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Através do Rio Grande do Sul, como pequenos robôs esquizofrênicos, os estudantes nas
escolas públicas e particulares agitam primeiro as cores verde e amarela das bandeirolas do
unitarismo nacional, inaugurado em 1822, para saudarem dias mais tarde, com igual ânimo
patriótico, o verde-amarelo-vermelho do separatismo sul-rio-grandense de 35!
Nenhum estado brasileiro celebra data cívica regional com tamanha magnificência. Do
Mampituba ao Chuí, do rio Uruguai ao oceano Atlântico, nos pampas, na Serra, no Planalto,
na Depressão Central e no Litoral, organizam-se desfiles, celebrações, festas. A mídia
comenta fartamente os fatos do passado e as comemorações em desenvolvimento. De certo
modo, a Semana Farroupilha está para o gaúcho como o Carnaval está para o carioca.
A Semana Farroupilha é sobretudo festa pública. Desde que foi oficializada, em setembro de
1964, no início do Regime Militar [1964-1984], o governo estadual sul-rio-grandense
abraçou fortemente as comemorações, verdadeira tradição nas escolas públicas estaduais e
municipais. Nesse sentido, a passada administração petista [1999-2002] apenas vergou-se à
tradição nascida há mais de 30 anos, ao manter retoques a festa patriótica regional.
Os com e os sem
A celebração privada da independência farroupilha é também magnífica e portentosa.
Almoços, jantares, bailes, shows, conferências, acampamentos, palestras, exposições, etc.
são realizados na capital e no interior, sobretudo por iniciativa do Movimento Tradicionalista
Gaúcho – MTG –, através dos milhares de Centros de Tradição Gaúcha – CTG –
esparramados através do Estado.
Diante da pira cívica regional e da celebração das raízes e dos princípios que seriam as mais
lídimas expressões da Revolta Farroupilha, realiza-se congregação suprapolítica, supra-racial
e supra-social que, no Brasil, repete-se apenas quando a Seleção Nacional entra em campo
vestindo a bandeira canarinho!
Num desses paradoxos da história, a guerra farroupilha contra o regime imperial foi
movimento elitista, sem nenhum conteúdo social, promovido sobretudo pelos grandes
criadores sulinos, que sequer contou com a unanimidade dos proprietários regionais. Não foi
movimento de todo os habitantes sulinos, nem de todo o Rio Grande da época.
Tendências centrífugas
Quando da crise colonial, as classes proprietárias regionais desejavam pôr fim ao governo
autocrático lusitano, nacionalizar o comércio monopolizado pelos portugueses, resistir às
pressões inglesas pelo fim do tráfico transatlântico de cativos. Elas defendiam soluções
federalistas, separatistas, monárquicas e republicanas.
Porém, um grande problema angustiava os grandes senhores de todo o Brasil. Como realizar
a independência sem comprometer a ordem escravista, base da produção e da sociedade em
todas províncias? Fortes choques militares colocariam em perigo a submissão dos cativos e a
manutenção do tráfico de trabalhadores escravizados.
Independência negreira
Os senhores sabiam que a guerra levaria ao alistamento e à fuga de cativos, como ocorrera
quando da luta contra os holandeses. Havia também o exemplo recente do Haiti, onde os
cativos, sublevados, haviam fundado um Estado negro livre da escravidão. Os Estados luso-
brasileiros que abolissem a escravidão acolheriam cativos fugidos. As pequenas nações
negreiras vergariam-se ao abolicionismo britânico do tráfico.
A ferro e fogo
Liberais radicais
É um acaso histórico que apenas os farroupilhas sulinos sejam conhecidos pela denominação
comum a todos os liberais radicais de então. É erro deduzir romanticamente o termo
farroupilha/farrapo dos uniformes em frangalhos dos últimos combatentes sulinos.
A questão oculta
Os senhores farroupilhas e imperialistas preferiam que outros lutassem e morressem por seus
ideais. Muito logo, os exércitos republicanos e monarquistas formaram-se com contingentes
de peões, nativos e cativos africanos e afro-descendentes libertos.
Quando da guerra, boa parte dos gaúchos livres eram descendentes de nativos guaranis e
pampianos, que haviam perdido, para os grandes latifundiários, no século anterior, suas
terras ancestrais. Eles acompanhavam seus caudilhos nos combates, como faziam-no
tradicionalmente nas lides dos campos.
Churrasco e saque
Não foi o ideal liberal-republicano que levou o gaúcho pobre à guerra. Quando os caudilhos
trocavam de lado, sem pudor, os peões faziam o mesmo. Bento Manuel mudou de bandeira
diversas vezes, sempre seguido por sua gauchada. Para o peão, o ideário farroupilha
significava sobretudo soldo, churrasco e saque.
Os soldados negros que combateram faziam-no obrigados, por preferirem a vida militar à
escravidão, por sonharem com liberdade após a luta, jamais obtida. Não houve democracia
racial nas tropas farrapas. Soldados negros e brancos marchavam, comiam, dormiam e
morriam separados. Os oficiais dos combatentes negros eram brancos.
Os principais chefes farrapos eram ferrenhos escravizadores. Ao ser enviado preso para a
Corte, Bento Gonçalves da Silva levou consigo um negro doméstico, para servi-lo. Ao
morrer, legou terras, gado e meia centena de trabalhadores escravizados, numa época em que
um cativo valia um bom patrimônio.
Os farroupilhas jamais acenaram com a distribuição de terras, aos gaúchos, e com o fim do
cativeiro, aos cativos, como fizera Artigas, na Banda Oriental. Os farroupilhas sequer
propuseram o fim do tráfico transatlântico de homens. Nas filas farroupilhas, as veleidades
emancipacionistas foram facilmente silenciadas e abafadas. Sustentada sobretudo com o
sangue do peão sem terra e do negro liberto, a revolta era das elites, para as elites.
Recorda-se sempre que, para abater as armas, os farrapos exigiram, insistentemente, que o
Império respeitasse a liberdade dos soldados negros. Nos fatos, temiam que se formasse uma
guerrilha negra na província, ou que os combatentes negros homiziassem-se no Uruguai,
caso temessem a reescravização. E, nos últimos anos da guerra farrapa, já se pensava na
intervenção na Banda Oriental ...
A infâmia de Porongos
A rendição de Poncho Verde foi acordo de cavalheiros entre senhores. Não havia
contradições essenciais entre os chefes imperialistas e republicanos. Os fazendeiros
farroupilhas não haviam conseguido impor a separação da província, o Império não manteria
o controle sobre ela sem a colaboração dos grandes criadores. Muito logo, os ex-farrapos
marchariam, sem pejo, sob a bandeira imperial contra o Uruguai e a Argentina, em defesa da
extra-territoriedade de suas imensas fazendas nos departamentos setentrionais da Banda
Oriental.
Urbanos e abolicionistas
Entretanto, agora, por primeira vez, a memória farroupilha era apropriada por grupos sociais,
política e geograficamente estranhos ao movimento de 1835. O mundo urbano e as classes
médias jamais haviam sido farroupilhas. Os líderes farrapos abominavam a libertação dos
trabalhadores escravizados. Bento Gonçalves morrera como grande escravista. Acelerava-se
a manipulação da memória farroupilha.
No início de 1880, em São Paulo, alguns desses universitários – Borges de Medeiros, Júlio
de Castilhos, Pinheiro Machado, etc. – fundaram o Clube 20 de Setembro, para celebrar o
republicanismo sulino. Em 1882, a pedido dos seus pares republicanos, o jovem Assis Brasil
escreveu sua História da república rio-grandense.
A pátria pequena
Na nova versão, a memória farroupilha passava a ser herança de todo sulino, não importando
sua origem étnica – negro ou branco –; sua origem social – pobre ou rico –; sua região de
nascimento – Campanha, Litoral, Serra, etc. Manipulava-se a história, apresentando o
movimento como de toda a população do Rio Grande, contra o Estado central.
Durante o Estado Novo, a posição econômica e política relativa do Rio Grande recuou em
relação ao Rio de Janeiro e São Paulo, que se industrializaram aceleradamente. As elites
sulinas aceitaram a subordinação imposta, preocupadas em manter a dominância regional. A
industria sulina cresceu em ritmos menores do que a de São Paulo e Rio de Janeiro e se
manteve a importância relativa da produção rural e pastoril sulina.
O Novo Tradicionalismo
O mito da unidade
Também em 1947, Érico Veríssimo começou a escrever O Continente, primeira parte de sua
trilogia regionalista, onde mitifica igualmente a história gaúcha, realizando o elogio póstumo
da economia pastoril-latifundiária. Também nesse romance, é mínimo o espaço dedicado às
classes subalternizadas no passado – peões pobres e trabalhadores escravizados.
Nessa estranha “terra sem males”, onde o alimento surgia da terra sem exigir o suor humano,
com “a subsistência garantida em qualquer parte”, o “trabalhador” jamais se empregara sob
o chicote da necessidade, servindo “espontaneamente” ao “patrão, de quem era “mais um
amigo do que um subordinado”.
Poucos e tarde
Era clara a contradição posta à proposta da democracia pastoril pela importância do cativo
no Sul. Na solução do paradoxo que se elevava entre o mito e a história, Salis Goulart
simplesmente negou a importante introdução de cativos desde os primórdios sulinos e sua
contribuição às atividades criatórias.
Salis Goulart não inventou nada. No preciso momento em que se consolidava a superação do
latifúndio pastoril pela produção colonial e urbana, sistematizou, com inteligência e
criatividade, os mitos já existentes da “democracia pastoril” e da “produção pastoril sem
trabalho”.
A invenção da memória
Fenômeno que não impediu o confronto social incessante, expresso no abate selvagem de
gado, pelo gaúcho, pela carne e pelo couro, e na sua luta por um naco de terra onde levantar
seu rancho. A ojeriza do latifundiário ao sem-terra, nos dias de hoje, repete o horror, no
passado, de seu ancestral, do peão em busca de um lugar onde levantar um rancho.
A produção pastoril era atividade extensiva semi-natural, que se baseava nas condições
naturais das fazendas – pastagens, aguadas etc. – e no esforço humano. Realidade que
restringia, e não abolia, a produção crescente de lucro monetário através da intensificação de
extração de trabalho excedente. Para o peão e o cativo, o trabalho pastoril era um jogo,
apenas se comparado ao trabalho duro na charqueada e na plantação.
A Idade de Ouro
Movimento Tradicionalista Gaúcho não busca no passado valores originais que iluminem o
presente. Simplesmente apresenta como bens pretéritos visões do presente avelhentadas
rusticamente para parecerem desterradas do tempo.
Criado por filhos de fazendeiros, o MTG leu o passado com os olhos do latifúndio moderno.
Suas interpretações romantizadas da sociedade pastoril-latifundiária monopolizaram o
passado, esterilizando a real, rica, contraditória e semi-desconhecida história sul-rio-
grandense.
Diversidade e Contradição
Sem maior sucesso, o movimento gay brasileiro tem lançado candidatos a cargos
legislativos. Em fins de 2002, procurando a exposição à mídia, imprescindível ao sucesso
eleitoral, candidato gay ao legislativo sulino por partido conservador, já derrotado como
candidato a vereador em Pelotas, assumiu a personagem do Capitão Gay, em referência aos
personagens do humorista Jô Soares e do ficcionista Érico Veríssimo.
O Capitão Gay trazia também à discussão tabu da história sulina. Ou seja, a sexualidade do
peão, trabalhador pastoril do passado, eternamente solteiro, devido à negativa do fazendeiro
de ceder naco de terra para arranchar-se com sua china. Em geral, na fazenda, fora o patrão,
apenas o capataz casava e procriava, fenômeno que determinou a débil expansão
demográfica pastoril do meridião do RS, uma das razões de seu atual atraso.
Gaúcho desinteressado
O francês Nicolau Dreys viveu no Sul em 1817-27. Em relato, anotou que o gaúcho não
tinha “mulheres”, mostrando por elas “pouca atração” [sic]. Pesquisas históricas
demonstrarão certamente que o gaúcho destemido do passado podia eventualmente ser um
gay, por natureza ou necessidade.
Há quase meio ano dos fatos, o cidadão ofendido, em especial, e a população sul-rio-
grandense humilhada, em geral, não conheceram a devida reparação mínima através da
expulsão pública e notória pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho de seus associados
siderados pelo ódio homofóbico.
MÁRIO MAESTRI