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Artur Franco Barcelos

Júlio Ricardo Quevedo dos Santos


Saulo Felin

A missa de domingo na catedral de Santa Maria está em


clima de festa. O dia quente do verão do dia 18 de fevereiro de
1940, contribui para prenunciar que a relíquia - o Coração do
Padre Roque Gonzalez de Santa Cruz estará em breve naquele
templo católico. Na homiiia o Padre Valentím Ferrari conclama os
fiéis a rezarem e vigiarem/ porque em dois dias estarão adorando
a relíquia sagrada do mártir rio-grandense, beatifícado pelo Papa
Pio XE, em 28 de janeiro de 1934.255
A maioria dos fiéis do domingo festivo já havia lido a caria
convite publicada no jornal "A Razão" daquele domingo de 18 de
fevereiro de 1940, sobre a "Homenagem ao Coração do Beato
Roque Gonzalez", assinado pe!o Padre Vatentím em nome do
Bispo Dom António Reis. O convite é dirigido inicialmente às elites
santa-marienses: autoridades civis, militares/ as comunidades e
associações religiosas/ entidades de classe. Aqueles que ocupavam
a frente do interior do templo. Na sequência a população em
gera!/ que ocuparia a Avenida Rio Branco/ desde a estação férrea

255 O padre Enio José RÍgo, em obra recente, recorre a espacialidade extensiva de
Roque Gonzalez, considerando-o "primeiro Padre Católico a palmïíhar o território da
Diocese de Santa Maria [. ..] Parece que, em nossos dias, não resta mais dúvida âe que o
Santo Missionário Jesuíta, São Roque Gonzalez de Santa Cruz, foi o primeiro Sacerdote
Procissão com a imagem do Padre Beato Roque Gonzaiez de Santa Cruz, da que palmilhou, diversas vezes, regiões do atual território da Diocese de Santa Maria
capela de Três Mártires até a Linha Quarta Norte, [...] tinha estado na Região de Jaguari e nas vizinhanças da Serra de São Martinho e de
Santuário de Nossa Senhora da Saúde, no Distrito de Três Mártires, em Júlio São Xavier." RÏGO, Pe. E. J. A Diocese de Santa Maria RS - Brasil (1910-2010). Santa
de Castllhos-RS, Maria: Diocese de Santa Maria, 2010. pp 21-22.
Foto da década de 1940, com a presença da comunidade e em destaque
João Anversa. Acervo; lida Maffini.
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até a Catedral católica. Afina!/ trata-se de adorar e pedir bênçãos beato Roque Gonzaiez" que atribui valores sagrados e carismáticos
a "Relíquia que há 312 anos se conserva miraculosamente intacta/ ao padre, alguns dsas antes.259

e que chegará a esta cidade trazida peto Exmo Sr. Bispo".256 As O teor do editorial e da coluna de Daniloéincutcarem seus
comemorações se intensificam/ no editorial do mesmo veículo de leitores que Roque é mártir porque preferiu morrer a renunciar
comunicação há o apelo às festividades do coração do Pe Roque, à sua fé/ em defesa dos princípios da Cristandade em meio a
definido "primeiro mártir e evangelizador do Rio Grande do Sui" conversão de indígenas, entregando a própria vida para este
o qual naquele momento esíá em Cerro Azu! (atual Cerro Largo), fim, para que a essência desta verdade seja preservada. Nesse
onde ocorre o Congresso Católico desde o dia 15 de fevereiro. sentido/ cada caíóiico presencia e confirma o místico martírio
Nestas festividades se percebe o esmero do Bispo de Santa Maria, que se materiaiiza/ aproximando o passado histórico - o evento
D. António Reis, que "levou o coração da matriz ao pavilhão do de 1628 - com a atualidade, a terça-feira de sol escatdante de 20
congresso".257 de fevereiro de 1940. Ê a presença real do sagrado/ que renova
O referido editorial de título "Chegara depois de amanhã o a memória crista, que toma o sentido de momento de extrema
coração do padre Roque Gonzalez" procura situar o significado do importância e de raro acontecimento. Estes apelos movimentam
mesmo à luz do catoiicismo sui-rio-grandense, no início da década diferentes setores do Catolicismo santa-mariense para receber a
de 1940, referendando-o como mártir ressignifícado e reconhecido relíquia, na compreensão de que antes do martírio/ o martlrizado
da Igreja Católica/ devido aos seus milagres, entre eles o "coração havia andado e salvado almas na região/ e que agora o seu maior
intacto" que sobrevive ao martírio de 1628, evidenciando o sentido milagre, a relíquia, estava de volta para sacralizar e consagrar
atribuído peEos historiadores.258 A mesma linha de interpretação novos e possíveis milagres.
está presente no artigo do colunista Emiiiano Danilo ao produzir O Entre os milhares de católicos tocados pêlos apelos da
Igreja CatóHca de Santa Maria naqueles dias decisivos de fevereiro
256 Jornal "A Razão", 18 de fevereiro de 1940.
257 SANTINI, Pe. C., S.J. Triunfos dum Coração. São Leopoldo: seminário Central, de 1940 está o italiano João Anversa/ residente da Linha Rincao
1940.p.34. da Lagoa/ que desde 1935 acompanha com fervor as narrativas
258 Jornal "ARazao", domingo 18/02/1940, p. 04. Na questão dos historiadores, podemos
históricas e místicas dos três mártires, os lances do sagrado e
entender que o editorial está referenciado nas narrativas históricas e discursivas de Luiz
Gonzaga Jaeguer e Carlos Teschauer, amplamente divulgados nas comunidades católicas.
a intervenção divina na História. João tem uma filha doente e
No entanto, a historiografia que contribui à revisão da. hagiografia dos três mártires desenganada pêlos médicos de Santa Maria e somente um milagre
atual é: OLIVEIRA, P. R. M. Padre Roque Gonzalez: entre a história e a hagiografia.
pode salvá-la. Ele busca este milagre no mártir rio-grandense. Já
Revista Brasileira de Historia e Religiões, ANPUH, N. 23, ano 08, set./dez. 2015;
SANTOS, J. R. Q. Romaria do Caaró: prática cultural, património e discurso midiático. ouviu tantas histórias de milagres/ que acredita que os seus pedidos
In: LEAL, E; PAIVA, O.C. (orgs.) Património e História. Londrina: Unifil, 20Í4. Pp. serão atingidos. Assim começa esta narrativa/ que se situa entre a
97-1U;MARIN,D.^( consolidação da Romaria ao Caaró a partir da míàia impressa:
história de um evento-os dias de fevereiro 1940 quando mais de
1937-1945. 2014. 163f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal
de Santa Maria (LTFSM), Santa Maria/RS; QUADROS, E. L. A defesa do modo de ser 10.000 pessoas puderam venerar/olhar/tocar/ pedir ante a relíquia
Guarani: o caso de Caaró e Pirapó em 1628. Porto Alegre: Renascença, Edigal,2012; do mártir milagreiro/ num encontro místico com o sagrado - e
OLIVEIRA, P. R. M. O encontro entre os guarani e os jesuítas na Província Jesuítica um resultado inusitado, a troca do nome de uma localidade e a
do Paraguai e o glorioso martírio do venerável padre Roque González na tierras de
Nezú. 2009,503 f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), Porto Alegre/RS. 259 DANILO, E. "O beato Roque Gonzales", jornal "A Razão", Ï4/02/1940, p. 03.

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mártires jesuítas entre italianos/ pouco comum, de apresentado/ qual seja, o da extensão desta hegemonia para um
a região das Missões. locai externo à região onde esta se desenvolveu e consoHdou-se.
laboramos a problemática a partir da premissa E !ongo o histórico de como os jesuítas, ainda nos séculos
desafia/ que nos inquieta, de XV!, XVil e XVI!!/ começaram a escrever as suas próprias narrativas
de etnias italianas de sua origem, crescimentos e expansão como ordem religiosa
memória dos mártires das Missões/ do século XVII? a evangelização e conversão de povos não europeus.
nas mais
estes eventos significam e são ressignifícados
iíaiianos/ ionge de seu
um caso onde a uma localidade da chamada região das Missões
massa e o fermento de uma profusão em
de pesquisas
desenvolvimento chega até a atualidade. No sul do Brasil, em
como região particular no Rio Grande do Sul/ parte desta
Missões. Não se traía de uma denominação oficiai, embora alguns envolvida nas polémicas sobre as "origens
públicos a utítizem para efeitos de divisão de serviços/ sendo incluída ao que produzia a historiografia
sendo mais comum o seu uso em termos de políticas na área do como
turismo. Sem limites absolutamente precisos, abrange em torno que precisava achar o seu lugar na história regional/ as Missões
de 46 municípios. jesuíticas acabaram se tornando um campo fértil para as mais
Porém, os mais conhecidos são aqueles que possuem diversas interpretações.
vestígios arquitetônicos das reduções jesuíticas do século XVIII. Resulta daí sua caracterização como um "Estado Teocrático"
Não havendo como classifica-ia por uma atívidade económica dentro do império espanhol, ou como uma "República comunista
predominante ou centra!/como ocorre com a Região dos Vinhedos/ cristã , para ficar nos dois extremos destas interpretações. Será
ou por uma característica fisiográfíca/ como o Pampa, resta a região na década de 80 do século XX que uma virada historiográfíca terá
das Missões uma caracterização a partir de elementos históricos e início. Seu marco será a publicação de Missões: uma utopia política,
culturais. Ainda assim/ não se traía de todos os elementos possíveis de Amo Alvarez Kem (1982). Deixando para trás as dicotomias e
de ser relacionados aos diferentes processos históricos pêlos apologias que haviam caracterizado a maioria dos estudos até então/
quais passou a região. Mas sim de uma seleção intencionalmente Kern situa as missões jesuíticas dentro dos quadros da sociedade
operada por diferentes agentes/ao longo de/ao menos, nas últimas colonial espanhola na região platina/ bem como acentua seu
quatro décadas. Para falarmos em excepcionalidade/ no caso do caráter de fronteira com as possessões portuguesas. Desde então/
disíriío de Três Mártires, é preciso determinar esta hegemonia estes povoados criados para reunir e promover a evangelização
de um passado sobre os demais, na região das Missões. Desta dos indígenas, sobretudo os Guarani, passaram a ser estudados
forma, será possível, pensar no inusitado do processo que nos é como um fenómeno amplo/ inserido na história colonial platina/

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mas com espedfícidades que permitem sua interpretação pêlos promoção dos marcos deste passado. Todas e!as acabaram, de
mais diferentes campos das ciências humanas. Simultâneo a esta uma maneira ou de outra/ interferindo, adonando, constituindo/
mudança na forma de estudar e produzir o conhecimento sobre reforçando a memória/ ou as memórias/ com as quais se operam
este processo histórico, a década de 80 parece ter sido também as negociações com o passado" (Pommer/ 2008:13) Esta parece
a retomada de sua "vaiorizaçao" na região diretamente envolvida ser- também a impressão de Ceres Brum:
histórica e geograficamente com o mesmo. É o que destaca Roselene
Pommer: a parda pluralidade de estudos realizados sobre a experiência de
evangelização ocorrida durante os séculos XVII e XVIll, penso que
Na década de 1980, a paisagem de alguns municípios da região das o passado missioneiro se constitui em um problema antropológico
presente, uma vez que a memória do mesmo vem sendo adonada
Missões viveu um processo de alterações que simbolizou os novos
vaiares identitários que a comunidade desenvoSveria. A nova paisagem, de diversas formas, produzindo imaginários/ pertencimentos e
composta por monumentos espeafícos, reftetía uma nova orientação identidades que têm o míssíoneiro como referenciai histórico
espacial, devendo se transformar nos iócus de apresentação de uma construído/ cujos oihares importam em tornadas de posições
acerca do passado no presente (Brum, 2006, p.l5),
comunidade missioneira (Pommer, 2008, p. 30).

Pommer se detém na formação do missioneirismo como Destas negociações com o passado e seus desdobramentos
um constructo k'entítário que teve lugar a partir da década de 80 recolhemos aqui especificamente aqueles aspectos que dizem

e que é responsável por uma gama expressiva de ações destinadas respeito ao espaço. Para que houvesse êxito nas ações promovidas

à determinação e fixação de uma história/ de um passado. Este na região/ respaldadas por numerosa bibliografia, académica e não

processo de "retomada" de uma história teve como fio condutor a académica, foi importante a visualização da materiaiïdade que

inspiração em modelos económicos idealizados de comunitarismo/ parecia/ ou deveria corroborar as narrativas que vinham sendo

ao mesmo tempo em que contribuía para enaitecer os jesuítas em etaboradas. È assim que um duplo movimento/ no que tange à

detrimento do protagonismo dos Guarani. Igualmente, em que materialidade, se verifica. Por um lado/ a proteção e valorização,
pese o fato de que o Instituto do Património Histórico e Artístico dos monumentos históricos, com destaque para as ruínas do

Nacional (IPHAN) já houvesse tornado medidas para proteger que foram os núcleos urbanos daqueles povoados.

e patrimonializar as ruínas de algumas missões, foi também na Atuam aí o IPHAN, com as ações de cercamento, limpeza/
década de 1980 que a UNESCO reconheceu as ruínas de São Miguel consoiidaçâo e organização para receber visitantes, bem as

Arcanjo como Património da Humanidade (1983). Isto/ sem dúvida, universidades, com os projetos de escavações arqueológicas/

impulsionou medidas locais quejá estavam em curso. Assim temos/ principalmente do projeto Arqueologia Histórica Missioneira,

a partir dos anos 80, ao menos três frentes que, ainda que não coordenado por Amo Kern entre 1985 e 1995. Para além disso, a

integradas/ passaram a criar as condições para uma ressignifícação criação de novos "marcos espaciais7' com pórticos, sinalizações e,

do passado das Missões: a revisão da historiografia; a intervenção sobretudo, a consolidação da Cruz Missioneira como um símbolo

na paisagem, com a valorização e/ou criação de monumentos e dupio, do passado das Missões e do presente da região. É assim que

outros elementos no espaço; e as ações públicas de proteção e ela aparecerá nos acessos às principais cidades/ nas praças, em um
sem número de artesanatos, e nos escudos de diversos municípios

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da região. Esta cruz/ caracterizada por possuir duas hastes, sendo a Uma vez estabelecido então que, em determinada
superior menor, tem um histórico próprio, que por si soja exemplifica região do Rio Grande do Sul tem-se o fenómeno da construção
estas ressignifi- cações. E é anterior a estes processos iniciados nos e consolidação de uma narrativa seletíva do passado. Que esta
anos 1980. Apesar da força alcançada como símbolo/ há apenas narrativa Eegítima uma pretensa identidade míssioneira. E que faz
uma publicação/ de 1984 (Rabuske, 1984), que tentou dar conta de parte desta narrativa a presença física de marcos na paisagem/
explicar a sua origem e a possível importância que poderia ter tido podemos dizer que há uma memória espacíallzada que é resultado
na época das reduções. De lá para cá, sem que outro autor trate e condicionante da permanência de uma versão/ ainda que com
de estudar este fenómeno detidamente/ sua força só fez crescer, variações, sobre o passado das Missões Jesuíticas/ a qual aicançou
alcançando o patamar de sim- bolo máximo das Missões jesuíticas. hegemonia/ sobretudo no noroeste do Rio Grande do Sul. Mas não
Juntos, os monumentos antigos e modernos/ os marcos esíá restrita a esta região. Manifesta-se em outros !ocais/ sempre
físicos/ as sinalizações e a "cruz missioneira" constituem a e quando agentes sociais possuem as condições discursivas e
materialização na paisagem de um passado ressigniticado. políticas para colocar em ação iniciativas que visam dar sequência
Acresceníe-se a estes toda a gama de mapas e croquis que a esta hegemonia. É neste sentido que se pode voltar ao caso
de João Anversa/ o milagre do coração de Roque Gonzaiez e as
cartazes, panfletos, foiheíos/ revistas, murais/ placas/ sites de consequências para uma localidade no interior de uma comunidade
internei/ entre outros. Os mapas da "região das Missões", em italiana/ fora da região "missioneira"
^eral trazem em suas legendas ou alegorias a "cruz missioneira".
E servem para, ao menos no plano simbólico, demarcar a área
de abrangência deste passado hegemônico sob o qual diversos
pactos foram selados. Atadas estas manifestações que interferem
no espaço, com o claro sentido de fazer recordar, de registrar, de
narrar este passado, chamamos de espacialidade da memória. Esta Como já foi enunciado o drama de João Anvesa/ nos cabe
espacialidade se dá através da alteração da paisagem com o fím destacar a localidade de Linha Rincao da Lagoa/ comunidade
de plasmar um passado sobre o qual se chegou a um consenso distante 42 km de Santa Maria e a 12 km de Silveira Martins.
que deva ser demarcado fisicamente/ demarcando assim também Situada em uma zona rural, distrito de JúÍEo de Castíthos/ entre
sua hegemonia sobre outras narrativas ligadas ao mesmo espaço. os municípios de Ivorá e Silveira Martins, na depressão centra!
Vamos assim, ao encontro do que já fora observado por Pommer; do Rio Grande do SuE. O imaginário popular da comunidade é
povoado de narrativas dos milagres do beato Roque Gonzaiez,260
Assim, à memória, individuai e coletiva, determinada que um dia ~ imemorável - percorreu pela região sagrando-a. A
espacialmente/ estaria reservada a função de ligar o passado
Linha Rincâo da Lagoa foi povoada ao !ongo da década de 1930,
ao presente. A memória se constitui através dos vestígios
representativos como os monumentos, as paisagens antrõpica
260 A obra que influenciou na construção do imaginário popular de catequese, divuigada
e natural que são algumas das fontes de recordação para formação no Estado, elaborada peíos jesuítas era: RÉUS, João Baptista e ACERETE, J. Os três
do sentido atribuído pêlos grupos humanos ao seu passado Mártires das Missões Guaranüicas da Companhia de Jesus. Porto Alegre: Livraria do
(Pommer, 2008, p.43). Globo, 1934,

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por imigrantes italianos de segunda geração vindos da Quarta
Colónia de Silveira Martins, sobretudo, famíiias Maníovanas, apontou como urdidor da vergonha a crueldade praticada em

oriundos de Mântova, na itália/ portanto/ trata-se de colónia Casró/ um certo Potivara, trânsfuga indígeng das reduções
jesuíticas, que votava aos padres um ódio mortal. Procurou
nova vinculada ao crescimento popuiacionai de Silveira ÍViartins
cúmplices para o seu bárbaro intento. Encontrou-se com o
e no processo de expansão fundiária e da iavoura. Comunidade feiticeiro Nheçu, Pagé de índole soberba que com elogios e
católica e de reiigiosídade voltada à devoção dos Mártires fingidas crendices da parte de Potívara, foi arrastado a rebeldia
das [Vlissões/ estabeiecia nexos da atualidade com o passado (DANIEL, 1940, p.03).
missioneiro, reverenciando os atos dos mesmos. A possibilidade
de aproximação real da relíquia se tornava um ato sublime, de Essa construção discursiva tem por efeito impressionar
p!enitucle aos devotos. os católicos/ entre eles João Anvesa/ que defende a narrativa
O momento do povoamento é contemporâneo de uma de Daniel de enaltecimenío ao padre Roque, como "incansável
intensa produção religiosa sobre os aios sagrados dos mártires, sacerdote que por primeiro trouxera a civilização e o evangelho
desde a década de 1920 se tem uma fecunda produção sobre a ao Rio Grande do Sui . Ele condui o artigo de forma apotogétíca
Companhia de Jesus no Rio Grande do Sul/ evidenciando o seu papel e procurando despertar o sentimento de reparação dos fiéis:
na formação do estado e na edificação da igreja Católica/ cujos Ainda hoje podemos ver no coração do padre Roque essa ferida
marcos temporais remontam o período de 1620. Os intelectuais feita há 312 anos".
em prol da Companhia elaboram uma autentica batalha pela O camponês João Anvesa vive numa comunidade de
História e memória para referendar sua ação ao longo dos 300 agricultura famiiiar, cujos primeiros proprietários de terra na
anos que distanciavam/aproximavam presente-passado. No bojo região são membros das famílias Tomazzetíj, Maffini, Anversa,
da produção iníelectuai em defesa da Companhia/ em disputas Avosani, Venturini e Cerezer. O proprietário de terra mais antigo é
pelo passado, referenciando-o/ iegitimando-o como açao dos Mariano de Freitas. Segundo BELLINASO, a comunidade também
missionários, estão os lances do sagrado/ da oddentaiizaçâo das era reconhecida por São Francisco/ devido a existência da capeia
comunidades indígenas e de suas terras. Dessa forma/ o martírio de São Francisco de Assis.261
de 1628 adquire um caráter místico de mito fundador do Rio Finalmente chega o grande dia. Confornne informa o
Grande do Sul, sob o viés da espanhoiização, em cujos escritos noticiário impresso "A Razão", de 19 de fevereiro, que "Peregrinos
os missionários assumem o protagonismo enquanto constróem de todas as partes virão a Santa Maria", detalhando que os
o silenciamento indígena através da conversão. peregrinos de Ivorá, informam que virão quatro ônibus lotados.
Também em Silveira Martins, Vaie Veneto e D. Frandsca estão
Daniel publica artigo de exaltação aos aios do mártir, com a intenção sendo organizadas grandes caravanas". As localidades mencionadas
de nnobiiizar; sensibilizar a açao dos católicos/ chamados a Souvar a compõem a Quarta Região de Coionizaçao Italiana/ integradas
relíquia e vangloriar os episódios de 1628.0 artigo "O beato Roque
Gonzaies: o mártir da fé", referenciado no historiador Southey,
261 BELINASSO» S.T. Os heróis de Vai de Buía: a historia aos imigrantes italianos
que o mesmo: que constjvíram a Quarta Colónia de imigração Italiana de Silveira Martins, Santa
Maria: Pallotti, 2000. p. 45.
a diocese de Santa Maria recebeu num ambiente de intensa vibração reiigiosa,
Maria.262 Os habitantes da Linha Rincão da Lagoa
ontem, à noite, o coração do padre Roque Gonzalez. O interesse
ou igem-se à Santa celebrar o ato
que vinha despertando, neste e nos municípios visinhos/ o amplo
na relíquia sagrada/ num momento magico/ noticiário de A RAZÃO/ que antecipava a vinda, a Santa Maria, dop
primeira vez coração do Mártir das Missões/ fazia prever um espetáculo grandioso
na chegada da relíquia conservada/intacta, há trezentos e doze anos.
A recepção ultrapassou, entretanto, as melhores espectatívas. Desde
Terça-feira, 20 de fevereiro de 1940. Gradativameníe
cedo a cidade teve o seu movimento grandemente aumentado/ com
diferentes peregrinos de diversos lugares da
a chegada de caravanas de peregrinos do interior do município e de
região de Santa Maria. Aos poucos os católicos se agiomeram ao outras comunas, que vinham participar das homenagens à reilquia
Branco/ no (...) A noite, as ruas centrais/ principalmente nas adjacências da
Catedral, registravam intenso movimento, achando-se os bancos
dos passeios completamente tornados (...) verdadeira muitidâo,
empolgante e atrativa aos fiéis: "Chega hoje o Coração do Padre
calculada em cerca de 10 mil pessoas, comprimia-se na gare local da
Roque". Anunciando os festejos/ que terá início às 22hs, quando
Viação Férrea e imediações, exíendendo-se ao longo da avenida Rio
D. António Reis acompanhará a relíquia em procissão, eie que vem Branco até a Catedral. Era uma muStídão integrada por elementos
do Congresso Catóiico em Serro Azul. de todas as classes da coletividade santamariense, autoridades,
No dia seguinte, 21 de fevereiro ocorre a Romaria ao comerciantes, industrialistas/exmas famílias, homens do povo (A

Santuário de Medianeira/ consagrada peio coração do beato Razão", 21/02/1940, p. 04).

milagreiro. O coração de Anvesa pulsa forte. Ele não cabe em


si de emoção/ pois sua devoção ao beato Roque vai se efetivar O noticiário nos permite perceber a participação popular e

no milagre à cura da filha. Aquela tarde foi de vigíHa e espera. O católica no movimento religioso de consagração a relíquia, que estava

trem atrasou, demorou para sair de Santo ÃngeEo, mas nada que aiém das expectativas dos organizadores. A mesma matéria se tem

atrapalhasse as festividades/ pois "a catedral permanecerá aberta a informação do cortejo que segue do trem à catedral: "Em seguida,

durante toda a noite, onde com maior socêgo/ a relíquia poderá o cortejo se dirigiu a igreja Matriz/ sendo a relíquia conduzida por
ser vista e venerada pêlos fieis" ("A Razão"/ 21/02/1940). d. António Reis/ que era ladeado por inúmeros sacerdotes, altas

Santa Maria/21 de fevereiro. A manchete do jornal "Cerca autoridades civis e miiitares". Nele se percebe que coube somente

de dez mil pessoas aguardaram/ ontem, o coração do Padre Roque as elites eclesiásticas/ militares e civis o traslado da relíquia/ em ato

Gonzalez" cujo subtítulo acompanha: "Constituiu em espetáculo de demonstração das hierarquias sociais. Por fim/ o acontecimento

vibrante a chegada da relíquia - Acompanhado pela multidão é celebrado através de: "Milhares de pessoas desfilaram desde

o relicário foi transportado para a Catedral/ sendo celebrado ontem até a madrugada de hoje pela Catedral, diante do relicário
K"
solene "Te-Deum" ~ a romaria, de hoje/ às 07hs, ao Santuário da que conserva o coração do padre Roque Gonzalez (A Razão
Medianeira"; 21/02/1940, p.02).
Ainda sobre o evento, SantínÍ observa em seu relatório-iivro
262 BARRICHELLO, C. A.; SANTOS, Ï. R. Q. Gmpos étnicos italianos: religiosidade informações de que o evento se traduzia em grande acontecimento à
e negociação de identidade na região centra! do RS. Revista Sociais e Humanas, Santa
cidade/ discordando um pouco dos dados dojorna! supramencionado:
Maria, UFSM/CCSH, v. 6, n. 23,2012; BOLZAN, M, Quarta Colónia: da fragmeiiíaçao
à integração. Santa Maria: Pallotti, 2015.

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uma multidão imensa/ ca!cu!ada em 15.000 pessoas/ rompeu
em ciamorosos vivas aos mártires rio-grandenses. S. Excia
No entanto, é pertinente compreender o evento a partir
visívelmente emocionado ante o entusiasmo e devoção dos
de quatro inflexões que o constróem: primeiro a questão da Igreja
seus diocesanos/ levou o coração, sem dizer palavra, por entre
as aias de povo que ligavam a Estação à catedral (...)A cerimónia Católica na Diocese de Santa Maria/ onde está inserida a capeia
oficial terminou lá pela meia noite; mas a veneração da reiíquia de São Francisco e a chamada aos fiéis católicos da Linha Rincão
prosseguiu ininterrupta até às 7 horas das manha, em que teve da Lagoa e o gesto religioso que consagra o milagre; segundo a
início a procissão triunfai para o lugar em que está surgindo o ressignifícação do evento do Martírio em meio às comemorações
novo santuário de Na Sa Medianeira, ao lado do Seminário S. José.263
dos quarto centenário da Companhia de Jesus, em suas relações
com o Estado Novo (1937-1945) no Brasil; terceiro, quando os
Nesses atos de multidão, João Anvesa e sua família se faziam
católicos evocam a memória católica, disputando o passado
presentes e focados na possibilidade de milagre com a cura da filha,
histórico sui-rio-grandense/ missioneiro e santamariense, buscando
o que de fato, segundo a tradição oral, se efetivou.264 A "multidão"
interpretações e nexos com o passado, e; por fim, quando uma
constrói o evento em seus gestos religiosos, os quais expressam comunidade decide mudar o nome de Linha Rincão da Lagoa
suas experiências de seres humanos. Neste sentido/ tomamos de para Três Mártires como extensão do gesto religioso, enquanto
empréstimo a análise de Hoornaert no que se constitui o gesto expressão de suas experiências e reconhecimento do sagrado,
religioso ao afirmar que: quando as pessoas rezam, assistem isso porque não podemos ignorar como a comunidade interpreta
à missa ou fazem romaria estão vivendo uma experiência": as metáforas - milagre, relíquia/ salvação, palavra ~ a ponto de
andam/ falam/ rezam, ajoelham-se, fecham os olhos, juntam as estabelecer aliança com o sagrado/ rebatizando a comunidade.
mãos/ batem palmas/ cantam".2GS Portanto/ deve-se compreender As leituras dos acontecimentos a partir do jornal "A Razão"
que a religião expressa uma pratica existencial, o que explica a e do relato-obra "Triunfos Dum Coração" do Pe. Santini, produzidos
presença da multidão mencionada nos relatos de época, onde os ao calor dos eventos, tratam-se de um conjunto de discursos
atos penitenciais ante a relíquia evidenciam o quanto se vive a produzidos em meados do século XX sobre a origem/ a necessidade/
experiência, ressignificando-a aos cotidianos coletívos ali presentes. a importância da relíquia, como produto e milagre fundador do
O ato do martírio é revivifícado e a memória do evento é evocada. martírio e os seus desdobramentos e espacialidades/ posto que
se estendem e procuram atingir todos os fiéis católicos sul-rio-
grandenses. Nesse sentido, é importante rever as referidas fontes
263 SANTINI, Pe. C., S.J. Triunfos dum Coração. São Leopoldo: Seminário Central, históricas como discursos/ compreendendo-os enquanto: "lugar
1940 pp. 38-39. de argumentação/ de enunciaçao, de constituição de identidade,
264 FELrN, S. A valorização da comimidade de Três Mártires na Quarta Colónia de relação de sentidos."266 Portanto, é necessário dessacralizar o
Imigração Italiana através das ondas do rádio. 2016, 128f. Dissertação (Mestrado em
Património Cultural) - Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria/
significado do documento histórico sobre o evento/ percebendo-o
RS,p.23. enquanto sentido da lógica católica do período.
265 HOORXAERT, E. Prefácio -Novas Perspectivas. In: PASSOS, M; NASCD^ENTO,
M. R. (orgs) A Invenção das devoções: crenças e formas de expressão religiosa. Belo 266 ORLANDI, E.P. Terra à Vista - Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo, 2
Horizonte: Editora O lutador, 2013. p. 16. ed. Campinas,SP: EdUNICAMP, 2008. p. 86.

258 259
No evento dos dias 20 e 21 de fevereiro de 1940, no qual referencia à Restauração em suas inflexões de reconhecimento e
João Anversa participou plenamente/ as fontes evidenciam o continuação da obra expressa no fato fundante/ daí o seu empenho
protagonismo de Dom António Reis/ íransformando-o em referencia conferido porSantíni em "Triunfos Dum Coração" (1940 pp. 33-34).
dos acontecimentos/ mesclando as experiências humanas e o O bispo de Santa Maria estava na comitiva que recebeu a relíquia
sagrado. No entanto convém destacar as diferentes intenções/ em Libres-Argentina, trasladando-a para Uruguaiana-Brasil, em 15
entre elas o processo de reconhecimento de Nossa Senhora de fevereiro de 1940. Nesta relação é possível auferir que:
de Medianeira como a Padroeira do Rio Grande do Sul/67 cujos
esforços se concretizaram após a peregrinação da relíquia em A Igreja Católica de Santa Maria acumulava capita! de bem
1942. Não se pode ignorar a relação entre os acontecimentos de de salvação. O Poder simbólico/ representado pela devoção
a Medianeira, agia como sobreposto à autoridade, ao
1940, os favorecimentos, a vinda e presença da relíquia do mártir
reconhecimento/ ao prestígio, o que agregava valor à Igreja,
canonizado/ o beato Roque Gonzalez/ e a elevação de Medianeira
conferindo a ela um poder que lhe era fundamental para a conquista
à categoria de Padroelra. dos fiéis e para seu reconhecimento como preponderante no
Antes da posse de Dom António Reis/68 em 1932, estava espaço da cidade.269
em Jogo o Projeto de Restauração Católica em Santa Maria/ que
consistia na disputa do prestígio da mesma e seu capital de bens Dessa forma, a peregrinação da principal relíquia católica
de salvação/ com os projetos dos evangélicos e maçons. Percebe- em Santa Maria corrobora com o Poder simbólico atribuindo valor
se o empenho da imprensa católica, aíuação da Revista Rainha 3 Romaria de Medianeira. No conjunto de desdobramentos da
dos Apóstolos/e imprensa !aica no jornal "A Razão" em propagar presença da relíquia ocorre no dia 20 de fevereiro a romaria até o
o mistério da saEvaçâo e o crescimento da devoção à Medianeira Santuário de Medianeira, expressando a experiência de diferentes
em sua antessala" da sacralizaçao/ traduzida na presença real seres humanos. Muitos devotos que se constituem na multidão
da relíquia/ que corroboram à sua legitimação. Seio estabelecidas alcunhada pela imprensa, sinalizam suas crenças e formas de
batalhas da memória pela história para legitimar a Padroeira expressão religiosa iigadas aos mistérios decorrentes do martírio.
em meio seus nexos com o fato fundante do Catolicismo sul-rio- Nesse sentido, convém destacar que a presença da relíquia se soma
grandense, ou seja, o martírio de 1628, estendido e compreendido
à coletívidade católica. Dom António Reis é apresentado como as "romarias" em "peregrinação7

267 A devoção a Nossa Senhora Medianeira começa em 1928 sob orientação do Pe.
Ignácio Rafael Valie, Em maio de 1930 foi realizada a primeira festa da Medianeira em
âmbito diocesano. Em 1935, D. António Reis, o "Bispo da Medianeira" inicia à construção 3 tese sobre o período, Marta Borin que "os padres
do Santuário, lançando a pedra fündamenÉal. Em Ï 942, os Bispos do Rio Grande do
Sul consagraram o Estado a Nossa Senhora Medianeira e, no ano seguinte, acontece a
, jesuítas e
primeira Romaria Estadual. In; PADCÁO. D. Pe. Ignácio Valle S.J, e a devoção a Nossa
Senhora Medianeira. Santa Maria: PaIIotti. 2003.
268 D. António Reis, coordena e orienta a nova devoção dedicada a N.S, Medianeira.
Pouco a pouco, as procissões tomam-se muito concorridas e, em 1942,s anta é entronízada 269 BORIN, M,R, Por wn Brasil Católico: Tensão e Conflito no campo religioso da
padroeira do Rio Grande do Sul". BIASOLI, V. O Catolicismo Ultmmontaw e a Conquista República. 2010. 369f. Tese (Doutorado em História) - Universidade do Vale do Rio
de Santa Maria (1870/1920). Santa Maria: EdUFSM, 2010. p. 189. dos Sinos (UNISINOS), São LeopoÍdo/RS, p,224.

260
período de renovação/'270 Assim, percebemos a presença da relíquia do catolicismo, esses intelectuais usaram de uma retórica fantasiosa
em momento decisivo e importante na proposta de renovação avalizada na retórica colonial a fim de garantir o lugar dos Mártires
sinalizada peja historiadora. como os Apóstolos/ arautos do passado, para os quais o povo no-
As comemorações da fundação da Companhia de Jesus em grandense devia nutrir sentimento de fé e gratidão.
1940 também devem ser levadas em consideração à compreensão Assim, eles são elevados à categoria de heróis civiiizadores/
a peregrinação da relíquia sagrada, produzida no âmbito da história de uma civilização crista ocidental de bases antígüistas e medievais/
da própria instituição. O sentido discursivo era marcar de forma representativa do triunfo do catolicismo. Ora/ por esta lógica/
indelével que a produção do sagrado se fez em decorrência do mártires da fé católica, autênticos apóstolos da cristandade
sacrifício de seus missionários, que em processo de conversão ocidental só morrem em prol da evangelização/ cujo ato de martírio
de indígenas e foram martírizados para a concretização da obra sacraliza a terra/ Ímageticamente o sangue batiza a terra/ assim è um
jesuítica. Para afém desta questão/ está posto que a Companhia tem discurso que visava reverendá-los e confirmar que o fato fundante
importância decisiva no processo histórico rio-grandense/ produzindo equivale a visão mítica que certifica - certidão de nascimento -o
os fatos e os seus santos. Os historiadores dericais católicos, inclusive começo da História como dádiva do evento de evangelização.
da Companhia, se empoderam do passado histórico denominando-o Dessa forma, por esta lógica perversa/ até a chegada dos
de jesuítico para referendar de que foi neste que iniciou a historia arautos do catohcismo - os missionários jesuitas ~ a região se
do Rio Grande do Sul em seu processo dvilizatório.271 constituía em terra arrasada habitada por seres humanos que
Na ocasião, a beatificação dos Três Mártires de 1934, viviam sem Deus, sem Rei e sem Lei/ em atos profanos/ cabendo
estava em processo de sedimentação como Apóstolos do Rio aos apóstolos a conversão dos seres para os campos do senhor
Grande do Sul/em disputa católica, particularmente jesuítica/do (catoiidsmo. Estado Absoiuto e civilização através da cultura escrita).
passado histórico sul-rio-grandense, como desdobramento da Na elaboração desse imaginário a devoção aos mártires garantia
política estadonovista (1937-1945) no governo Getúlio Vargas, em aos devotos as benesses da fé e cristandade. Esses elementos
momento de sacrafização do poder, em resposta a aliança Estado articulados são elevados à ideologia do Estado Novo sob o governo
Novo e alto clero da Igreja Católica. autoritário de Vargas, onde fé, patriotismo e civismo tinham seus
Intelectuais orgânicos de ordens religiosas católicas, entre eles nexos/ exatamente no momento histórico das comemorações do
jesuítas e palotínos, se esmeravam em narrara passado histórico rio- IV Centenário da Fundação da Companhia de Jesus (1541-1941)/272
grandense evidenciando e garantindo um lugar privilegiado aos lances cabendo ao Padre Serafim Leite/ na extensa/ ampla e complexa
e eventos relacionados ao Martírio dos Padres ocorridos no século obra "História da Companhia de Jesus no Brasil premiada pelo
XVII/ no final de 1628, garantíndo-fhes o lugar de Mito Fundador da Instituto Nacional do Livro (tNL)/ órgão do governo autoritário que
História do Rio Grande do Sul. Para reforçar a narrativa na disputa legitimava a política cultural varguista, a recuperação da presença
por hegemonia e atingir corações e mentes/ principalmente das bases jesuítica no Brasil e Portugal, elaborando a tese de que foram os
jesuítas que fizeram o Brasil/ ou seja, que garantiram a integração
270 Ib.idemp.225.
271 MARINf, D. A consolidação da Romaria do Caaró a partir da mídia impressa: 272 Diosen Marin cita em sua dissertação o decreto n° 6355/40, assinado pelo Governo
1937-1945. 2014. 163f. Dissertação (Mestrado em História) - Universidade Federal de Vargas, em que se reconhece a importância da Companhia de Jesus na formação do Brasil,
Santa Maria (UFSM), Santa Maria/RS. pp 94-121. como expressão da aliança Estado Novo - Igreja Católica. Op. Cií. p. 79.

262
colonial através das distintas Missões/ numa possível geopolítica para os limites, problemas, a criação de mitos e a manifestação
colonial. Portanto, é mister entender a interpretação do presente da memória sdetiva nas construções históricas dos moradores
de 1940 peios aios heróicos do passado jesuítico do século XVII, de Civitella Vai di Chiana/ referente a execução de centenas de
quando se afirma: //Em nossos dias já não resta mais dúvida de que civis, em 29 de junho de 1944, por tropas a!emas em retaliação
o Beato Roque Gonzalez foi o primeiro sacerdote que pafmilhou a morte de três de seus soldados/ por integrantes da Resistência
diversas regiões do atua! território da diocese de Santa Maria. E na localidade.
após dele/ outros heróis "273 Esta era máxima que impressiona os Consideramos validas estas interpretações à percepção da
católicos e os da Linha Rincâo da Lagoa em suas experiências de memória missioneira que se elabora na Linha Rincão da Lagoa,
seres humanos voltadas ao sagrado/ ao mistério/ à devoção. envolta em religiosidade/ penitencia e mistério. No caso de
Porém, à medida que a Igreja Católica de Santa Maria, Portelti/ ele busca compreender o que levou os moradores da
em disputa de Poder simbólico referenciada nas estratégias de região de Ovitella a creditarem a responsabilidade das mortes
D. António Reis e o Estado Novo/ no governo de Getúlio Vargas/ dos civis ao movimento de resistência, "vitimizando" as tropas
definem glorificar os atos do passado jesuítico no Rio Grande alemãs/ por meio das narrativas construídas a partir de então.
do Sul, personalizado beato mártir Roque GonzaEez e nos seus Poríelli assinala que é dever do pesquisador compreender
companheiros Afonso Rodrigues e João de Castíihos, evocam a os relatos do passado, as narrativas dos moradores da cidade de
memória a fím de interpretar a história. Civiíelta, nos aproximando a compreender as experiências dos
De uma maneira geral compreendemos a memória "nos seres humanos com o sagrado expressas na Linha Campos da
da memória social Lagoa -de como uma comunidade italiana adota códigos/ valores,
e ./-' 274
símbolos e mitos de um missioneirismo em elaboração focado
Ts na figura do mártir. Assim, nos interessa perceber como frações
a sria e a narrativa histórica/ < con e, em
essa PorteEli em; "O massacre

//275
disso/ Duran e Bentívogiio
Cruz Duran e de Júlio Bentivoglio na obra: Paul Ricouer e o lugar existente entre história/
276

ievando em consideração as proposições estabelecidas em Paul


?Z3 ^ïTO?í Liv" ^ Dïocese de Santa Mana. Santa Maria: edições Diocese, 1956. p. 11, Ricouer. Dessa maneira, os autores assinalam que a
274 ACHARD, P.; ORLANDJ, E. P. [et al.] Pape! da Memória. 4 ed. Campinas, SP:
Pontes Editores, 2015. p. 44.
!5.. ELLI;.A' ° massacre de Civitella Vai di Chiana (Toscana, 29 de junho de individuais e coletívas. Tais memórias/ somado aos "lugares de
1944); m io e política, luta e senso comum. In: AMADO, J.; FERRERA, M. de M. (orgs.). vezes/ poderiam
Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGY 1996.
l" 277
276 DURAN, M. R, C.; BENTIVOGLIO, J. Paul Rícouer e o lugar da memória na
historiografia contemporânea. Dimensões, v. 30, 2013, p. 213-244. ISSN:2179-8869.
Disponível em: httei//www,Deriodicos.ufes.br/dimensoes/artÍcie/viewFíÍe/6162/4503. 277 DURAN, M. R. C.; BENTIVOGUO, }. Op. CU. p-216.
Nesse sentido/ entende-se que a memória e/ em muitos universaiismo genérico para dotá-lo do poder conflitante de uma
narrativa em contraposição a outras.278
casos, a perda da memória ou o esquecimento, isto é/ a seleçâo
espontânea e/ou não espontânea dos acontecimentos do passado/
esteja amplamente iigada ao contexto histórico, isto é/ à história/ Por conseguinte, entende-se que um acontecimento, uma

ao tempo e ao espaço. Desse modo, as versões realizadas do conjuntura/ uns fatos são acompanhados por representações/

passado são passíveis de interferências próprias do tempo em isto é/ não se manifestam separadamente. Nesse sentido/ as

que são produzidas. Cirineu Anversa, descendente Mantovano/ representações se utilizam dos fatos e alegam que são fatos; os fatos

em entrevista realizada em 16 de agosto de 2015, lembra que são reconhecidos e organizados de acordo com as representações"/

a comunidade !eva o nome de Três Mártires porque, perto de os dois encontram-se no íntimo de cada indivíduo e são circundados

onde a família dele morava, nas colónias novas/ havia um tío por sua linguagem. Desse modo, pode-se compreender que a história

chamado João/ o qual possuía uma filha enferma e desenganada oral, especificamente, tem essa ligação como seu principal alicerce/

pêlos médicos. João prometeu que se sua filha ficasse curada "que é contabilizada como história com fatos reconstruídos/ mas

dos males/ como parte da promessa/ ele doaria à comunidade também aprende, em sua prática de trabalho de campo dialógico e

uma imagem do Padre Roque Gonzalez oriunda da região das na confrontação crítica com a aiteridade dos narradores/ a entender

Missões. Ele fez a promessa em frente ao coração do Padre representações".279 A par desta reflexão é importante mencionar que

Roque. Como a fí!ha de João foi curada, eEe doou a imagem para a comunidade de Campos da lagoa vive as representações do passado

a comunidade em 1940. Esta lembrança/ revestida de misticismo/ missioneiro mesclado com o passado italiano/ se empoderando do

é viva na comunidade, revisitada anuaEmente e ressignifícada passado jesuítico hibridizando-o com a italianidade.

cidicamente no mês de janeiro. A memória também compõe-se de elementos do poiítíco,

No caso de Civitella, os moradores passaram a condenar isto é/ tem as interferências e, de certa forma/ agindo por meio do

os integrantes da Resistência someníe anos depois do ocorrido/ discurso. Pode-se visualizar isso/ quando os moradores de Civitella

pois "no período imediato ao pós-guerra/ quando estes gozavam trocam a ordem cronológica dos fatos. Nessa perspectiva/ a trajédia

de prestígio e de certo poder político", não se manifestavam tais da região teria seu princípio a partir das reações da Resistência e

críticas. Além disso/ o Portelii menciona que em outra localidade não a partir das investidas e das vítimas alemãs na localidade. Além

que, assim como em CiviteHa, sofreu com execuções de civis por disso/ os invasores não seriam os alemães, mas sim/ os membros

alemães, novamente por motivo de retaliação/ não foi creditada da Resistência. De forma um tanto semelhante, a memória dos

aos membros da Resistência essa cu!pa. Portanto/ refletindo adventos do martírio em Campos da Lagoa estão vinculados ao

acerca dos dois relatos/ Portelli assinala: Poder simbólico da Igreja Católica e do Estado Novo do governo
Vargas. Nos relatos de memória/ não somente o tempo pode ser
Afora as explicações dos dois historiadores (estruturas sociais desiocado/ o espaço também pode ser.
e demográficas diferentes, a estrutura diferente do evento)/
essa discrepância confirma que o "escândalo" de Civitella não é 278 PORTELLI, A. O massacre de Civitella Vai di Chiana (Toscana, 29 de junho de
eterno e universal, e sim histórico e específico. Isso não diminui 1944): mito e política, luta e senso comum. In: AMADO, J.; FERRERA, M. de M. (orgs.).
seu impacto/ mas o concentra e especifica, subtraindo-o do Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996, p.110-111.
279 PORTELLI,A.Op.Cit,p.HL

266
Para além desta questão, eníende-se que a confíança Capptelietto e Calamandrei/ referem-se aos relatos dos moradores
ou desconfiança nos relatos de memória, pouco interfere através das expressões, "memória coletíva", "memória grupa!", "do

na Índentíficaçâo de um mito, ou seja, seria falso dizer que povoado . Ainda que de forma legítima, levando em consideração
obrigatoriamente um mito é uma história fantasiada ou inventada. os conceitos e o discurso histórico, como salienta o autor, esses
Ao contrário/ é uma narrativa mítica, uma história "significativa termos não podem lr de encontro afirmando algo que é inerente à
na medida em que amplia o significado de um acontecimento memória/ isto é/ a sua ÍndividuaEÍdade. Isto é, "se toda a memória
individual (factual ou não)/ transformando-o na formalização fosse coletfva/ bastaria uma testemunha para uma cultura inteira;
simbólica e narrativa das auto-representações partilhadas por sabemos que não é assim".283 O autor precipuamente defende as
uma cultura"280. Nesse aspecto/ Poríeili compreende a narrativa memórias individuais.
mítica de forma complexa/ composta por diversos simbolismos/ Dessa maneira, a memória, assim como outras ações

ou seja: um mito não é uma narrativa unívoca/ mas uma matriz humanas, defini-se e é definida por elementos sociais, mas de
de significados/ uma trama de aposições: depende, em última quaiquer maneira, só pode ser concebida de maneira particular.
análise, de o individual serou não percebido como representativo O mito/ por sua vez/ nada mais é do que uma memória/ "abstraída
do todo/ ou como uma aEíernatlva para o todo".281 e separada da individual"/ tomando-se uma memória coletíva.
Nesse sentido, diversos historiadores buscaram fazer Estabelecendo os vínculos possíveis entre as narrativas
a diferenciação entre história e memória. Conforme Duran e individuais e a memória individual, propugnada por Portelli,
Bentivoglio, Jacy Alves Seixas/ é um desses historiadores. Para voltemos ao caso do camponês Anversa. No dia 21 de fevereiro
esse autor/ a diferenciação não é tão simples e requer cuidados, os fiéis retornavam às suas residências em seus corações e mentes
sobretudo, devido a memória transitar 'inextrincaveimente o mundo com a esperança de que a presença da relíquia preenchia seus
rígido e instável da matéria/ tanto quanto reside/ como elástica pedidos. Nos meses que se sucederam/ propalou-se através da

facu!dade/ em nosso espírito". Assim/ ainda que seja reconhecida tradição oral o milagre da cura da filha de João Anvesa, o que
a separação entre memória e história, os autores mencionam que sensibilizou a comunidade de RÍncâo da Lagoa, atingindo o alto
clero da diocese de Santa Maria. Nos meses que se seguiram são
marcados de comoção pelo milagre recebido. Finalmente, no dia
27 de outubro de 1940, data da festa de Cristo-Rei/ é inaugurada
a pedra fundamental da capeia dos Santos Mártires das Missões/
por orientação do Monsenhor Humberto Bussatto e conselho
paroquial.
\, PoríelEi assinala que a Daí em diante/ após a sua inauguração em 1941, a
, tais como: Pieíro C! comunidade deixou de ser RÍncão da Lagoa e passou a ser
denominada de Três Mártires. Somente em 1960, um dos filhos de
280 PORTELLI,A.Op.Cit.p.l21.
281 PORTELUA.Op.Cit.p.123, 283 PORTELLI, A. O massacre de CiviteÍla Vai di Chiana (Toscana, 29 de junho de
282 DURAN, M. R, C.; BENTIVOGLIO, J. Paul Ricouer e o lugar da memória na 1944): mito e política, luta e senso comum. In: AMADO, J.; FERRERA, M. de M. (orgs.).
historiografia contemporânea. Dimensões, vol. 30, 2013. p.220. Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996. p.127.

269
João Anversa doou o dinheiro para comprar as outras duas imagens que para ser missioneiro/ não basta apenas viver em uma região
dos Mártires/ a do Padre Afonso Rodrigues e a do Padre João de missioneira, mas reconhecer-se como integrante desta região. Já em
Castíihos. Esses eventos colaboraram à devoção da comunidade Três Mártires, na Quarta Coiônia/ não existe esse mesmo significado,
aos Mártires. pois a cultura missioneíra não é preservada do mesmo modo como
A então planta da Capela dos Santos Mártires das Missões se preserva na região das Missões. A raiz deste reconhecimento,
foi elaborada por João Lapiíz, sendo que a sua construção foi preservação e vatorizaçao dá-se a partir da relação com a narrativa
confiada a OÍinto Lôndero. O processo de construção da capela dos mítica do martírio e a sua expressão na antiga Linha Rincão da Lagoa,
Santos Mártires deu aos moradores um novo viés em suas vidas cujos gestos religiosos propiciaram o ambiente de cura da filha de
afetivo-espirituais. Para esses moradores, a nova igreja despertava João Anvesa ~ que testemunhou, presenciou e venerou a relíquia
neles um sentimento de pertencimento ao seu país de origem, a sagrada - metáforas do sagrado.
Itália. Isso porque/ na província de Mântova. Embora se tenha toda uma devoção voltada aos Mártires/284
Ao recuperarmos as origens da Igreja dos Três Mártires/ somente fica no reEigioso residual/ e este é sempre associado
destacamos que sua conclusão se deu em 1941 e/ no dia 11 de prioritariamente à ÍtaSianidade/ e às vezes associado ao missioneirismo.
janeiro de 1942 é celebrada no local a primeira festa em honra aos O ponto fulcral entre o missioneirismo e a italianidade é a questão
Santos Mártires das Missões/ pelo então vigário Humberto Busatto, da fé católica e dos santos católicos, o que explica tal devoção.Por
tendo a presença D. António Reis. João Maffini, Vicente Maffini, esta razão é que as pessoas devem interagir e participar de suas
José António Brondani, Mariano de Freiías/ João Anversa e João atividades específicas e culturais. Isto demonstra um sentimento
Nicoloso/ as pessoas que compunham a comissão organizadora de pertencimento voltado a uma determinada cultura/ e a partir
da construção. Os objetivos de Dom António Reis, bispo de Santa dele é que constrói conjunto de elementos, instituições, projeíos/
Maria, se expressam no milagre concedido ao camponês João sendo estes instituidores de uma comunidade imaginada.
Anversa, que agora assume o protagonismo dos acontecimentos Retomamos nossa premissa que nos provoca e desafia/
com a Capela dos Três Mártires na comunidadem, que também que nos inquieta de certa forma: por que em uma comunidade
passa a ser nomeada como tal. majoritariamente descendente da etnia italiana se rememora a
memória dos Mártires das Missões? Até onde o mito do milagre do
coração do Pe. Roque alcança? O que isto significa na comunidade
longe de seu fato fundante? Percebem-se, aqui, duas histórias que
se cruzam/ prindpaimente unidas peia religiosidade, canalizando/
Os Santos Missioneiros do século XVII, da região das Missões assim/ a religiosidade para a devoção. Percebemos que não se
do Rio Grande do Sul/ são ressignifícados ionginquamente/ na trata apenas de cerimónia religiosa com suas metáforas/ mas a
região da Quarta Colónia de imigração Italiana/ sinalizando que memória/ os acontecimentos históricos, aliados aos eventos místicos
suas histórias e memórias são lembradas em outros e diferentes ligados ao milagre, reforçam a presença do sagrado/ ou seja/ das
locais, que se tornam lugares da Memória Missioneira. Para explicar
esta situação nos valemos de Roseiene Pommer/ quando afirma 284 Conforme CERON, I. T. Peregrinos missioneiros: cammhada penitenciai ao Santuário
dos Santos Mártires das Missões - Caaró. Santa Rosa: Rúah, 2000.

270 271
narrativas discursivas sobre os mártires/ ou seja, como os habitantes da Itália pêlos primeiros imigrantes Mantovanos/ seus netos e bisnetos
e como cultuam a devoção aos Mártires das Missões, de modo que/ se os
fazem uso delas. Ao referendar estas questões/ podemos evidenciar habitantes do locai não tivessem fé nos Mártires, não teriam erguido
um Monumento à Cruz Missioneira. O que exemplifica isto é o fato
que se mostram comunidades da região. de que/ na mesma época em que ocorre a Romaria dos Mártires em
comunidade de Três não acontecem romarias Caaró/ terços/ e cultos são realizados na Capela de Três Mártires.
das Missões; ocorre a São trocas cuiturais que, mesmo distante das Missões/ no Interior
1/0 engiobatríduos,cei ./novenas e missas da Quarta Colónia, é possível ressignifícar e mesclar/ de modo que
aos padroeiros. Esse boa parte da gastronomia a ser consumida em dias de eventos aos
segi imingoi
Mártires é doada pêlos devotos e habitantes do locai. Isto mostra
na comunidade/ existe o ícone do missioneinsmo - a Cruz Missioneira que uma comunidade, mesmo sendo predominantemeníe de origem
- cuja forma representada é uma invenção descolada daquela usada italiana, cultua a devoção ao Pe. Roque Gonzalez de Santa Cruz/
nos povoados missíoneiros do período juntamente com os padres Afonso Rodrigues e João de Castilhos.
se de "um dos símbolos atuais mais
Talvez o principal elemento que explicitamente conecta a comunidade
missioneira"285, que identifica a região e o passado histórico das de Três Mártires com a região das missões e/ desta forma, conecta
Missões dentro do Rio Grande do Sul. O ícone inventado na atualidade sua história locai com um passado alheio, porém carregado de
da Região das Missões é adoíado sem grandes questíonamentos em significado no marco da história do Estado/ seja a "cruz missioneira".
Três Mártíres/ que passa por processo de ressignifícaçâo na Quarta Assim/ curiosamente/ é um marco físico, um aspecto material/
Colónia ItaElana.
um marco na paisagem, que mantém para os habitantes de Três
Desta forma, subentende-se que a história dos Mártires Mártires a coesão com esta memória mais ampla/ que não lhes
atua na memória tanto da região das Missões quanto na da Quarta pertence, mas que empresta parte de sua carga simbólica aos
Colónia, em particular/ no distrito de Três Mártires no município de descendentes de montovanos da Quarta Colónia através do milagre
Júlio de Castífhos-RS/ atentando para a representação do imaginário na família Anversa. Empréstimo agenciado por João Anversa, que
da cultura dos descendentes de Maníuanos. Assim, cria-se uma atuou como estopim de um processo que segue sendo reifícado
forte relação entre o passado e o presente, de forma que o que a cada ano. Anversa não jogou a semente em campo seco. Lhe
está em jogo são os valores patrimoniais e que identidade estes antecipava uma história que vinha sendo elaborada já desde os
valores expressam para a região que contempla a Quarta Colónia séculos XVII e XVIII pêlos próprios jesuítas. E mesmo estes talvez
de Imigração Italiana.
não fossem capazes de imaginar a dimensão que tornaria aquela
A comunidade de Três Mártires sente orgulho em cultuar memória que eles trataram de organizar com tanto zelo. A escolha
(venerar e valorizar) a memória missioneira através dos Mártires. da cruz como elemento recordaíório da razão da denominação do
Mesmo tendo devoção à Nossa Senhora da Saúde/ a quaf foi trazida local é a expressão de que há uma versão hegemônica/ apologética/
do passado das missões, da qual o martírio de Roque Gonzalez e
POMMER, R. M. G. Missioneinsmo: história da produção de uma identidade seus companheiros é apenas um episódio a mais. E, por conseguinte/
regional. Porto Alegre: Martins Livreiro, 2009, p.133.

272 273
o milagre dos Anversa também é um episódio. Assim/ é a cruz que BARRICHELLO, CA.; SANTOS, J.R.Q. Grupos étnicos italianos: religiosidade

insere o milagre na história de Roque/ e Roque na história maior e negociação de identidade na região centrai do RS. Revista Sociais e
Humanas, Santa Maria/ UFSM/CCSH/ v. 6,n. 23,2012.
das missões jesuíticas. Esta memória está assim/ uma vez mais
BELINASSO, S. T. Os heróis de Vai de Buía: a historia dos imigrantes italianos
espacializada/ através da cruz, fazendo recordar as palavras de Arthur
que construíram a Quarta Colónia de imigração Italiana de Silveira
Rabuske, autor- do único estudo sobre a mesma:
Martins. Santa Maria: Pallotti/ 2000.

Essa cruz, assim entendida/ abandona a sua matéria pétrea, digamos B1ASOLI, V. O Catolicismo Ultramontano e a Conquista de Santa Maria
de grês/ cria raízes, mostra seiva vital/ vira em árvore e apresenta (1870/1920). Santa Maria: EdUFSM, 2010.
folhas de beleza especial e frutos de libertação, de cultura e progresso BOLZAN, M. Quarta Colónia: da fragmentação à integração. Santa Maria:
onímodo, no presente e para o futuro (Rabuske, 1984: 27). PaliottL 2015.
BORIN, M. R. Por um Brasil Católico: Tensão e Conflito no campo religioso da
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vê-ia em murais, painéis e, sobretudo/ souvenirs, que circulam BRUM. C. K. Esta terra tem dono. Representação do passado míssíoneiro no
até mesmo para além das fronteiras nacionais. Em termos de Rio Grande do Sul. Santa Maria/ Editoraufsm, 2006.
espacializaçao, de marcos visíveis na paisagem/ de materialização CERON, i. T. 2000. Peregnno5m/55jofíefro5: caminhada penitenciai ao Santuário
de uma ideia, a presença da Cruz Missíoneira em Três Mártires dos Santos Mártires das Missões - Caaró. Santa Rosa: Rúah-/ 2000.

exemplifica o que esta- mos tratando até aqui. E esta espaciaiização Duran, M. R. C.; Bentivoglio, J. PauS Ricouer e o lugar da memória na

da memória míssioneira ganha maior relevância quando se historiografia contemporânea. Dimensões, v. 30., 2013.

acrescenta o fato de que a cruz de braço duplo não tem reiaçâo FELIN, S. A vaiorizaçâo da comunidade de Três Mártires na Quarta Colónia
histórica/ ao menos comprovada, com os Jesuítas da primeira de imigração italiana através das ondas do rádio. 2016. 128f. Dissertação

metade do século XVII, como foram Gonzales, Rodrigues e Casttihos. (Mestrado em Património Cultural) - Universidade Federal de Santa Maria

Ela parece estar vinculada ao período do retorno à chamada Banda (UFSM)/Santa Maria/RS.
Oriental a partir de 1628. fsto demonstra a força desta cruz como GUTFREÍND, l. 1998. A historiografia Rio-Grandense. 2 ed. Porto Alegre:

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