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Intolerância Religiosa e Saúde

Autores: Serge Pechine, Ordep José Trindade Serra, Maria Cristina Santos Pechine.

Este trabalho tem como base o Projeto Candomblé, Saúde e Solidariedade em


Salvador - CASOS, UFBA/CNPQ1. Durante o desenvolvimento do Projeto foram
coletados depoimentos, tanto de profissionais como de usuários, informando que os
adeptos de religiões são discriminados nos postos de saúde, os terreiros não são
visitados pelos agentes de saúde no exercício da função pública, evitam estes espaços
sagrados, entre outras manifestações de intolerância religiosa nos serviços de saúde.
Tais atitudes violam o direito à saúde e a liberdade religiosa. Assim, este artigo tem por
objetivo avaliar o impacto da intolerância religiosa na saúde dos adeptos de religiões de
matriz africana, usuários do Sistema Único de Saúde – SUS, em Salvador – Bahia.

Antes de analisarmos as formas em que se manifestam a intolerância religiosa na


saúde, assinalaremos o campo geográfico e epistemológico em que ela está inserida.
Contrastes chocantes entre os indicadores de saúde referentes aos segmentos brancos
e negros da população vêm sendo assinalados por numerosas vozes, em documentos de
pesquisas, manifestos dos movimentos sociais, fóruns e conferências nacionais de
saúde. A inépcia coletiva de uma organização que tem o objetivo de prover um serviço
profissional e adequado às pessoas, mas deixa que ele seja sonegado devido a cor,
cultura, origem religiosa, racial ou étnica, desumaniza e desqualifica o trabalho em
saúde e tem como resultado uma expectativa de vida menor para a população negra. As
desigualdades se evidenciam quando se tem conhecimento dos dados revelados em
2000 pelo Atlas do Desenvolvimento Humano editado pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento. Os Índices de Desenvolvimento Humano mostram que
o município de Salvador concentra as áreas de maior desenvolvimento humano da
região metropolitana como também as mais pobres. Em Salvador, convivem pessoas
cujo IDH equivale, para uma minoria, àquele de habitantes da Noruega e, para a
maioria, àquele de pessoas morando na Namíbia2. Apesar de ter a maior proporção de
pretos e pardos do País (82%), a região metropolitana de Salvador destacou-se pelas
mais altas diferenças por cor: aqui, os rendimentos médios da população preta e parda

1
A importância da problemática foi reconhecida quando, apresentada em pôster, recebeu uma menção
honrosa da comissão científica do IV Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde, em
julho de 2007.
2
Ver tabela no site http://www.pnud.org.br/publicacoes/atlas_salvador/release_IDHM_geografico.pdf.

1
representam cerca de um terço dos rendimentos da população branca. Note-se ainda que
na Região Metropolitana de Salvador 44,09% da população tem renda per capita de até
2 salários mínimos, ficando 31,1% na linha de pobreza (SALVADOR, 2006). Acha-se
hoje abundantemente demonstrado que é geralmente precária a situação de saúde da
população afro-brasileira, acusando-se neste ponto os efeitos de uma discriminação
inegável. Essa população, na impossibilidade de pagar um plano de saúde da rede
privada, encontra-se nas filas do atendimento dos postos do SUS. Isso quando tem as
condições de chegar até lá pois, muitas pessoas não têm como pagar 4 R$ de transporte
urbano, e também por não haver ( como acontece, por exemplo, no bairro Engenho
Velho da Federação), um posto de saúde para um população de 15 000 habitantes.
“Há racismo no atendimento a negros no Sistema Único de Saúde”. Essa
discriminação foi admitida pelo próprio ministro da Saúde, Agenor Álvares, no dia 26
de outubro de 2006, na abertura de seminário no Rio de Janeiro em que foram discutidas
as bases para a nova Política Nacional de Saúde da População Negra. Isto se traduz em
diagnósticos incompletos, exames que deixam de ser feitos, negligência, recusa de tocar
no paciente e descaso até nas emergências. No referido evento, o ministro disse que
existem indicadores de que o atendimento aos negros é diferente do atendimento aos
não negros: “Esse racismo cria condições muito perversas que temos de combater.
Queremos criar valores de solidariedade em relação à população negra”. Neste sentido,
o Ministério da Saúde tinha como uma das metas para o ano 2007 a humanização do
atendimento no Sistema Único de Saúde.
No cotidiano do SUS, é comum que os discursos e práticas oriundos dos espaços de
transmissão de conhecimento de matriz religiosa afro-brasileira sejam ignorados ou
traduzidos em linguagem psicopatológica pelos técnicos dos serviços de Saúde
(Carvalho, 2005). Assim, Rocha & Russo (2000), em estudo sobre pluralismo
terapêutico que enfoca as trajetórias e as interpretações de pessoas que recorrem
simultaneamente à psiquiatria nos ambulatórios da rede pública e à umbanda,
constataram que “por desconhecimento de aspectos da cultura brasileira - ou porque a
prática tem sido mesmo a de patologizá-los - muitas vezes são considerados patológicos
falas ou gestos próprios das religiões afro-brasileiras”. Constata-se neste ponto
reminiscência de doutrinas que estigmatizavam cultos dessas religiões como nocivos,
fatores de doença e cujos protagonistas eram sistematicamente acusados de
charlatanismo. No mesmo texto, as autoras se propõem a “motivar o profissional de
saúde a escutar de outra forma as explicações que o cliente dá para seu sofrimento –

2
sobretudo as explicações que envolvem elementos religiosos” e concluem que a
psiquiatria e a psicologia “oficiais” desqualificam as práticas religiosas enquanto
possibilidade de saber. No mesmo sentido, os estudos de Loyola (1984) já indicavam
que as práticas de medicina popular não são “sobrevivências” do passado ou resquícios
de práticas de comunidades atrasadas, mas sim formas de saber que, contribuindo para a
proteção da saúde, disputam espaço com a medicina científica: “as diferentes
possibilidades terapêuticas e religiosas aparecem (...) como um sistema de defesa
coletivo em face dos processos de imposição da legitimidade médica”. (Loyola, 1984:
43). Vemos, desta forma, como o grau de desrespeito e de falta de reconhecimento de
valores e princípios que todo cidadão tem direito de eleger a seu arbítrio pode atingir
adeptos de religiões cuja identidade se vê socialmente degradada. Já Duarte (1998)
assinala que a produção do que se passou a chamar de “biomedicina” no Ocidente está
associada a um processo histórico que resulta do constrangimento da racionalização
cientificista aplicada à natureza em geral e à corporalidade em particular. A crítica
desses autores realça, portanto, o caráter contingente do que, em geral, é apresentado
como uma “verdade objetiva”, alcançada pelos avanços da medicina ou pelas
descobertas científicas, deixando na sombra o que há de crenças e negociações sociais
na compreensão e na produção dos sentidos da doença e da saúde, bem como em seu
enquadramento no curso da existência humana.
Pensamos nos resultados da conferência de Alma-Ata de setembro de 1978, quando a
OMS convidou os países a incluir medicina tradicional nos seus sistemas de saúde e
incentivou a aceitação dos praticantes de técnicas iátricas tradicionais pelos serviços de
saúde, então reticentes. Segundo Benoist (2004), em relação ao uso dos conhecimentos
tradicionais, o balanço é muito parco: estudamos farmacopéias, coletamos plantas
medicinais, usamos receitas correntes e identificamos princípios ativos, porém ainda
passamos longe do que, para os terapeutas do candomblé, por exemplo, é essencial no
uso das folhas (dos fármacos vegetais): nos terreiros, as folhas nunca são colhidas,
preparadas e usadas fora de um quadro ritual, aí considerado um fator determinante de
sua eficácia. No tocante aos cultos afro-brasileiros, temos, todavia, alguns progressos,
representados pelas pesquisas pioneiras de Barros (1983), Verger (1995) e Serra et alii
(2002), abordando o emprego de fármacos vegetais dentro de um sistema litúrgico:
“A lógica do sistema etnobotânico do candomblé nagô tem fundamento num
culto que associa à prática religiosa um esforço terapêutico, voltado para a
restauração, conservação ou promoção da saúde e do bem-estar dos iniciados,

3
adeptos e clientes. Nesse contexto, tem papel de destaque uma liturgia das folhas,
itens vegetais que funcionam como elementos de um código sacramental e como
fármacos. A classificação das folhas só pode compreender-se à luz de referências a
uma ordem mais abrangente. Para elucidá-la, há que fazer referência às bases
religiosas do sistema.” (Serra, 1999: 290)

É ainda pequena a tolerância para com o tratamento ritual de perturbações


comportamentais ou estados alterados da consciência. Neste ponto, a intolerância tem
longa historia e se encontra cristalizada no olhar que psiquiatras brasileiros lançaram
sobre os fenômenos de transe e possessão. Muito significativo quanto a isso é o fato de
se ter elaborado no Brasil um projeto de monitoramento das religiões negras por
psiquiatras e etnólogos3. Nina Rodrigues, a quem se devem os primeiros enfoques
acadêmicos sobre o candomblé, tentou implantar essa política na Bahia, adotando uma
atitude que hoje nos parece paradoxal: ao tempo em que seguia e preconizava
paradigmas científicos racialistas, ele tinha uma relação amistosa com seus “objetos” de
estudo, relação que o levava posicionar-se contra a repressão policial sistemática e
arbitrária sofrida, na época, pelos terreiros de candomblé, pois os consideravam templos
onde ocorriam manifestações religiosas, legítimas em um país cuja constituição
assegurava a liberdade de culto (Almeida et alii, 2007). A rejeição “científica” dos cultos
afro-brasileiros é sintomática de uma dificuldade de compreensão, dificuldade que se
agrava e se exprime de forma muito mais cruel em construções ideológicas
fundamentalistas.
Com base nos referidos estudos, concluímos que a combinação de: 1) desigualdades
no poder aquisitivo; 2) desconhecimento de aspectos da cultura brasileira e de religiões
de matriz africana; 3) obstáculos epistemológicos; 4) intransigência religiosa e/ou 5)
exercício do racismo têm produzido uma prática perversa nos serviços de saúde. As
falas, gestos e modos de viver próprio dos adeptos de religiões afro-brasileiras são
freqüentemente considerados patológicos; isto é, elementos que deveriam apontar para
características específicas de religiões e de culturas de uma grande parte da população
negra são reduzidos a categorias nosológicas, em um processo que apenas contribui para
agravar a ansiedade das pessoas e degradar-lhes a auto-estima. O reconhecimento da
potencialidade dos centros de culto afro-brasilero enquanto pólos de difusão dos
3
Veja-se Freyre, G. “Nina Rodrigues recordado por um discípulo”. Prefácio ao livro de Augusto Lins e
Silva: Atualidade de Nina Rodrigues. Rio de Janeiro: Leitura, 1945. O citado prefácio foi republicado em
1990, em Salvador, pela Fundação das Artes, numa coletânea de artigos do “Mestre de Apipucos”
intitulada Bahia e Baianos. Cf. Serra, 2006.

4
conhecimentos sobre saúde da população negra, ou seja, como agências de saúde, é um
dos primeiros passos que se torna necessário dar para corrigir tal descalabro. Para tanto,
muito contribuíram, em Salvador, as Feiras de Saúde do Terreiro da Casa Branca,
iniciadas em 2002, inclusive porque esta idéia foi adotada por vários outros terreiros de
candomblé e pela SMS4. Elas representaram um apelo importante, um estímulo
poderoso, levando os poderes públicos a atuar neste campo e induzindo os terreiros a
promover intercâmbio com a prefeitura, o estado, as universidades, em busca da
melhoria das condições de saúde do povo-de-santo, dos negros e da população em geral.
Ao mesmo tempo, a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde, além de
realizar debates com o povo-de-santo nos próprios terreiros (“capacitação dos terreiros”,
com participação de profissionais de saúde da rede pública), incentiva o exercício do
controle social das políticas públicas de Saúde por adeptos e simpatizantes dos cultos de
matriz africana e, quando a conjuntura política local é favorável, promove convênios
com órgãos municipais de Saúde (Silva, 2007).

A quem traça políticas de saúde no Brasil, uma questão iniludível se impõe: serão os
agentes do SUS (gestores e trabalhadores, em todos os níveis) capazes de reconhecer os
templos religiosos de matriz africana como espaços de difusão de sentidos, saberes e
práticas que concorrem para a proteção e promoção da Saúde da População Negra?
Certamente não, ou ainda não.
Antes de mais nada, é necessário conscientizar os agentes a fim de que eles
considerem incumbências normais — e não obrigações penosas — as visitas aos
candomblés, por exemplo. Os agentes comunitários de saúde e de zoonooses que se
negam a realizar ações de saúde nos terreiros precisam receber formação adequada. Eles
desconhecem a realidade vivenciada por cidadãos soteropolitanos a quem devem levar
seus serviços e frequëntemente estão sobrecarregados de preconceitos. Consultados
sobre o problema, os próprios agentes, quando mais esclarecidos, têm sublinhado que,
para superar tudo isso, é necessário dar-lhes melhor formação: não apenas técnica, mas
também ética e política. Realizar debates sobre o racismo no cotidiano de trabalho e
programar formas de superação deste óbice já constitui uma demanda (de parte) desses
profissionais. Hoje, o Agente Comunitário de Saúde – ACS tem preparo profissional
peculiar que se baseia na sua experiência como morador da comunidade e uma
formação técnica relativamente curta, com predomínio do enfoque biológico da
4
Veja-se Diagnóstico de Saúde da População Negra de Salvador. SMS, Salvador, 2006.

5
problemática de saúde/doença na sua preparação. A formação da identidade do ACS é
híbrida: contém elementos de conhecimento científico e do senso comum, da
experiência de vida nas comunidades onde trabalhará; isso pode permitir um diálogo
profícuo entre diferentes saberes... se houver orientação para tanto. No quadro atual,
concordamos com Nunes (2002) quando ela sublinha que “os critérios para que os
agentes classifiquem as pessoas da sua comunidade de origem de forma positiva ou
negativa passam a ser exclusivamente guiados pelas recomendações biomédicas, sem
que haja um esforço de contextualização ou de reflexão.” 5. Acrescentamos que nesse
contexto de transmissão acrítica e limitada as verdades científicas tendem a ser
acolhidas como dogmas e, não raro, combinadas (ou assimiladas) a autênticos dogmas
religiosos, passando, então, a produzir “verdades inquestionáveis” sobre corpo, alma e
mente, numa perspectiva fundamentalista que desrespeita a liberdade de consciência dos
outros cidadãos.
Tendo em vista que o agente vai assistir pessoas de outras crenças, é imprescindível
conhecer-lhe a religião, pois as crenças pessoais podem influenciar em sua relação com
a comunidade e no papel que deve desempenhar. Além disso, é sabido que o estado de
saúde é determinado também por valores culturais e religiosos. Para alguns, a doença é
considerada uma punição de Deus ou vinda de um mal feito por espíritos e divindades
de religiões de matriz africana, como acreditam membros de religiões pentecostais.
Muitos aceitam a doença como determinação de uma vontade divina ou destino. A
forma como as pessoas promovem ou preservam sua saúde está intimamente ligada ao
modo como acreditam adquirir as doenças. No caso de agentes de saúde, torna-se
imperativo capacitá-los ao diálogo sem preconceitos com adeptos de outras crenças.
Como foi dito aos pesquisadores do Projeto CASOS por um agente de um posto de
saúde: “é preciso garantir o direito às falas de nossos usuários e ampliar a sensibilidade
para a escuta e o leque das interpretações, numa perspectiva de interação cada vez mais
humana, entre profissionais de saúde e usuários”. Os cuidados, as explicações e a
linguagem “tradicionais” da doença têm uma densidade identitária muito forte.
Ignorando ou rejeitando essas práticas em confronto com as “luzes da ciência”, é o valor
identitário dos usuários que se acaba ferindo, perpetuando o mal-estar, le mal-vécu 6.

5
NUNES, Mônica de Oliveira et al . O agente comunitário de saúde: construção da identidade desse
personagem híbrido e polifônico. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 18, n. 6, dez. 2002. Disponível
em: http://www.scielosp.org/scielo.php . Acesso em: 12 out. 2008.
6
Ver Benoist J. “La maladie entre nature et mystère” (2002) e “Rencontres de médecines: s'opposer ou
s'ajuster” (2004). Disponível em http://classiques.uqac.ca/contemporains/anthropologie_medicale

6
Assim, ressalta-se a importância de capacitar os profissionais para o reconhecimento
dos fatores culturais e religiosos que possam influenciar no comportamento dos
indivíduos com relação à sua saúde, de modo a desenvolver uma melhor articulação
entre os saberes técnicos e populares, caminho para atuar com maior tolerância 7, a partir
da compreensão do outro.

“Os primeiros intolerantes são os agentes comunitários.” Esse problema foi apontado
de forma recorrente pelos entrevistados no curso da pesquisa CASOS em que se baseia
este trabalho; foi e continua sendo assunto principal de discussões nos encontros e
oficinas realizadas pela ASPERS nos distritos sanitários de Salvador, como acusa, por
exemplo, o Relatório da Ia Oficina de Religião de Matriz Africana e Saúde que reuniu os
distritos de saúde (DSs) de Brotas, Boca do Rio, Cabula, Barra e Rio Vermelho.
Reiterou-se isso na IIa Oficina realizada no 20 de maio de 2008 reunindo os DSs de
Centro Histórico, Itapuã e Pau da Lima, bem como na IIIa Oficina, que reuniu, no dia
27de maio 2008 os DSs de Itapagipe, São Caetano – Valéria e Liberdade – Subúrbio
Ferroviário.
Na intolerância há gradações, como mostra um depoimento de uma filha-de-santo
que descreveu a maneira como agentes endêmicos chegaram e se comportaram no
terreiro. Eles tiveram uma postura de completo desrespeito pelas regras que regem
aquele espaço. Eles foram pouco cordiais com o babalorixá, homem de saúde muito
debilitada por conta de vários AVCS; acessaram sem nenhuma permissão áreas
sagradas do terreiro, mexeram em objetos de valor sagrado para aquela comunidade e
colocaram serragem em lugares em que haveria água. Ela mesma disse que estes
assentamentos têm ligação direta com o equilíbrio das pessoas aos quais eles foram
relacionados e que ela mesma sofreu de enormes dores de cabeça, sem saber a razão, até
que descobriu que um dos objetos revirados era o objeto de ligação direta com ela. Este
relato mostra como o ato de tentar preservar a saúde da população sem conhecer as
particularidades e diferenças nela presentes pode ter efeito contrário ao desejado.
É direito de todos serem atendidos e respeitados como cidadãos. É o caso de
perguntar até quando devemos ouvir relatos desse tipo: “Alguns profissionais se
recusam a entrar em terreiro, pois, é um espaço demoníaco e muitas vezes no local de
trabalho [também] não atendem os adeptos do Candomblé.”
7
NASCIMENTO, Elisabet Pereira Lelo; CORREA, Carlos Roberto da Silveira. O agente comunitário de
saúde: formação, inserção e práticas. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 6, jun. 2008 .
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php . Acesso em: 05 out. 2008.

7
Não podem passar em branco casos de desrespeito, discriminação e intolerância
religiosa que os códigos Civis e Penais punem. A Constituição Federal, no artigo 5º,
VI, declara inviolável a liberdade de consciência e de crença, assegurando o livre
exercício dos cultos religiosos e garantindo, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e as suas liturgias.
É uma realidade cruel no cotidiano do povo negro de Salvador a freqüência de casos
de racismo e de intolerância verificados nos postos de saúde. Durante as oficinas
realizadas nos distritos sanitários, os agentes puderam colocar os seus pontos de vista e
também citar exemplos que foram bastante elucidativos.
Num posto de saúde chegou para uma consulta ao dentista uma paciente que, pela
maneira como estava vestida, foi reconhecida como membro de religião de matriz
africana; era uma mulher negra e parecia ser também bastante pobre. Logo após a esta
senhora, apresentou-se uma pessoa que, na descrição da odontóloga que as tratou, era
uma paciente diferenciada para o padrão do público que recorre àquele posto de saúde:
uma mulher branca, aparentemente pertencente a um extrato socioeconômico mais
elevado. Esta segunda senhora teria questionado, durante todo o tempo da sua consulta,
a higienização dos instrumentos que haviam sido anteriormente sido utilizados pela
odontóloga no tratamento da primeira senhora citada. A profissional de saúde que
entrou em contato direto com estas senhoras num primeiro momento disse não ter feito
uma leitura que detectasse algum tipo de discriminação neste ato, mas após uma
conversa com a coordenadora do Distrito compreenderam juntas que se tratava de um
duplo ato de discriminação, tanto pela questão religiosa quanto pela questão racial.
Este exemplo deixou bastante evidente a complexidade das relações que se
estabelecem entre agentes de saúde e clientes, entre agentes de saúde e seus pares, e
como o racismo e a intolerância estão inseridos no cotidiano. As pessoas estão cansadas
desse tratamento despectivo e o manifestaram durante vários seminários, oficinas e
encontros realizados para discutir o assunto e adotar metidas capazes de superar o
problema.
As Secretarias de Saúde de Salvador e Lauro de Freitas, através da Assessoria de
Promoção da Equidade Racial em Saúde - ASPERS e da Coordenação de Saúde da
População Negra de Lauro de Freitas, realizaram o 1o Seminário de Religiões de Matriz
Africana e Saúde nos dias 14 e 15 de setembro de 2007. Este Seminário teve como
objetivo aprofundar as discussões em torno da promoção da equidade racial na saúde
para as religiões de matriz africana, do combate ao racismo e à intolerância religiosa em

8
saúde. Num grupo, foram apresentadas as experiências de racismo e intolerância
religiosa em saúde de modo que cada um expunha a sua experiência e fazia propostas de
enfrentamento da situação vivenciada. A frase a seguir, tirada de um desses
depoimentos, nos ajuda a medir a que ponto chega a intolerância: uma pessoa ligada ao
candomblé teve de ouvir que “a infecção hospitalar é responsabilidade das religiões de
matriz africana”. Como podem ficar impunes esses tipos de agressões e calúnias?
Infelizmente essas demonstrações de intolerância não se limitam a Salvador, como
foi relatado durante o VI Seminário Nacional Religiões Afro-Brasileiras e Saúde,
realizado de 27 a 29 de março de 2007 na cidade de Fortaleza. Este seminário reuniu
mais de 300 pessoas, dentro elas cerca de 80 mães e pais-de-santo de várias regiões do
país, pesquisadores, gestores, profissionais das áreas de saúde e educação, assim como
membros do projeto CASOS que discutiram questões relacionadas à promoção de
saúde. As mesas e grupos de trabalhos abordaram os seguintes temas: 1)
reconhecimento das contribuições das religiões de matrizes africanas para a sociedade e
o Estado; 2) sensibilização dos gestores e profissionais de saúde para o reconhecimento
do saber da tradição religiosa afro-brasileira e o respeito à cultura dos terreiros nas
ações, projetos e programas de saúde governamentais; 3) reflexão sobre os impactos do
racismo e da intolerância religiosa na saúde da população negra e do povo de santo; 4)
estimulação dos adeptos dos terreiros na gestão participativa e controle social das
políticas públicas de saúde; 5) aprofundamento do conhecimento das lideranças de
terreiros, ativistas do movimento negro, gestores e profissionais de saúde em relação à
Política Nacional de Saúde Integral da População Negra e ao Pacto pela Saúde. Os
relatos sobre os impactos da intolerância religiosa na saúde apontaram que pais e mães
de santo são freqüentemente impedidos de prestar auxílio e conforto espiritual a quem
necessita seja nos hospitais, maternidades, presídios ou mesmo em funerais8. No mesmo
sentido, Monteiro (2008)9 dá-nos um exemplo que demonstra quanto se precisa ampliar
o pleno exercício da cidadania quando nos debruçamos sobre as questões que envolvem
a morte e o processo de intolerância religiosa no Estado (em princípio) laico, i. é,
focalizando a relação dos usuários com os servidores do Instituto Médico Legal do
Estado de São Paulo. Trata-se do depoimento de uma Ialorixá que vivenciou tal
experiência. No IML, um funcionário não lhe permitiu celebrar os atos religiosos
apropriados, segundo sua crença, para a circunstância funeral: ela pretendia cuidar do
8
Ver também Guia para a Promoção de Saúde nos Terreiros -
http://www.opas.org.br/coletiva/UploadArq/terreiros_saude.pdf
9
MONTEIRO, O impacto da intolerância religiosa na saúde. http://www.koinonia.org.br/saude/SD7.pdf

9
corpo de um seu filho-de-santo; o professional alegou que a responsabilidade pelo corpo
era dele e recomendou-lhe, com ironia, chamar o bispo, o Papa, o governador: “ Tô
mesmo precisando falar com ele! Não agüento mais trabalhar sem ter aumento e ter
que agüentar esta gente. Ora, é duvidoso que ele tivesse esse comportamento face a um
padre, ou um pastor evangélico... É fácil inferir a quem ele se referia quando mencionou
“esta gente”. De qualquer modo, um funcionário de um estabelecimento público de um
estado laico obviamente não deveria tomar semelhante atitude, em que se lê com
facilidade, além da intolerância, a discriminação.
É imperativo também garantir o acesso de membros de quaisquer religiões aos
hospitais públicos 10. A laicidade do estado brasileiro, normalmente ferida, aqui e ali,
pela imposição de feriados católicos e pela aposição de imagens em órgãos públicos,
deveria ser mais respeitada. Segundo frisa José Marmo da Silva11 (odontólogo,
coordenador do projeto Ato Iré e membro da Rede Nacional de Religiões
Afrobrasileiras e Saúde), os direitos dos cidadãos adeptos de religiões africanas devem
ser respeitados e reconhecidos: “Reconhecer a função dos sacerdotes e sacerdotisas
implica em garantir acesso livre aos hospitais, maternidades, cemitérios no momento
dos funerais, presídios, manicômios e outros. Os sacerdotes de outras religiões têm este
acesso”.
Ser negro, índio, mulher, homossexual etc. infelizmente é ainda, neste país, ter
identidades deterioradas construídas historicamente pela sociedade, o que influencia a
maneira como os indivíduos se vêem a si próprios e aos outros membros da sociedade.
Tornam-se imprescindíveis as lutas pela ampliação da cidadania em nossa sociedade.
Isso implica na urgência da implementação de políticas pública voltadas para a criação
de mecanismos institucionais de prevenção e combate ao racismo, à discriminação
negativa e a manifestações de intolerância nos serviços de saúde assim, políticas que
garantam o reconhecimento, pelo sistema oficial de saúde, dos espaços das religiões de
matriz africana (terreiros) como locais de educação e promoção em saúde, prevenção e
tratamento de doenças. Implica também em acabar com a impunidade das práticas
racistas e promover inquérito administrativo para crimes de irresponsabilidade sanitária
fomentados por racismo e intolerância, promovendo educação continuada para os

10
LEI FEDERAL Nº 9.982/2000 - Dispõe sobre a prestação de assistência religiosa nas entidades
hospitalares públicas e privadas, bem como nos estabelecimentos prisionais civis e militares
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9982.htm
11
Boletim Especial - PCRI-Saúde na CONAPIR - Brasília, 30 de Junho de 2005.
http://www.combateaoracismoinstitucional.com/images/padf/conapir.pdf

10
profissionais de saúde de modo a suprimir os preconceitos. São essas algumas das
reivindicações que emergem das oficinas de religião de matriz africana e saúde
desenvolvidas pelo Grupo de Trabalho da Saúde da População Negra de Salvador. O
próprio Ministério de Saúde está ciente disso, pois numa publicação de 2005, intitulado
A Saúde da População Negra e o Sus - Ações Afirmativas para avançar na eqüidade ,
umas das linhas de ação priorizadas pelo comitê técnico de saúde da população negra do
referido Ministério são: divulgar, junto aos usuários, os mecanismos do SUS para o
recebimento de denúncias sobre discriminação e racismo; articular ações conjuntas do
Judiciário, da PFDCMJ, da PGR-MPU em relação ao racismo e à discriminação
racial12.
Uma sociedade justa contribui para que seus membros se valorizem e dêem valor aos
outros, aumentando nos indivíduos a capacidade de ter e receber respeito. A superação
da intolerância é para isso indispensável, condição sine qua non para o fomento da
diversidade cultural associado à promoção da igualdade social. Impõe-se reconhecer o
feed-back positivo entre o diálogo das diferenças e a busca de igualdade, inclusive no
campo religioso: os preconceitos religiosos podem ter mais causas sociais do que
doutrinárias.

12
Ver Ministério da Saúde - Secretaria-Executiva - Subsecretaria de Planejamento e Orçamento. A Saúde
da População Negra e o Sus - Ações Afirmativas para avançar na eqüidade. Brasília – DF: Editora MS,
2005 Disponível em http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/caderno_spn.pdf

11
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