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PT FCG RCL 8953
PT FCG RCL 8953
Emanuel Guerreiro, "Hélia Correia, a casa da palavra", Colóquio/Letras, n.º 173, Jan. 2010,
p. 108-118.
EDIÇÃO E PROPRIEDADE
Hélia Correia, a casa da palavra
Emanuel Guerreiro
1.
Reconhecida e premiada como romancista, Hélia Correia tem dedicado
atenção ao texto dramático e à recriação de temas clássicos. Também publicou
dois livros de poesia: A Pequena Morte/Esse Eterno Canto (1986), em parceria
com Jaime Rocha, e Apodera‑Te de Mim (2002), revelando um trabalho de
escrita e uma voz original e inovadora em diferentes domínios, com um tom
de melodia, lírico, de vibrante efabulação. Este texto tem por objectivo uma
leitura do romance A Casa Eterna, indagando de que modo a voz poética
«contamina» a produção narrativa, denunciando as suas marcas líricas.
2.
Tradicionalmente, a distinção entre poesia e prosa assentava mais na
forma do que no conteúdo ou fundo e nos efeitos produzidos sobre os leitores1,
considerando‑se a comunicação em verso poesia e o resto prosa. A partir do
século xix, os românticos começaram a utilizar nos seus textos em prosa uma
linguagem simbólica e recursos fónicos e estruturais tidos como exclusivos da
poesia, entendida como qualquer composição em que se recorre à linguagem
figurada e metafórica, musical e emotiva. Daí que o Romantismo estimulasse
o processo de hibridização, misturando géneros distintos e diluindo as fron‑
teiras entre o poético e o prosaico. Deste modo, o romance, género romântico
por excelência, assume e reivindica a liberdade de integrar diversos registos,
como memórias, efusões líricas e digressões, «revelando‑se apto quer para a
representação da vida quotidiana, quer para a criação de uma atmosfera poé‑
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tica, quer para a análise de uma ideologia» (Aguiar e Silva, 1988: p. 682‑3).
A análise da complexidade do eu e das suas contradições íntimas pedia uma
linguagem mais poética, manifesta em monólogos interiores, revelação dos
labirintos da alma e da corrente de consciência. Uma das marcas da narrativa
de ficção é o tempo subjectivo, interiorizado e dependente da vivência pessoal.
O monólogo interior, como representação da corrente de consciência, corres‑
ponde ao tempo psicológico da personagem ao revelar o seu estado de espírito
e um fluir desordenado ou caótico dos conteúdos psíquicos, captando uma
experiência individual.
A poesia lírica corporiza o mundo interior, subjectivo, dando expressão
aos sentimentos e estados de alma do sujeito poético. A narrativa representa o
mundo exterior; contudo, quer o narrador quer as personagens podem revelar
manifestações de subjectividade, qual sujeito lírico, valendo‑se da linguagem
conotativa e de recursos expressivos de modo a fazer desse mundo exterior
um pretexto para mostrar os seus sentimentos, assumindo um ponto de vista
lírico2. Assim, a poesia pode estar presente no discurso em verso ou num dis‑
curso não versificado3.
3.
O título A Casa Eterna (retirado, tal como a epígrafe, do Eclesiastes)
remete‑nos para um espaço familiar e desperta as recordações de um tempo
da infância, numa revisitação emocional de fragmentos do passado que obriga
à dominante lírica, dada a adopção de um discurso confessional, eivado de
subjectivismo. Evocam‑se memórias, que são representações, isto é, impressões
sensoriais, vivências psíquicas ou imagens mentais, como um registo conser‑
vado que retém e reproduz o conhecimento da realidade, permitindo a sua
releitura ao tornar presente algo que pertence ao passado, num reencontro
com o tempo4. O adjectivo «eterna» traduz uma ideia de duração, de tempo
que se prolonga, de um passado que se pretende recuperar como chegada a
uma morada definitiva5. E talvez fosse esse o propósito de Álvaro Baião Roíz,
poeta (servindo como metonímia da Literatura, a escrita‑objecto‑de‑escrita) que
decide regressar à Quinta da Viçosa, casa da sua família nos Amorins, onde
chega no Verão do ano anterior, sendo que o tempo «presente» da narração
é em Março.
Com o objectivo de «contar tudo dos princípios» (p. 11), a narradora
inicia a sua demanda, recuperando o percurso realizado pelo poeta, após o
seu enigmático desaparecimento, avançando a hipótese de não ter sido morte
natural. Em busca da verdade, procurando estabelecer um sentido, a narradora
propõe‑se um trabalho de campo, na tentativa de redigir uma biografia do
poeta e esclarecer o motivo da sua fuga da cidade para um espaço de província,
solicitando a evocação junto de quem conheceu e recorda Álvaro. A diegese
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estrutura‑se em sucessão e acumulação de depoimentos, com alternância de
discursos de várias personagens e de tempo(s), entre o presente da «investiga‑
ção» da narradora e analepses do regresso do poeta à Quinta da Viçosa e do
passado da sua família, apresentando pequenas histórias encaixadas. A base é
a memória, que evoca e reconstitui o acontecido, revelando várias perspectivas
e relativizando a verdade e o conhecimento, dado que o recurso à pluridiscur‑
sividade instaura a ambiguidade, mas validando a hipótese da veracidade do
relato tal como é apresentado.
Declara a narradora: «Transformá‑lo agora em personagem é não o
encontrar e tecer uma espécie de glosa à sua volta» (p. 25). Referindo‑se a
Álvaro como «personagem», revela o artifício que é a obra e afirma o seu texto
como ficção, a sua natureza poiética, isto é, o fazer do texto, expondo o modo
como se organiza, a experiência do acto de produção textual, em processo,
manifestando a sua dúvida sobre a possibilidade de representar e explicar a
«realidade». Ao trazer para a ficção a representação de uma pessoa «real», a
sua interpretação, imbuída de subjectividade, pode falhar ou pecar por tenden‑
ciosa, incompleta ou incerta; confessa: «Posso estar a mentir, a pôr desprezo
como lente fumada à frente da visão, tão tentada me sinto aos maus juízos»
(p. 134). A intenção de se aproximar de uma «realidade», criada ficcional‑
mente, mediante a enumeração de relatos de uma pluralidade de sujeitos, é a
forma de evitar o subjectivismo unipessoal, a fala de um único sujeito, consi‑
derando apenas a sua visão, dada a perspectiva narrativa implicar uma repre‑
sentação com inevitável subjectividade6. Não apresentando um só enunciador,
uma só verdade, «a mediação e a interpretação dos factos são feitas por um
narrador‑personagem que tem uma dupla tarefa: por um lado apresentar uma
determinada história e, por outro, indicar como esta se organiza […], estratégia
que visa chamar a atenção para o próprio processo de construção narrativa»
(Petrov, 2000: p. 175‑6)7.
Como «costuma trabalhar o romancista: aproveitando, abrindo as criatu‑
ras sem que nada lhe cause pavor ou repugnância» (p. 116‑7). Eis uma nota de
auto‑referencialidade, uma reflexão sobre o acto de criação literária na menção
da obra por si própria. É essa a composição que a narradora (simultanea‑
mente, autora do relato, o que instaura uma dupla entidade autoral) executa,
em reflexões sobre a sua (tentativa de) representação das personagens com
quem (pretende‑se crer verosímil no protocolo de leitura) contacta: «Depois
dobrá‑lo‑ia, metia‑o na gaveta de reserva, à mistura com outras personagens»
(p. 223). Dando conta do seu trabalho de produção escrita e de recomposição
da realidade, o modo como a narrativa se vai construindo veicula uma ideia
de escrita como trabalho artesanal 8.
«Não possuo a infância de Álvaro Roíz» (p. 17), afirma a narradora
homodiegética, revelando que projecto e intenções a movem e explicitando
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o processo de construção narrativa: «percorrer o sentido contrário ao da
memória» (ibid.) daqueles que conheceram Álvaro e que darão o testemunho.
Interessa‑lhe saber o que o tornou uma pessoa solitária, fechado em si próprio,
experienciando o vazio e a desistência9. Porque teria o poeta escolhido a soli‑
dão, querendo libertar‑se das palavras e negar(‑se), voluntariamente, o acto de
criar? Não seria a eternidade na escrita que o atraía, mas, em si, algo despertara
em relação ao passado, esse, sim, «portador das verdadeiras virtudes vitais»
(Eminescu, 1983: p. 116). Após uma «crise» que o levou ao hospital, entrega
o gato Zaratustra, que ele amava mais que tudo, à narradora: «Foi nessa tarde
[…] que se inclinou para a morte — e não depois. […] Era como dizer que já
fechara os olhos» (p. 23). Teria a certeza sobre o seu estado físico e o propó‑
sito nostálgico de voltar à casa, paraíso mítico, retorno à infância «carregada
de memórias, lugar secreto, de uma intimidade quente, quase uterina, […]
onde o passado permanece, vivo nas coisas que dele falam, que o evocam»
(Magalhães, 1992: p. 160).
«Estou, como ele, no largo de Amorins […] procurando‑lhe o rasto para
colocar os pés exactamente onde ele os colocou» (p. 25). A narradora inicia
a recuperação do passado na repetição do percurso, dos passos do poeta, o
que lhe permite retomar células da história, ser um com o outro, criando um
paralelismo na procura do mesmo por outro: «Eu colarei ao seu o meu olhar»
(p. 27). Mas experiencia um sentimento de indecidibilidade — sobre a sua
missão, sobre o objectivo, sobre o objecto, no fundo, sobre a fronteira entre a
representação e a invenção. Daí recorrer à ajuda de várias personagens, teste‑
munho de vivência directa dos eventos relatados, que a auxiliam na re‑constru‑
ção da figura do poeta. Procura uma aproximação, como se enrolando o fio de
Ariadne, a sua memória ao contrário da dos outros, à procura da saída ou do
começo, numa confluência de passado e presente em que assenta a estrutura
narrativa: «quero apenas juntar o fim com o princípio para que um ilumine o
outro e o esclareça» (p. 144).
4.
A chegada de Álvaro, em segredo, sem dizer a ninguém em Lisboa e sem
informar ninguém em Amorins, após tão longa ausência, provoca surpresa
nos seus companheiros de outrora, que observam a sua hesitação, afastados,
distantes, social e afectivamente. Qual Ulisses regressando a Ítaca, ele surge
fechado no seu sobretudo, apesar do extremo calor, «meio tolhido, como
se se doesse» (p. 14), protegido ou protegendo‑se, talvez inseguro, receoso,
como defesa, impedindo toda a comunicação, mas com um objectivo, como
«fechando grandes círculos» (p. 25).
No processo de recuperação imaginativa do regresso de Álvaro, a narra‑
dora interroga‑se se ele teria esquecido o caminho de casa. Mas o laço que o
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liga, desde o nascimento, ao lugar que o recebeu, revela‑se no acolhimento: a
«casa enfrenta‑o, silenciosa, absolutamente esvaziada. […] E no entanto, a casa
estava quente, respirava e olhava‑o com suspeita» (p. 28). A animização do
lar, degradado e imagem do tempo parado, atribui‑lhe um sentido de esque‑
cimento e, como despertando de um longo sono, evoca a infância perdida e
só silêncio10. Opondo‑se ao momento da sua chegada aos Amorins, em que o
sobretudo servia de divisória entre o senhor da Viçosa e o povo que ali traba‑
lhou, agora, alcançando, finalmente, a meta em vista, Álvaro não se apresenta
temeroso, mas carrega ainda, interiormente, o sentimento de desistência e
perda: «Ele não recuaria, não tinha para onde ir. […] vinha para morrer e
não para sustentar fosse que rito fosse com outros seres humanos» (p. 28‑9).
Conhecemos, então, o motivo do seu regresso: o poeta decidiu terminar os
seus dias no lar materno e não revela o seu propósito nem tem intenção de
fazê‑lo ou de se relacionar com os outros. Fecha‑se — a vida e na vida: «Ele
tentava encontrar o fim da circunferência, o ponto no vazio de onde nascera»
(p. 211). Vazio porque esquecido, porque distante e vem recuperá‑lo, ou vazio
dentro da personagem, perdidas a esperança e a vontade de viver? «Álvaro
[…] voltara aos Amorins porque queria o vazio, porque queria ser ele a ir ao
seu encontro, desarmado e sem público, como se se tratasse de uma entrega
amorosa» (p. 115).
É no quarto da sua avó Carolina que a personagem ganha dimensão psi‑
cológica, ao recordar a história da sua família, comentando, num momento
de insónia e à luz da sua debilidade física, que «[a]té mesmo os fantasmas
enfraquecem» (p. 45)11. Esta reflexão da personagem sobre o devir existencial
é marca da sua mudança, do desgaste erosivo provocado pela passagem do
tempo, como projecção do homem, e pelas experiências vividas, permitindo
um autoconhecimento na relação com o mundo e com os outros12.
Revela‑se o intento de Álvaro, numa formulação subjectiva de imagens e
metáforas: «regressar mais, chegar‑se para trás. Entraria depois na zona sem
palavras, depois sem luz, sem oxigenação. E, lá no fim, aquilo que o chamava, o
ninho da sereia, balouçando. Água de dormideira, água pesada que petrificará
o coração» (p. 86)13. O suicídio teria lugar na represa, um lugar que colhia a
sua preferência quando rapazinho, e é ao seu (re)encontro que se dirige. Estava
«igual à que Álvaro encontrara escondida na lembrança, enquanto tudo, tudo
se tinha transformado» (p. 87). O espaço onde se ocupava em devaneios
adolescentes e onde escrevera os primeiros poemas é conotado positivamente,
como permanência e inalterabilidade, constância e pureza, enquanto a casa e
o próprio indivíduo se degradaram. Numa dicotomia natureza/civilização,
estabelece‑se uma ligação ao campo, numa relação telúrica com a vida, as suas
fontes e os seus lugares, denotando a ruptura e a perda de sentido da vida na
cidade por contraste com a natureza, que se revela como o último vestígio de
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uma inocência em vias de se perder e que Álvaro procura recuperar ou a ela se
entregar. O regresso ao espaço da infância justifica‑se, então, para o encerra‑
mento da sua vida, entregando‑se às águas, no silêncio, na escuridão, à morte
vista positivamente como um regresso uterino a um ninho ou a um berço, onde
adormeceria, e o seu coração, já insensível, se tornaria pedra. Mas o projecto
frustra‑se com a visão de uma rapariga que atravessa a água14 até junto dele e
que lhe desperta a atenção e a curiosidade sobre os que o cercam, uma vontade,
uma força combativa que parecia omissa, perdida15.
Assim se inicia o relacionamento de Álvaro com Liza, que vai provocar a
transformação do protagonista problemático e em crise, assumindo uma sub‑
versão e uma provocação que conduzem o poeta à dissolução da própria vida.
Em casa, Álvaro regressa à felicidade, no espaço feminino que fora da avó, da
mãe e da criada Maria Joana, sua protectora na infância, agora na companhia
de Liza e de Perpétua, sua tia e caseira da quinta. Mas a convivência com
uma marginalidade denunciada na vila desafia a moral burguesa: «— Estava
doente. Nunca ouviu contar que muitos moribundos dizem obscenidades,
fazem coisas que a vida não os deixou fazer?» (p. 182) — conclui Maria
Carlos Sotto, prima de Álvaro, recordando o seu comportamento transgres‑
sor, representando o reverso da medalha do indivíduo dito equilibrado, em
rotura com as normas e as regras sociais aceites pela comunidade, seguindo
ou defendendo o que ela rejeita, corporizado em Liza e na relação entre uma
jovem e um homem muito mais velho, que a sociedade critica e condena. Daí
que se evoque o nome original da quinta, descoberto em livros antigos por
Álvaro: «viciosa», atribuído a uma familiar de comportamentos decadentes,
acusação que voltará à boca dos habitantes de Amorins em relação às atitudes
desajustadas e incoerentes do poeta.
Sobre os seus últimos dias, a informação torna‑se vaga e «é preciso supor,
conjecturar» (p. 181), o que questiona as relações entre «verdade» e ficção. É
nos depoimentos de Perpétua e de Ruço, o motorista que conduziu o casal ao
Porto, que se reconstroem os passos de Álvaro, até ser encontrado pela caseira,
embrulhado no sobretudo, tal como chegara, à beira da represa: «Porque o
trago da morte é muito azedo e ele entendeu tomá‑lo onde nascera» (p. 185).
Ou seja, intencional ou não, Álvaro alcança, de facto, o seu objectivo: fecha‑se
o círculo16.
É no primeiro encontro de Perpétua com a narradora que se começa a
construir a intriga, ao referir‑se aos acontecimentos que culminarão com a
morte de Álvaro, denunciando «a ruindade destas quatro paredes» (p. 185),
como se sobre a casa e os seus habitantes tivesse caído uma maldição ou
arrastassem consigo uma fatalidade de geração em geração, da qual Álvaro
constituíra o elo final e que viera despertar com o seu regresso. Revela à narra‑
dora o que ocultara, a «verdade» que ela procurava, em perseguição do rasto
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do poeta, ganhando uma inesperada dimensão filosófica com um discurso
metafórico do peso das águas da chuva que se abatem e «encharcam mesmo
até à medula» (p. 184), invadindo tudo, incontroláveis, e que responsabiliza
pela morte de Álvaro.
A narradora encontra‑se também com Filomena Caréu, a filha do can‑
galheiro, com quem Álvaro namoriscou quando jovem, mas o casamento não
aconteceu, e ela confessa: «há pessoas fadadas mais para o não que para o sim.
Por isso ele se arrimava tanto aos livros, não é? São pó, são feitos do que não
existe» (p. 61‑2) — reflecte Filomena sobre aquele amor imaginado, ficção,
como nos livros, revelando a predisposição de Álvaro para a leitura e a criação
literária. Recorda que ele lhe contava uma história, que a narradora identifica
como sendo a Odisseia, de Homero, e questiona‑a se aquele homem conseguiu
voltar a casa. De novo, se estabelece o paralelismo entre Álvaro e Ulisses: a rea‑
lização de uma viagem serve de motivo para o confronto do indivíduo com as
alterações do mundo que o rodeia, a necessidade de abrigo e o regresso à pro‑
tecção de um espaço identificado com a intensidade de sentimentos. Mas uma
viagem que seja uma fuga de si mesmo nunca poderá ter êxito, principalmente
uma viagem interior que confronta o indivíduo com o seu passado, à procura
de um sentido ou resposta(s). Ou descobrindo «uma amarga nostalgia, uma
consciência de que algures se falhou sem redenção, mas não se sabe bem onde,
nem talvez importe sabê‑lo» (Venâncio, 1992: p. 385). Também, qual Sibila
ou habituada ao convívio do pai com os mortos, Filomena é a única a saber
a razão do regresso de Álvaro: «Conheci‑lhe a morte, e não me engano. […]
Estava muito doente, o Alvarinho» (p. 79).
Hospedada na pensão (espaço conotado com uma aura de fantástico,
um transtorno que incha a imaginação, num desfiar alucinado), a narradora
reunirá à sua volta um grupo de voluntariosos hóspedes dispostos a auxiliarem
na «investigação». É fruto desse «auxílio» e do conhecimento colhido sobre
Álvaro que a narradora conclui: «o enigma tornou‑se uma adivinha, um labi‑
rinto em feira popular» (p. 195). A devassa das relações e da privacidade do
poeta, pelos solícitos hóspedes, origina o arrependimento: «A personagem
de que eles falam, que eles procuram, está longe de ser Álvaro Roíz» (p. 211).
O incómodo manifesta‑se em digressões e na insónia e, para solucionar o mis‑
tério, a narradora procura o motorista, que lhe relata as confissões de Álvaro
durante a viagem de regresso e desafia‑a: «O que eu sei dele, não o sabes tu»
(p. 222).
5.
«E acabou‑se. Pode ficar para aí com os seus segredos. Quando eu escre‑
ver, invento o que quiser» (p. 224‑5) — declara a narradora, em confronto
com o motorista. Esta hipótese lúdica e irónica de várias possibilidades de final
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apresenta o texto como não definitivo e afirma a impossibilidade de concluir, o
que evidencia a metaficção sobre a qual se constrói a obra, revelando a organi‑
zação interna do texto17. Numa circularidade (im)perfeita, tal como no início,
em que predominava o desconhecimento sobre o poeta, o «final» submete
‑nos, ainda, a esse domínio. Talvez porque, afinal, não se regresse nunca ao
lugar de onde se partiu: o tempo modifica o espaço e o próprio sujeito, já
outros, servindo a memória e a recuperação do passado como elementos de
contextualização da mudança e de um momento diferente do mundo que se
transformou. Na invenção reside a hipótese de abertura e encerramento da
própria escrita. Estamos perante o que Catherine Dumas designa por estética
do inacabado: «movimento perpétuo da memória que confunde os limites
temporais e espaciais» (Dumas, 2002: p. 85). Não tendo conhecimento de
facto das circunstâncias que rodearam a morte de Álvaro, torna‑o, na expres‑
são de Paul Ricœur (ibid., p. 77), um «ser‑para‑a‑morte»: «Existe, pois, uma
despersonalização da presença […] que corresponde ao nível temporal da eter‑
nidade» (ibid.). Esta só pode ser entendida no âmbito da estética do inacabado,
fragmentado, não nomeado, inverificável, instaurando a dúvida, vacilando na
incerteza e remetendo‑nos, como afirma Roxana Eminescu, para a hesitação
da realidade da ficção ou a ficticidade da realidade (ob. cit., p. 125).
Uma narrativa de ficção, apesar da tendência objectiva que caracteriza
o modo narrativo, revelará, através das incursões do narrador, uma índole
subjectiva, registo que transmite uma atitude ideológica, moral ou afectiva:
a construção do discurso, com recursos de estilo, adjectivação valorativa,
comentários sentenciosos e reflexões de cariz abstracto, exprime a busca e a
indagação sobre o sentido misterioso da existência. Se, para Aristóteles, as
imagens constituíam a essência da poesia, na narrativa elas suportam a trans‑
versalidade do lirismo na construção do sentido e desvelam a representação
da confluência entre o eu e o mundo, o tempo e o espaço18.
No prefácio ao primeiro livro de poesia de Hélia Correia, Ernesto
Rodrigues assinalava o seu «distinto fôlego poético», pondo em relevo que
«os poemas são como quadros narrativos» (Correia, 1986: p. 6). Numa
entrevista à autora, aquando da publicação de A Casa Eterna, José Jorge Letria
comentava: «A sua escrita tem o toque mágico daquilo que mergulha fundo
na raiz da memória e do mito e, talvez por isso mesmo, é tão vizinha da poesia
que às vezes temos dificuldade em traçar a fronteira, em perceber a diferença.
[…] Escrever continua a ser para ela um acto mágico, cuja génese tem tudo a
ver com o processo quase ritual de que nasce a poesia» (Letria, 1991: p. 8).
Neste romance, Hélia Correia alcança uma narratividade que flui em quadros
líricos, revelando um autoquestionamento do acto de escrita e a definição
grega de poeta e de poesia: acção, fabricação, um fazer, um saber, um poder
de dizer e de criar que se manifesta na ligação ao transcendente, na intuição
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e no domínio da técnica de trabalhar a língua. E a autora tem revelado essa
essência a cada nova obra que nos apresenta.
NOTAS
1 A Teoria da Literatura distingue os modos lírico e narrativo, entre outros, como categorias
meta‑históricas e universais que «representam, por um lado, a nível da forma de expressão,
possibilidades ou virtualidades transtemporais da enunciação e do discurso […] e, por outra
parte, a nível da forma do conteúdo, representam configurações semântico‑pragmáticas cons‑
tantes que promanam de atitudes substancialmente invariáveis do homem perante o universo,
perante a vida e perante si próprio» (Aguiar e Silva, 1988: p. 389).
2 Carlos Reis apresenta a designação «modo lírico expresso em prosa»: «também a prosa
propende a contemplar procedimentos expressivos que favoreçam o referido pendor para a
concentração lírica: ritmos regulares, imagens recorrentes, efeitos rimáticos, etc.» Daí que
considere que «a forma externa que os textos narrativos apresentam não deve ser encarada
como propriedade modal distintiva» (Reis, 1999: p. 260 e 343).
3 «Os modos, os géneros e os subgéneros literários podem manter uma diferenciação nítida e
rigorosa ou podem associar‑se e mesclar‑se, em processos simbióticos de variável amplitude»
(Aguiar e Silva, ibid.: p. 400). Maria Vitalina Leal de Matos corrobora: «Lembrando […] a
impossibilidade da existência de um texto puramente dramático, lírico ou narrativo: podemos
falar de predominância de um ou outro modo, porque haverá sempre contaminações» (Matos,
2001: p. 281).
4 Poeticamente, a autora descreve‑o assim: «O tempo […]. Paira, pesa, perdura como o eco de
um bronze. Pega em cada palavra, alisa‑a, secciona‑a em delicadas lâminas onde a memória
pode revelar quase tudo o que nelas sem querer foi imprimido» (Correia, 1991: p. 59). Todas
as citações seguirão esta edição, indicando‑se, a partir de agora, apenas a página entre parên‑
teses.
5 Podemos falar da «destemporalização do passado impondo‑o como durée, logo como eter‑
nidade» (Dumas, 2002: p. 24).
6 «Uma manifestação irrefutável da presença do narrador na narração é a […] projecção da
sua subjectividade no discurso. […] apesar de muitas vezes procurar cultivar um certo pendor
objectivo (ou, pelo menos, um propósito de dar a conhecer o que é exterior ao narrador), a
narrativa literária não escapa a incursões subjectivas mais ou menos flagrantes.» (Reis, ibid.:
p. 369.)
7 Contudo, registam‑se mudanças na voz narrativa: a narradora homodiegética, expressão da
subjectividade, oscilando entre eu‑narrador e eu‑narrado, que veicula informações segundo um
critério de observação testemunhal e projecta os seus juízos, dá, por vezes, lugar à omnisciência,
como, por exemplo, na reprodução dos diálogos entre Álvaro e Liza.
8 Este processo de construção literária foi marca original e inovadora num romance inaugurador
de um momento de pós‑modernidade na literatura portuguesa, em 1968, com O Delfim, de José
Cardoso Pires, revelando a preocupação de mostrar o trabalho de escrita.
9 O retrato do seu estado anímico e das suas relações interpessoais indicia um corte ou falha
para com o(s) outro(s): «um homem esplendidamente só. […] de um tal recolhimento do ser
sobre si próprio que dele irradiava uma ameaça» (p. 17); «de certo modo criara à sua volta o
vazio que protege a divindade. Estava só, como cego, como mudo, e quase não escrevia. […]
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Não queria lembrar‑se das palavras. […] entre a vida e o poeta houvera certamente um total
desencontro» (p. 18); «uma presença desumana, absolutamente desprovida de luz» (p. 20);
«o coração dele não reparava, era um coração cego, sem comunicação» (p. 112); «sempre se
fechara, […] soubera emitir a sua escuridão do mesmo modo que outros emitem um fulgor»
(p. 130); «Nunca se importou com o pensar dos outros. Ele nunca quis mas foi saber dos
outros» (p. 144); «casava‑se bem com aquelas sombras, como se sempre houvesse morado no
meio delas» (p. 174); «Construíra o seu mundo para dentro, via e ouvia as palavras, as sereias»
(p. 222).
10 Leia‑se a mesma imagem no soneto «O Palácio da Ventura», de Antero de Quental, con‑
fronto com o sentimento pessimista resultante do percurso deceptivo entre um espaço físico
e um espaço psicológico: «Com grandes golpes bato à porta e brado: / Eu sou o Vagabundo,
o Deserdado… / Abri‑vos, portas d’ouro, ante meus ais! // […] Mas dentro encontro só, cheio
de dor, / Silêncio e escuridão — e nada mais!» (Quental, 2002: p. 80.)
11 A memória da casa e do seu passado existe apenas como ruína, uma imagem fantasmática que
remete para a dissolução daquele mundo: «O que quer que existiu aqui está já desfeito. […]
sem memória. Está reduzido à sua própria sombra. […] E os passos flutuam numa fascinação
de pesadelo. […] E tudo se tornou silencioso e vazio» (p. 41‑2).
12 «É como um mergulho no inconsciente. […] faz reviver as suas recordações de infância e faz
recuar a memória até às gerações anteriores da sua família» (Dumas, ibid.: p. 27). Debruçando
‑se sobre o seu universo interior, a personagem tende «para a interiorização própria do modo
lírico e a narrativa chega a fazer‑se precisamente narrativa lírica.» (Reis, ibid.: p. 348). Assim,
estamos perante uma construção lírica, uma meditação lírico‑existencial, que marca o tempo
subjectivo da personagem que dialoga consigo própria: «o tempo do lirismo é um tempo de
detenção e de aprofundamento, centrado no momento, vizinho do intemporal e da eternidade»
(Seixo, 1986: p. 19).
13 A imagem mítica e simbólica das sereias é evocada por várias vezes neste romance, como
expressão de um desejo ou sonho de Álvaro, ao contrário de Ulisses, que teve de resistir à
sedução mortal das suas vozes. Negativamente, as sereias são imagem da morte; positiva‑
mente, encantavam com harmonia os escolhidos nas Ilhas Afortunadas, ideia de uma bem
‑aventurança post‑mortem, criação inconsciente ou ilusão da paixão associada ao destino e a
uma pulsão de autodestruição de Álvaro.
14 Metáfora do eterno recomeço, aqui conotada eroticamente: «A aliança da mulher com a
materialidade da água, flora e fauna, fundura e pureza, significa uma aliança com o meio
natural inalterado» (Dumas, ibid.: p. 97).
15 «Antes da morte, na preparação da morte, passava‑se por estranhos territórios, pensou: jogos
de luz, pavores, deslumbramentos. Talvez também estivesse prevista essa experiência de tocar
noutro mundo, de conhecer de perto gente e falas e vícios que toda a sua vida se tinham des‑
locado paralelos a si, na cozinha da quinta, nos bairros populares. Sentia‑se excitado, divertido,
[…] tomou até o aspecto de um prazer» (p. 91).
16 «Talvez Álvaro tenha também traçado a circunferência como as crianças fazem sobre a areia e
dentro dela se distanciasse, encolhendo, encolhendo, até se reduzir ao instante de um ponto — e
depois nada, definitivamente defendido do alcance dos homens, dos seus olhos» (p. 214).
17 «Fantasia. O que foi e o que não foi, ninguém no viu que dê para contar» (p. 186); «o que
ignoro sobre os últimos dias do Álvaro Roíz é aqui preenchido com ficções» (p. 223).
18 Atente‑se em exemplos de linguagem poética neste romance, evidenciando a criação lírica
que transborda em frases que são versos agrupados numa arrumação diversa: «As pessoas
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passavam e extinguiam‑se como um fulgor, um fogo azul que se ergue e se dissipa sobre o muro
do caminho, deixando atrás de si palavras, só palavras» (p. 117); «tudo revelado numa sépia
sombria, tudo envolvido em véus de fumo e pó» (p. 156); «Atingimos a hora: o pequeno
minuto antes da luz do dia em que a fosforescência deixa ver o belo coração azul das coisas»
(p. 224).
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