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Volume 10

Número 1
Jan/Jun 2020
Doc. 3

Rev. Bras. de Casos de Ensino em Administração ISSN 2179-135X


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DOI: http://dx.doi.org/10.12660/gvcasosv10n1c3

TOMADA DE DECISÃO NA GESTÃO PÚBLICA: O CASO DA TERCEIRIZAÇÃO DE


IMPRESSÃO
Decision making in public management: the case of printing outsourcing

PEDRO JÁCOME DE MOURA JR – pjacome@sti.ufpb.br


Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa, PB, Brasil

FLÁVIO PERAZZO BARBOSA MOTA – flavioperazzo@ccsa.ufpb.br


Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa, PB, Brasil

Submissão: 26/11/2019 | Aprovação: 27/02/2020


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Resumo
O processo decisório no setor público e em contexto de terceirização de serviços de tecnologia da
informação (TI) é uma temática investigativa ainda incipiente e carente de suporte didático. Este
caso explora a tomada de decisão de um gestor de TI atuante em uma universidade pública,
relacionando modelos teórico-conceituais das disciplinas Sistemas de Informação nas Organizações,
Sistemas de Informação e Decisão e Organização, Sistemas e Métodos em cursos de graduação e
pós-graduação stricto e lato sensu em Administração, Gestão Pública, Gestão de Tecnologia da
Informação, Ciências da Computação, Engenharia de Software e correlatos. As teorias e conceitos
subjacentes são relacionados à teoria da decisão; racionalidade limitada; incerteza, crenças e
heurísticas no processo decisório; vieses cognitivos; e benefícios e riscos da terceirização.
Palavras-chave: Teoria da decisão, racionalidade limitada, tecnologia da informação, gestão
pública, terceirização.
Abstract
The decision-making process in the public sector and in the context of information technology
services outsourcing is a still incipient research topic, and a subject that lacks educational support.
This case explores the decision making of an IT manager who works at a public university. It
mobilizes theoretical and conceptual models from disciplines such as Information Systems in
Organizations, Information Systems and Decision, and Systems and Methods, for use in
undergraduate and graduate courses in Business, Public Management, Information Technology
Management, Computer Science, Software Engineering and related. The underlying theories and
concepts are related to decision theory; bounded rationality; uncertainty, beliefs and heuristics in the
decision-making process; cognitive biases; and benefits and risks of outsourcing.
Keywords: Decision theory, bounded rationality, information technology management, public
administration, outsourcing.
Introdução
Miguel trabalhava como analista de sistemas havia quase 20 anos na principal universidade
pública do seu estado. Havia atuado também na iniciativa privada, como empresário e técnico em
diversos projetos de desenvolvimento de sistemas. Agora, era convidado a dirigir o setor de
tecnologia da informação (TI) da universidade. Esse convite, feito diretamente pelo reitor,
representava um grande reconhecimento ao seu trabalho e, ao mesmo tempo, um grande desafio,

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pois implicava mudanças na carreira, principalmente a troca de um perfil de atuação técnico para
uma atuação gerencial e diretiva.
Tão logo assumiu o novo posto, Miguel começou a participar de reuniões de nível
estratégico, o que incluía participação nos conselhos diretivos acadêmicos e administrativos. Miguel
tinha certa experiência com decisões dessa natureza, pois, ao longo da sua carreira técnica, fora
eventualmente convidado a participar de escolhas relativas à gestão da TI. Todavia, aquelas novas
reuniões tinham um caráter mais abrangente. Afinal, agora envolviam a TI no contexto das demais
áreas organizacionais. Logo, Miguel sentia-se simultaneamente entusiasmado e intimidado com a
nova atuação, mas, ainda assim, confiante de que poderia aplicar as melhores práticas de gestão da
TI no contexto de uma organização pública.

A universidade e a TI
Entre técnicos, professores e alunos (de nível médio, graduação e pós-graduação), a
universidade era composta por cerca de 45 mil pessoas. Esse público lidava rotineira e diretamente
com os recursos de TI providos pela instituição, fosse por meio das redes de conectividade (cabeada
e sem fio/Wi-Fi), dos diversos computadores conectados a essas redes ou por meio de outros
dispositivos, como smartphones, câmeras, sensores de laboratório ou impressoras. Em outras
palavras, a universidade já tinha uma cultura de uso intensivo da TI e já desenvolvera, inclusive, os
próprios sistemas integrados de gestão (ERP/SIG) para suporte aos seus processos operacionais.
Essa tradição de uso da TI remontava à década de 1970, quando o primeiro computador foi
ali instalado. Tratava-se de um computador de grande porte, como se chamava à época, e que
centralizava todo o processamento acadêmico e folha de pagamento dos funcionários. Ao longo do
tempo, a universidade investiu constantemente em novas plataformas computacionais,
descentralizando o processamento de dados e a impressão de relatórios, de modo que várias gerações
tecnológicas conviviam simultaneamente e precisavam ser gerenciadas adequadamente.
À altura do início da gestão de Miguel, a universidade possuía um parque computacional
formado por cerca de 5 mil computadores e mais de 250 tipos diferentes de impressoras distribuídas
nos diversos setores. Essas impressoras foram adquiridas gradualmente, de acordo com as demandas
locais. Logo, isso resultou em uma combinação complexa de fabricantes, modelos e tecnologias,
difícil de gerenciar. Havia, por exemplo, impressoras matriciais (que imprimem com uso de um
cartucho de fita, semelhante a uma máquina datilográfica, sobre papel em formulário contínuo);
impressoras jato de tinta com cartucho; impressoras jato de tinta com reservatórios externos (em vez
de cartucho); impressoras a laser etc. Para cada tecnologia (fita, cartucho ou toner), havia uma
grande variedade de modelos, específicos para cada impressora.
Miguel estava a par dessa dificuldade e sabia também como isso afetava o processo de
compra e reposição de suprimentos de impressão. Afinal, como controlar o nível de tinta em cada
cartucho, fita ou toner de cada impressora espalhada pela universidade? Além disso, havia ainda
dificuldades com a gestão do papel usado nas impressões. Ou seja, havia uso indevido, pois alguns
funcionários imprimiam conteúdos pessoais usando recursos da instituição, e mau uso, quando
conteúdos que poderiam tramitar digitalmente eram equivocadamente impressos.

Uma proposta de solução


Durante uma das primeiras reuniões em que Miguel participou como dirigente, houve uma
apresentação de proposta de solução para o problema da impressão na universidade. A reitoria havia
convidado uma empresa especializada em terceirização de impressões para que explicasse aos
demais dirigentes como funcionavam os seus serviços. Miguel não fora informado previamente
daquela apresentação e ficou particularmente curioso. Pensava ele: “Sendo um assunto relacionado à
TI, eu não deveria estar a par desse convite?”. Por outro lado, ponderava: “Bem, estou chegando
agora e pode ser que o meu antecessor estivesse a par”.

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Em certa altura da reunião, os representantes da empresa foram convidados a entrar na sala e


prontamente iniciaram a sua apresentação. Informaram que trabalhavam com impressoras de médio e
grande portes que substituiriam as impressoras da instituição. As suas impressoras seriam
estrategicamente posicionadas em “ilhas de impressão”, dimensionadas de acordo com a demanda de
cada prédio. Cada funcionário teria uma quota mensal de impressão, de modo que impressões
adicionais, se houvesse, precisariam ser justificadas. O conteúdo das impressões, bem como as
quantidades, seria controlado por um software de gerenciamento, o que permitiria à universidade
auditar eventuais usos indevidos. Os suprimentos de impressão seriam responsabilidade da empresa,
bem como os profissionais responsáveis pela manutenção das impressoras. Destacaram que apenas o
papel seria fornecido pela universidade, enquanto fitas, cartuchos e toners seriam fornecidos pela
empresa.
Os representantes da empresa afirmaram que isso tudo poderia ser operacionalizado em
poucos dias e que, ao final, o valor cobrado pelos serviços seria 30% mais baixo que o custo atual da
universidade com impressão.
Todos os dirigentes presentes ficaram entusiasmados com a proposta. Vários queriam
implantar a solução imediatamente, logo após o processo licitatório. Miguel, no entanto, aguardou
que os representantes da empresa saíssem da reunião e comentou com os colegas:
– Entendo que essa empresa está propondo uma reengenharia de impressão, com concentração das
impressoras em locais específicos, em vez da descentralização que praticamos atualmente. Hoje,
vocês sabem, temos praticamente uma impressora em cada mesa de trabalho. São impressoras de
pequeno porte, mas também temos impressoras médias e grandes. Poderíamos nós mesmos fazer
uma simulação desse modelo, o que acham?
Antonio, um dos dirigentes presentes, imediatamente concordou com Miguel e disse:
– Eu concordo e até ofereço o meu setor para fazer esse teste.
Miguel então propôs:
– Me deem um mês para configurar um computador e o software que fará o gerenciamento das
impressões. Depois, precisaremos de mais um mês para fazermos os testes. Nesse período, faremos a
mensuração do uso de impressão no setor de Antonio. Creio que, se a empresa consegue reduzir o
nosso custo em 30% e ainda ter lucro, nós poderemos reduzir ainda mais essa margem, não é?
Todos concordaram, e a reunião foi encerrada com aquele encaminhamento. Haveria uma
nova reunião em dois meses, para que Miguel apresentasse os resultados e pudesse haver, então, a
decisão sobre a contratação de um terceiro para realizar os serviços de impressão.

A prova de conceito
Miguel saiu da reunião e retornou imediatamente ao setor de TI que dirigia. Convocou uma
reunião com os seus gerentes e informou sobre o compromisso que assumira. Pediu que dois
técnicos fossem alocados ao projeto e estabeleceu os prazos. Em dois meses, eles precisariam ter
uma resposta para oferecer aos demais dirigentes da universidade, e Miguel esperava que fosse uma
resposta que confirmasse que a TI institucional poderia resolver o problema com ganhos sobre a
terceirização.
Rômulo e Jonas foram alocados ao projeto. Rômulo era programador e teria a tarefa de
selecionar um software já existente e em código livre1 para que pudesse ser personalizado de acordo
com as necessidades do projeto. Jonas atuava na gerência de redes e seria responsável pela

1
Modalidade de desenvolvimento de sistemas em que o código-fonte é publicado para uso por outros desenvolvedores,
sem custo.

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configuração do equipamento servidor (o computador que executaria o software personalizado por


Rômulo) e sua conexão com a impressora de testes.
Tudo acontecia conforme previsto, até que, após algumas semanas de trabalho, Jonas
precisou se afastar para tratamento de saúde, e um outro colega foi alocado para substituí-lo. Esse
novo colega propôs algumas mudanças para o projeto, e Rômulo, que estava próximo de concluir a
sua parte, precisou de mais dias para fazê-lo. Enquanto efetuava as mudanças na programação,
Rômulo recebeu a notícia de que havia sido aprovado em um concurso para outro órgão público e
precisaria se apresentar imediatamente. Todos ficaram contentes com a melhoria salarial e
profissional conquistada pelo colega, mas o projeto precisaria sofrer mais um adiamento. Helder, o
substituto de Rômulo, só pôde assumir o posto após 30 dias desde a nomeação, o que coincidiu com
o retorno de Jonas, devidamente recuperado.
Recomposta a equipe, havia a necessidade de que Helder e Jonas pudessem realinhar os
requisitos do projeto e fazer os ajustes necessários após as mudanças. Mais um mês foi requerido, o
que elevou o tempo gasto até então para três meses e meio. Por volta do quarto mês de trabalho,
finalmente os dois técnicos anunciaram que poderiam iniciar os testes no setor de Antonio. Miguel
retomou o contato com o colega dirigente e informou que poderiam fazer as instalações, mas
Antonio não estava mais à frente do setor. Infelizmente, durante os meses em que a TI enfrentou
dificuldades com a equipe, Antonio assumira outro posto de direção, e o seu substituto não estava
disposto a servir como “cobaia”, conforme disse:
– Não sei do que se trata e não tenho tempo a perder. Não vou ser cobaia em um compromisso
assumido por outros.
Miguel percebia que havia diferenças de pensamento e de posicionamento político na gestão,
mas não podia impor a sua vontade. Iniciou, então, uma rodada de consultas aos colegas dirigentes
para verificar quem poderia realizar os testes, mas, nem bem havia concluído isso, os funcionários da
universidade informaram que adeririam a uma paralisação nacional, logo seguida de uma greve, que
se alongou por quase quatro meses.
Sabe-se que o retorno de uma greve traz uma série de consequências para qualquer setor que
esteve parcialmente paralisado. Prioridades precisam ser redefinidas, recursos precisam ser
realocados e pessoas precisam relembrar e retomar o que faziam. Esse conjunto de redefinições fez
com que a prova de conceitos (PoC), que Miguel antes intitulara “reengenharia de impressão”,
perdesse considerável importância. Novas e urgentes demandas consumiram os recursos da TI por
vários meses, e o projeto caiu no esquecimento.

O resultado
Foi em uma das várias reuniões de direção que se sucederam à greve que Miguel reportou ao
reitor e aos seus colegas os resultados do projeto. Após quase um ano desde que decidiram realizar a
prova de conceitos com recursos próprios, não havia sido possível validar a solução proposta pela TI,
tampouco verificar qual seria a redução possível nos custos. A equipe fora desfeita e realocada em
outros projetos prioritários, e Miguel lamentava, mas deixava aos colegas a decisão de recorrer à
terceirização, quando fosse oportuno.
Enquanto outros projetos eram priorizados e corriam bem em seu setor, Miguel refletia sobre
como agira no caso das impressões e pensava:
“Por que eu não pensei também em outras alternativas, outras possibilidades?”
“Por que eu tinha que assumir essa responsabilidade?”
“O que deu em mim, para que eu ignorasse as condições do serviço público e agisse como
se estivesse na iniciativa privada?”

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