-se
também, segundo Gálvez (2008, p.39), de comercialização, fabricação e seleção de filhos com as
características que os pais desejam.
No que se refere a comercialização de filhos, não apenas os lucros obtidos pelas clínicas
22
com as biotecnologias propriamente ditas e os ³Parcelamentos da Cegonha´ representam a relação
comercial do ³Mercado Reprodutivo´. Existem também dois fenômenos ± modos de comercialização ±
essencialmente relacionado às práticas de RHA e que surgiram com esse advento: o comércio de
óvulos e espermatozoides e a ³gravidez de substituição´ conhecida como ³barriga de aluguel´.
Os Estados Unidos foram o primeiro país a considerar legal o comércio de células
reprodutivas. Ali, encontramos páginas na internet de clínicas reprodutivas oferecendo até US$ 15 mil
23
(aproximadamente R$ 24.000 ) por óvulos de mulheres com características físicas e intelectuais
consideradas razoáveis.
No Brasil, é permitida a doação de óvulos e espermatozóides, no entanto, como essa

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doação é regida apenas pela Resolução CFM 1.358/92 , já é comum denúncias em jornais contra a
compra e venda de óvulos e espermatozóides por clínicas especializadas em RHA. A #m 
$ , por exemplo, denunciou em fevereiro de 2006, a troca de óvulos por #( ˜. Na
reportagem, algumas mulheres disseram ter recebido de R$ 800 a R$ 1.500, em dinheiro, pela
³doação´ dos óvulos. Segundo o jornal, jovens universitárias vêm sendo recrutadas por clínicas de
reprodução para doar óvulos a mulheres acima de 40 anos com problemas de infecundidade o
u
infertilidade. Em troca recebem #( ˜ ginecológicos e métodos contraceptivos. Em outros casos,
diz a matéria da #  m  $  (fevereiro.2006), ³a mulher que precisa do óvulo paga o
tratamento da doadora, em geral uma jovem que precisa de fertilização     pois o marido é
infértil´.
25
Abdelmassih confirmou nesta matéria a presença, na época, de 30 universitárias
cadastradas em seu banco de ³doadoras´, com idades entre 23 a 26 anos. Segundo o médico, elas
são abordadas nas universidades por assistentes sociais que lhes propõem uma avaliação de suas
fertilidades: ³Além de saciar a curiosidade de saber se são férteis, Abdelmassih alega que as jovens
doam por altruísmo´ (FOLHA DE SÃO PAULO, 12.02.2006) Mas, mesmo com o altruísmo defendido
por Abdelmassihr, elas levam seus contraceptivos para casa e querem seus #( ˜. Nesse
sentido, mesmo com as ³doações por pareamento´, que são poucas em relação à demanda, o que a
matéria da #  m  $ indica é um comércio de gametas visível, visto que doação não
pressupõe qualquer tipo de retorno, quer seja contraceptivos ou R$ 800.
Já a popularmente conhecida ³barriga de aluguel´ tornou-se um negócio altamente
rentável no ³Mercado Reprodutivo´, mesmo sendo proibida na maioria dos países, como mostra a
tabela abaixo:
Tabela 01: A prática da ³barriga de aluguel´

Fonte: Revista 01, 7 de maio de 2008.


Como se verifica na tabela 01, no Brasil, o uso de uma ³barriga substituta´ só é permitido
entre pessoas com vínculos familiares e, em alguns Estados, entre não-parentes, desde que a
locação seja em caráter solidário, ou seja, sem envolver qualquer tipo de pagamento. Contudo a
colunista da revista 01 Lopes (2008), denuncia que ³na prática, a história é outra. Dos 170 centros
brasileiros de mercadoria reprodutiva, 10% oferecem a seus clientes um cadastro de mulheres
dispostas a locar seu útero´ (LOPES, 2008).

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Na internet são divulgadas gratuitamente as ofertas e procuras de locação. Em geral, por


motivos econômicos, da parte de quem pretende locar seu ventre, por outro lado, por questões
afetivas e desejo de filhos, da parte de quem predente ser inquilino de uma barriga. As mensagens
sempre se encaminham para a divulgação das características físicas e intelectuais das pretendentes
a locatárias de barriga, como mostra a mensagem na Figura 08:

Figura 04: Mensagem da Internet ± aluga-se barriga

Fonte: http//inforum.insite.com.br/540204/atom_xml/

Em países como a Índia, onde a prática da ³gravidez de substituição´ é permitida, ela


chega a ser encarada pelas indianas como um emprego, de modo a serem freqüentemente
procuradas por casais estrangeiros, tanto pela facilidade de negociação neste país quanto pelo baixo
custo do aluguel, que gira em torno de US$ 7.000 (R$ 17.136, aproximadamente). No Brasil, onde a
sua comercialização não é permitida, o custo de nove meses de aluguel varia em média de R$
40.000 a R$ 100.000, segundo a matéria da 01
O negócio no ³Mercado Reprodutivo´ anda tão bem que se fala em ³turismo reprodutivo´.
Na Índia, pelos motivos, aqui já descritos, e, no Brasil, segundo matéria da #  m  $
(12.06.2005), por conta do baixo custo dos procedimentos (em relação aos preços praticados na
Europa e nos Estados Unidos), e, principalmente, devido a uma maior permissividade à realização de
técnicas proibidas em outros países. Em síntese, o que acontece com o Brasil não é exatamente a
ausência de leis, diz o jornal, existem regras e normas bem claras com relação a alguns
procedimentos, o problema é que não existe fiscalização.
Dado isto, além de divulgar a prática da ³barriga de aluguel´, as clínicas também têm
sido responsáveis pela intermediação entre as envolvidas. Os médicos sugerem às suas pacientes,
diante de frustrações com tentativas de FIV, a locação e apresentam-lhe o banco de dados dos
classificados dos sites. Como ocorreu com o caso divulgado pela mesma matéria da 01 citada
acima:

O maior desejo meu e de meu marido sempre foi um filho. Durante dez anos, tentei
engravidar, mas sofri três abortos. Foi meu ginecologista que me falou sobre a
barriga de aluguel. Aceitei na hora. Era a única possibilidade de termos uma criança
com nossas características genéticas. Aliás, o bebê é a cara do meu marido. A
gravidez foi muito tranqüila. A menina que serviu de barriga de aluguel foi muito
honesta. Ela se cuidou durante todo o tempo, pensou na saúde do meu filho ± e
apenas isto. Eu era a mãe e exerci esse papel durante toda a gravidez. Era eu que
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agradava a barriga, conversava com o bebê, cantava para ele... Com meu marido
foi diferente. Ele não quis conhecer a moça. Na hora do parto, eu estava e meu filho
veio diretamente ara os meus braços. Foi uma sensação indescritível. A moça, por
sua vez, não quis ver a criança. Ela virou o rosto para o outro lado. Depois disso,
nunca mais nos vimos. (LOPES, 2008).

Não resta dúvidas quanto à existência do livre comércio reprodutivo, e mais


especificamente, da vida, através da utilização de mecanismos como a ³doação´ de gametas ou a
³barriga de aluguel´. Ambos os procedimentos têm envolvido acordos relativos a valores, quer sejam
eles exames de comprovação de fertilidade, ou mesmo R$ 100.000. Independente da finalidade da
comercialização, trata-se de compra e venda de ³mercadoria´ da mesma forma que se compra e
vende outros bens e serviços.
Nesse sentido, as mudanças ocorridas, tanto na forma de produção quanto na forma de
consumo, introduzem uma nova perspectiva à vida humana, que é a possibilidade de fabricação da
própria vida, a partir das tecnologias, do desenvolvimento científico e do livre comércio. E assim,
como defende Gálvez (2003, p.179), temos uma nova geração, os ³tecno-filhos´, gerados a partir do
desenvolvimento tecnológico e a ³mercantilização da vida´:

Os tecno-filhos são oferecidos como os produtos de um processo mecânico, que


produz bebês socialmente desejáveis, descartando os aspectos não desejados da
onto-humanidade. O dom da vida, a dádiva do filho, aquilo que faz bater o coração
mais rápido, obscurece a forma mercantilista como eles são oferecidos. A vivência
da gravidez, a experiência de ter um filho genético, converteu-se em mercadoria:
um sonho a ser estimulado, que requer mediação médica e tecnológica para sua
realização.

Segundo pesquisa desenvolvida pela Discovery Chanel, apesar de em países como a


Dinamarca 80% da população concordarem em saber se os embriões que pretendem gestar são
saudáveis ou não, quando perguntados pela projeção de bebês, tanto a Dinamarca como outros
países onde foi aplicada a pesquisa (como, por exemplo, Inglaterra, Estados Unidos, Brasil e
Turquia), 83% do total de entrevistados (em todos os países), concordam em usar a tecnologia
genética apenas para fins médicos, mas não para decidir cor de olhos, cabelos, inteligência, ou
outras características que remontem a fabricação de bebês. Ou seja, mesmo com a população ainda
em processo de aceitação do desenvolvimento da ³Engenharia Genética´, sistematicamente tem-se
trabalhado a aceitação da clientela pelas técnicas de RHA. Inicialmente, os pais concordam em
certificar-se da saúde dos embriões, depois estão certos de que não teriam filhos se soubessem que
estes poderiam nascer com doenças, em seguida, resolvem ter filho para curar um irmão com
problemas genéticos e que necessita de transplantes; daí, o passo para a projeção dos filhos antes
do nascimento parece ser curto.
Diz-se, portanto, que a RHA propõe um movimento eugênico amistoso baseado no
crescimento da Medicina Preventiva, a qual pretende calcular o risco de doenças e evitar a aquisição
destas no futuro. A melhor forma de ter êxito nessas pretenções é evitar defeitos genéticos antes
mesmo do nascimento, o que é conseguido com as suas técnicas, disponíveis no mercado.


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Diz-se que em Esparta, há aproximadamente dois mil anos atrás, quando nascia uma
criança era feito uma inspeção por membros do governo para verificar seu estado de saúde. Se fosse
constatada sua saúde, a criança receberia os cuidados do Estado, mas se fosse considerada
defeituosa, ou seja, se tivesse alguma doença e deficiência física ou mental, era lançada à própria
sorte, o que significava a sua morte. Sendo isto verdadeiro, pode-se afirmar que em Esparta ainda
nem se tinha ouvido falar em ³eugenia´, e os espartanos já a praticavam. No entanto, eles nos
invejariam se soubessem que avançamos muito, pois, se para eles era impossível selecionar sua
prole antes do nascimento, restando como opção o infanticídio, nós o conseguimos.
Aperfeiçoamos o desejo de criar uma prole dos melhores, como uma tradição espartana
que encontra em Darwin, com a sua teoria da seleção natural na qual o mais forte deve vencer;
Galton, com a teoria de que o ambiente determina as habilidades humanas culminando na ³eugenia
positiva´; e Hitler, cuja tarefa foi por em prática a ³eugenia negativa´ que busca eliminar o mais fraco
como forma de higiene social; os inspiradores que não queremos assumir. Essa inspiração fez com
que, com o tempo a eugenia passasse a ser vista como ciência prestigiosa e conceito médico
legítimo.
O conceito parecia ter sido abalado com as atrocidades praticadas pelo nazismo, ao
ponto de a opinião pública querer esquecer que as idéias eugênicas vinham formando-se muito antes
da ascensão e tomada de poder por Hitler. No entanto, não foi bem isto o que aconteceu: a eugenia
não sumiu de fato da história, criou-se apenas um novo rótulo, a chamada ³genética humana´. Pois,
conforme observamos, a biotecnologia tem caminhado sutilmente para a seleção de pessoas. Porém,
se Darwin defendia uma seleção natural, no século XXI, pratica-se uma seleção artificial, utilizando-se
para isso de aparatos tecnológicos e de investimento de capital, sendo a vitória deste ou daquele
embrião dependente apenas da preferência dos consumidores, no caso das tecnologias reprodutivas,
dependente dos pretendentes a pais.
Avanços científicos, como a biópsia de embriões, vêm sendo direcionados para a
identificação e descarte dos ³indesejáveis´, bem como para a possibilidade de projeções de bebês. E,
à medida que novas tecnologias vão sendo oferecidas no mercado reprodutivo, cada vez mais os
casais desejam filhos perfeitos, adaptados para uma qualidade de vida, seguindo o mesmo ritmo das
relações consumistas, nas quais quanto mais produtos são oferecidos no mercado, mais exigentes se
tornam os consumidores.
Dado isto, destacamos como o problema mais visível surgido com as práticas eugênicas,
é o de saber justamente a quem será dado o poder de decidir pelo que é melhor ou pior; ou seja,
quem escolherá o padrão de perfeição da futura prole. Pode-se até imaginar as clínicas de RHA
garantindo o nascimento de filhos com selos de certificados, os quais garantiriam a qualidade do
produto.
Voltando a Esparta. Diz-se que ali havia agentes do Estado responsáveis por essa
tarefa, e estes tinham os critérios claros para definir qual criança sobreviveria: a que tivesse mais
serventia para o Estado, ou seja, a que possuísse mais força, dado que a educação espartana era
uma educação militar. Já em nosso século, qual seria o padrão de sujeito pelo qual estaria
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interessada a sociedade de consumo?


Além disso, definir critérios levaria a outro problema eugênico, que seria a intolerância
aos ³defeituosos´ de fábrica, aos não selecionados, aos deficientes físicos e mentais e a todos que,
apesar de ³normais´, não apresentasse as características consideradas mais atraentes pela ciência,
pela sociedade, ou por quem decida pelo padrão de qualidade. Nesse sentido, a RHA é não apenas
uma mercadoria surgida com a ³sociedade de consumo´, mas é também a possibilidade de
programação eugênica da futura prole, fato, como atesta Costa (2006), localizado entre a futilidade de
se adquirir um filho como um produto mercadológico, simplesmente pelo deleite e realização dos
pais, e o terror de em um futuro muito próximo haver uma sociedade composta somente pelos
programados   .
Enfim, mesmo tendo, teoricamente, sido pensada como uma espécie de ³terapia´ para
pessoas com limitações reprodutivas, as técnicas de RHA transformaram-se em comércio e
ferramenta eugênica. Apesar de já existirem no governo vários projetos de leis em tramitação, em
tempos, nada de se tem de concreto com relação a estas práticas, a não ser as resoluções descritas
no texto, mas que não são fiscalizadas, de modo que sejam cumpridas. Nem mesmo as tentativas de
políticas públicas voltadas para a reprodução ou ³saúde reprodutiva´ têm funcionado. Por conta disso,
a responsabilidade com o  e  se praticar as tecnologias voltadas para a reprodução têm
estado à mercê de todas as pessoas envolvidas em suas aplicações, e sendo assim, o que tem sido
levado em conta é apenas a relação mercantil, ou seja, a mercadoria que está a disposição e a
quantia que os consumidores estão dispostos a pagar por elas, qualquer discussão ética ou moral
com relação às conseqüências que esta relação venha a trazer, é imediatamente descartada.
Trata-se, portanto, de uma questão que merece, por parte do poder público, maior
atenção e imediata elaboração de uma legislação específica e a garantia de fiscalização da mesma,
de modo que os abusos nesta prática sejam evitados e se possa finalmente falar em conduta ética
entre as clínicas e profissionais de RHA. Além disso, o desenvolvimento de políticas públicas, tanto
voltadas para a melhoria no acesso às tecnologias de RHA pela população de classes populares,
quanto voltadas para o esclarecimento das implicações de se recorrer a estas técnicas, é emergente.


 

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