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3- PARA PENSAR A URGÊNCIA SUBJETIVA NO PRONTO-SOCORRO

3.1 A Urgência Subjetiva: o que é?

Para compreendermos o que é a urgência subjetiva, é necessário primeiramente


distinguir tal conceito da urgência e emergência médicas. A urgência subjetiva, como o
próprio termo já dá a entender, é a urgência psíquica própria de cada sujeito, a qual, portanto,
não se restringe ao espaço do pronto-socorro. Isso significa que há pacientes em enfermarias,
em UTIs e em outros espaços hospitalares e extra-hospitalares que também sofrem tamanha
urgência.

Para Sotelo, a urgência “para além da singularidade de cada caso, sempre confronta o
sujeito com o excesso” (2014, p.26, tradução nossa). Mas é possível perguntar em que
consiste tal excesso? Há, na urgência, um excesso de angústia, um transbordamento, que
extrapola as capacidades do sujeito de dar sentido, ao menos inicialmente, à experiência que
está sendo vivenciada, deixando-o sem palavras, o que pode se tornar um processo
traumático.

Alguns autores buscaram caracterizar a urgência subjetiva. Belaga e Sotelo (2014,


p.35, tradução nossa) a definem como “vivências subjetivas do não há tempo” e Perelli (2014)
menciona uma urgência em que a subjetividade se encontra ameaçada. Já Moura oferece uma
ideia precisa que ilustra bem no que se está falando quando se aborda esse conceito:

As situações de perda, seja de pessoas queridas (morte), da condição de “sadio”


(doença), da condição de inteiro (cirurgia)..., se caracterizam na urgência por
rupturas e descontinuidades que levam a pessoa a se perguntar: Quem sou eu agora?
e ao mesmo tempo a se deparar com a quebra de certezas e ilusões que a
sustentavam: Por quê? Na nossa prática sabemos com que frequência a perplexidade
nestas situações vem acompanhada da pergunta: Por que comigo? Pergunta que
revela a ilusão do “ao menos um” que não sofreria como o resto dos mortais. Estas
situações com as quais se depara o psicanalista em um hospital o confrontam com
uma práxis átipa, a da urgência, quando o sujeito vai estar assujeitado às situações
inesperadas e deste lugar pode fazer um chamado ao analista (2000, p.8) .

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No pronto-socorro e também em outros setores hospitalares, a solicitação ao
psicanalista comporta, em geral, uma urgência subjetiva já instalada, ou seja, ele não é
chamado geralmente quando tudo, ao menos aparentemente, corre bem e de acordo com o
previsto. É justamente a irrupção de algo que de algum modo sai do controle que acende uma
espécie de alerta, convocando o psicanalista para lidar com tal questão. Todavia, como
ressalva Sotelo (2014), é preciso localizar quem é o sujeito dessa urgência, a qual nem sempre
se encontra com o paciente. É possível recorrer a uma cena, trazida por uma psicóloga
entrevistada, para ilustrar tal situação:

A assistente social me chamou, ela estava super angustiada, quase começou a chorar.
Teve o maior B.O.8 lá no pronto-socorro, disse que o pai quase bateu nela e parece
que quase bateu mesmo. E ela ( e era um traumatismo crânio-encefálico) (...) e ela:
“eu já acionei o conselho tutelar e eu falei para ele que ele era mal-educado e não sei
que”. Aí eu pensei: “essa mulher está angustiada, parece que a angústia é mais dela.”
Mas aí eu também pensei: “Mas tem essa criança que caiu e esse pai que passou toda
essa situação com ela, vamos lá ver como ele está.” E a equipe também me chamou
e eu fiquei com medo né. Falei: “se esse moço está assim com a equipe, se eu chegar
lá e falar que eu sou a psicóloga, ele vai querer sei lá né”. E ele foi super receptivo,
ele estava super ansioso e falou o que aconteceu em casa. (informação verbal)

Nota-se que, nesse exemplo, a urgência subjetiva maior que mobiliza o chamado da
psicóloga estava centrada na profissional de serviço social e não no paciente (a criança) ou em
seu familiar (o pai). O que fazer com isso? Independentemente de quem tem a urgência, ainda
que seja essencial localizá-la, é necessário um certo encorajamento por parte de um outro para
que o sujeito fale e produza uma narrativa que lhe permita situar onde essa urgência aparece,
tecendo um discurso sobre a mesma que a torne própria (Sotelo, 2014). Ainda para a autora
(2014), o manejo do psicanalista visa à subjetivação da urgência, ou seja, tornar a urgência de
fato subjetiva a partir da apropriação dela pelo sujeito. Podemos então depreender que a
urgência psíquica não é já subjetivada de antemão e sim torna-se subjetiva.

Ainda segundo a mesma autora, ao abordar os protocolos aplicados no hospital, o


psicanalista deve “derivar algo destas práticas imediatas, passando do feito ao dito”

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B.O. é uma sigla utilizada para designar o termo boletim de ocorrência, documento oficial que visa a
notificação e o registro de um crime à autoridade policial ou judiciária. No trecho descrito acima, a entrevistada
utiliza o termo de modo informal para afirmar que algo equivocado ocorreu, isto é, aconteceu uma confusão ou
problema.

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(SOTELO, 2014, p. 28,tradução nossa). Ao invés de buscar imediatamente eliminar a angústia
sintomática característica da urgência, o psicanalista a sustenta. Diferentemente da urgência
médica, a urgência subjetiva não necessita e, pode-se dizer, nem deve, ser aplacada de
imediato. Tal urgência não está remetida a um tempo cronológico e, sendo subjetiva, está sim
vinculada ao inconsciente que como sabemos, desde Freud (1915/1996), é atemporal. Moura
(2000) assinala que há o tempo do sujeito o qual não é, portanto, o tempo da ciência médica,
esse sim cronológico. É com este primeiro tempo que o psicanalista trabalha.

Assim, o analista no pronto-socorro oferece a possibilidade de uma pausa para que a


urgência subjetiva, sendo produto do inconsciente, não seja reprimida e sim se faça presente,
ganhe seu lugar, e possa, como conteúdo psíquico, ser desenvolvida até que o próprio sujeito,
aquele que a sofre, a finalize. Para Moura (2000), o analista busca devolver a palavra ao
sujeito, permitindo assim a formulação de uma demanda por parte desse indivíduo ao
psicanalista. Os modos de produção de subjetividade atuais, os quais geram os mal-estares
contemporâneos que muitas vezes levam o sujeito ao pronto-socorro, não comportam essa
forma de lidar com a urgência proposta pelo psicanalista. Portanto, o que esse profissional
instaura é uma nova possibilidade de pensar tal urgência.

3.2 A angústia como afeto onipresente

Para compreendermos a atuação do psicanalista em uma unidade de urgência e


emergência hospitalar, bem como suas especificidades e os problemas que encontra, faz-se
necessário conhecermos alguns temas. O primeiro conceito-chave é a angústia. Se pararmos
para pensar nos afetos com os quais o psicanalista tem de lidar em uma situação de urgência
ou emergência, a angústia seguramente ocupa uma posição de destaque, estando presente não
só em pacientes, mas também nos profissionais de saúde, dentre os quais se inclui o
psicanalista.

Diante da onipresença desse sentimento no pronto-socorro, torna-se válido tecer


algumas considerações importantes acerca da questão da angústia em Freud, levando em
conta sua relação com as problemáticas inerentes ao ambiente de urgência e emergência. As

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