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2004 by Éditions Fiai -ornai-íon


Copyright da tradução © 2005 by Editora Globo S.A, Como sugeriu vigorosamente Alain Guerreau, só se tem a ganhar em conside rar
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada a Igreja a garantia da unidade da sociedade feudal, sua coluna vertebral e o
ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico,
fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de bancos
fermento de seu dinamismo.
de dados, sem a expressa autorização da editora.
Texto fixado conforme as regras da novo Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa (Decreto Legislativo o' 54, de 1995).
OS FUNDAMENTOS DO PODER ECLESIAL
Título original:
La civilization féodale — de l'an mil à ia
coloiiization de l'Amerique
Unidade e diversidade da instituição eclesial
Preparação: Beatriz de Freitas Moreira 0 0 ci
Revisão: Valquíria Della Pozza, Maria Sylvia Corrêa C.>
Índice remissivo: Luciano Marchiori Diz-se que a Igreja é a instituição dominante do feudalismo: ela se reproduz
Capa: Ettore Bottini, sobre iluminuras de Les três riches com sucesso como instituição, mas sem que as posições em seu interior sejam
heures du Due de Berry (1410-16), dos irmãos Limbourg transmitidas de maneira principalmente genealógica, como é habitual para uma
(Musée Condé, Château de Chantilly)
classe social. É verdade que se pode considerar o alto clero como a fração superior
do grupo dominante, embora ele não forme, enquanto clero, uma classe
3' reimpressão, 2011 propriamente dita. Aliás, as relações entre o clero e a aristocracia são ambiva -
lentes. Esses dois grupos são ainda mais próximos pelo fato de que os filhos da
aristocracia monopolizam o essencial dos cargos do alto clero, mesmo se não
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (c1P)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
existe nenhuma exclusividade nessa questão. Entretanto, a integração à Igreja
rompe — na teoria e, em boa parte, na prática — os laços que unem o clérigo
Bascliet, Jérôme
A civilização feudal : do Ano 1000 à colonização da América /
à sua parentela. Por vezes, um abade ou um bispo poderá obter mais facilmen te
Jérôsne Baschet ; tradução Marcelo Rede ; prefácio Jacques Le Goff. — de seus parentes que permaneceram seculares concessões em favor da Igreja (ou
São Paulo : Globo, 2006.
inversamente); porém, com mais frequência, a diferença de posição faz pre valecer
Título originai: La cwi/ization féodale — de l'an mil é la coloniza- os contrastes de interesses entre clérigos e laicos. Clero e aristocracia são, assim,
tion de l'Arnerique
iSBN 9";8-85-250-4139-5 cúmplices na obra de dominação, aliados perante os dominados, mas também são
concorrentes, como indica urna infinidade de conflitos, notada mente pelo
1. Civilização medieval 2. Europa - História medieval 3. Idade 25 .¡

Média I. Le Goff, Jacques. II. Título. 'o controle das terras e dos direitos que estruturam a organização dos senhorios, tanto
cu
06-1863 CDD-940.1 laicos corno eclesiásticos. As numerosas críticas que os clérigos lançam contra os
a) cavaleiros tirânicos e rapaces, acusados de "maus costumes", são frequentemente,
Índice para catálogo sistemático;
1. (_:iviliwção medieva! . História 940.1 c;
-
e em especial durante a fase mais aguda do processo de encelulámento, um meio
de defender as prerrogativas da Igreja e de seus pró prios senhorios. Existe, então,
o
lZ3 uma rivalidade entre os dois poios do grupo dominante, mas que permanece
CO
o submetida ao adequado exercício de sua superioridade sobre os dominados.
Direitos de edição em língua portuguesa para o Brasil A própria instituição eclesial não é homogênea. Além das contradições de
adquiridos por Editora Globo S. A. E interesse ou dos conflitos doutrinais que podem opor em seu interior diferentes
Av. Jaguaré, 1485 — 05346-902 — São Paulo — SP c tendências, existem importantes dualidades institucionais. Urna é hierárquica e
www.globolivros.corn.br In bastante simplificada quando se opõem ao alto e ao baixo cleros, mas pelo
o , menos nos lembra urna importante distância entre os grandes dignitários (aba-

A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 169


r. '

des, bispos, arcebispos, cardeais (a primeira, aberta parcialmente


e papas), alguns dos quais estão às mulheres; a segunda,
entre os príncipes mais estritamente reservada aos
poderosos de sua época, e homens), entre as quais a
simples monges e sacerdotes, competição é muitas vezes rude.
cujo poder e prestígio Entretanto, apesar de
permanecem, em geral, numerosas diferenças internas, a
circunscritos ao quadro local. Igreja existe como unidade,
Se bem que ela se modifique definida, a um só tempo,
sensivelmente no decorrer dos institucional e liturgicamente. A
séculos, a diferença de posição dualidade que separa clérigos e
entre os clérigos regulares e os laicos é, a esse respeito,
clérigos seculares não é de menor fundamental, mesmo se existe
importância. Entrando em uma uma zona intermediária e
ordem monástica, da qual eles relativamente fluida na fronteira
aceitam a Regra, os primeiros destes dois status. Assim,
escolhem a fuga ao mundo e o indivíduos podem permanecer
isolamento penitencial, laicos, mesmo integrando-se ou
consagrando-se ao serviço de aproximando-se do modo de vida
Deus pela prece, pelo estudo e, monástico (os conversos de Cluny
por vezes, pela atividade manual. são integrados à comunidade
Quanto aos últimos, que se monástica, embora em posição
conservam na vida secular, em subalterna, enquanto, entre os cis-
meio ao mundo e em contato tercienses, eles são mantidos a
com os laicos, eles têm por distância dos monges e
missão o cuidado das almas encarregados de tarefas manuais;
(cura anima rum, de onde o assinalemos, ainda, os membros
nome dado aos curas, das ordens terceiras mendicantes e
responsáveis pelas paróquias, cuja as beguinas do fim da Idade
rede está se formando então), Média, mulheres laicas que
através da administração dos vivem na cidade à maneira das
sacramentos e do ensinamento da monjas). Além disso, alguns
palavra divina. Mesmo se receberam apenas as ordens
alguns podem combinar as duas menores do clero (ostiário,
filiações ou passar de urna a leitor exorcista, acólito), ou
outra, e mesmo se, entre os somente a tonsura que,
séculos xi e xiii, as missões dos conferida pelo bispo, dá o status
regulares e dos seculares se de clérigo (o que é, geralmente,
imbricam cada vez mais, trata-se requerido para seguir um ensino
de duas concepções diferentes do universitário). A ligação com o
mundo, cuja fortuna se modifica, clero parece, então, de uma dupla
e de duas hierarquias paralelas
modalidade: a tonsura e as ordens significa também a renúncia às
menores são suficientes para coisas materiais. Trata-se,
conferir o status de clérigo, mas igualmente, de uma distinção de
apenas o acesso às ordens estatuto jurídico, pois os clérigos,
maiores (subdiácono, diácono, beneficiando-se do privilégio do
sacerdote) ou a entrada na ordem foro eclesiástico, não podem ser
monástica investem de um julgados pelos laicos, mas somente
verdadeiro poder simbólico e por um tribunal eclesiástico,
impõem um modo de vida fora principalmente o do bispo. Que a
do comum, marcado pela simples tonsura permita reivindicar
abstinência sexual. É por isso este privilégio e que os tribunais
que, na França da Idade IVIédia, devam, por vezes, cassar os falsos
um -terço dos clérigos pode, sem clérigos que tentam arrogá-lo
contradição, dizer-se casado indevidamente não põe
(pois eles receberam apenas as absolutamente em causa essa
ordens menores ou a tonsura). dualidade. Tais disputas
Entretanto, essas situações mostram, ao contrário, a sua
intermediárias não diminuem em força, para além das dificuldades
nada a importância fundamental de classificação das pessoas. No
da dualidade clérigos/laicos (de geral, o clero constitui um grupo
resto, é da natureza de toda privilegiado e investido de um
realidade social ser um continuam prestígio sagrado, que engloba,
de situações concretas, de modo segundo toda verossimilhança —

que a delimitação dos grupos mesmo incluindo nele suas


sociais é sempre secundária em margens inferiores —, bem
relação à identificação das menos de um décimo da
polaridades que estruturam o população medieval.
espaço social). Como afirma com
todo o vigor necessário, por volta
de 1130 50, o Decreto, atribuído
- Acumulação material e
a Graciano, obra fundadora do poder espiritual
direito canônico, "existem dois
tipos de cristãos", Os clérigos e os O poder material da Igreja
laicas. O modo de vida dos repousa, em primeiro lugar, sobre
primeiros se caracteriza pela uma excepcional capacidade de
renúncia ao casamento, ao acumulação de terras e de bens.
trabalho na terra e a toda posse O processo inicia-se desde o
privada. Gracianosalienia, ainda, século iv, quando os cristãos
que o estatuto destes é marcado começam a fazer doações à
pela tonsura, sinal de escolha Igreja, especialmente nas
divina e de realeza dos clérigos — vésperas do trespasse, a fim de
uma realeza evidentemente assegurar a salvação de suas
espiritual, pois o corte dos cabelos almas no além. Este fenômeno
prolonga-se durante a Idade
Média e as doações piedosas
que os príncipes e os senhores
fazem aos monastérios são
particularmente abundantes no
decorrer dos séculos xi e xii
(figura 11, na p. 172). Eles
também fundam novos
estabelecimentos monásticos,
que dotam dos bens necessários
ao seu funcionamento, de modo
a assegurar o apoio material e
espiritual de "amigos
poderosos", tanto daqui debaixo
como do além. É verdade que os
dons em terras são, por vezes,
menos generosos do que
parecem: podem tratar-se, na
verdade, da restituição de um
bem usurpado, da compensação
de urna outra vantagem ou,
ainda, de uma troca. Entretanto,
para evitar que eles sejam
contestados pelos herdeiros do
doador, adota-se a fórmula da
laildatio parentum, que, desde
togo, associa os parentes ao ato de doação e lhes permite compartilhar seus
benefícios espirituais.
O resultado é eloquente. Desde o século viu, a Igreja possui cerca de um
terço das terras cultivadas na França, porcentagem que continua idêntica no
século mit (mas que parece baixar para 10% no Norte da Itália). Na Inglaterra,
a Igreja concentra um quarto das terras em 1066 e 31% em 1279. Sem multi -
plicar ainda mais os números, pode-se reter que, segundo os lugares e as épo cas,
a Igreja em geral possui entre um quarto e um terço das terras. Isso quer dizer
que as diversas autoridades episcopais ou monásticas que a compõem são
poderosos senhores feudais. De fato, por ter sido objeto de uma doação piedo ,a, ,

numerosos senhorios, talvez um terço deles, têm em seu comando urna instituição
da Igreja — um monastério e seu abade, um cabido de catedral ou um bispo —
que faz pesar sobre os dependentes os pagamentos e as obrigações associados ao
poder senhorial, inclusive o exercício da justiça (sem falar dos casos de
cossenhorios, partilhadas entre um laico e um monastério). Enfim, a situação
particularmente vantajosa da Igreja apenas se consolida, pois, se rece be muito,
não transmite nada. Diferentemente dos bens aristocráticos, com fre quência
divididos e submetidos aos imprevistos dos destinos biológicos das linhagens,
tudo o que chega à instituição eclesial permanece em sua posse. Na teoria, o
patrimônio da Igreja não pode ser diminuído e os doadores muitas vezes
enfatizam que seu bem lhe é dado de maneira perpétua, não podendo ser nem
cedido, nem mesmo trocado. Entretanto, os períodos de turbulência favo recem a
usurpação dos bens da Igreja pelos laicos, e o conluio entre o alto clero e a
aristocracia pode apresentar algumas desvantagens, por exemplo, quando um
bispo desonesto concede bens diocesanos como feudo aos membros de sua
própria família. E mesmo se a Igreja deve arcar com despesas importantes, que
podem eventualmente obrigá-la a ceder algumas terras ou a penhorar bens
móveis, sua posição é tal que ela se beneficia de uma capacidade de acumula ção
desigual no seio da sociedade feudal.
Além das terras, é preciso incluir entre os bens da Igreja os edifícios, tais
como os monastérios, as catedrais, as dependências e os palácios episcopais.
A maior parte é rica em objetas preciosos: decorações murais e tapeçarias, ves tes
litúrgicas, retábulos e estátuas, altares e poltronas, livros e cruzes, cálices, vasos
11. Uma cena de doação, simbolizada pela entrega de urna igreja em miniatura, primeiro quartel do e relicários, muitas vezes feitos de ouro ou de prata e incrustados de pedras
século xtt (capite/ da catedral de São Lázaro, em Autun).
Sobre este capitel, hoje no museu, um laico, à esquerda, e um clérigo, com seu cajado cuja extremidade está preciosas, todos dotados de um grande valor espiritual e material. Esses objetas,
quebrada, seguram um modelo de igreja em miniatura, símbolo de uma fundação nova ou de um bem eclesiaí por vezes também dons dos laicos, constituem o "tesouro" de cada igre ja: é assim
sendo objeto de uma doação. Os braços estendidos do primeiro personagem indicam, provavelmente, que o
laico oferece a igreja, enquanto o clérigo a recebe, tendo o braço dobrado. Ena todo caso, um anjo sai da nuvem que se nomeia, na época, a coleção de seus relicários, livros e abje tos mais
e parece aceitar o dom ou, ao menos, benzê-lo. E o sinal de que as doações piedosas estão associadas a um sis tema preciosos (veja as figuras 20 e 48, nas pp. 209 e 489). Tal tesouro, onde o
triangular: Deus ou os santos são seus verdadeiros destinatários, e os clérigos, simples "depositários".
material e o espiritual se misturam indissoluvelmente, é o melhor meio de
aumentar ainda mais os eles atraem os peregrinos, que
rendimentos de uma igreja, pois não economizam suas dádivas
A C I V I L I Z A Ç Ã O F E I J O A L .173
para um santo prestigioso e para então, marcada logicamente por
sua "casa", na esperança de uma recusa ou, ao menos, por
graças no futuro ou em urna reticência ao pagamento
agradecimento àquelas já rece- dessa obrigação).
bidas. Mas tais objetos também Tudo o que precede seria
são os primeiros a ser pilhados e, incompreensível sem o poder
tratando-se de vasos litúrgicos, espiritual associado à própria
os primeiros a ser vendidos ou função dos oratores. Seu ofício
cedidos em penhor nos períodos consiste em orar e em realizar
difíceis. Enfim, lembremos que ritos, não apenas para eles
Carlos Magno tornou obrigatório mesmos, mas para o conjunto
o dízimo, que consiste, em dos cristãos, que podem assim,
média, em um décimo da sem nem mesmo pensar que
colheita ou do produto das outros se encarregam pela sua
outras atividades produtivas e salvação, dedicar-se às
que é destinado, em teoria, ao atividades próprias à sua ordem,
sustento dos clérigos que se combater ou produzir (figuras 12,
encarregam das almas, pois estes pp. 176 e 177). Os especialistas
não podem trabalhar a terra nem da prece e da liturgia, que são os
produzir com suas próprias clérigos, oficiam para todos os
mãos (o que os faria decair para seres vivos, e mais ainda para os
a ordem inferior da sociedade). mortos, o que se torna urna
Como se verá, ao longo dos grande especialidade monástica,
séculos x e xi os dízimos são sobretudo nos séculos x a xii. As
com frequência desviados pelos doações pra remedio animae
senhores laicas ou pelos (para o apaziguamento da alma)
monges; uma vez recuperados, permitem a inclusão entre os
cerca da metade ou um terço do familiares da comunidade
montante volta para o monástica, em favor dos quais
eclesiástico servidor da ela dirige suas preces e celebra
paróquia, o restante sendo missas, ou mesmo ver seu nome
devido ao bispo e consagrado ao incluído no livro da vida (ou
sustento dos pobres. Além de necrologia) do monastério, a fim
sua destinação prática, o de que sua memória seja
dízimo é também a garantia de periodicamente evocada. Além
um reconhecimento do poder da prece para os mortos, os
dos clérigos; ele é o "sinal da clérigos assumem duas funções
dominação universal da Igreja", principais, em virtude do poder
segundo a expressão do papa sagrado conferido pelo ritual de
Inocência w (toda forma de ordenação sacerdotal: transmitir
resistência contra o clero é, o ensinamento e a palavra de
Deus e conferir os sacramentos, se constitui no século xii).
sem os quais a sociedade cristã Mas, desde já, constata-se
não poderia se reproduzir. Trata- claramente que esses ritos são
se, em primeiro lugar, do indispensáveis para assegurar a
batismo, que, de uma só vez, coesão da sociedade cristã,
abre a promessa de salvação (por assim como o desenvolvimento
isso ele é chamado de "porta do de cada vida individual em seu
céu") e dá acesso à comunidade seio. Eles marcam suas etapas
cristã e, em consequência, à principais (nascimento,
vida em sociedade (não existe casamento e morte) e
forma de registro da existência autorizam, por si sós, a
social independente da Igreja esperança de salvação no outro
antes do aparecimento do registro mundo, sem o que a vida
civil, em fins do século xvnI). terrestre seria privada de
O ritual eucarístico não é sentido cristão. Ora, todos
menos fundamental. Golpe de esses ritos só podem ser
mestre do cristianismo, pelo realizados pelos sacerdotes (por
vezes, discute-se se um laico
qual o sacrifício do deus supera
pode, em caso de urgência,
definitivamente o sacrifício ao
proceder a um batismo, mas
deus, a missa (durante a qual
trata-se de um caso--limite, que
"se oferece o deus a ele
não tem nenhum efeito prático
próprio", segundo a expressão
e não põe em causa a regra
de Marcel Mauss) reafirma
fundamental). Assim, os
constantemente a coesão da
clérigos, especialistas do
sociedade cristã. Pela reiteração
sagrado e dispensadores
do sacrifício redentor de Cristo,
exclusivos dos sacramentos
ela garante a incorporação dos
necessários a toda vida cristã,
fiéis à comunidade eclesial e,
dispõem de um monopólio
enquanto sacrifício oferecido
decisivo: não se pode nem
por esta, assegura a circulação
viver em cristandade nem
das graças na esperança de
realizar sua salvação sem o
salvação dos justos.
seu concurso. Os fiéis não
Na segunda parte
podem se beneficiar da graça
retornaremos aos
divina sem fazer apelo à
sacramentos, e
mediação dos clérigos, sem
particularmente ao casamento
recorrer aos gestos que a
(os que já foram citados
ordenação sacerdotal dota de
formam — com a confissão, a
um poder sagrado. O clero é
crisma, a extrema-unção e a
um intermediário obrigatório
ordenação — o septenário que
entre
os homens e Deus. poder material se não lhe fosse
Seria absurdo — mas bem reconhecido um imenso poder
em conformidade com nossos espiritual: nenhuma doação de
hábitos de pensamento — terras ou de bens ocorreria sem
separar a parte material e a o arrependimento que nasce ao
mins ui( int4inutata parte espiritual do poder da termo de uma vida sobre a qual
DUOS Igreja. Na lógica do sistema pesa a reprovação dos clérigos,
/ttí,16itj_aao-14catit
Iluminam : medieval, tal divisão não tem sem a preocupação de salvação
ittifouoma main sentido, pois a Igreja se define da alma e sem a ideia de que a
41a'5oimic6millii • nela pelo fato de ser, ao mesmo Igreja pode ajudar os defuntos
CO1pCOS.~ tempo, uma instituição no além. Além disso, não se
Irgtto 01'1%4 encarnada, fundada sobre bases faz um dom à Igreja para que
ttibtilatitatiimain* materiais bastante sólidas, e ela acumule, mas para que, por
uma entidade espiritual, sua vez, ela também doe (urna
falitt$111116fittn~
sagrada (mesmo se a maneira ajuda material aos pobres e aos
W141.111110110
de articular estas duas enfermos, graças espirituais aos
inaltianOt0.~
lanam/nina dimensões esteja longe de não doadores e a seus próximos).
pio crimiirerikiwr; apresentar dificuldades, como Convém, então, retificar a
infra veremos). Ela não teria nenhum expressão utilizada acima:
12. A procissão do papa Gregório, o
Grande, estanca a peste que assola
"Marin/ niaucplanam Roma, e. 1413 (Riquíssimas horas do
nuun itrq; illoptant fit duque de Berry; Museu Condé,
Chantilly, 65, fls. 71v.-72).
miwteprotuG Esta suntuosa miniatura, habilmente
ipló aroqufirrontat disposta ás margens de salmos penitenciais
e de litanias, põe em cena um milagre
ngulneni0jprt9 non« atribuído a Gregório, o Grande, em 590, o
imfaitonobO.-1«. arcanjo Gabriel lhe aparece acima do castelo
de SantAngelo embainhando sua espada
para indicar o fim da epidemia de peste
(chamada de Justiniano). Claramente, a
imagem tem pouco a ver com as realidades
do século VF e evoca reais o fausto da
igreja romana do fim da Idade

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Média. Roma aparece como uma cidade


gótica e a hierarquia clerical é
representada de maneira cuidadosamente
ordenada, sob a autoridade do papa, que
porta a tiara e está associado ao colégio dos
cardeais. A abundância dos objetos
litúrgicos é impressionante: cruzes e
estandartes de procissão, incensórios e
aspersórios, livros ornados de pesadas
encadernações, ostensórios e relicários. A
imagem mostra, além disso, urna forma delimitação entre interior e exterior a fim
frequente de prática litúrgica do espaço: a de preservar a cidade das ameaças que
deambulação processional em torno das pesam sobre ela.
muralhas, que fortifica simbolicamente a
se a Igreja é dotada de uma e, sobretudo, não esquecer de
excepcional capacidade de incluir Deus e os santos, únicos
acumular terras e riquezas, é dispensadores possíveis da graça
porque se lhe reconhece uma
espiritual e verdadeiros des-
força distributiva ainda maior;
é porque ela está apta a tinatários das doações, que
garantir uma circulação os monges recebem em seu
generalizada das benesses nome (figura I1, na p. 172).
materiais e espirituais. Além disso, a operação que
ocorre aqui é bem mais
coletiva do que parece:
A circulação generalizada conforme a lógica da iaudatio
parentuni, as doações engajam
dos bens e das graças
igualmente a parentela e os atos
especificam que elas são feitas
Desde o início do século xx,
para servir de amparo não
adquiriu-se o hábito de
somente à alma do doador, mas
considerar que os fiéis dão à
também às almas de seus
Igreja bens materiais em troca
próximos e (se seguirmos
de graças recebidas ou
Michel Lauwers, talvez
esperadas (proteção, cura,
principalmente) às de seus
salvação), referindo-se de
ancestrais; a isso podemos
maneira mais ou menos
acrescentar que, se as preces
precisa à lógica do dom e
dos monges mencionam
contradom analisada por
especificamente o nome dos
Marcel Mauss (a qual não
doadores, elas visam, ao
supõe absolutamente um jogo
mesmo tempo, assegurar a
de resultado nulo entre
salvação de toda a cristandade.
participantes situados em um
Enfim, numerosos traços
plano de igualdade). Vários
escapam à lógica do dom e
estudos recentes nos convidam
contradom: aquele que doa
a modificar essa leitura. Com
não é necessariamente o que
efeito, ao menos quatro poios
recebe, de modo que ninguém
intervêm: além dos clérigos e
pode estar seguro do que
dos doadores, é preciso inte-
receberá (os clérigos não
grar os pobres, encarnações do
poderiam comprometer de
próximo e duplos de Cristo,
modo infalível o Todo-
aos quais é destinada uma
Poderoso, que é o único a
parte dos dons feitos à Igreja
conceder a salvação); o que dá
é, de fato, aquele que já recebeu sem se considerar a noção
(os clérigos insistem sobre o fundamental de caridade
fato de que os doadores apenas (caritas), que designa o amor
restituem uma parte dos bens puro do qual o Criador é a
dados por Deus); o que se fonte e em virtude do qual o
recebe nunca é direta e homem ama não apenas Deus,
proporcionalmente ligado ao mas também o seu próximo,
que foi dado (pois, em toda pelo amor por Deus (segunda
graça espiritual, intervêm de parte, capítulo v). Anita
modo determinante o tesouro Guerreau-jalabert demonstrou
dos méritos acumulados pelos que, a partir de tais bases, não
santos e os efeitos favoráveis de poderia existir senão um
sua intercessão permanente "sistema de troca
junto a Deus, assim como a generalizada", "excluindo toda
totalidade das oferendas a reciprocidade estreita e
eucarísticas realizadas no exclusiva". Nesse quadro, não
conjunto da cristandade). se poderia dar para receber em
É verdade que os troca: só existe dom válido se
aristocratas que doam terras ele é gratuito, realizado sem
esperam que esse gesto lhes nada esperar, por amor a Deus,
valha, a eles e a seus assim corno o próprio Deus se
ancestrais, graças espirituais e, entregou gratuitamente à morte
em primeiro lugar, a salva- ção para a salvação da humanida-
no além. Mas, mais do que de. O dom interessado, que
uma lógica do espera algo em troca, é
dom/contradom, trata-se, atra- denunciado como sinal de
vés da doação aos santos e a vaidade e de cupidez, de
Deus, de operar uma modo que há interesse em ser
espiritualização dos bens desinteressado, sem que seja
oferecidos, que os transforme possível ser desinteressado
em realidades espirituais mais por interesse. Na cristandade —

úteis que os bens materiais, e a despeito da aparência de


enquanto a incorporação dos comércio de que se pode
doadores em uma comunidade revestir a relação com as figu-
monástica lhes assegura a ras sobrenaturais em certas
ajuda de uma vasta rede de narrativas de milagres, por
amigos piedosos e espiritual- exemplo, nas Cantigas de
mente poderosos (Dominique Santa Maria, de Alfonso, o
Iogna-Prat). Sobretudo, a Sábio —, doa-se e recebe-se,
prática do dom na sociedade mas não se poderia dar para
cristã não pode ser analisada receber e, sobretudo, não se
recebe porque se doou. Deve- exigências do dom, excluem-se
se dar para contribuir para o dessa rede e expõem-se a
grande tesouro, a um só tempo pesadas consequências). No
material e espiritualizado pelo centro desse sistema,
dom, que cabe à Igreja gerir. E inegavelmente, encontra-se a
recebe-se, pois existe esse Igreja, operadora decisiva da
grande tesouro de graças transmutação do material em
espirituais, conversíveis em espiritual e intermediária
graças materiais. obrigatória nas trocas entre os
homens e Deus. Pois é preciso
O dom gratuito feito a
ainda acrescentar que o
Deus e aos santos é, então,
sacrifício eucarístico é o motor
uma maneira privilegiada de
indispensável para a circulação
se integrar à rede de troca
das graças. É essencialmente
generalizada dos bens e das
pelas missas que os clérigos
graças, de contribuir para seu
celebram que os bens
bom funcionamento, na
materiais oferecidos pelos
esperança de que este acabará
doadores transformam-se em
por difundir para o indivíduo
benesses para as almas. Mais
e seus parentes algumas de
amplamente, é pela missa,
suas benesses, tanto aqui
sacrifício ao deus que só tem
embaixo como no além (ao
sentido porque ele é sacrifício
inverso, o avaro, culpada de
do deus, que são garantidas, a
entesourar, e todos aqueles que
um só tempo, a coesão
se mostram negligentes nas
do corpo social e a circulação, essencialmente fundado sobre
em seu seio, da graça divina. sua capacidade de assegurar a
coesão do corpo
Finalmente, é por-
social, sem evocar a parte
que ela ocupa essa posição de coercitiva de seu poder. À
operadora decisiva e de capacidade de incluir os
intermediária obrigatória fiéis na unidade da
na troca generalizada que a Igreja comunidade terrestre e
dispõe de tantos bens materiais, potencialmente na glória da
que os laicos Igreja
oferecem a Deus e aos santos e celeste, corresponde um temível
confiam a seus cuidados poder de exclusão detido pelos
perpetuamente. clérigos. A exco-
Não podemos terminar este munhão consiste, com efeito,
primeiro esboço da em rejeitar o pecador,
deixando-o fora da socieda-
organização da Igreja,
de cristã, interditando-lhe o enviar seus adversários ao
acesso aos sacramentos, castigo eterno do inferno i
particularmente à comu- Lestes Little ). Além de seu uso
nhão (a qual aparece como sinal contra os desvios heréticos, a
tangível da integração social), e excomunhão e, em certa
negando-lhe a possibilidade de medida, o anátema são armas
ser enterrado na terra que a Igreja utiliza em suas
consagrada do cemitério lutas contra a aristocracia e os
cristão. É verdade que a príncipes (por exemplo, contra
excomunhão é somente uma o imperador Henrique tv, nos
pena terrestre, que não é anos 1070, ou Filipe 1, rei da
assimilada à danação eterna, França, entre 1094 e 1099). Os
mas, privando o culpado dos simples laicos são
meios indispensáveis de frequentemente afetados por
salvação que são os tais medidas, pois a
sacramentos, fazendo-lhe excomunhão de um grande
correr o risco de morrer em personagem pode ser
estado de pecado mortal não acompanhada pela interdição
confesso, ela o põe lançada sobre seu domínio ou
perigosamente sob a ameaça seu reino: os clérigos recebem,
das flamas do inferno. Aliás, o então, ordem de suspender ali
anátema é uma forma particular toda celebração litúrgica,
de excomunhão, que é associada fazendo pairar, assim, UM risco
à maldição eterna dos de morte espiritual sobre toda a
culpados. Durante os primeiros população. Nessas condições,
séculos da Igreja, ele era não há nenhum príncipe que
pronunciado contra os hereges, possa se manter muito tempo
tais como os discípulos de no estado de excomunhão e
Árius, aos quais o abandono da que não procure a
verdadeira fé não deixava mais reconciliação com a Igreja,
chances de salvação do que aos indispensável para suspender
que não tinham sido batizados. urna sentença tão pesada para
Em seguida, ele é utilizado ele e tão incômoda ao exercício
contra todos os inimigos da de sua autoridade.
Igreja, em particular durante os O monopólio da escrita e da
séculos x e XI, época em que se transmissão da palavra
constatam também frequentes
divina
recursos às maldições
monásticas, pelas quais os A Igreja não se contenta em
monges não hesitam em ter, no coração da ordem
social, o papel decisivo que Limitar-se-á, aqui, a
acabamos de analisar. Ela evocar o quase monopólio que
estrutura quase todos os os clérigos exercem sobre a
quadros importantes da vida escrita e a transmissão da
em sociedade e contribui de palavra divina. É verdade que,
maneira decisiva para a sua durante a Alta Idade Média e
reprodução, como se verá na até o século xi, a escrita tem
segunda parte. Ela tem a apenas um lugar restrito na
hospitalidade entre seus sociedade. A manutenção da
deveres (em geral pesada para escrita é, então, uma
os monastérios, notadamente exclusividade dos clérigos, a tal
os beneditinos, abertos por ponto que a oposição entre
principio a essa exigência e letrados (litterati) e iletrados
com frequência o único refúgio (ittitterati) recorta exatamente
dos peregrinos e dos viajan- a divisão entre clérigos e laicos.
tes), assim corno a assistência Isso é ainda mais reforçado pelo
aos pobres e doentes (uma das divórcio, consagrado na época
principais justificativas dos carolíngia, entre as línguas
bens possuídos pela Igreja). De faladas, que evoluem para
fato, os cuidados que as formar as línguas vernáculas
técnicas limitadas da medicina europeias, e o latim, que, na
medieval tornam possíveis são impossibilidade de ser
quase exclusivamente dis- restabelecido em sua pureza
pensados nos estabelecimentos clássica, é mais ou menos
que dependem do clero: o estabilizado. O latim — tão
Hotel-Deus, associado a uma pouco entendido que, desde o
catedral ou a uma colegiada," e século ix, é recomendado que
que combina, nem sempre os os sermões sejam traduzidos
distinguindo, a assistência aos para a língua vulgar — ganha,
pobres e o cuidado com os então, o status de língua da
doentes; os estabelecimentos da Igreja, própria aos clérigos, e de
Ordem dos Hospitalários de língua sagrada, veiculo
santo Antônio, criada em 1095 exclusivo e esotérico do texto
para acolher especialmente as bíblico. A oposição latim/língua
vítimas do "mal dos ardentes" vernácula redobra, então, a
(ou "fogo de santo Antônio", dualidade litteratilillitterati,
provocado pelo esporão do constitutiva do poder sagrado dos
centeio); ou ainda os clérigos. Somente estes últimos
estabelecimentos para cuidar têm acesso à Bíblia, fundamento
dos leprosos. da ordem cristã; eles são
especialistas incontestáveis da
escrita e todos os livros considerável: na França do
copiados são feitos nos Norte, ela é quadruplicada
scriptoria dos monastérios. entre o século xt e o século
A partir dos séculos xt e xit, e ainda dobra durante o
xu, os usos da escrita século xiii, época em que essa
transformam-se e diversificam- atividade é partilhada por
se. A produção de manuscritos ateliês laicos
aumenta de modo

18. Igreja colegiada é aquela que, sem ser catedral, possui uni cabido de cônegos próprio. (N. T.)

urbanos, que utilizam métodos gesta, tal como a Canção de


de cópia em série, aumentando o Rolando, e poesias líricas), a
ritmo de produção e diminuindo despeito do menosprezo dos
sensivelmente o preço dos letrados por línguas tidas, até
livros. Os monastérios redigem ali, como indignas de ser
atos (chartes) cada vez mais confiadas à escritura.
numerosos, logo copiados e Por mais notáveis que
reunidos nos cartulários, ao sejam, tais evoluções
passo que se multiplicam as permanecem limitadas. Apesar
cartas e decisões emitidas pelas da crescente utilização da
chancelarias — episcopais e escrita, a oralidade e os gestos
pontifícias, mas também rituais continuam a dominar a
principescas e reais —, onde, vida social. Mesmo se as obras
geralmente, são os clérigos que literárias são conservadas por
manuseiam a pena e ocupam o escrito, continuam
cargo de chanceler. Sobretudo, essencialmente feitas para ser
por volta de 1100, ocorre uma contadas ou cantadas: a voz
novidade notável, que rompe predomina sempre sobre a letra
com o sistema descrito (Paul Zumthor). O de costume
anteriormente, em particular com é dito oralmente na aldeia
a quase equivalência estabelecida durante um ritual anual,
entre escritura, latim e Igreja. enquanto as decisões
Com efeito, as cortes importantes são anunciadas na
aristocráticas, onde se havia cidade pelos arautos. A voz e o
desenvolvido uma importante ouvido continuam a ser os canais
literatura oral em língua vulgar, essenciais do verbo: uma carta,
conseguem, em geral com a ajuda para ser bem entendida, será
dos clérigos, fazer com que esta ouvida mais do que lida, e
seja posta por escrito (num mesmo a leitura não pode ser
primeiro momento, canções de feita sem se pronunciar, ao
180 »Orne Baschet A CIVILIZAÇÃO FEUDAL 181
menos em voz baixa, o texto que verdade, de histórias bíblicas
os olhos percorrem (a leitura recompostas, tais como a
silenciosa, que nos parece tão História escolástica, que retoma
evidente, só faz sua aparição o princípio da Historia
tardia e timidamente). No mais, Scholastica de Pedro Comestor,
entre os séculos xi e xiii a traduzida por llerman de
educação dos laicos urbanos e Valenciennes, ou a Bíblia
dos aristocratas melhora Historial de Guiart des Moulins,
sensivelmente, e muitos dentre um século mais tarde. Será
eles são ao menos somente na segunda metade do
semialfabetizados, tendo século xiv, sob o impulso de
aprendido a ler mesmo sem soberanos como Carlos v da
saber escrever. Os manuscritos França ou de Venceslau da
são sinal de prestígio, tanto Boêmia, que aparecerão as
quanto instrumentos de leitura. traduções literais e completas
É posto, então, o problema da Bíblia.
do acesso dos laicos à Bíblia. No geral, mais do que opor o
Embora a Igreja proíba com escrito ao oral, é preciso insistir
extrema severidade a posse do sobre suas imbricações. Anita
texto bíblico pelos laicos, em Guerreau-Jalabert indica que isso
particular, quando confrontada é, de resto, o modelo fornecido
com focos de heresia, geralmente pela "dupla natureza do verbo
se esforça para restringir o acesso divino, que se manifesta sob as
ao texto sagrado, mais do que duas formas: das Escrituras e da
impedi-lo totalmente. Assim, palavra". O cristianismo
muitas vezes Os laicos possuem medieval é tanto uma religião do
Livro como da palavra, e o
certos livros bíblicos, em
controle dos clérigos é exercido
particular o de salmos, no qual se
tanto através de seu acesso
aprende a ler, mas não a Bíblia
privilegiado às Sagradas
completa. Sobretudo, para eles,
Escrituras como pela
os clérigos prescrevem o recurso
transmissão exclusiva da palavra
a versões glosadas do texto
divina. A interação entre o
bíblico, quer dizer, dotadas da escrito e o oral ocorre em todos
interpretação julgada correta. A os domínios, desde os prazeres
partir da segunda metade do da corte até as liturgias da
século ?ui aparecem as igreja: "O oral é escrito, o
traduções adaptadas da Bíblia escrito procura ser uma imagem
em língua vulgar, mas trata-se, do oral" (Paul Zumthor). A
na Bíblia é lida em voz alta nos
monastérios e durante a missa; os
livros litúrgicos servem ao bom encarregadas de estabelecê-la,
exercício da palavra e dos como se verá a seguir. Mais do
gestos sacramentais, enquanto que o controle absoluto da
os sermões, consignados cm escrita, o que lhes interessa,
coletâneas cada vez mais sem dúvida, é sobretudo o
numerosas e sofisticadas, são direito exclusivo de difundir a
destinados a ser pregados. palavra de Deus, como indicam a
Enfim, não poderíamos estrita vigilância em relação a
encontrar melhor exemplo dessa toda tentativa de pregação laica e
imbricação do que a prática do o papel estratégico dessa questão
juramento, que constitui um dos na deflagração das heresias.
fundamentos das relações
sociais no mundo medieval.
Validação indispensável a todo
compromisso importante, a
começar pela fidelidade
vassálica, o juramento,
geralmente prestado sobre a
Bíblia ou o Evangelho (a menos
que se recorram às relíquias),
tira sua Corça do elo formado
entre a sacralidade do Livro e o
peso das palavras pronunciadas.
Assim, a escrita, dotada de uma
sacralidade ainda maior, porque
é rara, e conferindo um prestígio
ainda mais notável àqueles que
sabem manuseá-la, só tem
sentido porque é associada a
práticas sociais em que a palavra
exerce papel determinante. E se
os clérigos perdem, entre os
séculos xi e xiii, o monopólio
da escrita, conservam o essencial
do domínio do dispositivo que
articula a escrita e o oral. Eles
podem não ser mais os únicos a
ler a Bíblia, desde que mante-
nham o monopólio de sua
interpretação legítima e do
ensino das disciplinas

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