Você está na página 1de 4

Opinião: Alimentos, quais perspectivas antropológicas?

Estamos vivendo a adoção de tecnologias que permitem uma grande interação e o início de uma integração, por enquanto
desordenada, do mundo físico, digital e biológico. Hora de filosofar. Pensar a antropologia, a sociologia e a economia ecológica
dos alimentos. Vejamos as principais tecnologias da revolução científica ligadas à chamada Indústria 4.0 para depois
abordarmos um pouco da antropologia dos alimentos. A Manufatura Aditiva 3D, a Inteligência Artificial (IA), a Internet das
Coisas (IoT), a Biologia Sintética e os Sistemas Ciber Físicos (CPS) já são reais possibilidades de fusão dos mundos físico,
biológico e socioeconômico.
Manufatura Aditiva ou Impressão 3D é a adição controlada de material para fabrico de objetos,  formados por variadas peças,
constituindo uma montagem; Inteligência Artificial é a computação avançada que simula a capacidade humana de raciocinar,
tomar decisões, resolver problemas, com softwares e robôs automatizados, executando variados processos e tarefas melhor
que os seres humanos; Internet das Coisas consiste na conexão de objetos à Internet, executando coordenadamente
determinadas ações, por exemplo, veículos autônomos que se comunicam para definirem melhores mobilidades, velocidades e
trajetos em vias urbanas com
segurança de tráfego e economia; Biologia Sintética diz respeito a tecnologias de ponta nas áreas de química, biologia, ciência
da computação e engenharia para construção de novas partes biológicas, tais como enzimas, células, circuitos genéticos e
redesenho de sistemas biológicos existentes; Sistemas Ciber-Físicos fazem com que todo objeto físico, uma máquina, uma
linha de produção, uma fábrica, seja digitalizado para ter um irmão gêmeo digital capaz de reproduzir  todos os processos no
mundo digital.

Vista esta realidade, passemos a apreciar como os alimentos se relacionam com ela, trazendo à baila primeiramente os
aspectos relacionados com a Antropologia da Alimentação, que é uma área de pesquisa da Antropologia. Claude Lévi-Strauss,
autor de “O Cru e o Cozido” definiu nesta obra a passagem do Homo sapiens do Estado de Natureza para o Estado de Cultura,
após o domínio do fogo.

Estou falando de centenas de milênios atrás, ainda dos tempos da Revolução Cognitiva quando nossos ancestrais esperavam
as hienas terminarem suas refeições para se aproximarem e comerem com segurança os restos de carniças e tutanos.
Milênios foram longos e fastidiosos até a Revolução Agrícola de 30 mil anos atrás; séculos também o foram, mas não os
breves séculos da modernidade e os aceleradíssimos anos do início do III Milênio e deste século XXI. Na caminhada histórica
chegamos aos destacados estudos de Luís Câmara Cascudo e Gilberto Freire. O primeiro abordou os pratos típicos brasileiros
e o segundo analisou a importância do açúcar na culinária e na economia nacionais.

Reflito se ainda guardamos prevalente no Brasil e no Mundo o simbolismo da alimentação, as  comidas sagradas, os tabus
religiosos envolvidos na alimentação, os mitos alimentares, essas coisas da cultura popular dogmática e da pseudociência.
Para se determinar o grau de prevalência do simbolismo no hábito alimentar do brasileiro há que o confrontar com as
condições de pobreza e miséria da grande maioria da população. Há necessidade de medir periodicamente as permissões, as
proibições alimentares e jejuns regulados pelas normas católicas romanas, evangélicas, islâmicas, judias, cristãs ortodoxas, do
candomblé, do xamanismo, do hinduísmo, do budismo, com caracterização das variações da oferta e da procura em função da
teoria da escassez, da capacidade de consumo e da distribuição de renda.

O consumo de carne bovina e suína, por exemplo, é limitado e até mesmo excluído por várias religiões, como as adventistas,
os seguidores da hare krishna, a católica, na quaresma e semana santa, que optam por peixes ou alimentação vegetariana,
encurtando a cadeia alimentar, reduzindo a ingestão de proteínas. Continuam neste século XXI, após o iluminismo e
o modernismo, determinadas práticas da Idade Média, a partir do século V, época em que o cristianismo começou a se
fortalecer na Europa e a igreja católica se tornou uma instituição de grande influência e poder. É impressionante como ainda
são vigentes o jejum como sacrifício em homenagem a Deus, a alusão ao sangue derramado por Jesus Cristo, dentre outros
tirocínios inerentes à autoflagelação alimentar como forma de alívio de culpas, de perdão dos pecados e  de pagamento de
promessas aos santos.

Segundo o pesquisador Carneiro (1993), as regras alimentares religiosas servem como rituais que buscam instaurar disciplina
e técnicas de autocontrole frente às “tentações”. O jejum é uma técnica de tentativa para eliminar vontade, castrar o prazer e
ao mesmo tempo permitir uma alteração da consciência até a obtenção de êxtase. O objetivo de tais regras é evitar o
prazer produzido pelo alimento e, claro, estabelecer relações de poder. Seja o prazer oriundo do sabor e da quantidade
ingerida, tornando o alimento o mais insípido possível, seja evitando alimentos que sejam demasiadamente afrodisíacos. Os
herbários dos conventos medievais consideravam cenouras e alcachofras fontes de excitação sexual. As regras budistas
eliminam até mesmo a cebola, a cebolinha e o alho por considerarem que esses alimentos “inflamam as paixões”.

Seja como for, um estudo da AT Kearney afirma que 60% do consumo mundial de carne, em 2040, não será mais proveniente
do abate de animais. O relatório desta empresa de consultoria estima que 35% da carne será produzida em laboratório e 25%
terão origem vegana, com base em produtos oriundos de vegetais semelhantes em aparência e sabor. Atualmente, apenas
15% dos produtos agrícolas são destinados diretamente ao consumo humano. A maior parte da produção de grãos e vegetais
é utilizada para alimentação de animais a serem abatidos para consumo de carne. A previsão da consultora é de que até 2040
apenas 1/4 das plantações será destinado aos insumos para os animais. Esta pesquisa, realizada por especialistas do
mundo inteiro demonstra estar em marcha um redesenho da evolução agrícola-pecuária no âmbito da revolução científica com
sérios impactos na economia mundial.

Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), cerca de 1 bilhão de pessoas dependem da
criação e produção animal para a sua sobrevivência e a demanda por tais alimentos crescerá 70% até 2050. A OCDE e a ONU
divulgaram em seus relatórios que a produção mundial de carne deve crescer mais de 40 milhões de toneladas até 2028, para
alcançar 364 milhões de toneladas anuais, 13% a mais em comparação com a média registrada de 2016 a 2018. Neste
contexto, o Brasil é um dos cinco maiores produtores de carne do mundo, ao lado da China, Estados Unidos, União Europeia e
Rússia.

Do ponto de vista da economia ecológica, há graves consequências da atividade agropecuária para os ecossistemas. O setor
ocupa 1/3 das terras aráveis de todo o mundo, com a decorrente degradação de 20% dos pastos e de 70% das áreas sem
vegetação. A criação e produção animal usam 10% do consumo total de água pelos seres humanos, gerando poluição pela
utilização de fertilizantes inorgânicos, hormônios, agrotóxicos e pesticidas. Emite gás carbônico em uma taxa maior do que
todas as emissões combinadas dos meios de transporte.

Uma análise feita por Soares, 1989, sobre o consumo de alimentos tidos como naturais, levanta a noção de “pureza” em
relação à depuração do que é artificial ou poluído. Puro é o que seria integrado ao corpo, ao ecossistema e ao cosmos de
forma espontânea no âmbito de uma subjetividade equilibrada. Muitas famílias, principalmente de pais mais jovens das classes
médias, em muitas cidades do Brasil, acorrem aos sábados às feiras de produtos orgânicos para adquirirem produtos
alimentícios naturais, livres de agrotóxicos, misturando-os aos industrializados. Não são completamente vegetarianos,
macrobióticos, ayurvédicos e orgânicos. Preferem mixagem. Tem havido um esforço do Núcleo de Tecnologia e Qualidade
Industrial – Nutec para acreditar as propriedades destes alimentos “alternativos”, sem abandonar a  certificação dos
industrializados, pois a busca de legitimidade científica na preocupação com os hábitos alimentares deve cobrir os interesses
das populações como um todo.

Após este preâmbulo, vamos ao que une os alimentos à Indústria 4.0. Já é viável a fabricação de comida através do processo
de fabricação aditiva com uso de matéria-prima comestível e produção de variados pratos. A produção pode ser feita desde a
sobreposição de camadas até métodos mais complexos. No mercado existem opções de impressoras 3D de
comida relacionadas com as dietas, isto é, o equipamento certo para a dieta escolhida. Basta preparar os ingredientes, coloca-
los dentro da máquina e solicitar que ela imprima a comida. Será uma tendência de produção generalizada, considerando o
aumento do grau de conhecimento e conscientização das pessoas a respeito de saúde, ecologia, alegria de viver e sobre as
relacionadas especificações físicas, químicas e biológicas dos alimentos. A metrologia e certificação de alimentos em
laboratórios confiáveis, acreditados, passarão a ter muito maior exigência em curto prazo.

Mike Harden, da empresa de aceleração tecnológica ARTIS Ventures, afirma que a Internet das Coisas impactará a segurança
alimentar de forma marcante no monitoramento no nível de unidade e teste de produtos com a tecnologia que já existe. Por
exemplo, um surto de Escherichia coli, causador de graves intoxicações alimentares, pode ser evitado de imediato. Imagine um
refrigerador inteligente cujo scanner ótico alerte para um necessário recall de uma verdura ou fruta, indicando onde foi
comprado o alimento contaminado. Vários dispositivos conectados à Internet das Coisas em toda a cadeia de suprimentos e
rastreamento no nível da unidade de produto, tornando os recalls mais rápidos e permitindo que as empresas identifiquem
exatamente onde os produtos contaminados estão localizados e quais foram consumidos.

A Embrapa tem estudado o uso de tecnologias disponíveis na Biologia Sintética, como, por exemplo, a dos transgênicos para
possibilitar o desenho de novas vias metabólicas, gerar novas características fisiológicas, modelar o controle do
desenvolvimento das plantas, criando e redesenhando genomas. A ideia é melhorar a produção de novas culturas por meio de
técnicas de engenharia biológica para produzir vegetais alimentícios.

Na agricultura de alimentos, os Sistemas Ciber Físicos podem coletar informações sobre o solo, o clima e muitos outros dados
para criar sistemas de precisão de gerenciamento agrícola. Podem monitorar constantemente a irrigação, umidade, saúde da
planta, procurando manter as condições ambientais ideais.

Aqui termino estas reflexões muito preliminares e incompletas sobre o que nos afeta atualmente em relação às mudanças
antropológicas dos setores da alimentação, parabenizando o recente encontro sobre alimentos promovido pelo Nutec,
coordenado pelas Dras. Mayra Garcia Maia Costa e Crisiana de Andrade Nobre.
A influência da cultura na alimentação A nossa cultura – nossas crenças, tabus, religião, entre outros fatores – influencia
diretamente a escolha dos nossos alimentos diários. Desse modo, a alimentação humana parece estar muito mais vinculada a
fatores espirituais e exigências tradicionais do que às próprias necessidades fisiológicos. O homem pré-histórico era onívoro,
ou seja, comia de tudo. Com o homem contemporâneo, já é bem diferente. Nem todos os animais e vegetais presentes na
região fazem parte da sua cozinha. Muitos preceitos religiosos e culturais determinaram os costumes existentes nos dias de
hoje. A ligação entre a alimentação e a religião está presente na Bíblia e começa pela história de Adão e Eva, os primeiros
homens criados pelo Deus dos cristãos. Segundo o Antigo Testamento, Iavé criou no Paraíso a árvore do Bem e do Mal e
também a árvore da Vida. A primeira era proibida ao homem, mas Adão, convencido por Eva, desobedeceu Iavé e comeu o
fruto daquela árvore. Conseguiram, 9 com isso, o conhecimento entre o Bem e o Mal e, para que não tivessem a imortalidade,
foram expulsos do Paraíso e condenados a procurar e produzir seus próprios alimentos. O maior exemplo dessa influência do
plano espiritual está na frase de Jesus Cristo: “aquele que come da minha carne e bebe do meu sangue tem a vida eterna”. A
religião dos israelitas permitia o consumo de gafanhotos e estes ainda são saboreados em toda a África do Norte,
especialmente em Marrocos e no Saara. Um prato de gafanhotos assados, bem como larvas, ratos e lagartos, vale para a
população tanto quanto uma salada de camarões para um ocidental. Os sertanejos do Nordeste do Brasil comem preás e
camaleões, insuportáveis para qualquer homem das cidades litorâneas. Os macacos da Amazônia assados são manjares para a
população nativa, mas causam náuseas aos brasileiros em geral. Em compensação, o sertanejo que ama o peixe de água doce
não admite os crustáceos e menos ainda verduras. Diz que não é “lagarta para comer folha” e se alimenta de raiz de
umbuzeiro e de farinhas de macambira, mandioca e xique-xique. Tais alimentos, produtos da flora nativa dos sertões do
Nordeste, são apontados como a explicação para a extraordinária resistência orgânica do sertanejo. Os budistas não matam o
peixe pescado; deixam-no morrer na praia para ser comido depois. Os hindus não comem carne de gado porque acreditam
que ela é sagrada. Muitos deles morrem de fome, mas respeitam esses animais, que pastam e dormem no meio das ruas. Na
África Central, a maioria dos rebanhos não é aproveitada pelos negros. Constituem riqueza, elemento de venda, ostentação de
prosperidade. Para muitos africanos, a galinha e o galo são animais para o sacrifício, oferendas aos deuses, e não para
alimentação regular. Essas atribuições já podiam ser observadas no século XV, com intenções sempre religiosas, e estão
presentes atualmente, de forma semelhante, nos candomblés, macumbas, xangôs etc. A carne de gado também é raramente
consumida na Ásia e pouco apreciada na Oceania. Para o europeu e seus descendentes na América, esse tipo de carne é
indispensável na mesa. A carne de porco foi proibida por muitos líderes religiosos e era abominada no Egito. O africano
adorava o porco assado como refeição tanto quanto o romano, que o indicava para fortalecer os atletas. Com relação aos bois,
não se permitia abatê-los quando fossem do trabalho rural, assim como ocorre na África, Índia, China e Ásia Menor. No tempo
do imperador Calígula, a proibição era formal e matar um desses animais era considerado um crime tão grave quanto 10 tirar
a vida de um homem. O profeta Isaías afirmava quase o mesmo: “quem mata um boi é como o que fere um homem”. As
religiões proíbem o consumo de certos alimentos, mas também torna outros sagrados, tendo como cerimônia indispensável
um ritual com banquete. Assim, nenhum orixá pode existir sem suas comidas privativas, a exemplo de Ogun com a galinha
d’angola. Os velhos deuses olímpicos possuíam animais que lhes seriam sacrificados como oferenda. Iavé deixou sua
pragmática, instruções e pormenores sobre animais dedicados em holocausto. Há mais de dois mil anos o pão se tornou o
alimento típico dos mais diferentes povos. Significa o sustento, alimentação cotidiana, clássica. Pão de cada dia. Ganhar o pão
com o suor do rosto. “Eu sou o pão da vida” declarava Jesus Cristo. Na Roma antiga, o leite de vaca era incluído nos sacrifícios
fúnebres e nas oferendas aos deuses. Tratava-se de um alimento proibido aos budistas e considerado um produto do paraíso
para os muçulmanos. Gregos e romanos incluíam tal bebida às estórias de suas figuras mitológicas. O leite das burras animava
crianças doentes e os tuberculosos, crença mantida nos sertões do nosso país. O sertanejo vivia no meio das vacas, mas não
lhe bebia o leite a não ser o da cabra. O comportamento à mesa também apresenta certas particularidades. Os orientais não
admitem a possibilidade de comer na mesma sala com um inimigo e servem-se em silêncio. O mesmo acontecia com os
indígenas. Hoje o indígena conversa enquanto come por influência do homem branco. Nos antigos banquetes ingleses,
conversava-se depois do brinde ao Rei. Nas refeições do velho sertão brasileiro, rezava-se antes e depois de comer. Influências
na alimentação brasileira A cozinha brasileira tem por base a cozinha portuguesa, com outras duas grandes influências: a
indígena e a africana. Mas houve inúmeras variações, desde os ingredientes a nomes e combinações, como pode ser visto, por
exemplo, no caso do cozido, que em Portugal é riquíssimo em derivados de porco e, no Brasil, farto em legumes e carne de
vaca. 11 A alimentação sempre esteve e ainda está bastante relacionada à história dos diferentes povos. Assim, para se
caracterizar e compreender as origens de nossos hábitos alimentares, é preciso recordar o passado, os costumes indígenas, a
colonização, os efeitos da escravidão e a evolução da sociedade como um todo até se chegar ao período atual

As influências atuais Nas últimas três décadas, ocorreram importantes mudanças nos hábitos alimentares dos brasileiros:
redução no consumo do arroz, feijão e farinha de trigo; maior consumo de carnes em geral, ovos, laticínios e açúcar;
substituição da gordura animal por óleos vegetais, manteiga por margarina e aumento nos gastos com alimentos
industrializados. O ritmo agitado imposto pelo mercado de trabalho deixa cada vez menos tempo livre para alimentação e
lazer. Os intervalos precisam ser bem aproveitados e o horário das refeições, em especial o do almoço, acaba servindo para
várias atividades. Começam a surgir alternativas nas indústrias de alimentos e dos serviços de alimentação: alimentos
congelados e pré-cozidos, drive-thru, fast-food, delivery, e self-service traduzem a importação do novo estilo do padrão
alimentar brasileiro. Os profissionais de saúde e educação devem se questionar e avaliar se há perdas importantes dos nossos
hábitos alimentares culturais devido à “globalização” da forma de nos alimentarmos, ou se existem aspectos da evolução
tecnológica na área alimentícia que merecem ser incorporados à nossa cultura. A orientação e educação alimentar, através
dos modernos meios de comunicação, aliadas à preservação dos bons hábitos alimentares e de salários compatíveis com o
direito de alimentar, são fundamentais para se vencer a luta contra a má nutrição do brasileir

Você também pode gostar