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PUC-SP
São Paulo
2017
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC-SP
São Paulo
2017
Banca Examinadora
Talvez seja uma das experiências humanas e animais
mais importantes. A de pedir socorro(...) Eu já pedi
socorro. E não me foi negado.
Clarice Lispector
Ao meu orientador, Luis Claudio Figueiredo, pela aposta neste trabalho, pela disposição e
precisão em suas observações e por contribuir para que a realização do mestrado fosse uma
experiência prazerosa.
Aos colegas do grupo de orientação, pelas considerações feitas acerca desta dissertação, as
quais muito me auxiliaram neste percurso.
À minha mãe, Sara, pelo enorme suporte e apoio, pelo modelo profissional que é e por ser
suficientemente boa. Ao meu pai, Sergio, também pelo apoio, pelas conversas sobre a vida e
pelas trocas ricas em Psicanálise.
Ao Bijos, por ser sempre tão presente e pelo carinho e afeto constantes.
Ao Pedro e à Pietra, pela parceria fraterna, e especificamente ao Pedro por entender os meus
momentos mais árduos na realização desta dissertação.
À Thais, Rafael e Carolina, pela amizade sobretudo, e por partilharem comigo as alegrias e
percalços do trabalho em pronto-socorro.
RESUMO
ABSTRACT
The presence of the psychoanalyst in the hospital’s emergency room still raises
questions about what this professional is capable of doing in such place. The main goal of this
research is to understand what is the role of the psychoanalyst in the emergency service, given
the hurdles he/she can find due to a different look and a specific sense of ethics in this
environment. To achieve this goal, a qualitative research was carried out, based on a
theoretical discussion and a psychoanalytical reading which, in its turn, originated from the
researcher experience and also from interviews with professionals from the field of
Psychology. Authors like Freud, Winnicott and Roussillon were mentioned in order to give a
better understanding to the main topics researched, such as the emergence of anguish, the
avoidance of the traumatic and the possibilities of symbolization. In addition, this research
also intends to show the importance of a care and listening that are not necessarily exclusive
to the psychoanalyst. This knowledge may be used by other professionals who work in
emergency units in benefit of the patient and his/her relatives.
Introdução................................................................................................................................9
Método......................................................................................................................................11
1- O pronto-socorro................................................................................................................15
1.1 Conhecendo o pronto-socorro............................................................................................ 15
1.2 A rotina esperada................................................................................................................18
2- A problematização da atuação em urgência e emergência: reflexões acerca de
impasses e contradições..........................................................................................................21
2.1 Sofrimento X Sintoma/ Demanda X Oferta........................................................................21
2.2 Patologização/Hipermedicalização na saúde......................................................................23
2.3 Os protocolos de atendimento.............................................................................................26
2.4 A desautorização no cuidado..............................................................................................29
3- Para pensar a urgência subjetiva no pronto-socorro......................................................36
3.1 A urgência subjetiva:o que é?.............................................................................................36
3.2 A angústia como afeto onipresente.....................................................................................38
3.2.1 A angústia freudiana no contexto da urgência e emergência...........................................39
3.3 O traumático........................................................................................................................48
3.3.1 A concepção do traumático em Freud..............................................................................48
3.3.2 A concepção do traumático em Winnicott.......................................................................55
3.4 Localizando o desamparo na obra freudiana...................................................................... 60
3.5 A simbolização possível no pronto-socorro........................................................................67
4- A escuta como cuidado..................................................................................................... 78
4.1 A escuta analítica e o acolhimento......................................................................................78
4.2 A inserção da escuta analítica na urgência e emergência...................................................82
4.3 Quando todo cuidado não é pouco......................................................................................89
Considerações Finais...............................................................................................................94
Referências Bibliográficas......................................................................................................98
Anexos ...................................................................................................................................105
INTRODUÇÃO:
Já a opção pela Psicanálise como forma de olhar para tais fenômenos que estavam
presentes em meu dia a dia de trabalho é anterior ao início da atuação em pronto-socorro. O
interesse pelas determinações inconscientes motivou-me a adquirir uma escuta que as
privilegiasse em qualquer setting ,independentemente do ambiente de atuação profissional.
Antes da experiência como residente, foi possível vivenciar outras atuações prévias em
hospitais durante a realização de estágios na graduação, porém sem contato com o ambiente
do pronto-socorro e suas especificidades. Atuar no setor de urgência e emergência foi uma
escolha feita no momento de inscrição no processo de seleção para o programa de residência.
Ao longo dos dois anos de inserção nesse local, surgiram indagações sobre o porquê dessa
opção, isto é, o que teria me motivado a querer trabalhar com os aspectos psíquicos de
pacientes que estão em estado de emergência ou urgência médicas.
A reflexão sobre tais aspectos é importante, na medida em que traz subsídios para uma
atuação mais responsável e segura por parte do psicanalista e auxilia no fortalecimento do
tripé ensino - assistência - pesquisa, indispensável para a formação desse profissional em
qualquer campo de trabalho. A partir de tal compreensão, será possível vislumbrar o que é
passível de ser modificado e/ou repensado em sua dinâmica de trabalho.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho consiste em compreender quais são os impasses
e contradições que um psicanalista encontra em seu cotidiano profissional no pronto-socorro e
de que modo pode lidar com essas problematizações, mantendo-se inserido na equipe
multiprofissional. Torna-se relevante indagar e tornar mais claras tais questões concernentes
a esse momento específico de urgência não só fisiológica, mas também subjetiva.
10
possibilidades para o psicanalista em uma área na qual sua atuação é recente. Com isso,
tornam-se viáveis espaços para discussões e trocas intersubjetivas.
Método:
Sendo assim, este estudo consiste em uma reflexão e elaboração teóricas realizadas a
partir de bases empíricas fundamentadas sobretudo em minha própria experiência como
profissional, dotada de uma escuta psicanalítica, atuante em pronto-socorro hospitalar. Desse
modo, foram descritos casos e experiências vivenciados ao longo dos anos de atividade nesse
local. Esses foram apresentados resumidamente, em formato de vinheta, de modo a não
propiciar a identificação e não expor nenhum dos participantes dos episódios relatados. Trata-
se, portanto, de uma dissertação que tem sua origem em minha prática profissional, bastante
rica, porém muitas vezes também inquietante e disparadora de indagações, tornando-se o
alicerce das concepções desenvolvidas ao longo deste trabalho.
11
em programas de residência na área hospitalar, até psicólogos mais experientes, com muitos
anos de atuação em pronto-socorro. Salienta-se que tanto as experiências pessoais relatadas,
quanto as descritas pelos entrevistados, não foram submetidas a categorias de análise formal,
tais como as análises de discurso ou conteúdo, não sendo esse o propósito do estudo com vias
a atingir os objetivos almejados.
12
As entrevistas foram realizadas tendo como foco as experiências dos profissionais, isto
é, lhes foi solicitado que se recordassem e narrassem diferentes episódios vivenciados durante
os anos de trabalho no local em questão neste estudo. Assim, muitos exemplos retirados das
entrevistas foram utilizados ao longo da dissertação com a finalidade de ilustrar os impasses e
desafios com os quais se depara um profissional de saúde mental que adota um olhar e escuta
psicanalíticos no pronto-socorro.
É importante salientar que dois dos cinco psicólogos entrevistados não utilizavam
como instrumento de trabalho a Psicanálise, porém as situações relatadas pelos profissionais
foram localizadas posteriormente dentro do contexto psicanalítico, propósito de abordagem
desta pesquisa. Assim, os exemplos provenientes das entrevistas nos auxiliam a constatar
como ocorre na prática o que é descrito também no plano teórico, sendo ambos os aspectos,
teórico e prático, desenvolvidos concomitantemente.
13
refere à ausência de cuidados direcionados para os aspectos psíquicos por parte dos
profissionais de saúde.
14
1- O PRONTO-SOCORRO
1
Vale salientar que existem as unidades de urgência e emergência referenciadas, as quais atendem
exclusivamente pacientes encaminhados por médicos de outros serviços de saúde, após estes já terem
confirmado um maior nível de gravidade no estado de saúde destes indivíduos que justifique o atendimento em
pronto-socorro, já que esse local é destinado em sua essência a casos de maior complexidade. Estas unidades
referenciadas também atendem pacientes trazidos pelo corpo de bombeiros e pelo SAMU (serviço de
atendimento móvel de urgência), mas não são, portanto, um serviço com o sistema denominado “porta aberta”.
15
completo, uma vez que o pronto-socorro acaba se transformando em local não somente de
observação, mas de internações por vezes prolongadas, ainda que falte infra-estrutura para
administrar o tratamento dos pacientes em um local concebido para atendimentos
relativamente rápidos. Do mesmo modo, o pronto-socorro acaba sendo onerado também por
demandas mais simples ou por indivíduos com adoecimentos crônicos que não conseguem
atendimento em outras instâncias do sistema de saúde tais como ambulatórios e unidades
básicas (ROMANO, 1999).
Nesse sentido, em termos de saúde pública, vale assinalar que esses usuários
pressupõem que têm o direito de serem atendidos ao procurar o pronto-socorro, não podendo
ter o seu atendimento nesse setor hospitalar recusado, pois entendem que é dever do Estado
proporcionar o serviço (KOPSEL;VICENSI,2012). Além disso, o pronto-socorro é visto pelo
paciente como um local onde irá dispor de um atendimento completo e integrado, isto é, não
obterá somente as consultas, mas conseguirá também, em determinados casos, remédios,
procedimentos, exames e até, se necessário, internações (MARQUES;MADS, 2007).
2
Política instaurada pelo Ministério da Saúde em 2003 que visa concretizar os princípios do Sistema Único de
Saúde de modo que estes sejam efetivados no cotidiano dos serviços de saúde, beneficiando seus usuários. Para
tal, deve estar aliada a modificações nas práticas de gestão e cuidado. (BRASIL, 2004)
16
*Laranja- casos muito urgentes, nos quais o paciente necessita de atendimento quase
imediato. O tempo de espera para atendimento é de 10 minutos.
*Amarelo- o paciente deve ser atendido o mais rápido possível, porém não corre risco
iminente de morte, o que corresponde a um caso de urgência. O tempo de espera para
atendimento é de 50 minutos.
*Azul- corresponde a casos leves, nos quais o paciente pode aguardar ou também ser
encaminhado a outros serviços. O tempo de espera para atendimento é de 240 minutos.
Cabe destacar que nesse contexto, profissionais com alta carga de trabalho se tornam
mais cansados e menos predispostos ou com possibilidades reduzidas de dispensar maior
atenção a pacientes e cuidadores/familiares que por sua vez se encontram em um momento de
crise. Dessa forma, enquanto os usuários dos serviços de saúde demandam atenção e amparo
por parte dos profissionais, esses últimos, na contramão, trabalham sob pressão e contra o
tempo.
Tais aspectos geram também reflexões acerca do vínculo que é possível construir com
os pacientes, o que pode vir a colocar à prova a qualidade das dinâmicas transferenciais e
contratransferenciais estabelecidas. Se a relação médico-paciente no pronto-socorro já é
naturalmente menos consolidada, devido à própria natureza passageira ou momentânea dos
atendimentos, pode tornar-se ainda mais frágil diante do panorama descrito.
Além de tal análise, é essencial também realizar junto ao paciente, quando possível, o
exame de seu estado mental atual, o que consiste na avaliação de suas funções psíquicas, a
fim de verificar possíveis alterações. Dessa forma, examina-se prioritariamente a consciência,
atenção, orientação, sensopercepção, memória, afetividade, linguagem, pensamento e juízo de
realidade (DALGALARRONDO, 2008). Tais aspectos são importantes para que se possa ter
uma ideia inicial sobre o funcionamento psicodinâmico do paciente e averiguar como ele está
no momento da hospitalização.
Nos atendimentos com foco nos aspectos emocionais dos familiares, deve-se
primeiramente identificar qual familiar está mais organizado psiquicamente e, portanto, apto a
receber determinadas notícias, tomar decisões e também mais disponível para auxiliar outros
familiares mais fragilizados. Será assim o membro da família mais indicado para fornecer
informações sobre o paciente. Borges (2009) assinala a necessidade de se verificar entre os
19
familiares a ocorrência de situações anteriores de traumas ou perdas significativas, buscando
também compreender, em caso afirmativo, as reações emocionais e condutas adotadas à
época.
Devido ao fato de tal contato com esses familiares ser efêmero, Borges (2009) destaca
também a relevância de orientarmos os indivíduos mais fortalecidos emocionalmente na
família a observarem, nos dias que se seguem ao evento potencialmente traumático, eventuais
mudanças de comportamento em outros familiares, de modo a tomarem as devidas
precauções. A função do profissional de saúde mental adquire, nesse aspecto, um cunho
preventivo em relação à família do paciente.
Cabe aqui assinalar que assim como familiares e pacientes lidam com a
imprevisibilidade nesse ambiente, também o fazem todos os profissionais que nele atuam.
Diante dessa constatação e também devido ao caráter transitório desse local, os atendimentos
do profissional de saúde mental costumam ser pontuais, com início, meio e fim, ainda que
haja outros posteriores. Nesse sentido, Borges (2009, p. 18) assinala que: “A incerteza não
joga a nosso favor, mas não podemos negá-la e sim trabalhar com esse dado que é inerente
(...) à própria vida”.
20
2- A PROBLEMATIZAÇÃO DA ATUAÇÃO EM URGÊNCIA E EMERGÊNCIA:
REFLEXÕES ACERCA DE IMPASSES E CONTRADIÇÕES:
Para pensar essa questão, é importante considerar a diferenciação proposta por Moretto
(2015)3 entre sintoma e sofrimento na cena médica ao afirmar que o paciente busca o
atendimento médico para tratar de seu sofrimento, mas o que o profissional de medicina faz é
lidar com o sintoma do paciente, em busca de um diagnóstico. Se o pronto-socorro é a porta
de entrada do hospital, é, em geral, o primeiro setor hospitalar no qual o paciente pedirá
auxílio para seu problema. No entanto, se o socorro que o paciente busca em um pronto-
socorro é em relação ao seu sofrimento, ou seja, ele busca um cuidado direcionado para aquilo
que o faz sofrer, o médico e o restante da equipe tendem a não conseguir olhar além do
sintoma.
Nesse contexto, Moretto (2015) afirma ainda que todo sofrimento comporta em si uma
demanda por reconhecimento, mas o que a equipe de saúde faz em geral é o contrário, isto é,
nega tal sofrimento, oferecendo um cuidado falho, que evidencia esse desencontro entre
demanda e oferta, já que aquilo que é ofertado não coincide com o que é demandado. Sendo
assim, questiona-se: o que o psicanalista pode oferecer ao paciente que está em um pronto-
3
Material extraído da apresentação da psicanalista Maria Livia Tourinho Moretto, intitulada “O sofrimento na
nossa cultura do sucesso”, no programa Café Filosófico, veiculado pela TV Cultura, em 2015.
21
socorro, assim como a seus familiares? O reconhecimento desse sofrimento, por meio de uma
escuta psicanalítica.
É a oferta dessa escuta, por sua vez, que gerará a demanda de atendimento psicanalítico
por parte de pacientes e familiares (MOURA, 2000). Se esses sujeitos, muitas vezes, não
sabem sequer o que o psicanalista faz no pronto-socorro, assim como muitos profissionais
também desconhecem, é a oferta do que ele tem para dar que irá produzir uma demanda, pois
a oferta permite inclusive um conhecimento do que ele faz ali naquele local. Como exemplo
de que a oferta de atendimento pode gerar uma demanda que se pressupõe inexistente, temos
a seguinte vinheta, narrada por uma das entrevistadas.
22
2.2 Patologização/ Hipermedicalização na Saúde
(...) um sinal de saúde mental é a capacidade que um indivíduo tem para penetrar,
através da imaginação, e ainda assim, de modo preciso, nos pensamentos,
sentimentos e nas esperanças de outra pessoa e também permitir que outra pessoa
faça o mesmo com ele. (...) uma avaliação daquilo que estou chamando de
capacidade para identificações cruzadas- saber colocar-se no lugar do outro e
permitir o inverso- poderia ser uma das características importantes na seleção de
estudantes de medicina ( se essa capacidade pudesse ser testada). (1970/2005,
p.111)
Ao referir-se aos momentos de desintegração, por exemplo, o autor afirma que devem ser
aceitos pelo indivíduo saudável, pois estão presentes em episódios de relaxamento e até
mesmo em sonhos, sendo também um pressuposto para o aparecimento da criatividade.
23
Assim, para Winnicott (1967/2005), até mesmo a dor que faz parte da desintegração pode ser
admitida se considera-se que há também, junto a essa sensação, processos criativos.
Por outro lado, é a não-aceitação de tais adoecimentos que leva ao que Winnicott
denominou de “fuga para a sanidade” (1967/2005), na qual as defesas maníacas, ao negarem a
possibilidade da doença, acabam por serem contrárias aos processos de saúde. A
hipermedicalização seria, portanto, uma representante dessa evasão não-saudável, na medida
em que se busca, de forma equivocada, viver bem, ainda que não se esteja disposto a aceitar
as dores e sofrimentos que fazem parte da vida. Para Luis Claudio Figueiredo (2014), há
outros exemplos de fugas para a sanidade na contemporaneidade, equivalentes à
medicalização exacerbada, tais como as fantasias onipotentes de jovialidade eterna e o uso de
outras drogas.
O principal é que o homem ou a mulher sintam que estão vivendo sua própria vida,
assumindo responsabilidade pela ação ou pela inatividade e sejam capazes de
24
assumir os aplausos pelo sucesso ou as censuras pelas falhas. Em outras palavras,
pode-se dizer que o indivíduo emergiu da dependência para a independência, ou
autonomia. (1967/2005, p. 10)
Em relação a tal tópico, o caso narrado por uma das profissionais entrevistadas é bastante
ilustrativo. A psicóloga relata que é chamada pela equipe para atender a mãe de um paciente
que havia falecido e, ao chegar para o atendimento, notou que essa senhora já estava
hipermedicada, pois observou como reação uma grande oscilação de consciência. A familiar
em questão dormia e acordava de modo alternado e já não sabia mais sequer dizer qual de
seus filhos havia falecido.
O luto, processo normal e que necessita ser vivenciado, é interrompido por efeito da
medicação que visa extinguir uma possível agitação manifestada pela familiar. Elimina-se,
com isso, o sintoma e o sofrimento do sujeito e ainda, como efeito colateral, são suprimidas
também uma eventual opção por vivenciar esse sofrimento e a escolha de como fazê-lo. O
objetivo do psicanalista, ao contrário, não é apagar o sofrimento de modo artificial, mas sim
possibilitar ao sujeito aceitá-lo, se apropriar desse sofrimento e transformá-lo. A solução
encontrada pela equipe ao sedar o indivíduo talvez diminua a angústia dessa, por não ter que
lidar com nenhum sofrimento (nem o próprio, nem o do outro), mas não a do paciente.
Por outro lado, o psicanalista, ao oferecer sua escuta, acaba por se preescrever, ele
próprio, ao paciente, por meio da relação transferencial que pode ser instaurada a partir de
então (SOTELO, 2014). Batista e Ribeiro (2015) mencionam pacientes que inclusive já
chegam ao hospital medicados, mas que não sabem as razões pelas quais tomam a medicação
e os seus efeitos, apresentando o que as autoras denominam de “apatia discursiva”. Não há
25
uma atitude ativa por parte do paciente, constituindo uma “relação sem ação do sujeito”
(BATISTA e RIBEIRO, 2015, p.113).
Turra et al. (2012) concordam com a ideia acima descrita no que se refere à maior
visibilidade conferida ao profissional que atua com protocolos e acrescentam que a
sistematização dos atendimentos promovida pelo seu uso garante ainda melhor comunicação
interdisciplinar ou mesmo a instaura. Associam também a utilização de protocolos aos
resultados eficazes e comprovados que devem, de acordo com os autores, ser apresentados
pelo profissional que atua na área hospitalar. A ideia é buscar resultados baseados em
evidências, em uma clara alusão ao termo “medicina baseada em evidências”4.
4
O termo “medicina baseada em evidências” consiste em atuar no meio médico segundo preceitos, normas e
padrões comprovados cientificamente, estando estes aliados à experiência clínica. Estas evidências auxiliam na
tomada de decisões, visando garantir o melhor tratamento ao paciente (LOPES, 2000).
26
Percebe-se nas assertivas desses autores uma necessidade do profissional que trabalha
com os aspectos psíquicos no hospital de se mostrar útil e eficaz ao restante da equipe,
especialmente ao meio médico. Para atingir tal objetivo, deve então utilizar os mesmos
instrumentos com os quais os outros profissionais trabalham.
Sendo assim, se tais casos que não “cabem” no protocolo são justamente os que movem a
equipe a convocar o psicanalista, como responder a essa demanda com outro protocolo? Além
disso, se as situações de adoecimento e sofrimento que acometem o sujeito na urgência ou
emergência são as mais diversas possíveis, como saber já previamente o modo como se irá
atendê-lo, isto é, o que será investigado e como proceder/intervir? Desse modo, é possível
fazer a leitura de que os protocolos constituiriam tentativas de controlar ou prever o que é
incontrolável e imprevisível do ponto de vista subjetivo e, assim como a hipermedicalização,
seriam calcados em uma generalização do sofrimento a partir do foco nos sintomas.
Nesse sentido, tem-se o relato de uma das profissionais entrevistadas que salienta uma
mudança em sua forma de trabalho, ocorrida segundo os preceitos do hospital em que atua:
antes, diante da impossibilidade de atender todos os pacientes que adentravam o pronto-
socorro, fazia uma triagem, visando pré- selecionar alguns pacientes para serem atendidos,
usando como critério a gravidade da doença. Assim, quanto mais grave fosse o quadro clínico
do paciente, mais chances este tinha de receber auxílio em seus aspectos psíquicos. No
entanto, notou-se que tal critério para escolher quais pacientes seriam atendidos era falho.
Vejamos o que a entrevistada narra:
No momento, a gente está passando por uma transição, você veio bem na fase da
transição, porque agora que a gente vai começar nessa parte da emergência, é... por
solicitação da equipe. A gente não vai mais ficar selecionando paciente por
diagnóstico, a gente vai começar a avaliar agora - é um piloto- a demanda que a
equipe traz para a gente (...) Porque a gente percebeu que a gente usando aquela
27
ficha de rastreio, por exemplo, muitas vezes não se tinha demanda. Você seleciona
um diagnóstico que parece né, com um componente médico muito complicado, mas
aí você chega para fazer a triagem e não é porque a pessoa tem um diagnóstico
complicado que a parte emocional vai estar condizente com isso. Às vezes, ela pode
ter um diagnóstico entre aspas simples e ter uma demanda emocional e psicológica
intensa. (informação verbal)
Nota-se que, sendo inviável atender todos aqueles que buscavam auxílio no pronto-
socorro, a primeira solução encontrada pela equipe de saúde mental foi utilizar um critério
médico (gravidade da doença) e um instrumento também utilizado por outros profissionais
(uma ficha de avaliação) para investigar a subjetividade do sujeito. A ficha de rastreio
mencionada preconizava os sintomas (sobretudo físicos) do paciente e não seu sofrimento.
Percebe-se que a ideia era a seguinte: se o paciente tem uma doença mais grave, posso prever
que está pior psiquicamente (sendo isto, em realidade, uma suposição apenas), o que consiste
em uma tentativa de saber, de antemão, quem deve ser atendido, sem ao menos ter contato
com os outros pacientes menos graves.
Segundo as autoras (2015), o saber sobre o sofrimento estaria do lado de quem aplica os
protocolos, visando antecipar eventuais complicações que viessem a se tornar problemáticas,
adequando o sujeito a um determinado contexto e normas requeridos. Assim como ocorre
com a questão da medicação no pronto-socorro, também os protocolos seriam entendidos
como forma breve de resolução de conflitos, se moldando facilmente ao desejado pelos
profissionais que atuam nesse local, já que oferecem soluções rápidas.
De acordo com essa perspectiva acerca dos protocolos, o psicanalista não pode se inserir
nessa lógica se pretende atuar, de fato, de acordo com o referencial psicanalítico. Por outro
lado, é preciso questionar tal visão unívoca relativa a essas ferramentas na qual o uso de
protocolos é condenável, sem maiores observações. Como proceder então?
É incontestável que a utilização mecânica de protocolos não define uma boa comunicação
e inserção na equipe por parte do profissional de Psicanálise, que, portanto, não pode ter seu
28
trabalho restrito a esses instrumentos e nem mesmo orientado por eles. Contudo, entende- se
que o uso não enrijecido de protocolos pode sim ser útil ao psicanalista, pois, assim como os
psicofármacos, não constituem o problema em si, mas sim o uso que é feito deles, ou, em
outras palavras, o objetivo com os quais são utilizados. Sendo assim, ainda que o psicanalista
venha a usar os mesmos instrumentos de outros profissionais, o uso que fará dos protocolos
terá que ser marcadamente diferente.
Diante dos impasses descritos previamente, faz-se necessário atentarmos para uma
questão importante salientada por Kupermann (2016) ao contrapor o trauma, concebido em
29
termos ferenczianos, ao cuidado em psicologia hospitalar. Tal autor afirma que “o cuidado é a
contrapartida clínica para situações potencialmente traumáticas geradas pelo processo de
adoecimento” (2016, p. 16). Da mesma forma, em sentido oposto, a indiferença por parte dos
profissionais de saúde configura-se para o autor como uma inviabilidade do cuidado, o que
consequentemente, leva a um aumento do potencial traumático naqueles que vivenciam algum
adoecimento.
5
O termo Verleugnung pode ser traduzido por recusa da realidade. De acordo com Laplanche e Pontalis (2001),
Freud utiliza tal palavra para designar um mecanismo de defesa no qual o sujeito se recusa a reconhecer a
realidade de uma percepção traumática vivenciada por ele próprio, o que teria início na constatação pela criança
da ausência de pênis na menina (fenômeno da castração).
6
Neste sentido, Kupermann (2015) diferencia o trauma sexual explicitado por Freud, produto em última instância
de um mecanismo intrapsíquico, do trauma social apresentado por Ferenczi.
30
Segundo Ferenczi:
O pior é realmente a negação, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não
houve sofrimento (...) é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico.
(1931/1992, p.79)
O trauma não está, portanto, referido à situação em si, mas pressupõe sempre a
existência de um outro que traumatiza, implicando um desencontro na relação entre o
indivíduo e um outro (FERENCZI, 1931/1992,1933/1992). Nas palavras de Kupermann:
(...) ainda que Freud, na teoria da sedução, tenha postulado que o outro tem um
papel de agente provocador (seja em ato, seja em fantasia), é apenas por meio das
contribuições ferenczianas que a comunidade psicanalítica foi convocada a indagar
acerca da função – seja protetora, seja promotora de traumatismos – da alteridade
neste contexto. (2016, p. 14)
31
Kupermann (2016) enumera então os três tempos do trauma no adoecimento,
nomeando o primeiro tempo de indizível, no qual o indivíduo é acometido por um sofrimento
abrupto, novo, diante do qual não encontra um significado. No segundo tempo, o qual o autor
nomeia de tempo do testemunho, esse mesmo sujeito procura então outra pessoa, de sua
confiança, que presencie e possa confirmar seu sofrimento, validá-lo. Já no terceiro tempo,
que Kupermann denomina de tempo da indiferença desautorizadora, a pessoa procurada não
consegue presenciar e escutar o sofrimento de um outro que a lembra de sua própria
impotência, tornando o que era indizível no primeiro tempo em inaudível. É portanto, nesse
terceiro tempo, que ocorre de fato o trauma, pois é a indiferença diante do sofrimento, o seu
não reconhecimento, que é traumatizante.
Uma das profissionais entrevistadas, ao ser questionada sobre suas limitações para
atuar no pronto-socorro, relata a existência de uma falta de comunicação na equipe. Ela narra
o caso de uma criança de onze anos que é hospitalizada devido a um adoecimento no tecido
cutâneo:
(...) eu acho que essa coisa de comunicação com a equipe é muito importante né.
Porque fica difícil quando eu estou trabalhando com uma pessoa que se culpa pelo
adoecimento que ela tem, vamos supor, uma criança com dermatite de contato. Eu
estou atendendo uma agora que ele está com o corpo inteiro ruim, ele se coça o dia
inteiro e ele é horrível porque parece que ele tem uma crosta encima dele e ele tem
um problema com isso, entendeu? Ele não quer sair na rua, ele passa a maior parte
do tempo dentro da casa dele e ele tem 11 anos. Ele tem vontade de jogar bola, ir no
parque, não sei que. Aí chega a médica e fala assim: você tem que ficar calmo
porque quanto mais nervoso você fica, mais essa dermatite aí vai aumentar. Então,
quer dizer, é difícil quando a equipe não fala a mesma língua. Às vezes, ao invés de
você ajudar, nos detalhes da comunicação, você acaba... Você não está favorecendo
a pessoa, você está falando coisas que , naquele momento emocional, a pessoa vai
receber de um jeito, não vai contribuir, vai ainda dificultar mais né, ele vai se culpar,
ele vai, enfim. Eu sei que essa coisa da equipe falar a mesma língua é muito
importante e, pra isso, a equipe tem que se comunicar e a gente vê que isso não
acontece. (informação verbal)
32
criança, há aí uma confusão de línguas. Assim, a médica pediatra poderia inicialmente ser
uma figura de cuidado, na qual a criança pudesse depositar sua confiança para partilhar seu
sofrimento. Esse último, indizível, está materializado e exposto em sua própria pele, isto é,
diante da impossibilidade dessa criança simbolizar o sofrimento, ela somatiza. No entanto, a
médica não demonstra poder ouvir tal sofrimento e, diante de sua impotência para lidar com
esse, o desautoriza, exemplificando o que é a indiferença desautorizadora relatada por
Kupermann. Quando a médica diz: “Você tem que ficar calmo porque quanto mais nervoso
você fica, mais essa dermatite aí vai aumentar”, ela também está, de certa forma, dizendo que
não pode suportar o sofrimento da criança e muito menos legitimá-lo e, por isso, está focando
em seu sintoma. O sofrimento, em contrapartida, torna-se então inaudível.
Por último, no terceiro tempo, nomeado de saúde do cuidador, afirma que o sujeito
que cuida, para estar apto a testemunhar o sofrimento alheio, necessita também cuidar de si
próprio. Podemos remeter novamente a Ferenczi (1928c/1992) quando diz que o próprio
analista deve submeter-se a uma análise profunda para poder analisar os outros e isso seria a
segunda regra fundamental da Psicanálise7. Assim, em seu texto O problema do fim da
análise (1928b/1992) aborda a necessidade de uma higiene particular do analista para dar
conta da sobrecarga decorrente de seu trabalho. Dessa forma, cabe ao psicanalista atuante em
pronto-socorro dispor de supervisões e buscar ele próprio ser analisado, mas mesmo assim,
vale questionarmos ainda o que fazem todos os outros profissionais que também lidam com
os pacientes cotidianamente, isto é, que cuidados oferecem a si próprios para cuidarem dos
outros e para se permitirem então encarar e autorizar os sofrimentos com os quais se
deparam?
7
A primeira seria a utilização da associação livre pelo paciente e da atenção flutuante pelo analista.
34
saiba sobre seu próprio sofrimento para diferenciá-lo da dor do outro e para então poder
testemunhá-la.
Diante de tais problematizações, faz-se necessário refletir sobre conceitos básicos, dos
quais o psicanalista não pode prescindir se quiser se inserir em um pronto-socorro. Ainda que
não saiba o que fazer em situações as quais, a princípio, não sabe quais serão, justamente por
se tratar de um pronto-socorro, esse profissional deve dispor de tal arcabouço teórico que lhe
ofereça certo amparo e contenção diante do imprevisto e dos problemas a serem
enfrentados.Tais noções são importantes para pensar sua matéria-prima de trabalho: a
urgência subjetiva.
35
3- PARA PENSAR A URGÊNCIA SUBJETIVA NO PRONTO-SOCORRO
Para Sotelo, a urgência “para além da singularidade de cada caso, sempre confronta o
sujeito com o excesso” (2014, p.26, tradução nossa). Mas é possível perguntar em que
consiste tal excesso? Há, na urgência, um excesso de angústia, um transbordamento, que
extrapola as capacidades do sujeito de dar sentido, ao menos inicialmente, à experiência que
está sendo vivenciada, deixando-o sem palavras, o que pode se tornar um processo
traumático.
36
No pronto-socorro e também em outros setores hospitalares, a solicitação ao
psicanalista comporta, em geral, uma urgência subjetiva já instalada, ou seja, ele não é
chamado geralmente quando tudo, ao menos aparentemente, corre bem e de acordo com o
previsto. É justamente a irrupção de algo que de algum modo sai do controle que acende uma
espécie de alerta, convocando o psicanalista para lidar com tal questão. Todavia, como
ressalva Sotelo (2014), é preciso localizar quem é o sujeito dessa urgência, a qual nem sempre
se encontra com o paciente. É possível recorrer a uma cena, trazida por uma psicóloga
entrevistada, para ilustrar tal situação:
A assistente social me chamou, ela estava super angustiada, quase começou a chorar.
Teve o maior B.O.8 lá no pronto-socorro, disse que o pai quase bateu nela e parece
que quase bateu mesmo. E ela ( e era um traumatismo crânio-encefálico) (...) e ela:
“eu já acionei o conselho tutelar e eu falei para ele que ele era mal-educado e não sei
que”. Aí eu pensei: “essa mulher está angustiada, parece que a angústia é mais dela.”
Mas aí eu também pensei: “Mas tem essa criança que caiu e esse pai que passou toda
essa situação com ela, vamos lá ver como ele está.” E a equipe também me chamou
e eu fiquei com medo né. Falei: “se esse moço está assim com a equipe, se eu chegar
lá e falar que eu sou a psicóloga, ele vai querer sei lá né”. E ele foi super receptivo,
ele estava super ansioso e falou o que aconteceu em casa. (informação verbal)
Nota-se que, nesse exemplo, a urgência subjetiva maior que mobiliza o chamado da
psicóloga estava centrada na profissional de serviço social e não no paciente (a criança) ou em
seu familiar (o pai). O que fazer com isso? Independentemente de quem tem a urgência, ainda
que seja essencial localizá-la, é necessário um certo encorajamento por parte de um outro para
que o sujeito fale e produza uma narrativa que lhe permita situar onde essa urgência aparece,
tecendo um discurso sobre a mesma que a torne própria (Sotelo, 2014). Ainda para a autora
(2014), o manejo do psicanalista visa à subjetivação da urgência, ou seja, tornar a urgência de
fato subjetiva a partir da apropriação dela pelo sujeito. Podemos então depreender que a
urgência psíquica não é já subjetivada de antemão e sim torna-se subjetiva.
8
B.O. é uma sigla utilizada para designar o termo boletim de ocorrência, documento oficial que visa a
notificação e o registro de um crime à autoridade policial ou judiciária. No trecho descrito acima, a entrevistada
utiliza o termo de modo informal para afirmar que algo equivocado ocorreu, isto é, aconteceu uma confusão ou
problema.
37
(SOTELO, 2014, p. 28,tradução nossa). Ao invés de buscar imediatamente eliminar a angústia
sintomática característica da urgência, o psicanalista a sustenta. Diferentemente da urgência
médica, a urgência subjetiva não necessita e, pode-se dizer, nem deve, ser aplacada de
imediato. Tal urgência não está remetida a um tempo cronológico e, sendo subjetiva, está sim
vinculada ao inconsciente que como sabemos, desde Freud (1915/1996), é atemporal. Moura
(2000) assinala que há o tempo do sujeito o qual não é, portanto, o tempo da ciência médica,
esse sim cronológico. É com este primeiro tempo que o psicanalista trabalha.
38
observações freudianas serão complementadas com reflexões de outros autores que também
pensaram sobre esse afeto.
Freud ( 1917a/1996) inicia seu texto na 25º Conferência afirmando que a angústia é um
estado afetivo vivenciado por todos nós; descrita pelos neuróticos como sendo seu pior
sofrimento, sendo nesses indivíduos dotada de enorme intensidade. Acrescenta ainda que
espera, com suas observações realizadas a partir do viés psicanalítico, conferir ao problema da
angústia uma abordagem muito distinta da obtida pela medicina acadêmica, uma vez que o
interesse dessa última havia permanecido sobre as vias anatômicas por meio das quais o
estado de angústia se efetivaria, isto é, os trajetos dos nervos ao longo dos quais passariam as
excitações que gerariam então o afeto de angústia. Freud (1917a/1996) assinala que, após
dedicar-se por longo tempo aos estudos sobre tais traços anatômicos, não tinha mais desejo de
compreender a temática da angústia a partir da perspectiva médica tradicional.
Dessa forma, partindo de uma leitura psicanalítica, descreve a angústia realística como
uma reação à percepção de um perigo externo esperado e previsto, sendo a manifestação da
pulsão de autopreservação (FREUD, 1917a/1996). Para Freud, a ocorrência desse tipo de
angústia dependeria do conhecimento do indivíduo acerca de uma situação ou objeto que
pudesse gerar esse afeto, isto é, uma pessoa pode ficar mais ou menos angustiada na medida
em que possui mais ou menos informações sobre uma determinada questão. Para
exemplificar, podemos utilizar um episódio extraído do pronto-socorro: supomos que um
paciente que busque atendimento em um serviço de urgência e emergência com um quadro de
infecção urinária incômodo, porém moderado, seja, ao mesmo tempo, um profissional de
saúde. Esse indivíduo, por ter um conhecimento maior sobre em que consiste seu
adoecimento, tem mais possibilidades de ficar menos angustiado.
No entanto, também há casos, como assinala Freud, em que ter mais conhecimento
pode significar maior quantidade de angústia. Nesse sentido, um familiar médico de um
paciente diagnosticado com um câncer em estágio avançado terá, pelo conhecimento
39
adquirido, probabilidade de ficar mais angustiado do que um indivíduo que desconheça a real
gravidade da situação aqui apresentada.
Se a angústia realística é considerada por Freud como reação a um perigo externo que
é esperado, podemos afirmar então que haveria alguma finalidade em se estar angustiado no
pronto-socorro? E quando a ocorrência desse afeto, ao invés de auxiliar, oferece
desvantagens? Freud (1917a/1996) afirma que a angústia pode tornar-se inadequada se for
excessiva, pois paralisa uma ação e até uma eventual fuga. No entanto, quando dosada, pode
ser vantajosa, já que se configura como uma preparação para o perigo, “através de um
aumento da atenção sensória e da tensão motora” (FREUD, 1917a/1996, p. 396). A ausência
desse estado de atenção expectante poderia então gerar sérios danos.
Para ilustrar a afirmação acima, é possível observar o caso relatado por um dos
entrevistados que se recorda do atendimento realizado aos familiares de uma paciente que
havia sofrido um acidente de moto e falecido, após ser atendida no pronto-socorro em que
esse profissional trabalhava. Enquanto a prima da paciente demonstrava sua angústia,
alternando momentos em que chorava com momentos em que buscava entrar em contato com
o restante dos familiares, além de conversar com a equipe de saúde; a tia da paciente
mencionava o quanto tinha sido positivo ter tomado de manhã uma medicação psiquiátrica da
40
qual já fazia uso diariamente e afirmava que estava bem, ponderando que quem necessitava
ser ajudada naquele momento era a prima da paciente e não ela. Segundo o entrevistado, a tia
da paciente afirmava ser muito forte e evidenciava certo alheamento ao que era dito por toda a
equipe, postura que levou o profissional a questionar para si, se não haveria certa negação por
parte dessa pessoa em relação ao falecimento da paciente.
Para Freud:
A palavra Angst, que significa angústia, remete, segundo Freud, à ideia de lugar
estreito. O autor afirma que o trauma do nascimento seria a origem e o protótipo da
experiência de angústia (1917a/1996), a qual o indivíduo revivenciaria ao longo da vida em
outras ocasiões. Aqui podemos afirmar que as vivências do indivíduo em pronto-socorro
podem remeter a essa experiência de angústia original. Se, no nascimento, ocorre a separação
entre a mãe, até então única fonte de amparo e nutrição, e o bebê, na experiênca do pronto-
socorro, o paciente também se separa de seus familiares ou qualquer outra pessoa de
referência a partir do momento em que adentra o ambiente da urgência e emergência. Cabe
salientar que geralmente não são permitidos acompanhantes para o indivíduo adoecido, exceto
quando se trata de criança ou idoso, para os quais há a possibilidade de acompanhamento.
(BRASIL, 1990a; 2003). O pronto-socorro torna-se, então, o lugar estreito com o qual o
indivíduo tem mais uma vez que lidar, não sem angústia.
O mais provável é que não tenha havido angústia vivida no início, nem terror
plenamente experimentado como tal, mas que, na posterioridade, ela seja de fato
vivida e, eventualmente, “recordada”, como “tendo sido vivida antes” e que as
repetições atualizem e façam existir no “só depois” o que era mero apelo de sentido
no tempo objetivo da sua “primeira ocorrência”. (FIGUEIREDO, 1999, p. 55)
42
Em contraposição a essa primeira modalidade de angústia realística, Freud concebe a
angústia neurótica. Embora não esteja vinculada a um perigo real, como a primeira, e sim
encontre-se relacionada a um perigo interno, a angústia neurótica também pode ser observada
no pronto-socorro. Assim, ressalta-se que há inclusive ocasiões em que é sobretudo a angústia
neurótica que traz o paciente ao setor de urgência e emergência, o que não pode ser
considerado de menos valia para os profissionais desse local. A angústia neurótica vincula-se
a um perigo desconhecido, pulsional, o qual terá ainda que ser descoberto. Caracterizada
como livremente flutuante e pronta para se ligar a uma ideia, a segunda modalidade de
angústia pode ser constatada em pacientes que demonstram, por exemplo, uma
superexpectativa de que algo mau possa lhes ocorrer.
Para ilustrarmos uma situação em que a angústia neurótica predomina, podemos citar
o episódio em que fui chamada para atender um paciente no pronto-socorro que apresentava
cefaléia, porém já havia sido examinado e medicado, sem maiores complicações em seu
quadro clínico e encontrava-se apenas em observação, com possibilidade de alta próxima. No
entanto, o paciente não aceitava a possibilidade de deixar o hospital e demonstrava enorme
ansiedade, desproporcional à situação vivenciada, pois acreditava estar muito doente. Nesse
caso, observamos que a angústia do paciente não estava associada a um perigo real, pois
embora estivesse com uma questão fisiológica no pronto-socorro, seu estado de saúde estava
totalmente sob controle.
Recorre-se então à Anna Freud (1936/2006) que afirma em sua obra O ego e os
mecanismos de defesa que enquanto o ambiente puder dar o suporte necessário a certas
situações de angústia, os mecanismos de defesa não serão necessários, bastando, portanto, os
mecanismos de adaptação e autorregulação. Assim, o analista no pronto-socorro seria o
equivalente a tal ambiente proposto por Anna Freud, pois oferece ao paciente a sustentação
necessária em momentos de angústia excessiva, evitando a instalação de mecanismos de
defesa paralisantes.
Ainda no texto de 1926, Freud descreve suas novas concepções acerca do afeto de
angústia, dividindo-o em duas espécies: a angústia automática e a angústia-sinal. A primeira
surgiria como reação a um acontecimento traumático, sendo o evento do nascimento o
protótipo de uma experiência traumática (FREUD, 1926[1925]/1996). Cabe assinalar que a
essência da vivência traumática é, para Freud, a experiência do desamparo do ego diante de
um excesso de excitações de origem interna ou externa com as quais não consegue lidar
(1926[1925]/1996). Diferentemente do que ocorre em sua primeira teoria, nota-se aqui que
Freud menciona as experiências do trauma e do desamparo como inerentes à questão da
angústia.
45
característica comum a separação ou perda do objeto amado ou perda de seu amor. São esses:
o nascimento, a perda da mãe como objeto, a perda do pênis (castração), a perda do amor do
objeto e a perda do amor do superego. Cada período da vida teria um perigo mais específico e,
consequentemente, seu determinante próprio de angústia. No entanto, o autor assinala que
todas as situações de perigo e determinantes de angústia correspondentes não seriam lineares,
podendo coexistir ou ocorrerem em fases posteriores às descritas.
Cabe aqui refletir sobre a revivência desses perigos em situações a que estão
submetidos os pacientes e seus familiares no pronto-socorro, sobretudo no que tange à ameaça
de castração, se pensarmos nas inúmeras perdas possíveis para os pacientes e seus parentes ou
cuidadores. Tais ocorrências incluem desde perdas simbólicas até perdas muitos concretas
como a possibilidade de ficar sem uma parte do corpo ou até sem a própria vida. Assim, a
emissão de angústia automática nessas ocasiões pode ocorrer com frequência.
Uma das entrevistadas narra um episódio no qual foi chamada para auxiliar na
comunicação de óbito a um familiar cujo filho de treze anos havia falecido no hospital, após
sofrer um traumatismo cranioencefálico em decorrência de um acidente. A profissional afirma
que o parente entrou em uma espécie de estado de choque após receber a notícia do
falecimento, não esboçando qualquer reação e não conseguindo se comunicar nem mesmo
com a esposa que chegou ao pronto-socorro em seguida. Devido à morte súbita e precoce do
filho, não houve qualquer possibilidade de emissão de uma angústia sinal para esse familiar
naquele momento, sendo tomado de forma imediata por uma angústia avassaladora e
traumática, paralisante.
Nesse mesmo sentido, se a angústia sinal consiste no emprego pelo ego de uma
quantidade pequena de angústia que funcione como um alerta, podemos pensar em alguns
casos que ocorrem em menor número, atendidos em urgência e emergência, nos quais o
próprio paciente ou algum familiar não demonstram sentir angústia. Tais situações, por serem
silenciosas e não demandarem atenção da equipe, não costumam ser alvos de pedidos de
atendimento para o psicanalista. No entanto, deveriam sim se destacar na medida em que a
angústia-sinal não parece estar presente e é saudável que esteja, pois em sua ausência, a
emergência de uma angústia automática denota um episódio traumatizante para o indivíduo
nele imerso.
46
Outro entrevistado assinala que é comumente solicitado pelo restante da equipe para
atender em casos nos quais há justamente alguma notícia de óbito, amputação ou em situações
de terminalidade. Em todas essas circunstâncias, há separação, perda do objeto e castração
que irão alavancar angústias automáticas ou angústias sinais. São justamente tais ocasiões tão
propiciadoras de angústias que levam a equipe a solicitar atendimento do psicanalista a
pacientes e familiares.
Para concluir, podemos questionar no que consiste essa situação de perigo vista como
tão ameaçadora a ponto de gerar grande angústia. Freud afirma:
3.3 O traumático
Vimos até agora que Freud (1926[1925]/1996) enfatiza ao longo de sua exposição o
fato de o indivíduo, após ter experimentado sua primeira reação de angústia automática no
trauma do nascimento, quando imerso no desamparo, criar a partir desse momento uma
expectativa de novas situações de perigo, podendo, para se proteger, emitir angústia-sinal. No
entanto, sabemos que nem sempre esse sinal de alerta funcionará do modo como descrito por
Freud, isto é, há situações em que o excesso de estímulos ultrapassará as capacidades do
aparelho psíquico de lidar com a situação de perigo que se apresenta, culminando em uma
situação traumática.
48
que está acontecendo com ele, isto é, tem de colocar em palavras o que sente fisicamente para
que possa vir a ser atendido. Em seguida, pode haver ou não algum tempo de espera para que
seja efetivamente cuidado por algum profissional, pois pacientes politraumatizados, isto é,
que sofreram algum tipo de acidente sério, costumam ter entrada imediata na sala de
emergência.
49
Acontecimento da vida do sujeito que se define pela sua intensidade, pela
incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma adequada, pelo
transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que provoca na organização
psíquica. Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de
excitações que é excessivo em relação à tolerância do sujeito e à sua capacidade de
dominar e de elaborar psiquicamente estas excitações. (2001, p. 522).
Nesse mesmo sentido, podemos lembrar de médicos que não compreendem alguns
aspectos manifestados por pacientes em pronto-socorro, os quais têm como motivação fatores
inconscientes e conflitos mentais, mas têm de lidar com essas particularidades, pois
interferem em questões fisiológicas. Um paciente que não adere ao tratamento, por exemplo, é
um fato incompreensível para o profissional de medicina que dele cuida e é algo não previsto
por ele em seus estudos médicos. Como pode um paciente não querer melhorar?
É também, nesse momento, que entra em cena o psicanalista, cujo objetivo não é fazer
o paciente aderir à medicação e a procedimentos, mas sim tentar compreender quais os
mecanismos inconscientes que regem a atitude e as decisões de tal paciente. Nesse aspecto,
pode-se discutir também a questão da demanda do médico ao analista, como já abordado
anteriormente.
51
neuroses de transferência, o que é temido é, não obstante, um inimigo interno
(1919/ 1996, p.226).
No entanto, a forma como cada indivíduo, sendo esse sujeito o próprio paciente ou
não, irá lidar com tais situações será única, singular. Nesse sentido, Freud (1919/ 1996)
assinala que não existe uma experiência traumática em si, isto é, o que determinará que um
acontecimento se torne traumático ou não é a combinação entre as intensidades dos estímulos
externos e internos presentes na situação e dos recursos do indivíduo para lidar com esses
estímulos (VOLICH, 2000). Isso significa que uma mesma situação pode ser vivenciada como
traumática por um sujeito e como não-traumática por outro, dependendo dos recursos internos
de que cada um deles dispõe. Essa constatação deve ser levada em consideração pelo
psicanalista em seu trabalho no pronto-socorro, pois assinala a singularidade de cada sujeito
que é atendido por ele em tal espaço.
Em seguida, após chorar muito, a familiar pôde falar o que estava sentindo naquele
momento e de como era sua vida com o marido, de como se conheceram, além de abordar os
planos que tinham, isto é, falou do passado e do futuro não concretizado. Permaneci com ela
até que outros familiares chegassem. Acredita-se, nesse contexto, que poder falar sobre a dor
psíquica que vivenciava naquele instante permitiu, de alguma forma, um começo de
elaboração de seu luto, evitando, por exemplo, a possibilidade de vir a se configurar como um
luto anormal ou complicado. Tal fator dependeria ainda dos recursos emocionais prévios da
familiar, mas poder se expressar em um primeiro momento pode ter sido determinante para os
rumos concernentes à elaboração psíquica da situação anunciada. Nessa perspectiva, tal
profissional estaria situado então em uma esfera preventiva em termos de saúde mental.
9
Carta 52 de 6 de dezembro de 1896
53
Não é possível falar em trauma no pronto-socorro e em prevenção traumática sem
abordar o texto freudiano Além do Princípio de Prazer, de 1920. Nessa obra, Freud
(1920/1996) desenvolve a noção de compulsão à repetição que se sobreporia ao princípio de
prazer, na medida em há nesse movimento compulsivo a rememoração de cenas as quais não
comportam qualquer experiência de prazer e que nunca trouxeram qualquer satisfação, sendo
uma manifestação de poder do material reprimido no aparelho psíquico. Tal compulsão foi
notada por Freud nas brincadeiras de seu neto com um carretel (o fort da), nas transferências
analíticas e também nos sonhos presentes nas neuroses traumáticas.
Por meio desses últimos, Freud (1920/1996) descobre que nem todas as experiências
oníricas seriam realizações disfarçadas de desejos reprimidos, uma vez que os sonhos dessa
natureza repetiam cenas traumáticas dolorosas, sem desejo e prazer, e sua função seria então
desenvolver a angústia retroativamente onde ela não esteve presente na ocasião original do
evento traumático, ou seja, efetuar os trabalhos de ligação até então não realizados. O objetivo
de tais sonhos traumáticos seria a elaboração dos acontecimentos que até aquele momento não
haviam ganhado uma representação na consciência, não haviam sido integrados.
Assim, se a compulsão para repetir atua a favor dos eventos traumáticos, o trabalho do
psicanalista no pronto-socorro, na medida em que tem como uma de suas finalidades prevenir
a instalação efetiva de um trauma, visa também, por conseguinte, evitar a instauração de
comportamentos, pensamentos e ações repetitivos e desagradáveis para o sujeito, favorecendo
um processo de elaboração. Cabe relacionar aqui os casos de dois pacientes atendidos no
pronto-socorro que tinham o mesmo nome e que apresentavam sequelas motoras semelhantes,
além de serem ambos relativamente jovens, ainda que houvesse uma diferença de idade entre
eles. Um havia sofrido um acidente de carro e o outro havia caído de uma escada.
54
No entanto, enquanto um dos pacientes apresentou melhoras, obteve alta hospitalar e
se tornou esportista profissional, o outro praticamente não conseguiu sair do hospital e após
passar por um período de um ano e meio em reinternações constantes, nas quais fazia muitas
exigências à equipe e a seus familiares, acabou por vir a falecer em decorrência de sucessivas
complicações em quadros de infecção hospitalar.
Podemos indagar o que levou esses dois pacientes tratados no mesmo hospital a
destinos tão diferentes? Um deles encontrou mecanismos sublimatórios e por meio do esporte,
pôde reconstruir sua história, enquanto o outro não conseguiu adotar recursos que lhe
permitissem lidar com o afeto inerente à vivência do trauma, repetindo continuamente as
experiências de adoecimento, hospitalização e dependência de um outro diante de suas
sequelas motoras, até que a pulsão de morte predominasse.
55
Winnicott, ao diferenciar um evento gerador de um trauma das falhas normais e
necessárias para o desenvolvimento do sujeito, afirma que o evento traumático representa uma
situação na qual houve uma grande intrusão de fatos reais, ocorrida de forma repentina e
imprevisível, gerando uma quebra de confiança até então instalada (1965/1994). A partir
desses enunciados, pode-se inferir que o traumático, em termos winnicottianos, encontra-se
muito presente em situações de urgência e emergência, as quais são, por excelência,
compostas por imprevisibilidades e rupturas, sentidas como invasões pelo indivíduo. Sendo
assim, deve-se observar o modo pelo qual os indivíduos acometidos abruptamente por um
adoecimento lidam com os aspectos emocionais gerados nesse contexto.
Uma das profissionais entrevistadas relata que recebe muitas demandas da equipe com
a qual trabalha para atender pacientes adolescentes que tentaram o suicídio. Ela credita tais
56
solicitações ao fato de que os demais profissionais da equipe de saúde não têm paciência para
manejar tal situação. A entrevistada afirma que já há uma menor tolerância dos membros da
equipe para atender adolescentes em geral, embora trabalhem em um pronto-socorro infanto-
juvenil, e que o nível de aceitação em relação à tal faixa etária torna-se ainda mais reduzido
quando esses profissionais se deparam com casos específicos em que se pretende dar fim à
própria vida. Nas palavras da entrevistada:
(...) é uma equipe que não... que tolera a criança, mas não tolera o adolescente. Isso
fica muito claro, até da forma como eles chamam, sabe, tipo: “ai, vai lá ver aquilo
porque eu não aguento”, assim. E quando é tentativa de suicídio, aí piorou, porque é
piti, é frescura, é a pessoa que está querendo jogar a vida fora, tipo “tanta coisa para
fazer e está aí tentando se matar”, tipo, “vai lá conversar com ele porque eu não
aguento isso”. Isso é muito comum de ver na fala da equipe. (informação verbal)
Nota-se, então, que o objetivo da equipe ao solicitar o suporte emocional para esses
pacientes não é o bem-estar dos sujeitos em questão, uma vez que tal demanda está
fundamentada na impossibilidade de oferecer um ambiente de confiança e cuidado. Diante da
angústia gerada ao ter que lidar com o indivíduo que tenta tirar a própria vida, os profissionais
reproduzem e perpetuam a confusão e o caos já presentes tanto internamente nos pacientes
quanto externamente no pronto-socorro.
57
No entanto, os profissionais de saúde também necessitam de cuidados. No texto Da
dependência à independência no desenvolvimento do indivíduo, Winnicott (1963/1983)
afirma que a mãe, para adaptar-se ativamente ao bebê na fase de dependência absoluta, em
atitude de devoção a seu filho, necessita também de uma rede de apoio, sem a qual pode ficar
sobrecarregada em seus cuidados. Podemos aqui fazer uma analogia com o que ocorre em
relação aos profissionais de saúde, já que também precisam de cuidados, de uma rede de
sustentação que pode ser concretizada por meio de supervisões periódicas, por exemplo, ou
outras atividades que filtrem os excessos psíquicos/emocionais inerentes ao seu trabalho
cotidiano.
Assim como Winnicott diz que não só o bebê, mas “a própria mãe está em um estado
dependente e vulnerável” (1963/1983, p.81), também os trabalhadores em saúde encontram-
se, muitas vezes, fragilizados física e emocionalmente, ainda que não lidem, na maior parte do
tempo, com indivíduos em dependência absoluta. Desse modo, é possível até mesmo
compreender que uma situação traumática pode ocorrer também em sentido inverso, ou seja,
com quem trabalha no pronto-socorro, pois esses indivíduos também são acometidos por
experiências invasivas e que comportam reações não apropriadas.
Do mesmo modo que constatamos em Freud, também é possível reconhecer por meio
da teoria winnicottiana que sentimentos observados em situações de urgência e emergência
podem não ter sido ali originados, mas sim apenas despertados nessas ocasiões extremas,
ainda que muitas vezes sejam sentidos como urgentes, inéditos. Para Winnicott (1949/ 1978),
diferentemente de Freud, nem toda experiência de nascimento é traumática. No entanto,
quando essa vivência torna-se efetivamente traumática, de acordo com os pressupostos
winnicottianos, acaba por se assemelhar à noção universal do trauma do nascimento em Freud
em um aspecto: em ambas, os traços mnésicos do trauma do nascimento ficam gravados no
aparelho psíquico do indivíduo e influenciam as experiências de trauma subsequentes.
58
base para expectativas posteriores em que também haverá a perda de continuidade do
ser.Winnicott afirma:
A angústia é, para Winnicott, uma experiência física não compreendida, nem passível
de evitação, relacionada a um conteúdo originário do inconsciente reprimido. De modo geral,
podemos ressaltar na teoria winnicottiana a importância de um ambiente que não traumatize
ou retraumatize o paciente que precisa estar em um pronto-socorro, isto é, um local que não
59
exija desse sujeito reações além das suportáveis e que lhe permita manter seu ego integrado,
seu continuar a ser, sem interrupções bruscas ou graves rupturas. Tal ambiente então é
também responsável pela relação que o paciente e seus familiares estabelecem com os
profissionais de saúde, na medida em que um ambiente suficientemente bom, isto é, que possa
falhar, porém não além de certos limites, inibe padrões de relações persecutórias estabelecidas
entre profissionais de saúde, familiares e pacientes.
60
pelos seres humanos (FREUD, 1926[1925]/1996) que, desde o início da vida, necessitam de
auxílio proveniente do mundo externo, o qual está associado à experiência de satisfação,
mediante a descarga de estímulos desprazerosos. Assim, conclui-se que se por ventura, tal
vivência de satisfação não for possível de ser realizada, se produz em seu lugar uma certa
decepção, isto é, há o desamparo diante do desejo não realizado, da falta (LAPLANCHE e
PONTALIS, 2001). Segundo Laplanche e Pontalis (2001, p. 112), o desamparo “influencia
assim de forma decisiva a estruturação do psiquismo, destinado a constituir-se inteiramente na
relação com alguém”.
Rocha (1999) configura o desamparo como uma vivência diante do que não pode ser
previsto. Sendo assim, não é difícil constatar sua presença maciça no pronto-socorro.
Podemos conceber que o indivíduo que chega a esse local com um acometimento físico agudo
ou crônico grave está invariavelmente imerso em seu desamparo e, portanto, também assolado
por angústias que remontam a vivências primitivas.
Freud ainda associa a descoberta do inconsciente ao desamparo, uma vez que essa
nova evidência destrói a ideia até então concebida de que a consciência seria identificada com
o psiquismo. Assim, com tal descentramento, o indivíduo perde então sua suposta autonomia
(ROCHA, 1999). De acordo com Rocha (1999), a noção de inconsciente em Freud remonta
não só ao que estaria escondido ou latente, mas também ao Outro presente no discurso
consciente, em suas lacunas, como o que é inesperado. Assim, nas palavras de Freud (1917/
1996, p.153):
Essas duas descobertas- a de que a vida das nossas pulsões sexuais não pode ser
inteiramente domada e a de que os processos mentais são, em si, inconscientes, e só
atingem o ego e se submetem ao seu controle por meio de percepções incompletas e
61
de pouca confiança – estas duas descobertas equivalem contudo à afirmação de que
o ego não é o senhor de sua própria casa.
Desse modo, tal desalojamento do ego traz consigo a ideia de um ser humano
desamparado não só em relação às forças externas, mas também no que se refere a conflitos
internos, isto é, que não estava totalmente no controle de sua própria vontade. Pode-se dizer
então que o sistema inconsciente torna nítido o desamparo humano. Para Freud, tal fato
aumentou as resistências em relação à Psicanálise, na medida em que os estudos e práticas
psicanalíticos evidenciavam ao Homem sua condição de desamparo.
Dito isto, o desamparo é o que talvez melhor nos permita compreender a relevância da
presença do psicanalista no pronto-socorro, isto é, em situações de extrema crise. A escuta
àquele que se encontra desamparado é, em muitos casos, valorizada pelo indivíduo adoecido:
ao despedir-me, certa vez, de uma paciente em cuidados paliativos que não continuaria a ser
atendida por mim, ela pôde dizer o quanto havia sido importante estar em contato com alguém
com quem pudesse falar sobre o que estava ocorrendo, consciente de sua situação de
terminalidade, afirmando: “Sei que muitos não entendem o que você faz aqui, mas me ajudou
muito poder falar sobre tudo isso”. (informação verbal)
Acredita-se que essa senhora pôde colocar em palavras o que estava vivenciando e que
talvez não pudesse fazê-lo com mais ninguém naquele momento. A viabilidade de um
processo de elaboração daquela situação pareceu só ter sido possível na medida em que a
doente conseguiu se referir a um Outro, da mesma forma que a compreensão referida por ela
em relação ao atendimento psicanalítico naquele local se deu a partir de sua condição
acentuada de desamparo.
Uma das profissionais que contribuiu para este estudo relembra o caso de atendimento
a um paciente de nove anos. Ele havia sofrido um acidente no quintal da casa onde morava
gerado por um caminhão que adentrou nesse local, quando brincava, e acabou por atingí-
lo,deixando-o prensado entre o automóvel e uma parede. Como resultado desse acidente, a
criança teve esmagamento de pelve, desarticulação da perna direita, fratura no membro
inferior esquerdo, além de precisar fazer uso de bolsa de colostomia.
Essa psicanalista conta que a criança tinha muita dificuldade na hora de tomar banho
no hospital, quando se via mutilado, além de sentir enorme dor, gritando muito. Inicialmente,
o paciente evitou contato com outra profissional de saúde mental que se mostrava disposta a
atendê-lo, o que levou a profissional entrevistada a tentar fazê-lo também. Ela narra uma das
primeiras intervenções com o paciente:
(...) uma das intervenções foi justamente essa de conseguir ajudá-lo a colaborar de
alguma forma no momento do banho porque como ele ficava com muito medo, ele
ficava muito tenso, e aí na hora de virarem ele na cama, ele se agarrava na cama e
não queria deixar virar. A enfermagem tentava virar para lá e tentava virar para cá e
aí é uma coisa bem complicada, então eu ficava inclusive no momento do banho
para tentar ajudá-lo a desfocar daquela questão da dor naquele momento. Perceber o
quanto ele podia, de alguma forma, ter algum controle sobre essa intensidade e se
ele pudesse combinar com a enfermagem um tempo... né: “Vai virar: vamos contar
1,2,3 e você vai ajudar, você vai jogar esse braço junto”. E aí ele se sentia mais
participativo e menos ameaçado nesse... nesse momento.(informação verbal)
Também podemos observar por meio desse relato, como a angústia está vinculada à
situação de desamparo extremo. Para Freud, a angústia é “a reação original ao desamparo no
trauma, sendo reproduzida depois da situação de perigo como uma sinal em busca de ajuda”
(1926[1925]/1996,p.162). Sendo assim, pode-se compreender melhor como a reação do
paciente no momento de tomar banho, com gritos e certa oposição, demonstrando receio, era
também produto da situação vivenciada previamente, além de ser sobretudo um pedido de
ajuda, como previsto por Freud.
A psicanalista em questão consegue ler essa busca por algo que o ajudasse a enfrentar
tal perigo e passa então a tentar fazer com que o paciente, à medida que se tornasse mais
ativo, também se sentisse menos desamparado. A angústia automática e a sensação de
aniquilamento quase real, a que ficou submetido o paciente diante de uma situação fortemente
traumática, puderam ser convertidas em um sinal de angústia, possibilitando a essa criança
começar a lidar com seus perigos tanto internos quanto externos.
Rocha (1999, p.342) avalia o desamparo como “um grito desesperado de ajuda
lançado na direção do outro”. A ausência de uma resposta a essa expressão transforma o
desamparo em desespero, segundo o autor. O pronto-socorro é um local no qual há infinitas
possibilidades de perigos geradores de desamparo. Nesse sentido, o psicanalista tem um
trabalho a ser realizado em prol do paciente que se acha desamparado nesse ambiente, de
forma a não permitir que tal desamparo se transforme em desespero, escutando seu grito.
Possibilitar o reconhecimento desses perigos e uma postura ativa para enfrentamento dos
64
mesmos, junto ao paciente, permite a esse sujeito tornar essa experiência mais própria,
conferindo-lhe maior sentido.
É possível citar aqui uma ocorrência em que uma paciente já idosa havia sido
hospitalizada no pronto-socorro após sofrer um acidente vascular cerebral que a havia deixado
com sequelas motoras. Fui chamada para atender tal paciente e sua família, pois a mesma, ao
contrário do que previam as ordens médicas, estava querendo sair do hospital. Seus
familiares, por sua vez, a apoiavam nessa decisão, o que gerou um grande conflito entre eles e
o médico responsável pelo caso.
Ao atender a paciente e depois seus familiares, ambos me diziam que não era
necessário permanecer no hospital, pois Deus iria curá-la, mesmo que estivesse em casa.
Eram extremamente religiosos e demonstravam muita fé. Não cabe aqui um julgamento em
relação ao que seria correto do ponto de vista científico, mas sim a constatação de que, diante
de uma situação súbita e fora de controle, como a ocorrência de um AVC, os familiares e a
paciente buscaram na força gerada pelo sentimento religioso um artifício contra o desamparo
que vivenciavam naquele momento. Acabaram saindo do hospital, como desejavam, ainda
que a paciente não tivesse condições para isso, e essa decisão acabou configurada nos
registros do hospital como o que é denominado de evasão, isto é, a saída do paciente sem a
concordância e a autorização médicas.
65
que nos permite reiterar a existência desse sentimento na essência de nossa condição humana
(ROCHA, 1999).
Ainda segundo o mesmo autor (1999), se não pode eliminar a sua condição de
desamparo, o Homem pode vir a aceitá-la, usando sua criatividade para buscar saídas e lidar
melhor com tal situação10. O psicanalista, ao escutar o grito do paciente ou visualizar suas
10
Winnicott (1971/1975), em sua obra, já destaca a importância da criatividade ao ressaltar que viver
criativamente constitui um estado saudável em oposição a um modo de viver submisso, associado à ideia de que
66
marcas, pode assim ampará-lo e auxiliá-lo a encontrar um caminho criativo que lhe permita
transformar, pelas vias possíveis de elaboração, suas vivências de urgência subjetiva. A partir
dessa ideia, será possível abordar o tema da simbolização.
De acordo com Cintra, “um dos destinos prínceps da angústia é a sua transformação,
através dos processos de simbolização”11. Com efeito, acredito que o psicanalista atuante em
pronto-socorro é convocado a trabalhar tanto com processos de simbolização primária, quanto
secundária, dependendo do paciente e da situação diante dos quais se encontra. Faz-se
necessário então definir o que é a simbolização, assim como demarcar as diferenças entre as
suas duas modalidades presentes nesse processo.
não vale a pena viver a vida. A criatividade mencionada por esse autor está relacionada ao modo como o sujeito
aborda sua realidade externa, sentindo que a vida é digna de ser vivida.
11
Trecho retirado de material fornecido pela professora Elisa Cintra na disciplina “ Da angústia aos processos de
simbolização”, ministrada no programa de pós-graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP no segundo
semestre de 2015.
67
há elementos das mais diversas ordens com os quais esse sujeito terá que lidar, já que estão
presentes sons, cheiros, imagens e movimentos que terão que ser metabolizados e inscritos no
aparelho psíquico do indivíduo, isto é, terão que tomar para ele uma primeira forma, como por
exemplo uma espécie de imagem mental, já diferente de seu estado bruto original, o que
consistiria em um trabalho de simbolização primária. Em um segundo momento, esse paciente
pode conseguir usar palavras para expressar o que pensa sobre essa experiência e como a
sente, o que consistiria em um trabalho de simbolização secundária.
Pois a linguagem é também corpo, ela não pode ser enunciada sem a participação da
voz com toda a gama de sua expressividade e os picos prosódicos. Mas ela é
também a influência sobre o outro (...) da maneira pela qual os conteúdos psíquicos
não são apenas evocados, mas são também transmitidos em forma de gesto, de ação,
para o outro. Ela é também uma linguagem dramática, que transmite as emoções e as
paixões e que tem efeitos concretos sobre o corpo. 12
Todavia, se tais processos simbolizantes não são viáveis para alguns pacientes, instala-
se uma situação traumática. Para Minerbo (2015, p.237), o trauma consiste em um
“acontecimento que bloqueia, em algum ponto, o processo de simbolização”. No trauma, as
grandes quantidades de estímulos atravessam o escudo protetor do aparelho psíquico e
aumentam a quantidade de excitação nesse último, gerando desprazer (FREUD, 1920/1996).
Para voltar a manter a quantidade de excitação em um nível mais baixo e tolerável, o aparelho
psíquico irá então promover ligações, mas também evacuar o que não é simbolizável. Em
algumas situações presenciadas no pronto-socorro, observei momentos de exasperação
vivenciados por pacientes, nos quais o que não era passível de ser ligado e representado, era
12
Trecho retirado do mesmo material citado anteriormente
68
consequentemente evacuado, sendo então promovidas contínuas repetições que ameaçavam a
integração do ego do indivíduo.
69
Ainda de acordo com a função simbolizante proposta por Roussillon (2012a,2012b), é
pertinente considerar que é justamente tal material evacuado por esses pacientes no pronto-
socorro que pode vir a ser digerido mediante uma relação pautada na transferência. Segundo
o autor, a matéria-prima psíquica de natureza afetiva-perceptiva-sensório-motora precisa
primeiro ser assumida em sua forma material, tornando-se perceptível, para então poder se
tornar consciente. Isso significa que essa matéria psíquica primeiro precisa ser percebida fora
para depois se tornar representável na consciência. A percepção de tal conteúdo psíquico se
daria por meio de sua transferência para algum objeto.
Nesse sentido, Roussillon (2012b) assinala que tais pacientes são inaptos para
realizarem essa transformação de suas pulsões e movimentos em um sistema imagético/
metafórico, que em seguida tornaria a ser convertido em sua forma verbal. Afirma, então, que
a esses sujeitos restará se expressarem diretamente no campo motor ou apenas mostrarem o
que ocorre com eles, porém sem conseguirem usar palavras.
70
Minerbo (2015) nos oferece a ideia do aparelho psíquico humano como destinado à
digestão e metabolização de vivências emocionais, o que a autora denomina de função
simbolizante. Sendo assim, destaca-se ainda em relação à vinheta descrita o fato de a paciente
ingerir utensílios não facilmente digeríveis, isto é, não metabolizáveis pelo próprio
organismo, tal como ocorria com seus conteúdos psíquicos. Do mesmo modo que suas
impressões, sensações, percepções e outros traços mnésicos permaneciam em estado bruto,
assim também ocorria com os objetos que colocava para dentro do seu corpo. Assim, algo
dela, de seu interior não digerido, se tornava aparente através do raio X.
Para situar melhor o que são ambas as simbolizações, a primária e a secundária, mas
especialmente para entender a primeira, é essencial considerar que aquilo que está hoje no
campo dos pensamentos, julgamentos e dos desejos, esteve antes na esfera das sensações e
nos órgãos dos sentidos (ROUSSILLON, 2012a) ou em outras palavras, como afirmou Freud
(1923/1996): o ego é, acima de tudo, um ego corporal. Da mesma forma, conclui-se então que
o corpo, do ponto de vista da Psicanálise, não é um corpo puramente biológico e sim já
erogenizado, objeto de investimento libidinal, o que nos permite afirmar que as angústias
inscritas no psiquismo e no corpo são dotadas de uma relação dialética (ROCHA, 2000).
Nesse mesmo sentido, Minerbo (2015), fundamentada em Roussillon, afirma que essa
mesma libido que investe o corpo é também o combustível necessário para que as
experiências vivenciadas pelo indivíduo possam ser digeridas e não somente evacuadas. Dito
de outra forma:
Assim, a paciente do caso relatado, pouco investida desde o início de sua vida,
acabava por não conseguir fazer as ligações necessárias para que houvesse qualquer processo
de simbolização. Diante de tal cenário, havia uma tentativa de promover tal ligação fora do
aparelho psíquico (MINERBO, 2015), em movimentos de mera descarga da pulsão, nos quais
ocorriam atuações, isto é, a ingestão de materiais, inclusive pontiagudos, que colocavam em
risco sua vida.
71
É a partir desse olhar que o psicanalista atuante em pronto-socorro deve estar apto a
trabalhar, com a escuta polifônica já mencionada, direcionada para esse sofrimento que, em
muitos momentos, não é passível de representação simbólica imediata. Aqui cabe uma
diferenciação proposta por Roussillon (2012b) entre o que é representação simbólica e o que é
representação não-simbólica, isto é, nosso aparelho psíquico está sempre representando, mas
podemos representar sem saber que o fazemos. Assim, as experiências traumáticas são
aquelas sem representação simbólica, porém há ainda nessas vivências alguma forma de
representação, já que foram sentidas, ou seja, há algum tipo de registro da cena traumática,
ainda que não simbolizado. Já na simbolização, o sujeito sabe que está representando.
Recorre-se novamente ao exemplo da paciente supracitado, uma vez que seu caso
também pode ser elucidativo em relação à representação não-simbólica. Um profissional de
saúde menos atento que atenda a paciente pode não inferir que há um grande sofrimento
psíquico no ato de engolir objetos metálicos, interpretando-o apenas como uma atitude sem
sentido, pois ela não diz diretamente que sofre ou não demonstra isso de modo simbólico. No
entanto, ela o faz de outra forma, ou seja, há uma representação não-simbólica de seu
sofrimento instaurada no ato de engolir objetos e mesmo que a paciente não tenha consciência
disso, a angústia não digerida a faz buscar um lugar no qual almeja um socorro para alívio em
relação a esse afeto. Assim, essa paciente enxerga no pronto-socorro a possibilidade de
alguma continência, isto é, de ser socorrida efetivamente.
72
ser pensada no contexto do pronto-socorro. Tal noção contempla as capacidades de sentir e de
se sentir, de ver e de se ver e de ouvir e de se ouvir do analista. De acordo com Roussillon:
Se sentir é aceitar ser afetado pelo representante afeto da pulsão; ser capaz de ver e
de se ver é integrar a representação de coisa como, por exemplo, na atividade
onírica; ser capaz de ouvir e de se ouvir é integrar a representação de palavra (...)
Logo, um sujeito capaz de se sentir, de se ver e de se ouvir possui um triplo modo de
relação consigo mesmo e também é capaz de sentir, ver e ouvir o outro, além de
articular estes três sistemas de reflexividade (2012b, p.5,6)13.
Por meio da ressonância propiciada por tal reflexividade, forma-se uma “concha
acústica” que permite desbloqueios nos impasses de significação, propiciando a nomeação e a
inscrição de tais vivências no psiquismo. É necessário que os pacientes expressem, da forma
como puderem, suas histórias a um outro que lhes confira um valor de linguagem, o que inclui
desde o que os trouxe ao setor de urgência e emergência até o que mais quiserem, uma vez
que a entrada no campo do sentido é, desde os primórdios, especular.
13
Texto transcrito e traduzido por Bianca Bergamo Savietto, produto da conferência realizada por René
Roussillon na Reunião Científica “A psicanálise e a clínica contemporânea – Elasticidade e limite na clínica
contemporânea: as relações entre psicanálise e psicoterapia”, no IPUSP, em 2012.
73
casos, busca-se instaurar ou resgatar no paciente traumatizado ou submetido a situações
potencialmente traumáticas suas capacidades de simbolização por meio, sobretudo, da
presença do analista em um primeiro momento. Nesse aspecto, vale assinalar a necessidade de
uma simbolização primária que precisa ser concretizada na presença do objeto e não em sua
ausência.
Roussillon (2012a) utiliza o termo meio maleável, cunhado por Marion Milner14, para
caracterizar a presença a ser adotada em tal trabalho pelo analista, especialmente no que se
refere à simbolização primária. Nesse primeiro momento, a simbolização ocorre na presença
do objeto e depende que ele seja suficientemente bom para que possa de fato acontecer. O
autor descreve três formas diferentes por meio das quais essa simbolização ocorre que são: a
relação com o objeto, o brincar e o sonhar. A primeira e a última serão contempladas para fins
de compreensão da atividade do analista no pronto-socorro.
O meio maleável deve ter qualidades tais como ser transformável, adaptável, sensível,
receptivo, suficientemente disponível, acessível, previsível, porém não passível de ser
destruído ou abalado. Destaca-se aqui, no contexto da urgência e emergência, as três últimas
propriedades descritas como especialmente provedoras de um ambiente meio maleável, uma
vez que proporcionam sentimentos de constância e segurança.
14
Psicanalista inglesa que estudou os fenômenos criativos, realizando uma articulação entre arte, Psicanálise e
prática clínica. (DEVITO, 2015)
74
contato com o analista para se dar conta das sensações despertadas em si próprio diante de
experiências novas que lhe são apresentadas no pronto-socorro. Vejamos o caso de um
paciente que não estava acostumado a demonstrar quando estava com raiva em seu meio
familiar, mas que de repente, se vê muito inquieto e irritado por não ter sido atendido no
período de tempo esperado por ele no pronto-socorro. Assim, se inicialmente o sujeito
adoecido não percebe, por exemplo, que está com raiva nessa situação nova para ele, pode
começar a perceber isso por meio de um outro, o analista, que faz com que o indivíduo note
essa raiva primeiro fora de si para só depois internalizá-la e enxergá-la como própria, ou seja,
integrá-la. Observa-se que é preciso que o analista, como meio maleável, não seja passível de
ser destruído diante da irritação do paciente, já que isso constitui uma das características desse
modo de presença, como visto.
Roussillon (2013) acrescenta que todos os dispositivos clínicos são permeados pelo
trabalho da simbolização e utilizam para tal uma mediação, que é o vetor da linguagem, por
meio da qual esse processo pode se desenvolver. Segundo o autor, tais mediações podem ser
tanto materializáveis, como expressões de pinturas ou artes plásticas, como também podem
ter uma forma menos concreta, como é o caso da linguagem verbal. Esse segundo caso
implica uma postura por parte do analista que coloca à disposição do paciente uma atitude
interna a serviço do acolhimento e da transformação daquilo que esse sujeito procura lhe
comunicar.
No caso do paciente irritado com o que ele considera ser uma demora no atendimento,
é necessário então que o psicanalista procure compreender o que esse indivíduo está lhe
75
exprimindo com sua raiva, o que há para além desse sentimento e que também está sendo
compartilhado com o analista pelo paciente, mesmo que não diretamente. Para além disso, é
preciso que, a partir desse encontro, o próprio paciente consiga enxergar também o que ocorre
com ele naquele momento.
Roussillon (2013) evoca o conceito de empatia proposto por Ferenczi para pensar
essa função meio maleável, simbolizante, do analista, afirmando que a atitude interna a ser
adotada pelo analista para cumprir tal função deve ser plástica, isto é, ele deve estar propenso
a moldar uma parte de si de acordo com os estados psíquicos e emocionais de um outro
sujeito. Diante dessa característica de plasticidade, o autor entende, como já mencionado
previamente, que o analista pode, ele próprio, ser um meio maleável para o paciente, pois ao
acompanhá-lo, em meio ao processo transferencial, se ajusta às suas necessidades que variam
no caminho para a integração.
O psicanalista no pronto-socorro funciona assim como um meio maleável que deve ser
flexível diante do que apresenta cada paciente ou familiar, a cada momento, uma vez que os
objetos de mediação não são sempre os mesmos, isto é, não apresentam sempre as mesmas
possibilidades e as mesmas formas de simbolização. Esse profissional também deve estar
atento ao modo como esses sujeitos lidam com ele, pois a maneira como o indivíduo usa o
meio que lhe é proposto nos ensina sobre o seu funcionamento psíquico, o que é bastante útil
para a prática clínica (ROUSSILLON, 2013). Um paciente que recusa um atendimento ou
76
que o aceita e permanece em silêncio, por exemplo, está nos mostrando algo de seu modo de
funcionamento psíquico, o que, por sua vez, direcionará nossa conduta nas intervenções
realizadas com ele.
77
4- A ESCUTA COMO CUIDADO
Mas o que uma escuta analítica tem de diferente? Essa escuta abre espaço para que a
singularidade do sujeito adoecido seja considerada no hospital. Escutar o que o paciente tem a
dizer é permitir que questões inconscientes venham à tona. Para Moura (2011), a escuta por
parte do analista irá intervir no ponto em que o indivíduo se posiciona como sujeito. Isso
significa construir, junto com o paciente, um lugar para ele em seu próprio processo de
tratamento, para além de concepções médicas e biológicas.
Segundo Moretto (2013), ainda que o psicanalista tome como base o determinismo
psíquico relacionado ao inconsciente, isso não permitirá que ele parta do pressuposto de que
sabe o que se passa com o paciente, sem a participação do mesmo. Se ele não sabe de
antemão o que ocorre com o doente, é preciso então que o escute. Carvalho e Couto (2011)
falam em condições de escutabilidade, marcadas pela disponibilidade de escuta por parte do
78
analista no hospital e pela forma com que irá oferecer respostas às demandas que lhe são
apresentadas, já que irá acolhê-las e manejá-las, sem obrigatoriamente atendê-las. Nesse
sentido, é preciso demarcar que a escuta do psicanalista é diferenciada não só para o que diz o
paciente, mas também para o que lhe solicita a equipe, o que demanda a delimitação de um
posicionamento.
Ao ofertar sua escuta, o psicanalista instaura possibilidades para que o sujeito possa
nomear sua angústia, elaborando assim as vivências nas quais se encontra imerso. A partir
dessa elaboração e significação, é possível adquirir estratégias de enfrentamento em relação
ao vivenciado.
Eu imaginei que eu fosse atender cada um, familiar, mas eu pensei: “não, essa
estratégia vai ser péssima, de eu atender cada um, o que que isso vai adiantar?
Enquanto eu estou atendendo um, os outros estão indo na ouvidoria”. Não acho que
ir na ouvidoria seja errado, muito pelo contrário, mas... será que o que eles estão
indo (fazer) realmente não poderia ser escutado de um outro lugar? E aí eu propus
um grupo no qual eu entrei humildemente e falei: “Olha, boa noite”. Falei assim alto
né. “Eu me chamo X, eu sou psicóloga aqui do pronto-socorro e eu queria propor...
eu estou entendendo que vocês querem ir à ouvidoria, mas eu queria propor para
vocês de escutá-los um pouco para que a gente possa pensar é... o que está
79
acontecendo, é... o que vocês estão pensando em fazer mesmo né, para conhecê-los e
eles toparam, todos toparam. (informação verbal)
Em seguida, a entrevistada diz que ficou surpresa com a aceitação do grupo pelos
familiares que expuseram então suas questões, as quais extrapolavam as queixas iniciais que
teriam despertado a ideia de ir à ouvidoria. Com isso, puderam abordar o sofrimento de estar
naquele ambiente desorganizado e o medo de que os pacientes, seus parentes, não estivessem
sendo corretamente assistidos naquele local. Como desfecho da circunstância descrita, ela
narra ainda que os familiares foram então à ouvidoria, porém com uma queixa “mais
organizada”.
Nesse relato, pode-se observar que a entrevistada, diante de uma situação inédita em
sua atividade, para a qual, sublinha-se, não havia um protocolo indicando como deveria agir,
pôde transformar o não saber mencionado inicialmente em um saber novo, construído e
descoberto na prática. Ao mesmo tempo em que tal saber ocorreu mediante a urgência
presente na solicitação de atendimento, esse conhecimento também só foi possível a partir de
uma pausa instaurada pela profissional, marcada pela possibilidade de adotar uma escuta
singular e pela delimitação de um posicionamento frente à equipe e pacientes.
Nota-se que a profissional não atuou no sentido de intervir na ida dos familiares à
ouvidoria, como poderia depreender rapidamente, sem maior apuração, do pedido de
atendimento que lhe foi feito, mas soube acolher e manejar tal demanda. Buscou, assim, uma
inserção no sentido de nomear e compreender tal solicitação, podendo então propiciar um
espaço de escuta tanto para a coordenadora do pronto-socorro quanto para os familiares. Em
relação aos últimos, pôde reconhecer o que estava sendo expresso por eles, possibilitando
então a maior integração de conteúdos psíquicos que até então estavam sendo somente
evacuados de modo fragmentado, sem possibilidade de representação.
80
Se considerarmos o acolhimento com sua função de continência, podemos concebê-lo
para além de sua dimensão dialógica e pensá-lo, em termos winnicottianos, como uma
possibilidade de propiciar um holding em meio ao ambiente caótico que caracteriza um
pronto-socorro. Ainda que já tenha sido abordada a importância do holding quando foram
descritos os meandros da função simbolizante do analista, considera-se necessário retomar
essa temática indispensável para a compreensão do que é o acolhimento nos termos aqui
propostos. Winnicott, (1960/1983) em sua teoria, define o holding como uma função essencial
a ser exercida pela mãe, desde a fase de dependência absoluta do bebê, para promover a
sustentação não só física, mas também psíquica desse sujeito, fornecendo-lhe assim condições
de desenvolvimento adequadas.
Me chamaram para ver uma mãe, falaram que ela estava muito ansiosa, muito
angustiada, muito chorosa e era um momento pré-cirúrgico. Aí eu penso: mas é
claro que essa mulher vai estar ansiosa e chorosa. A filha dela, daqui a pouco, vai
ser submetida a uma cirurgia e a gente não sabe o que vai acontecer nessa cirurgia,
efetivamente ninguém sabe. E aí eu pensei: será que essa equipe chamou
desnecessariamente? E aí eu pensei: não chamou desnecessariamente porque essa
mulher está sofrendo, essa mulher está ansiosa, essa mulher está com medo né, então
eu vou lá escutar o que ela quer me dizer e por mais que seja uma reação emocional
esperada para o momento, isso não tira o valor da minha escuta naquele momento
né? (...) Eu não vou pensar “isso é normal e então não é necessário eu ir”. Não, está
ali em sofrimento, está chorando em um momento pré-cirúrgico, o que é esperado
para o momento e eu vou ali sim oferecer a minha escuta. (informação verbal)
Podemos observar claramente, nesse trecho, uma situação de desamparo que demanda
acolhimento. Sendo assim, a mãe da paciente demonstra seu desamparo à equipe através de
seu choro, de sua angústia. Sendo o desamparo uma condição estruturante do ser humano,
como já visto, não atender uma familiar nesse estado seria um contrasenso, já que todos
somos desamparados em maior ou menor escala, dependendo da situação em que nos
81
encontramos. Assim, não ir ao encontro de alguém que manifesta seu desamparo, ainda mais
exacerbado no pronto-socorro, significaria, em última instância, não atender ninguém ali
presente. Desse modo, naturalizar a expressão do desamparo não significa banalizá-la e
consequentemente, não acolhê-la.
Dessa forma, o sujeito acolhido pode vir a ter seus recursos psíquicos integrados
novamente.
Estamos falando de algo que tem a ver com um posicionamento simbólico, uma
localização subjetiva, e que, portanto, leva em conta um processo psíquico que
envolve, no mínimo, um “eu”, um “outro” (...) (MORETTO; PRISZKULNIK,2014,
p. 290).
De acordo com essa ótica, a escuta analítica está relacionada com a inserção do
psicanalista na equipe hospitalar e também com a questão da demanda que lhe é dirigida pela
equipe, pelo paciente e familiares. Esses três aspectos estão interligados. Em relação à
demanda da equipe, o psicanalista deverá ter uma escuta atenta para essa solicitação, pois isso
irá determinar como irá respondê-la, uma vez que a leitura da demanda que lhe é feita pela
equipe poderá contribuir ou não para a sua inserção (MORETTO; PRISZKULNIK,2014),
pois nem sempre a resposta dada corresponderá à solicitação feita, como já visto. Salienta-se,
inclusive, que em muitos casos, responder prontamente à demanda direta da equipe, sem
interrogá-la primeiramente, dificulta a inserção do analista na equipe, se considerada a
acepção enunciada do termo “inserção”.
Podemos dar o exemplo do paciente que não quer realizar um exame médico, ainda
que seja importante para seu tratamento. Nesse caso, a equipe solicita ao psicanalista que o
atenda e é comum compreendermos que há aí implicitamente ou até explicitamente um pedido
para convencê-lo a fazer tal procedimento. Assim, há que se questionar se a função do
profissional é de fato essa, o que corresponderia a uma atuação pouco centrada no paciente,
apenas para satisfazer a equipe, funcionando como um auxiliar da mesma, sem levar em conta
a subjetividade do doente.
83
Moretto e Priszkulnik (2014) fazem então uma nova distinção entre o que é a demanda
de trabalho ao analista e a demanda de presença. Nota-se que há apenas uma demanda de
trabalho quando se solicita ao analista que convença o paciente a algo, porém não há uma
demanda de presença do analista, havendo apenas um desejo de não lidar com a subjetividade
do doente, ou seja, há um não-querer saber sobre a sua singularidade (MORETTO, 2013).
Assim, as possibilidades de inserção do analista na equipe dependerão de seu posicionamento,
mas também de como a equipe lida com a subjetividade presente em seu cotidiano
profissional, se há um desejo de troca com o psicanalista ou apenas uma necessidade de se
livrar daquilo com o qual não consegue lidar ou mesmo suportar.
Um entrevistado relata o caso em que uma paciente terá que retirar os dois globos
oculares em face da gravidade da doença que a acomete e a equipe solicita seu atendimento
para que convença o marido da paciente, refratário a tal intervenção, de que o procedimento
será o melhor a ser feito. O profissional afirma que, em situações como essa, tem de frustrar a
equipe com a qual trabalha:
(...) eu não acho que a gente está ali para convencer ninguém de que o que o médico
propõe é, com certeza, o que vai ser o melhor para ela. Então, às vezes, a gente tem
que dar esta devolutiva... mas vem essa demanda muito: paciente não quer fazer,
paciente não quer cirurgia, paciente não quer medicação, paciente não quer aquilo,
vai lá. (informação verbal)
No trecho acima, o entrevistado demonstra assinalar o que não é a sua função naquele
ambiente, pois o “frustrar” por ele referido significa não atender de prontidão à ordem médica
já mencionada, como fazem os demais profissionais. Esse “não atender de prontidão” adquire
maior relevância em situações de urgência e emergência, nas quais o tempo para refletir sobre
a melhor conduta profissional em cada caso é reduzido, isto é, ao mesmo tempo em que o
84
psicanalista atua de modo diferente dos outros profissionais, em outra marcação temporal, não
pode negar as características do local em que se encontra e deve estar preparado também,
assim como os demais, para ser ágil em determinadas ocasiões, atuando em uma lógica
distinta, porém junto com a equipe.
Tal escuta pressupõe que há um chamado, o qual é singular, e que justamente por ter
tal característica não é ouvido pelos demais profissionais do hospital. A ideia aqui é que o
analista ofereça sua escuta, possibilitando que o sujeito ganhe seu lugar, até então não
reconhecido, em sua maioria, por outros profissionais. Dessa forma, será escutado a partir
dessa outra posição, diferente da ocupada enquanto paciente frente ao restante da equipe.
(MOURA, 2000)
85
Contudo, frisa-se que o trabalho do analista é sustentar, junto ao paciente, a produção
de um saber que altere o posicionamento subjetivo do indivíduo. Isso significa que o analista
não deve fazer esse trabalho no lugar do paciente que é o responsável por suas próprias
formulações simbólicas. Ao contrário do que objetiva a medicina, o sentido de suas vivências
não é dado de antemão ao paciente e irá depender do encontro, que é único, entre ele e o
analista no hospital.
Pinto (2011) assinala que não se trata de desconsiderar o que se apresenta como
universal, como pretende o saber médico, mas de intervir a partir da concepção de que o
trabalho com o sujeito realizado pelo psicanalista não é passível de reprodução nem mesmo
quando se refere ao mesmo paciente. Ainda que as políticas públicas de saúde tenham sua
qualidade mensurada por aspectos quantitativos e sejam construídas para todos, sem
considerar plenamente as particularidades de cada um (PINTO, 2011), o trabalho do analista é
não excluir essa subjetividade que de uma forma ou de outra se fará ser vista.
De acordo com Pacheco Filho ( 2011), a exclusão do sujeito do inconsciente gera uma
série de problemas para os profissionais de saúde no hospital, dificultando o tratamento dos
doentes. Entre tais entraves, o autor enumera a ausência de adesão de pacientes, o
aparecimento de distúrbios não-orgânicos e a dificuldade em curar por meio de tratamentos
cuja efetividade é reconhecida.
Ainda que haja tal princípio da universalidade preconizado pelo sistema único de
saúde (BRASIL,1990b), a instituição de saúde, e da mesma forma o pronto-socorro existente
nesse local, são únicos para cada indivíduo que neles adentram. Assim, a relação estabelecida
com o dispositivo institucional será também singular. Desse modo, não é possível para o
analista, como o fazem outros profissionais, atuar com um saber prévio formalizado, pois sua
atuação se dará exatamente a partir de seu não saber, ou seja, da ideia de que não há como se
ter um saber antecipado (PINTO, 2011). Nesse mesmo sentido, cabe também salientar então
que não há como listar ou enumerar o que deverá ser feito pelo analista em pronto-socorro,
pois isso não é conhecido a priori e será avaliado de acordo com a singularidade de cada
indivíduo atendido nas mais diversas situações existentes no serviço de urgência e emergência
hospitalar.
86
No entanto, tal não saber adotado pelo psicanalista não significa uma falta ou ausência
de posicionamento por parte desse profissional perante a equipe hospitalar (CARVALHO;
COUTO, 2011), pois, assim como os demais profissionais, também precisa ser resolutivo e
firme para poder operar e fornecer sua perspectiva junto à equipe. Isso significa que a própria
opção por adotar esse não saber já é se posicionar, isto é, consiste em uma escolha se o
analista sabe o que está fazendo e de onde está partindo. No caso do paciente que não aceita
fazer o exame, por exemplo, o psicanalista opta por partir de um não saber o que se passa com
ele. No lugar de acatar prontamente o pedido implícito da equipe de persuadir o paciente a
realizar o exame, partindo de um pseudo saber e de um pseudo poder quase mágicos de
convencimento, o profissional de psicanálise buscará investigar, então, junto ao indivíduo
doente o que ocorre, aceitando que não tem como saber isso previamente.
Destaca-se ainda que a intervenção analítica nem sempre ocorrerá diretamente junto ao
paciente, ainda que se beneficie com essa atuação e possa ser escutado, sendo tal constatação
mais uma diferença da posição ocupada pelo analista em relação a outros profissionais.
Carvalho e Couto (2011) salientam que o psicanalista no hospital, diante do contexto em que
atua, deve estar atento para demandas não explícitas de atendimento, acrescentando:
87
Para melhor ilustrar a questão anterior, cabe retomar o caso já narrado do marido da
paciente que não aceitava a retirada dos dois globos oculares dela. Nessa situação, o
profissional entrevistado teve que atuar ativamente junto ao familiar e também em relação à
equipe responsável pelo caso, pois ambos tinham ambições diferentes quanto ao que deveria
ser realizado. Nesse sentido, o marido da paciente conseguiu ser escutado, expondo os
aspectos subjetivos que fundamentavam sua recusa e a equipe teve que lidar com a
inviabilidade do profissional de convencer o familiar. Dessa forma, a própria paciente,
igualmente atendida pelo entrevistado, pôde também ser beneficiada a partir das intervenções
realizadas com a equipe e com seu marido.
Por fim, não é possível abordar a escuta analítica no pronto-socorro sem mencionar a
questão da transferência que extrapola os limites da clínica, podendo estar presente em
qualquer relação. Laplanche e Pontalis (2001, p.514) definem a transferência como “o
processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no
quadro de um certo tipo de relação estabelecida”. No entanto, tal questão transferencial, ainda
que presente, também não é considerada pelos demais profissionais, pois evidencia as
questões subjetivas que não desejam manejar.
Já o psicanalista, por sua vez, não pode desprezar tal aspecto que interfere nas
relações estabelecidas no pronto-socorro, bem como nas demandas subsequentes e,
consequentemente, no tratamento e auxílio prestados a pacientes e familiares. Já se sabe desde
Freud (1912/1996) que a transferência pode ser usada a favor ou contra o tratamento analítico,
sendo, no último caso, fonte poderosa de resistência. Ainda que não haja de fato um
tratamento analítico realizado no pronto-socorro, os aspectos transferenciais podem favorecer
ou complicar o próprio tratamento médico a ser efetivado.
88
Considera-se ainda que a relação transferencial nem sempre se dá entre o paciente e o
psicanalista na instituição, isto é, o paciente pode estabelecer uma relação transferencial com
qualquer profissional de saúde. Cabe ao analista identificar isso, verificando a quem a
transferência se dirige e que efeitos advém desse fato.
É necessário primeiro pensar o que vem a ser o cuidado. Ainda que se possa ter
dificuldades para definir o que faz um psicanalista em urgência e emergência, esse
profissional é um cuidador em primeira instância, assim como qualquer trabalhador da área de
saúde. O ato de cuidar pode ser compreendido como aquilo cujo sentido não está pronto e
delimitado, mas justamente como o que faz parte de um processo e portanto, não antecipável.
Da mesma forma, pode-se concebê-lo a partir da noção de devir e como aquilo que emerge
em meio às relações que são estabelecidas (Barros; Gomes, 2011). É a partir dessa noção de
cuidado que pretende-se pensar a inserção do psicanalista no pronto-socorro, visto que cada
situação vivenciada nesse ambiente é nova e exige sempre distintos olhares e possibilidades
de exercício profissional. Para corroborar tal afirmação, Barros e Gomes (2011, p. 648)
afirmam que:
89
Merhy (2002) situa o cuidado como objeto do campo da saúde, necessário para atingir
a cura e a promoção do indivíduo saudável, objetivos do mesmo campo. Relata ainda que os
usuários do sistema de saúde, tanto público quanto privado, não costumam se ressentir da
falta de tecnologia em seus atendimentos, mas sim da indiferença em relação a seus
problemas, sentindo-se desprotegidos, desinformados e desrespeitados. Tem-se então
novamente exposta a articulação entre indiferença e desamparo já apresentada anteriormente.
Pode-se definir aqui a palavra cuidado como parte da concepção integrada e não
normativa de saúde, conforme assinala Figueiredo:
(...) o termo diz respeito a todo o campo das ocupações e preocupações recíprocas
onde dependência e interdependência individuais são tomadas como ¨fatos da
existência¨, apresentando-se como o mais próprio da condição humana, do nosso
¨ser-no-mundo¨. (2011, p.13)
Tal autor propõe uma noção de saúde em que não se separe os aspectos psíquicos e
somáticos, ultrapassando oposições que ainda persistem no cotidiano dos hospitais, tais como
aquelas existentes entre corpo e mente, indivíduo e sociedade (FIGUEIREDO, 2014). Essa
nova concepção de saúde estaria a serviço do trabalho multiprofissional, acarretando na
ampliação das intervenções possíveis nesse campo.
Para Figueiredo (2014), o homem não só não sobrevive sem os cuidados devidos,
recebidos e oferecidos, mas sobretudo não existe. O autor aborda o dispositivo analisante
como propiciador de cuidados e afirma que tal dispositivo atua como um objeto
transformacional, utilizando o termo concebido por Cristopher Bollas, em seu livro A sombra
do objeto, de 1987, definido como: “um ambiente capaz de produzir transformações na
experiência do self dos sujeitos que nele habitam ao lhes oferecer formas especializadas de
cuidados” (FIGUEIREDO, 2014, p.11).
Recordo-me de um caso em que recebi um pedido para atender um paciente que iria
sofrer uma amputação de um de seus membros inferiores. Ao chegar para atendê-lo, observei
que estava muito assustado, não conseguia se expressar muito bem e estava também agitado,
fazendo movimentos bruscos. Ao longo de alguns atendimentos realizados com esse paciente,
pude acolhê-lo em sua necessidade de falar sobre a notícia que lhe haviam dado: era preciso
que amputasse um membro. Também foi possível reconhecer sua ansiedade em relação à
possibilidade de perda de uma parte de seu corpo, bem como reconhecer sua fantasia de que
poderia morrer na mesa de cirurgia (reconhecendo, inclusive, a possibilidade dessa fantasia se
tornar realidade). A perda iminente de um membro trouxe para o paciente uma ameaça muito
concreta de desintegração e descontinuidade que pôde ser sustentada e contida pela presença
de um psicanalista.
Por fim, Figueiredo (2014, p.14) assinala ainda as funções de “interpelar/ convocar/
despertar/ reclamar pulsões, ansiedades e fantasias” como próprias do agente cuidador, seja
esse agente um objeto primário ou o que é chamado pelo autor de objeto transformacional
derivado, ou seja, o objeto agente de cuidados que já passou por transformações tanto a nível
concreto, quanto simbólico. Considere-se um exemplo no qual o psicanalista, na figura do
objeto transformacional derivado, pode assumir essas tarefas: encontramos com alguma
frequência em prontos-socorros pacientes que obtêm os chamados ganhos secundários com o
adoecimento, isto é, se beneficiam com o fato de estarem adoecidos e procuram manter tal
situação para conservarem os privilégios advindos com a enfermidade. Nesses casos, é
importante ter a habilidade de interpelar ou convocar os indivíduos a assumirem outro
posicionamento, no qual deixem de enxergar a doença como fonte de privilégios e passem a
encará-la como origem de prejuízos e problemas a serem solucionados. Do mesmo modo,
trazer à tona e entender quais pulsões, ansiedades e fantasias geram tal comportamento
também faz parte das funções do agente cuidador.
A cura, no sentido médico do termo, parte de protocolos e técnicas que não incluem
tais aspectos subjetivos, mas trataremos aqui do termo “cura” com um sentido ampliado. No
texto intitulado A cura, Winnicott (1970/2005) afirma que a palavra cura, originalmente,
significaria justamente o mesmo que cuidado. Prossegue explicando que essa palavra adquire
posteriormente, já no contexto de um tratamento médico, o sentido de “desfecho bem-
sucedido” (WINNICOTT, 1970/2005, p.105). Assim, Winnicott observa que se antes cura e
cuidado eram termos muito próximos, essas palavras haviam seguido caminhos diferentes,
isto é, a cura estaria agora sobreposta ao cuidado, podendo mesmo ocorrer a cura, no sentido
médico do termo, sem um cuidado genuíno.
Nessa visão, o ser confiável ganha relevância no pronto-socorro, local no qual não há
consultas marcadas e a imprevisibilidade, em termos concretos, sequer pode ser evitada, mas
pode ser contornada por um ambiente disposto a tal atividade, já que, se não evita o que é
imprevisível e, por isso mesmo, incontrolável, pode reduzir a sensação de caos e o sentimento
de ansiedade. Winnicott (1970/2005) considera que esse cuidar-curar proposto por ele seria
uma extensão do conceito de holding oferecido pelo ambiente facilitador desde os primórdios
da vida rumo à maturidade. Aconselha, então, os profissionais de saúde a utilizarem em seu
trabalho os mesmos preceitos “aprendidos” por eles no começo de suas vidas, quando
receberam cuidados suficientemente bons.
93
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
94
diversas situações e demandas com as quais se depara, o que consiste em um exercício
constante, pois a possibilidade de automatização ou da banalização de sua atividade se faz
presente com frequência e torna-se, muitas vezes, o caminho mais fácil para um exercício
profissional alienado e alienante.
Uma reflexão central que permeou este estudo foi: como lidar com ideias e ideais já
tão arraigados no cotidiano de outros profissionais que atuam em serviços de urgência e
emergência? Nesse sentido, pensar sobre tópicos como a hipermedicalização, os protocolos de
atendimento, a diferenciação entre sofrimento/sintoma e demanda/oferta, além da
desautorização no cuidado, fez-se essencial.
Essas são questões que obedecem a uma lógica não pertencente aos preceitos
psicanalíticos, mas que também não podem ser simplesmente dispensadas pelo psicanalista
que trabalha no ambiente estudado. São vivências que retiram o profissional em questão de
sua zona de conforto e possibilitam uma rica possibilidade de pensar sobre as peculiaridades e
as responsabilidades de sua atuação.
95
Após o estudo dessas noções psicanalíticas, constatou-se que uma tarefa importante
do psicanalista no serviço de urgência e emergência é auxiliar nos processos possíveis de
simbolização em relação às situações muitas vezes extremas vivenciadas por quem adentra o
pronto-socorro. Se por um lado, tais processos se diferem dos observados no setting analítico
tradicional, por outro, auxiliam o paciente a atravessar situações potencialmente
traumatogênicas, evitando que se tornem de fato traumáticas.
96
possibilidade de se somar e de ter sua prática integrada à atuação desses outros membros da
equipe, sem dispensar os aspectos inerentes à ética psicanalítica.
Sendo assim, este estudo não pretendeu esgotar as discussões existentes sobre a
temática, as quais, arrisca-se a dizer, talvez sejam inesgotáveis, mas buscou sim traçar um
panorama acerca das principais questões que afligem o psicanalista com regularidade nesse
trabalho. Afinal, não é somente o paciente e o familiar que se angustiam, mas também o
profissional que lhes oferece seu cuidado. Esta pesquisa teve início a partir dessa angústia e
do anseio por auxiliar o paciente da melhor forma possível. Acredita-se, chegando agora ao
final, que é também a prova de que nossas angústias, quando bem cuidadas, tornam-se
produtivas e podem frutificar. A partir dessa ótica, espera-se que possa auxiliar também
outros atores da área de saúde, psicanalistas ou não, no desempenho de suas profissões em
serviços de urgência e emergência.
97
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103
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______O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1971/1975.
______Natureza Humana. Rio de Janeiro: Imago, 1988/1990.
104
ANEXO 1:
Roteiro de Entrevista:
-Nome:
-Função:
-Formação:
Limites de atuação
Exemplo de caso em que a equipe solicita atendimento. Acha que essa demanda é adequada
ou não em relação à sua função?
105
ANEXO 2:
106
esclarecimentos ou sanar dúvidas antes e durante a pesquisa acerca dos temas incluídos nesta,
bastando para tal entrar em contato com a pesquisadora Clara Kislanov da Costa pelo
telefone.
RG:___________________________________________________________________
Assinatura da pesquisadora:________________________________________________
107