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Direitos Humanos e atuação

policial: percepções dos policiais


Artigos

em relação a uma prática cidadã


Direitos Humanos e atuação policial: percepções
dos policiais em relação a uma prática cidadã
Simone Maria Santos e Lívia Henriques Oliveira

Simone Maria Santos 


Possui graduação, mestrado e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Atualmente é
Pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública – CRISP da UFMG e pós-doutoranda do Programa de
Demografia da Faculdade de Ciências Econômicas da mesma universidade.
simonesambamigo@yahoo.com.br

Lívia Henriques Oliveira 


Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. É graduanda em Direito pela Univer-
sidade FUMEC e pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública – CRISP da UFMG.
liviahdeoliveira@gmail.com

Resumo
O artigo tem como objetivo analisar em que medida policiais militares e civis capacitados em temáticas de Direitos
Humanos assimilaram os conhecimentos adquiridos nos cursos, investigando a percepção dos policiais em relação à
realização desses cursos e a aplicação de seus princípios no nível operacional. Para tanto, fez-se uso da metodologia
qualitativa através da técnica de grupos focais com 89 policiais militares e civis capacitados pela Secretaria de Estado
de Defesa Social de Minas Gerais, em 2008, em Belo Horizonte, Uberlândia, Teófilo Otoni, Barbacena e Varginha. Os
resultados indicaram que os policiais percebem a existência de uma relação positiva entre a realização dos cursos e
a aplicação de seus princípios no nível operacional. No entanto, evidenciou-se a existência de situações concretas do
cotidiano operacional que exigem soluções para as quais eles não foram treinados.

Palavras-Chave
Polícia. Direitos humanos. Capacitação profissional. Segurança pública.

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INTRODUÇÃO

O mundo contemporâneo é, muitas ve-


zes, definido pela emergência de vá-
Direitos Humanos (PNDH), e foi instituída a
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, no

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rias inovações, entre as quais é possível citar Ministério da Justiça, para coordenar a execu-
a expressão “direitos humanos”. O núcleo do ção do PNDH.
conceito, como valor fonte, tem uma ramifica-
ção no reconhecimento da “dignidade da pes- No âmbito da Segurança Pública, as ações
soa humana” (PIOVESAN, 1997). Amplian- implantadas têm o propósito de redimensio-
do essa ideia em relação ao que é necessário nar o trabalho policial à luz dos princípios
para que o ser humano tenha uma vida digna, estabelecidos pelos direitos humanos. Como
torna-se plausível estabelecer uma correlação exemplo, programas de direitos humanos
entre vários outros direitos. foram incluídos na grade curricular dos cur-
sos das Academias de Polícia. Ademais, tem
O reconhecimento de direitos concernen- aumentado, paulatinamente, a participação
tes ao ser humano acompanhou as transfor- de policiais em cursos de direitos humanos
mações e a evolução da sociedade, de modo em redes de ensino à distância. Policiais pós-
que é possível apontar “gerações de direitos” -graduandos têm estudos obrigatórios sobre
que representam a conquista de direitos polí- igualdade racial e de gênero, combate à ho-
ticos (liberdade), sociais (igualdade) e coleti- mofobia e liberdade de orientação sexual,
vos (solidariedade) (FERREIRA, 2000). além de direitos etários (crianças, adolescen-
tes e idosos).
No Brasil, a Constituição Federal de 1988
positivou os direitos humanos como princí- Assim, o tema direitos humanos já faz par-
pio do Estado Brasileiro, ao trazer para o or- te do discurso policial. Entretanto, impõe-se o
denamento jurídico a previsão constitucional desafio de vislumbrar em que medida os pro-
da dignidade da pessoa humana como garan- fissionais de segurança pública transformam
tia fundamental. Desde então, várias ações o discurso sobre direitos humanos em prática
vêm sendo implantadas para a consolidação rotineira. Nesses termos, a questão que norteia
deste princípio. o presente trabalho é: os operadores do sistema
de defesa social de Minas Gerais se percebem
No plano Executivo, em 1996, foi criado o aplicando, no dia a dia, os conhecimentos tra-
primeiro grande instrumento para a promoção balhados nos cursos de direitos humanos reali-
dos direitos humanos, o Programa Nacional de zados em 2008?

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No presente trabalho, a partir do campo te- A POLÍCIA MODERNA COMO UMA ORGANI-
órico da sociologia das organizações, com en- ZAÇÃO BUROCRÁTICA COMPLEXA E INSTI-
foque na perspectiva do novo institucionalismo TUCIONALIZADA
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(SELZNICK, 1957, 1971 e 1996; PERROW, A contemporaneidade tem como uma de


1976; MEYER, ROWAN, 1977; SCOTT, suas principais características a expansão e
MEYER, 1991, 1992 e 1994; PRATES, 2000) centralidade das organizações denominadas
tem-se a hipótese de que o tema direitos hu- burocráticas. No contexto da sociologia das
manos tornou-se um mito nas organizações organizações, diferentes modelos analíticos
policiais e está amplamente ligado aos valores foram erguidos com a proposta de explicar o
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institucionais promovidos pelo ambiente. Em surgimento e a consolidação desse fenômeno.


outras palavras, as polícias tentam preservar Não se tem a pretensão de reconstruir, neste
uma imagem positiva diante da opinião públi- artigo, o debate sobre este universo diversi-
ca por meio do enaltecimento, nos discursos ficado de modelos, mas ressaltam-se pontos
policiais, do respeito aos direitos humanos. Tal importantes que contribuem para a compre-
fato, no mínimo, reflete uma filosofia policial e ensão das Polícias Militar e Civil de Minas
uma orientação geral das corporações policiais. Gerais como organizações burocráticas, com-
No entanto, na prática, elas não oferecem aos plexas e institucionalizadas.
agentes de segurança pública os meios neces-
sários para que atuem em consonância com os A partir do conceito proposto por Perrow
princípios estabelecidos pelos direitos humanos. (1976), é lícito caracterizar as organizações po-
liciais modernas como burocráticas na medida
Na tentativa de refletir sobre as questões em que elas se desenvolvem como sistemas de
supracitadas, inicialmente pontua-se que não mobilização e coordenação de esforços de vá-
obstante o conhecimento acerca da especi- rios grupos, regidos por regulamentos explíci-
ficidade de cada organização policial, as Po- tos, reunidos para a consecução de objetivos
lícias Militar e Civil de Minas Gerais devem comuns. Para tanto, utilizam-se de energia hu-
ser analisadas como organizações burocráti- mana e não humana no intuito de transformar
cas complexas e institucionalizadas. A seguir, “matéria-prima” em um produto desejável.
expõem-se a metodologia, coleta de dados e Nesse processo, acontece a especialização, a di-
o perfil dos profissionais que fizeram parte da visão do trabalho para a execução do produto
pesquisa. Por fim, para a exposição dos resul- e a criação de formas para se tentar a neutra-
tados e a discussão, utiliza-se a sociologia das lização ou relação com o ambiente no qual se
organizações, com ênfase na vertente do novo situam (PERROW, 1976). De forma pontu-
institucionalismo. Com isso se pretende lançar al, no Brasil, a abertura política e o avanço da
luz sobre a percepção dos profissionais de se- democratização das instituições contribuíram
gurança pública de Minas Gerais capacitados para que as organizações policiais preconizas-
na temática dos direitos humanos sobre seus sem sua missão nos pressupostos da racionali-
aspectos comportamentais relacionados aos dade e da técnica, levando à persecução de um
princípios dos direitos humanos. modelo profissional de policiamento.

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As organizações policiais podem ser consi- cipalmente, como esse processo impactou a
deradas complexas na medida em que suas ati- percepção de sua rotina profissional, optou-se
vidades não são orientadas àquelas padronizadas por uma abordagem qualitativa. Tal escolha se

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e repetitivas (PERROW, 1976). Pelo contrário, justifica pela necessidade de compreender as-
cada vez mais, as instituições policiais são caracte- pectos subjetivos ligados às representações dos
rizadas pela vasta gama de ações desempenhadas sujeitos pesquisados. Além disso, impunha-se
por seus membros, tendo como reflexo a impos- a necessidade de analisar as interações entre
sibilidade de calcular os comportamentos indivi- os agentes ao tratarem sobre o tema e, espe-
duais durante as atividades operacionais. Em ou- cialmente, de avaliar em que medida tais in-

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tras palavras, as interações entre os operadores e a terações interferem em seus posicionamentos.
população se erigem sobre dinâmicas complexas. Dessa maneira, a coleta de dados compreen-
deu a realização de grupos focais.
Por fim, as polícias possuem característi-
cas de organizações institucionalizadas, pois AMOSTRA E PERFIL DOS ENTREVISTADOS
desenvolvem normas e procedimentos que re- Inicialmente, previa-se estudar os 480 pro-
fletem os valores do ambiente em que atuam, fissionais capacitados em 2008 pela Secretaria
preservando relações com seu público, forma- de Estado de Defesa Social de Minas Gerais
do por atores relevantes em conceder legitimi- (Seds). No entanto, apenas 193 agentes foram
dade, reconhecimento social e dotar de sig- identificados como participantes dos cursos
nificado as ações das organizações (CRANK; por suas respectivas instituições e tiveram seus
LANGWORTHY, 1992). contatos disponibilizados para a presente pes-
quisa. Entre eles, 24 não foram localizados e
No presente artigo, apesar dos diferentes 75 se tornaram indisponíveis, por estarem de
graus de burocratização e de arranjos hierár- férias, aposentados, reformados, de licença
quicos e das diferenças quanto às definições e médica ou transferidos para outras regiões.
atribuições de suas atividades, as duas polícias
são apresentadas como organizações burocráti- Dessa maneira, 94 operadores estavam ap-
cas, complexas e institucionalizadas. Partir desse tos a participar da pesquisa: 70 policiais milita-
pressuposto permite refletir sobre os aspectos res, 19 policiais civis, 1 agente socioeducativo,
formais e informais das organizações, o que 1 agente penitenciário, 1 bombeiro e 2 guar-
leva a problematizar as implicações significati- das municipais. Diante do número reduzido
vas deste modelo para a relação estabelecida en- de agentes socioeducativos, bombeiros milita-
tre policiais e cidadãos, principalmente no que res, agentes penitenciários e guardas munici-
concerne aos princípios dos direitos humanos. pais, com aquiescência da Superintendência de
Avaliação e Qualidade da Atuação do Sistema
METODOLOGIA E COLETA DE DADOS de Defesa Social (Sasd), da Secretaria de De-
Para compreender em que medida os poli- fesa Social, optou-se por descartar tais opera-
ciais assimilaram os conhecimentos trabalha- dores e concentrar a pesquisa nos 89 policiais
dos nos cursos de direitos humanos e, prin- civis e militares localizados.

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A pesquisa foi realizada com policiais mili- pessoa presa, (5) igualdade sem distinção de
tares e civis capacitados pela Secretaria de Es- credo religioso, (6) igualdade de gênero, (7)
tado de Defesa Social em 2008 em temáticas não discriminação de raça, cor ou etnia, (8)
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relacionadas aos direitos humanos. Os cursos direito à vida e (9) direito à privacidade.
de Promotor e Instrutor de Direitos Humanos
foram promovidos nas cidades de Belo Hori- Para tanto, diversas questões representati-
zonte, Varginha, Teófilo Otoni, Barbacena e vas de cada um dos eixos foram empregadas.
Uberlândia. Algumas delas, consideradas mais importan-
tes e representativas para cada eixo de investi-
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Os grupos focais foram formados, prefe- gação, foram apresentadas a todos os grupos
rencialmente, com profissionais que possuí- de policiais. Elas compunham um roteiro mí-
am a mesma patente ou cargo, para que eles nimo seguido indiscriminadamente por todos
se sentissem mais confortáveis em expressar os moderadores dos grupos focais. Outras
suas opiniões. A distribuição foi feita da se- questões, mais específicas, foram discutidas
guinte forma: em Belo Horizonte foram reali- somente com determinados grupos, de acor-
zados dois grupos focais com a Polícia Militar do com o julgamento do moderador, durante
e um com a Polícia Civil; Varginha, Teófilo a execução do grupo, a fim de esclarecer ou
Otoni e Barbacena receberam apenas um aprofundar algum ponto.
grupo com a Polícia Militar; em Uberlândia,
foram dois grupos de policiais militares; por Casos reais e hipotéticos foram utilizados
fim, em Teófilo Otoni foi realizado um grupo para provocar as discussões. Inicialmente, os ca-
com policiais civis. sos reais com desfechos conhecidos eram apre-
sentados, no intuito de “descontrair” os parti-
Todos os 70 policiais militares e os 19 po- cipantes e ambientar as discussões. Logo após
liciais civis capacitados pela Secretaria de Esta- essa fase de “aquecimento”, casos hipotéticos de
do de Defesa Social de Minas Gerais em 2008 situações vivenciadas por policiais eram propos-
e que foram identificados e localizados pelas tos, para que os participantes discutissem o que
respectivas instituições foram entrevistados. A eles mesmos fariam diante das situações. Por
distribuição seguiu o número de policiais ca- meio desta estratégia de abordagem, procurou-
pacitados em cada localidade. -se mensurar em que medida os conteúdos ofe-
recidos nos cursos de direitos humanos foram
Para nortear os grupos focais foram elabo- absorvidos pelos operadores policiais.
rados roteiros específicos para cada uma das
instituições. Dessa forma, todos os grupos ver- Complementarmente, a fim de traçar um
saram sobre questões preestabelecidas e abor- perfil sociofuncional dos operadores capaci-
daram nove temas considerados estruturadores tados, 37 profissionais do sistema de defesa
da temática dos direitos humanos: (1) vedação social que, por algum motivo, não compare-
à tortura, (2) não discriminação, (3) presunção ceram aos grupos focais foram entrevistados
de inocência, (4) integridade física e moral da por telefone.

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Cabe pontuar que este estudo foi aprova- característica muito importante das organi-
do pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Uni- zações burocráticas complexas e institucio-
versidade Federal de Minas Gerais – UFMG nalizadas: a correlação entre os componentes

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(ETIC 0010.0.203.000-11). próprios das organizações e as determinações
advindas do contexto externo e dos mitos ge-
RESULTADOS E DISCUSSÃO rados nestes ambientes organizacionais am-
No final da década de 1970, ganhou força no plamente institucionalizados.
âmbito da sociologia das organizações a vertente
do novo institucionalismo como um movimen- Meyer e Rowan dissecam o processo de

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to, não unificado, de diferentes pesquisadores em institucionalização das organizações e de sua
busca de formas alternativas para a compreensão relação com o ambiente. Para tanto, partem
dos fenômenos ligados às organizações burocráti- do pressuposto de que as instituições moder-
cas complexas e institucionalizadas. nas são “profundamente racionalizadas e os
elementos racionalizados atuam como mitos
Meyer e Rowan (1977) enfocam os aspectos que dão origem a mais organizações formais”
comportamentais dos indivíduos que compõem (MEYER; ROWAN, 1977, p. 345). Nesses
as organizações institucionalizadas ao ressalta- termos, afirmam que grande parte das formas e
rem a dimensão cognitiva e interpretativa de dos procedimentos institucionais adotados por
suas ações e da de agentes coletivos. Em outras essas organizações não constituem os meios
palavras, os autores preconizam que entender os mais eficazes para a realização de determinada
fenômenos advindos das organizações significa, tarefa, tendo em vista um critério de desem-
em grande parte, incorporar ao enfoque analíti- penho técnico, mas possuem um valor larga-
co a dimensão do sentido que os indivíduos ou mente reconhecido em um contexto político
os grupos, no âmbito organizacional, conferem e cultural mais amplo. Conforme os autores:
às suas ações (MEYER; ROWAN, 1977). “independentemente de sua eficiência produ-
tiva, organizações que existem em ambientes
Assim, a perspectiva de Meyer e Rowan institucionais altamente elaborados obtêm su-
(1977) permite entender de forma mais apro- cesso em se tornarem isomórficas com este am-
fundada as organizações policiais, uma vez que biente, alcançam legitimidade e os recursos ne-
propicia ressaltar aspectos que estão além da cessários para sobreviver” (MEYER; ROWAN,
estrutura formal: os organizacionais de natu- 1977, p. 352).
reza comportamental. Dito de outra forma,
compreender a percepção dos policiais sobre O aspecto mais relevante das discussões
determinadas normas e regras apregoadas por de Meyer e Rowan (1977) se assenta sobre
sua instituição significa entender uma parte a ênfase que conferem às variáveis “legitimi-
importante da própria instituição. dade” e “mitos racionalizados” para explicar
como as organizações justificam sua existên-
Na literatura do novo institucionalismo, cia e suas ações. Nessa perspectiva, os autores
os pesquisadores identificam e analisam uma afirmam que as organizações o fazem a partir

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de “mitos institucionalizados” e do estabele- pessoa presa, igualdade sem distinção de credo
cimento de comportamentos cerimoniais. Ou religioso, igualdade de gênero, não discrimi-
seja, por meio de práticas e procedimentos nação de raça, cor ou etnia, direito à vida e
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impregnados de valores sociais reconhecidos direito à privacidade) apontam fatores e situ-


como parte do éthos vigente no contexto do ações que inibem a plena aplicação de alguns
qual fazem parte. princípios dos direitos humanos. Tais fatores
ligam-se à organização, como a falta de en-
Meyer e Rowan (1977) abordam as formas foque preventivo na formação dos policiais e
estruturais como mitos e cerimônia. Os mitos uma “cultura organizacional” ligada aos ope-
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são “prescrições racionalizadas e impessoais [...] radores atuantes há mais tempo na instituição,
altamente institucionalizadas [...] e naturalmen- o que contribuiria para o desrespeito aos prin-
te aceitas como verdadeiras” (MEYER; RO- cípios estabelecidos pelos direitos humanos.
WAN, 1977, p. 343). Para Scott, são: Isso de certa forma seria tolerado dentro das
crenças amplamente aceitas e que não po- instituições. Ao ressaltar fatores ligados à or-
dem ser testadas objetivamente: são verda- ganização, a percepção dos policiais encontra
deiras porque se acredita nelas [...] e são consonância na literatura do novo institucio-
racionalizadas porque tomam a forma de nalismo, que destaca a possibilidade de uma
regras que especificam procedimentos ne- organização absorver mudanças sem que haja
cessários para atingir um determinado fim alterações em sua estrutura (PERROW, 1976).
(SCOTT, 1992, p. 118). Em outras palavras, o fato de o tema direitos
humanos tornar-se um elemento instituciona-
Por sua vez, “os critérios cerimoniais de va- lizado nas organizações policiais não significa,
lor” possuem uma função estabilizadora e legiti- necessariamente, que as organizações promo-
madora, levando as organizações a adequarem- vam mudanças em sua estrutura no intuito de
-se aos ambientes institucionais externos, o que melhor capacitar seus operadores e, principal-
as poupa da turbulência e de eventuais vulne- mente, difundir operacionalmente o emprego
rabilidades ou colapsos materiais e de sentido destes princípios no encontro com os cida-
(MEYER; ROWAN, 1977). Assim, critérios dãos. Os direitos humanos, como elemento
cerimoniais legitimam as organizações diante institucionalizado, podem apenas responder
de demandas externas e o aspecto formal de ao ambiente externo, garantindo legitimidade
grande parte das organizações institucionaliza- às instituições policiais (PERROW, 1976).
das da contemporaneidade reflete mitos de seu
ambiente institucional. Para ilustrar a situação anterior, cabe des-
tacar a posição dos policiais em relação a dois
Os dados relativos à percepção dos policiais princípios em especial: vedação à tortura e in-
no que diz respeito aos temas considerados es- tegridade física e moral da pessoa presa. Em
truturadores da temática dos direitos humanos relação ao primeiro item, os policiais militares
(vedação à tortura, não discriminação, presun- tenderam, inicialmente, a se colocarem contra
ção de inocência, integridade física e moral da os excessos na atuação da função policial. No

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entanto, posteriormente, relativizaram o uso da nados princípios, como o da vedação à tortura
força apontando contextos e situações em que a e preservação da integridade física e moral da
aplicação do princípio torna-se complexa: pessoa presa.

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Eu não falaria pra você que tortura foi só até
84, 85, não... até alguns 8 anos atrás, 10 anos Na literatura sobre as organizações poli-
atrás, você tinha resquícios ainda do militaris- ciais, pesquisadores apontam existir um des-
mo, do regime militar, você tinhas casos. Hoje compasso entre a formação do policial (que
você pode ouvir, é... burburinho, mas em quan- fornece informações muito gerais) e o variado
tidade muito menor do que eu ouvia quando número de situações inusitadas com as quais

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entrei. (Grupo focal – Polícia Militar). o profissional se defronta na sua rotina (MU-
NIZ, 1999). Muniz (1999) ainda ressalta
Quando questionados sobre o porquê de que, em relação à Polícia Militar, existe um
ainda ocorrerem casos de tortura num contex- volumoso acervo de regras que regulam os
to de consolidação da democracia e do Estado padrões de comportamento no interior dessa
de Direito, de as organizações policiais serem organização burocrática (tais como normas
regidas por tais princípios e do investimento disciplinares, notas de instrução e as “ordens
em capacitação na temática dos direitos huma- do dia”), no entanto, não há códigos e pro-
nos, um participante afirmou: cedimentos voltados para o pronto emprego
aí entra a questão do preparo, óbvio. Tem nas atividades desenvolvidas pelos profissio-
caso que é também a índole... não sei se seria nais nas ruas (MUNIZ, 1999). Tal fato pôde
a índole, mas o caráter... mas a maioria dos ser comprovado na pesquisa, na medida em
casos é de treinamento. O preparo evita, te dá que os grupos focais de policiais militares, nas
o limite. Te faz com que você chegue a um es- diferentes localidades, não foram consensuais
tado limite, e não cometa desvio. Só que tem quanto à orientação de como, por exemplo,
caso que nem, nem o melhor dos preparos revistar uma transexual.
consegue evitar, aí entra a questão individual.
Mas na grande maioria, acho que, pra gente O fato de o modelo de “instrução” ofe-
maioria, o preparo, o treinamento, a capaci- recido aos policiais dialogar pouco com as
tação te daria esse, esse, limite. (Grupo focal situações concretas – ou seja, faltam critérios
– Polícia Militar). institucionais para a ação dos policiais nas
ruas - abre espaço para que o policial crie
Os apontamentos realizados pelos profissio- critérios próprios em contextos específicos
nais nos grupos focais permitem realçar o fato (MUNIZ, 1999). Os critérios próprios so-
de que se, por um lado, os princípios dos direi- frem a influência de outros fatores da “cultu-
tos humanos já fazem parte da retórica dos ges- ra organizacional”, tais como a agressividade
tores e executores da segurança pública no país, correlacionada a um “éthos masculino da
por outro, a cultura organizacional das polícias, força” e a denominada “cultura dos antigos”,
sob vários aspectos, encoraja comportamentos advinda de um resquício da ditadura, carac-
desviantes que estimulam a violação de determi- terizada pela falta de respeito aos cidadãos.

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A “cultura dos antigos” seria socializada no do mundo, você vai encontrar abuso. Acho
trabalho nas ruas, por meio da convivência que isso é claro. Mas talvez uns 8, 10 anos
dos mais novos com os colegas há mais tem- atrás você encontraria casos de tortura mais...
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po na corporação. mais evidentes do que hoje. (Grupo focal –


Polícia Civil).
De acordo com os policiais entrevistados,
por exemplo, a seleção de militares para a par- A percepção dos policiais sobre os proble-
ticipação em algumas capacitações relaciona- mas da estrutura organizacional que podem
das a direitos humanos se delineia da seguinte contribuir para a não aplicação plena dos
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forma: voluntariamente, o militar coloca seu princípios relacionados aos direitos humanos
nome em uma lista de interessados; posterior- remete a outra questão: o sistema de avaliação
mente, as seções indicam quais desses policiais de desempenho das atividades policiais enfa-
participarão do curso, seguindo critérios como tiza o caráter repressivo (como, por exemplo,
a ausência de infrações disciplinares. Ainda se- o número de prisões ou apreensões de armas),
gundo os entrevistados, os militares mais anti- fator que também pode atuar como incentivo
gos na corporação oferecem resistência em fa- à não aplicação dos princípios relacionados aos
zer tais cursos, pois não os consideram impor- direitos humanos (FYFE, 1982).
tantes para o profissional de segurança pública.
De acordo com sua visão, os direitos humanos No que diz respeito ao princípio da não
“apenas servem para proteger infratores” (Gru- discriminação, ou seja, nas situações de abor-
po focal – Polícia Militar). Nesse sentido, a dagem em que os policiais deveriam aplicar a
percepção dos policiais mais antigos sobre os não discriminação e a igualdade sem distinção
direitos humanos se perpetua, dentro da orga- de sexo ou orientação sexual, todos os policiais
nização, devido à falta de critérios para guiar militares afirmaram que realizariam os proce-
os policiais nas diferentes situações vivenciadas dimentos cabíveis sem distinção de qualquer
em sua rotina diária. Como corolário é lícito natureza em razão da condição pessoal da víti-
afirmar que os modelos burocráticos, comple- ma. Da mesma forma que os militares, os po-
xos e institucionalizados abrem espaço para liciais civis foram unânimes na afirmativa de
as idiossincrasias individuais apontadas pelos aplicação do princípio, exemplificando com a
profissionais: “nessas horas tem que ser radical, confirmação dos trâmites legais para o registro
eu enfiaria um espinho debaixo da unha dele” de ações ilícitas praticadas contra as pessoas
(Grupo focal – Polícia Militar). pertencentes aos grupos vulneráveis.
Eu creio que aos poucos o artifício da tortura
vai sendo minorado. Chegar ao fim eu acho Diante das situações apresentadas sobre dis-
impossível, porque isso sai da esfera institu- criminação de raça/cor e desigualdade de sexo
cional. Aí já entra na questão do indivíduo. ou orientação sexual, nenhum dos agentes de
Mesmo que você oriente, que você o eduque, segurança pública apresentou comportamento
tem indivíduo que não absorve. Isso em qual- discriminatório. Como exemplos, foram dis-
quer instituição policial, em qualquer local cutidos procedimentos relacionados a blitze.

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Parar um carro e revistar ou não seus ocupan- alguns policiais alegaram existir diferença de
tes – ou seja, considerá-los ou não suspeitos –, tratamento de acordo com a posição social do
segundo os policiais, depende do contexto e de envolvido. Os militares apontaram a possibi-

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fatores subjetivos, não sendo possível elencar, lidade de práticas distintas de acordo com a
objetivamente, situações ou sujeitos potencial- pessoa à qual se dirige a atuação. No que diz
mente suspeitos. respeito aos policiais civis, os participantes
também alegaram que não exibiriam um acu-
As respostas dos policiais em relação ao prin- sado e não permitiriam sua exposição sem sua
cípio da não discriminação por orientação sexual autorização. No entanto, alguns deles demons-

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e cor/raça estão em consonância com a literatu- traram haver a possibilidade de tal exposição
ra, que aponta a importância de estruturas sub- por entenderem que um acusado que encobre
jacentes inobserváveis, como os valores sociais, o rosto não é exposto ao ter sua imagem divul-
para um entendimento mais profundo sobre o gada, e que a divulgação de tal imagem ficaria
funcionamento das organizações institucionali- sob a responsabilidade da mídia.
zadas (SELZNICK, 1971). Quando os policiais
legitimam a formação da suspeita a partir do Numerosos fatores estruturais, socioeconô-
contexto, ou seja, quando afirmam que fazem micos, geográficos, culturais e históricos intera-
a leitura dos “sujeitos potencialmente suspeitos” gem no sentido de produzirem ambientes mais
a partir do contexto, eles estão em consonância propícios ao surgimento e à consolidação de
com as prerrogativas de dois valores presentes eventos criminais. Ainda assim, historicamen-
na sociedade brasileira: a democracia racial e a te, a ação das polícias em contextos marcados
perspectiva de que os brasileiros são tolerantes pela alta vulnerabilidade social e institucional
com a diferença. Estes são valores retóricos que assenta-se predominantemente na repressão.
não se afirmam como valores substantivos na Na literatura sobre o sistema de justiça brasilei-
medida em que pesquisas apontam a cor/raça ro, essa forma de atuação da polícia constitui
e o gênero como fatores de desigualdades entre o reconhecimento de que as pessoas recebem
as pessoas (IPEA, 2011). No mesmo sentido, na tratamento diferenciado de acordo com o per-
área de segurança pública, pesquisas indicam a tencimento a diferentes classes sociais (CANO,
maior proporção de abordagens a pessoas negras 1997). Novamente, a percepção dos policiais
(pretas e pardas) em relação às pessoas brancas sobre a aplicação de alguns princípios como a
(RAMOS, 2005). presunção de inocência, o direito à privacida-
de e, especialmente, a honra e imagem coaduna
Diante de um exemplo que tinha como com a perspectiva do novo institucionalismo
temas a presunção de inocência e o direito à ao refletir valores do ambiente em que atuam
privacidade, especialmente honra e imagem, (CRANK; LANGWORTHY, 1992). O trata-
os participantes militares afirmaram que não mento diferenciado segundo classe social tam-
exibiriam um acusado detido para a mídia, bém pode ser relacionado com o “jeitinho brasi-
bem como não permitiriam sua exposição, a leiro” (MATTA, 1986), ressaltado pelos grupos
não ser que o mesmo consentisse. Contudo, focais quando se transfere a responsabilidade do

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policial para a mídia no que se refere à violação Outro participante reiterou:
do direito de honra e imagem do acusado. O que eu costumo fazer é tirar a mulher de
perto do cara, justamente para a gente evitar
Artigos

Por sua vez, a aplicação do princípio de o constrangimento. Então eu tiro a mulher


igualdade sem distinção de credo religioso ficou de perto do cara e vou conversando: ‘real-
condicionada ao entendimento do operador mente você não quer fazer, você está com
quanto ao grau de perigo em que se encontrava medo, o que eu posso ajudar’. Aí se a pessoa
uma possível vítima bem como à necessidade insiste que não quer, não tem mais o que fa-
de retorno à sociedade após uma denúncia. Os zer. (Grupo focal – Polícia Militar).
Direitos Humanos e atuação policial: percepções
dos policiais em relação a uma prática cidadã
Simone Maria Santos e Lívia Henriques Oliveira

exemplos giravam em torno de denúncia anô-


nima de cárcere privado em um terreiro de can- Os participantes do estudo concluíram,
domblé. As considerações foram ao encontro da unanimemente, que a vontade da mulher tem
resposta esperada. No caso específico da Polí- que ser respeitada. Poucos relataram que atua-
cia Civil, as discussões também demonstraram riam independentemente da vontade da vítima.
conformidade com a aplicação do princípio de Essa questão é polêmica e ensejou diversas dis-
igualdade sem distinção de credo religioso. cussões sobre a recente legislação penal para ca-
sos de violência doméstica. Buscou-se nesse eixo
Em relação à igualdade de gênero, durante avaliar não propriamente o conhecimento legal
o debate entre os participantes houve muitos dos policiais, mas o reconhecimento de defesa
pontos em comum, desde aspectos relaciona- dos direitos humanos da mulher. Neste ponto,
dos às dificuldades inerentes às ocorrências de como em outros, as organizações burocráticas,
violência doméstica, até considerações sobre complexas e institucionalizadas se mostram des-
os limites da atuação policial nesses casos. Vá- providas de regras e procedimentos claros. Nos
rios foram os grupos que apontaram a com- conflitos domésticos e interpessoais, o “fator
plexidade desse tipo de ocorrência, afirmando surpresa”, que se faz presente tanto no compor-
que geralmente a vítima se nega a denunciar tamento dos envolvidos, quanto no desenrolar
o agressor e até mesmo a receber um atendi- da ocorrência, adquire, do ponto de vista dos
mento médico. Eles ressaltaram a dependência policiais, grandes proporções. Isso dificulta a
financeira como principal causa do problema, elaboração antecipada de padrões de conduta
o que neutralizaria a vítima. Com isso, limita- esperada e, por consequência, o acionamento
ram a atuação ao registro do fato, uma vez que de reações policiais típicas (MUNIZ, 1999).
o encaminhamento para a delegacia dependia
da vontade da mulher: Diante da situação apresentada em relação ao
Ás vezes a mulher abre com o olho inchado e direito à vida, em que o policial estaria sozinho e
tal, não tem sangue, não tem nada. ‘Eu vim, de frente a um suspeito de atirar em outro policial,
fui chamado aqui’ Tá vendo que tá apanhan- alguns grupos de militares afirmaram que execu-
do... ‘Não. Não tem nada. Ninguém chamou tariam o acusado, enquanto outros defenderam
você, vá embora’. Aí temos só que registrar. a prisão. Paralelamente ao debate da questão, as
(Grupo focal – Polícia Militar). discussões acabaram girando em torno da falta de

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proteção ao policial. Já os policiais civis ressaltaram frequentes. Segundo um deles, a atuação da po-
a impossibilidade de prever a própria reação diante lícia não mudou nesse aspecto: “não tem como
de situações de alta complexidade. A resposta dos combater o mal com o bem” (Grupo focal – Po-

Artigos
entrevistados condicionou-se ao fato de o suspeito lícia Militar). Os participantes indicaram, ainda,
ter sido ou não o autor do disparo. Particularmen- que a sociedade não está interessada em conhecer
te em algumas regiões, os participantes tenderam os meios utilizados na atuação policial, quer só
a afirmar que executariam o acusado, assumindo uma resposta aos problemas. Nesse mesmo senti-
que agiriam de forma passional. do, um participante afirmou que atualmente não
tem mais uma postura de “resolver o problema”

Direitos Humanos e atuação policial: percepções


dos policiais em relação a uma prática cidadã
Simone Maria Santos e Lívia Henriques Oliveira
Nesta questão, o respeito ao direito à vida (Grupo focal – Polícia Civil), porque percebeu
está relacionado com o “corporativismo poli- que essa atitude dá resultado, mas está errada.
cial” crescente. O processo de formação dos Outro afirmou que há alguns anos a atuação era
policiais enfatiza o sentimento de unidade, seja diferente porque havia um juiz que dava suporte
para confrontar as situações de risco típicas do ao trabalho policial e até expedia mandados de
trabalho policial, seja para as veementes defe- madrugada, caso fossem necessários:
sas da organização diante de críticas externas, A gente tinha um apoio diferente. O
seja para a proteção contra possíveis desvios juiz já abriu a porta pra gente uma hora
policiais (BITTNER, 1975; REINER, 1992). da manhã pra dar mandado de busca e apre-
ensão. Era ou não era? A gente cercava a casa e
Quanto ao direito à privacidade, apresentou- entrava de manhã. Aí não havia invasão a do-
-se aos grupos um caso de possibilidade de in- micílio, você sabe por quê? Porque o cara dava
terceptação telefônica no intuito de evitar um o respaldo. (Grupo focal – Polícia Militar).
assalto. Um participante respondeu que caso re-
alizasse a interceptação, esta seria ilegal: “aí nós Quando indagados sobre o que leva o policial
estaríamos cometendo um crime. Infelizmente a invadir ou não uma residência sem autoriza-
se o Judiciário não colaborou, a gente tem que ção, alguns pontuaram: “o sangue sobe, você vê
procurar evitar esse assalto de outros meios” o vagabundo entrando pra dentro do negócio...
(Grupo focal – Polícia Civil). Os participantes e quer resolver” (Grupo focal – Polícia Militar).
ressaltaram que situações como esta são comuns
e acabam prejudicando a obtenção de informa- Na percepção dos policiais, há pressão da
ções. Não houve muita discussão em torno dos sociedade para que eles resolvam os proble-
casos, sugerindo não haver dúvidas quanto à mas no âmbito da segurança pública, sem que
condição necessária para realização de intercep- se considerem os meios utilizados para tanto.
tação telefônica. No grupo da Polícia Militar, a Esta visão pode, em parte, ser compreendida
maioria dos participantes afirmou que não rea- a partir da perspectiva de que o sistema poli-
lizaria a interceptação e ressaltou os riscos para cial brasileiro volta-se para questões de ma-
o policial em assumir tal postura, ao passo que nutenção da ordem, controle de populações
alguns pontuaram que já trabalharam em “mis- e repressão criminal desde sua origem como
sões pesadas”, em que invasões a domicílios são estrutura burocrática profissional, sempre

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com vistas à “segurança nacional”. Sua prin- prática se descola da teoria”. Desse modo, há
cipal missão era apoiar as Forças Armadas no uma lacuna entre os procedimentos gerais que
que se refere à garantia das instituições, a so- são passados nos cursos de direitos humanos e
Artigos

berania do Estado e, em última instância, a as dinâmicas e os fluxos do cotidiano policial.


manutenção do status quo das elites políticas
e sociais (MUNIZ, 1999). Nesse sentido, torna-se fundamental com-
preender em que medida e sob quais condições
A análise da percepção dos policiais sobre fa- os operadores aplicam os princípios dos direi-
tores que dificultam a aplicação dos princípios de tos humanos, ou seja, compreender os signifi-
Direitos Humanos e atuação policial: percepções
dos policiais em relação a uma prática cidadã
Simone Maria Santos e Lívia Henriques Oliveira

direitos humanos permite afirmar que as organiza- cados que atribuem à complexidade e à plura-
ções policiais refletem, de forma dramatizada, os lidade de situações com as quais se deparam.
mitos produzidos externamente, projetando uma
imagem que reforça sua legitimidade, mas que não No presente trabalho, verificou-se que quan-
representa sua verdadeira relação com o ambiente to maior a distância entre as temáticas tratadas
(MEYER; ROWAN, 1977). Nas organizações po- durante a instrução e as situações concretas do
liciais caracterizadas como burocráticas, complexas dia a dia, maior a possibilidade de o profissio-
e institucionalizadas, os princípios dos direitos hu- nal adotar posturas contrárias aos princípios dos
manos não são incorporados porque constituem direitos humanos. Foi possível pontuar vários
os meios mais eficazes para a realização da missão exemplos de situações em que os operadores
policial, mas porque possuem valor largamente puderam aplicar seus conhecimentos conforme
reconhecido em um contexto político e cultural. as capacitações relacionadas à defesa ou prote-
Caso contrário, várias mudanças na organização ção dos direitos humanos. Os participantes do
teriam que ser implementadas. estudo explicitaram que se tais situações aconte-
cessem no início de sua carreira na polícia – e,
CONSIDERAÇÕES FINAIS por conseguinte, antes da capacitação – sua atu-
Os dados obtidos indicam haver uma re- ação não estaria em consonância com os prin-
lação positiva entre a realização de cursos de cípios de direitos humanos. Ressaltaram ainda
capacitação em temáticas ligadas aos direi- que algumas situações incompatíveis com tais
tos humanos e a aplicação destes princípios princípios não teriam acontecido caso tivessem
no plano operacional. Ou seja, os cursos são sido capacitados de maneira mais consistente
importantes na medida em que pontuam di- durante sua formação inicial.
retrizes de atuação para os participantes. No
entanto, na maioria dos grupos de discussão os Muitos policiais relacionam de maneira
policiais ressaltaram o fato de que as situações bastante direta o estabelecimento de metas de
concretas que se apresentam no trabalho ope- produtividade policial à não aplicação dos prin-
racional exigem, muitas vezes, soluções para as cípios dos direitos humanos. Argumentam que,
quais eles não foram treinados ou capacitados. para fazer um “trabalho eficiente” (por exemplo,
Esta constatação foi frequentemente sintetiza- para localizar maiores quantidades de drogas ou
da pelos participantes, que afirmavam que “a armas), torna-se necessário ultrapassar certos li-

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mites da legalidade, contrariando os princípios acreditam que os policiais recebem tratamen-
dos direitos humanos. Mesmo os policiais que to desvantajoso das entidades de proteção dos
afirmaram não atuar à margem da lei ressalta- direitos humanos na análise de suas condutas,

Artigos
ram a relação entre o uso de métodos que não enquanto os demais cidadãos, inclusive aque-
estão de acordo com os princípios dos direitos les à margem da lei, não estariam sujeitos a tais
humanos e uma maior possibilidade de atingir exigências. Tais percepções produzem nos poli-
a produtividade esperada pela instituição – so- ciais um sentimento de insegurança que conta-
bretudo quando as metas são exclusivamente gia o desempenho de suas atividades.
quantitativas.

Direitos Humanos e atuação policial: percepções


dos policiais em relação a uma prática cidadã
Simone Maria Santos e Lívia Henriques Oliveira
Os policiais entrevistados também criticaram
A aplicação ou não dos conhecimentos ad- o fato de as organizações policiais não possuírem
quiridos sobre direitos humanos mostrou-se mais canais institucionalizados de disseminação
condicionada ao comando ou chefia dos profis- do que foi trabalhado durante os cursos. Argu-
sionais. Dito de outra forma, os policiais argu- mentaram que as temáticas ligadas aos direitos
mentam que um comando ou chefe que exige humanos deveriam ser tratadas de maneira mais
um trabalho mais repressivo, com foco na apre- intensa e sistemática nas organizações. Além disso,
ensão de armas e drogas, por exemplo, muitas os participantes se queixaram de terem permane-
vezes não se preocupa com os meios utilizados cido no exercício da mesma função, a despeito da
para se atingirem tais resultados, o que abre um realização dos cursos. Segundo eles, isso demons-
leque de oportunidades para que o policial des- tra a baixa conexão entre capacitação e valorização
considere os direitos humanos. Em contrapar- profissional. Todavia, ressaltaram que a propaga-
tida, o trabalho preventivo, com a colaboração ção dos conhecimentos vem sendo feita, mesmo
de outros órgãos, na tentativa de melhorar a que de forma gradual. Assim, por exemplo, mes-
qualidade de vida da população amplia as pos- mo nos grupos em que os policiais apontaram de
sibilidades de o policial exercer sua autoridade forma mais incisiva práticas que vão de encontro
sem ser arbitrário. Verifica-se, assim, que a dire- aos princípios dos direitos humanos, foi ressaltada
triz do comando ou chefia no que diz respeito a necessidade e a importância das capacitações.
à aplicação dos princípios dos direitos humanos
tem efeito nas práticas policiais. Em síntese, os policiais observaram que a in-
corporação dos princípios dos direitos humanos
Os expedientes disciplinares que regulam às suas ações cotidianas ainda se encontra bas-
a conduta do policial também se refletem na tante condicionada a diversos fatores: predispo-
aplicação dos princípios dos direitos humanos sições subjetivas; o amplo espectro de possibili-
no trabalho operacional. Os operadores re- dades sobre o qual os operadores são chamados
latam que se sentem expostos a uma ameaça a atuar; as formas de avaliação e valorização do
constante de punição, mesmo quando agem trabalho operacional; perfil do comando ou che-
dentro da legalidade, de modo que muitos fia ao qual o operador está subordinado e, ainda,
questionam a validade de aplicar integralmente a forma como os direitos humanos são aplicados
os conteúdos disseminados nos cursos. Muitos internamente nas instituições em que atuam.

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Direitos Humanos e atuação policial: percepções
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Artigos

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Resumen Abstract
Direitos Humanos e atuação policial: percepções
dos policiais em relação a uma prática cidadã
Simone Maria Santos e Lívia Henriques Oliveira

Derechos humanos y ejercicio policial: percepciones de Human Rights and police performance: police officer
los policías con relación a una práctica ciudadana perceptions of ethical police practices
El artículo tiene como objetivo analizar en qué medida The aim of this paper is to analyze student outcomes in Human
policías militares y civiles capacitados en materia de Rights training courses attended by both military and civil police
derechos humanos asimilaron los conocimientos adquiridos officers. The focus of this research is on students’ perceptions
en los cursos, indagando en la percepción de los policías of the effectiveness of these courses in helping them apply
con relación a la realización de esos cursos y la aplicación Human Rights principles to their professional practice. To this
de sus principios en el nivel operacional. Para ello, se hizo end, quantitative research methodology was used. Focus
uso de la metodología cualitativa a través de la técnica de groups discussions were conducted with 89 military and civil
grupos focales con 89 policías militares y civiles capacitados police officers who had been trained in courses held by the State
por la Secretaría de Estado de Defensa Social de Minas Secretariat for Social Defense of the State of Minas Gerais in the
Gerais, en 2008, en Belo Horizonte, Uberlandia, Teófilo Otoni, cities of Belo Horizonte, Uberlândia, Teófilo Otoni, Barbacena
Barbacena y Varginha. Los resultados indicaron que los and Varginha, in 2008. The survey results revealed that police
policías aprecian la existencia de una relación positiva entre officers found a positive correlation between attendance to
la realización de los cursos y la aplicación de sus principios these courses and the application of course principles to police
al nivel operacional. No obstante, se evidenció la existencia practice. Nevertheless, respondents also mentioned that these
de situaciones concretas de la cotidianidad operacional que courses did not provide training for the entire range of issues a
exigen soluciones para las cuales estos no fueron instruidos. police officer needs to address in their daily practice.

Palabras clave: Policía. Derechos humanos.


Keywords: Police. Human Rights. Professional training.
Capacitación profesional. Seguridad pública.
Public safety.

Data de recebimento: 11/01/2014


Data de aprovação: 31/08/2014

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