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MARCIO BOLDA DA SILVA METAFISICA E ASSOMBRO CURSO DE ONTOLOGIA 1.0. NOGOES INTRODUTORIAS 1.1. 0 SABER FILOSOFICO 1.1.1, A polémica entre Sécrates e os sofistas' A polémica sungida entre Sécrates e os sofistas foi, em certo sentido, mareante para o saber filos6fi- co, Tal controvérsia ajudou a apurar osignificado eo horizonte do saber que se destina a buscar as razies riltimas da existéncia, da realidade. elaborate deste anal came: eter Henn Intredactane alo etfs, 44: Oniologia, Roma, Baitrice PUG, 1987; Paul Gilbert, Introduzione alle ‘Ruan ama Bainee PUG, 1086; Bree Spr. Crm dt Metafsen, ‘Roma, Eitri BUG, 1665 Marin Heidegger, Insodugo a eniae,odo ‘anne, Tempe Brasil 1975 asednteee Ohomem meta, Saas, ter lamboyant 1060 German ht Argue Metfinesdede Letina Bogst,USTA, 100k, Valonanmee,sbretods a vfeae metafsndesnol vith pur Pater Henri op 7 A diferenca, que os contrapée, incute dois modos de conceber a finalidade do saber. Os sofistas desenvolviam uma sabedoria utilité- ria, preocupada com escopos praticos. A critica platd- nica e aristotélica a eles dirigida denunciava que 0 saber sofistico era aparente. A busca da verdade nao se fazia de modo desinteressado, mas visava a obten- io de lucros. Socrates, em contraposic¢ao, nao pretendia pos- suir a sabedoria, mas se mantinha a procura, de- monstrando que a verdadeira sabedoria se lanca para além da técnica do discurso, ensinada pelos sofistas. O homem nao podera jamais possuir a sabedoria, nem domind-la plenamente. Ele esta na posicéo de quem nao sabe tudo. Ha sempre alguma coisa a ser aprendida. A verdade tem neces- sidade de ser parturida. Ela precisa vir luz, serdes- velada. Nesta atitude {mpar, Sécrates nos mostra que o saber filoséfico 86 pode ser trilhado por um tinico caminho: 0 da busea. E na procura que o homem se revelaasimesmocomohomem, sendoessencialmen- te um animal metafisico, 1.1.2. A distingio Enquanto sabedoria, a filosofia se distingue das ciéncias que se ocupam apenas com os aspectos parciais da realidade. Esta distingao ja 6 classica e 8 muito corrente na interpretacao da filosofia como fendmeno especifico. As ciéncias, por sua propria natureza, sao versase especializadas; a filosofia, aoinvés,éumas6: 6 una, O sentido de unidade e totalidade na com- preensiio da realidade a diferencia das demais cién- Estas constatam os fatos necessdrios, emitindo hipoteses que so comprovadas através da experién- cia e ratificadas pela teoria. Estéo impossibilitadas de formular juizos de valor e de sentido, Nao estao autorizadas a dizer se isto deve ou deveria ser assim. © homem, por isso, enquanto ser que propde continuamente a questo do sentido, esta sempre insatisfeito, A sua sede de verdade é insaciavel, pelo fato de que nao se contenta somente com os resulta- dos das ciéncias, Daf que tem muita razao A. Huxley, em O melhor dos mundos, quando afirma que uma civilizacdo exclusivamente técnica, fundada unica- mente sobre o saber cientifico, resultaria totalmente desumana e absurda Em relacdo as outras respostas sapienciais, pro- cedentes dos relatos miticos, das religides, das artes, a filosofia também se distingue. A caracteristica desta distincdo esta demarcada pelo método que viabiliza o discurso filoséfico. Método este que impri- mea filosofiaa nota singular de ser diseursoracional, coerente, necessério, segundo as leis da Logica. ‘De imediato, jé se pode deduzir que a filosofia se serve unicamente dos recursos “conceituais”. Nao recorre ao uso de imagens, simbolos, parabolas, pro- vérbios ete. Seu discurso 6, rigorosamente, controlé- 9 veleacessivel a qualquer pessoa, desde que esteja de posse da faculdade de pensar. Este argumento nos remete para a afirmacio de que a filosofia é um fendmeno, virtualmente, univer- sal. Sua compreensdo e racionalizacio esto abertas a todos. Para a aquisicao e produgao da sabedoria filoséfica, naoexistem barreiras raciais ou fronteiras sociais. sentido de “universalidade”, aqui expresso, precisa ser devidamente entendido. Nao quer expri- mira idéia de que a filosofia seja um saber puramen- te abstrato e totalmente des-contextualizado. A uni- versalidade de tal saber 6.6 compreendida de modo auténtico, quandoestiver vinculada ao panorama his- trico, no qual suas raizes estao fincadas. Isto indica quea filosofia 6 “sabedoria” culturalmente condicio- nada, Est profundamente radicada na hist6 1.18. As implicagoes Assim, enquanto sabedoria, a filosofia nao é um saber apenas te6rico, abstrato, parcial. Est endere- cado a globalidade da vida, Nao tem um valor de utilidade técnica imediata, por estar fundado sobre valores essenciais e pontos referenciais uiltimos. O saber filoséfico, diante dessa exigéneia, implica em: a) Certa distancia eritica dos acontecimentos, dos fatos, das experiéncias imediatas. Observar uma 10 situacdo, ver uma coisa “com filosofia”, significa “tomar distancia” para melhor compreendé-la, re- portando-se ao nticleo central que constitui a razdo de que realmente seja assim. b) Uma visao global que permite inserir cada coisa no seu devido lugar. A filosofia possibilita a visao de conjunto—a cosmovisdio. A “coisa, 0 “fato”, na apreensao filoséfica, nao é visto isoladamente, mas inserido em seu contexto, formando parte de um horizonte ao qual esta integrado. ©) A procura do “porqué” que permite dar as razbes da realidade, de explicitar-Ihe o sentido. Esta busca pela descoberta do sentido, pelo des-oculta- mento das razées esta em sintonia com a finalidade, a necessidade de o homem orientar a propria vida. 4) Em suma, 0 punctum dolens do saber filosofico 6a questao do “porqué”. O confronto com a realidade 6 questionante. Esté permeado de perguntas. As respostas, no campo filoséfico, sao diversificadas: 1) Num primeiro plano, trés so as perguntas basicas: — Sobre a possibilidade de dizer se isto é verda- deiramente assim. Resposta com a qual se ocupa a filosofia da linguagem. —Sobre a possibilidade do conhecimento da coisa, talcomoela é:se o objeto ¢ distinto do sujeito, que tipo de relacao existe entre eles. Resposta desenvolvida pela epistemologia (fenomenologia e critica do co- mhecimento). u — Sobre a possibilidade de que a coisa seja assim (possivel, real, cognosefvel). Resposta que abarca 0 Ambito da ontologia, em niveis diferentes: = dos seres particulares com suas diferencas peculiares. As ontologias regionslizadas: cosmo- logia, antropologia, teodicéia. = onivel do ser enquanto tal, da possibilidade de ser de qualquer ser particular: ontologia geral. 2)Num planobem mais profundo, ohomem ainda pode perguntar: por que faco perguntas?, por que posso fazer perguntas? E, assim, a questo sobre 0 ser é uma questdo sobre a questo. Tal pergunta inspira que, ao menos, uma resposta seja possivel, jé que 0 ser no é puro fato, inexplicavel. E sempre possivel encontrar uma explicacdo, um sentido tilti- mo: atiltima razao possivel. Eesta questaoeresposta pertencem ao ambito da metafisica, pois arealidade édensa desentido,em expectativa dedes-velamento. 1.2. A QUESTAO DO NOME Aristételes buscava a “prote philosophia”, sobre a qual estariam alicercadas as outras partes do corpo filos6fico ou a “déutera philosophia”, Por ter clara consciéncia de que um saber universal nao era algo 2 dado ou constituido com anterioridade, seno um objeto em cuja busca se achava comprometido, cha- maré também a sua “filosofia primeira” de “a ciéncia ‘que se busca” (zetoumeéne episteme). 0 termo “metafisica” nao ¢ aristotélico. Foi dado por Andrdnico de Rodes, décimo escolarca do Liceu (sée. 1a.C.), que havia reconhecido, ordenadoe edita- do as obras completas (corpus aristotelicum) do Estagirita, que até entao figuravam em tratados soltos. ‘Onome“metafisica” foi empregado por Andronico de Rodes para designar os livros de Aristételes que tinha disposto “depois dos de filosofia natural” (tt ‘metis ta physika). Bste rotulo, em forma abreviada e substantivada, passou a ser o nome oficial e proprio deste saber primeiro e fundamental. Aristételes, ao invés, chamava-a “filosofia pri- meira” ou “teologia”, em oposicao a “flosofia segun- da” ou “fisica”, Na interpretacio aristotélica, a “ilo- sofia primeira” abordava o fundamento primeiro, a “causa primeira”, da qual dependem os objetos trata- dos nas outras partes da filosofia teorética. Contudo, o termo “metatisica”, em seu significado etimolégico, 6 muito rico de sentido. Se a physis é0 dado da experiéncia, na pesquisa filoséfica, aatitude de propé-loem questo indica uma pesquisa ulterior, que vai além docontexido que se mostra ese revela na experiéncia, E inegavel que, para a posteridade, o nome prefe- ido foi o de “metafisica”, pela propria razao de que a “ilosofia primeira” é indubitavelmente a ciéncia que se ocupa com a realidade que se lanca para além da 13 fisica, Além disso, toda reflexo posterior seguiu a trilha enveredada por Aristételes: a tentativa do pensamento humano de ultrapassar o mundo empi- rico para chegar a uma realidade meta-empirica. O termo “ontologia” (ciéncia ou tratadodoente ou idéia do ser) remonta ao sée. XVII. Foi empregado, primeiramente, como sindnimo de metafisica. Foi Johannes Clauberg (1674) que o utilizou pela primeira vez, sendo popularizado por Christian Wolff. Dessa forma, o velho nome foi colocado ao lado do novo termo como mero sindnimo: Metaphysica sive Ontologia. Christian Wolff(1679-1754),filésofo racionalista, distingue a “metafisica geral” ou “ontologia”, que trata do ser enquanto tal, da “metafisica especial”, por ele divididaem trés grandes ramos: acosmologia, a psicologia racional e a teologia natural. 1.3. 0 AMBITO METAFISICO. © ponto de partida do discurso metafisico sera sempre qualquer ocasio ou qualquer experiéneia, da qual surjaou possa surgiruma pergunta defundo, uma interrogacdo fundamental. Odackground do ambito metafisico, entao, é toda a realidade; acambarca o universo do real. $6 0 real, “4 por ser aquilo que ée por estardiante de —existindo e sendo, faz emergir questionamentos que interpe- lam clarificacées sensatas, respostas razodveis. ‘Ocasio, acontecimento, experiéncia que, na con preensio metafisica, podem ser chamados os lugares do “assombro”. Ou, sob outro angulo, pode-se dizer que é do “assombro” quea metafisica nasce, desabro- cha para o pensamento humano. (O“assombro” 60 momento inicial da via de acesso que o homem percorre para chegar ao sentido mais profundo do ser. A experiéncia metafisica de “assom- bro” causa impacto, admiracao, maravilha, espanto, terror, arrebatamento; como também perplexidade, pois abre fendas, provoca rupturas, a medida que possibilita o surgimento de outras razdes para expli- car a realidade, desencadeando, conseqiientemente, novas perspectivas para a vida. (0 “assombro” éa experiéncia primeira que incute necessariamente a relacio de defrontacao: a realida- de se expde ao homem, est diante dele, des-coberta ‘em sua condicdo epifanica de manifestar-se como significante e significado. A tentativa, sempre emer- gente na histéria da filosofia, de des-cobrir a realida- de, para a identificacdo de seu significado metafisico, 6 0 proprio lugar do “assombro”. Tal des-coberta espelha o horizonte no qual esta situado o pensador, © ponto de vista através do qual vée capta a realida- de, as preocupacées existenciais que o afligem, 0 rumo para o qual a vida deve orientar-se. Nahistoria da filosofia, varios, eatécontrapostos, 8800s lugares do “assombro”. Por exemplo: oimpera- tivo ético (Sécrates, Kant), a beleza (Platao), a nossa 6 capacidade de conhecer o verdadeiro (Aristoteles), 0 Sernecessérioe absoluto (Escolastica), ares cogitans e res extensa (Descartes), a angtistia existencial (Kierkegaard), 0 Dasein como ser-para-a-morte (Heidegger) etc. O sentido de “assombro” e a identificacao de seus diversificados lugares ajudam a perceber que a com- prensa de metafisica como discurso abstrato, per- jo “nas nuvens’, “distante da vida’, sem maior repercussao na existéncia concreta e cotidiana das pessoas, é falsa. Ela, ao contrario, é o que de mais profundamente humano possa existir. ‘No fundo, qualquer homem, a sua maneira, é metafisico, j4 que se maravilha, se admira, faz per- guntas e, a vezes, interrogagdes radicais. A seu modo, com seu jeito de ser e de estar no mundo, encontra respostas e tem os seus pontos de vista sobre 0 “sentido tiltimo”. Existe, portanto, uma metafisica implicita, vivi da, que precisa ser clarificada. Tem necessidade de ser expressa num discurso conceitual, rigoroso, con- trolavel,criticavel e comunicavel. Segundo a expres- sio de J. Lacroix, faz-se mister“transformar o vivido em pensado”. Para Merleau-Ponty, a consciéncia metafisica nao tem outros objetos que a experiéncia quotidiana, mundo, os outros, a histéria humana, a verdade, a cultura. Todavia, em vez. de consideré-los j4 existen- tes, conseqiiéncias sem premissas, ¢ como se proce- dessem de si mesmos, ela re-deseobreasuaestranhe- za, a sua “misteriosidade”, que nao deixa de ser 0 milagre de seu manifestar-se. Assim entendida, a 16 metafisica éa esfera que contraria o sistema. Pois, se uum sistema é uma disposigdo ordenada de conceitos ‘que torna imediatamente concilidveis, compativeis entre si, os aspectos da experiéncia, ele, de modo subjacente, suprime a consciéncia metafisica. Diante disso, é irrenuncidvel que a metafisica 6 algo de muito pessoal. E tao pessoal que chegaa tocar profundamente a nossa existéncia. S6 que existe um “porém”: ela nao pode serfeitaepensada “de maneira pessoal” ou “existencial”, referindo-se unicamente & vivéncia imediata ou a ela estando exclusivamente restrita. Para que, de fato, seja reconhecida como “metafisica’, s6 pode ser feita, entdo, da forma mais “impessoal” possivel, com esforco de trabalho logicoe conceitual. Para concluir este item, é preciso associé-lo a0 tema da fé, uma vez que, para possui-la, ohomem 20 menos deve ter descoberto a dimensAo metafisica de sua existéncia, Deve estar em posse da conviccao de que nem tudo se reduz aos dados da experiéneia, do quotidiano, do fatual, mas que existem questies que ultrapassam a propria experiéncia, Na civilizagdo industrial e pés-industrial, a di ‘mensio metafisica ficou e est4 muito esquecida, ou até mesmo negada. Faz parte de uma “pré- evangelizacdo” indicar os “lugares do assombro” ¢ os acessos que facilitam a abertura para o pensamento metafisico. Para exprimir a nossa fé, para articulé-la conceitualmente, tem-se necessidade de uma lingua- gem “auténtica”, que nao se limite apenas aos dados da experiéncia, mas que seja também capaz de dizer uv ‘o que é ou oque se projeta “para além”: uma lingua- gem e uma reflexao de dimensao metafisica, 1.4, 0 OBJETO DA METAFISICA Remontando a Aristételes, 0 pai da Metafisica, 0 objeto da “filosofia primeira” é universal em relacio as demais ciéneias que estudam aspectos particula- res das coisas. Em que consiste este pretendido caréter universal? Constatamos que 05 objetos, as coisas sao “isso” ou “aquilo”. Num segundo momento, se, por abstra- a0, prescindimos das diferencas “isto” ou “aquilo”, deparamos que “sao”, comomeroser” das mesmas. Algo enquanto “é” recebe o nome de “ente” (6n). Pois bem, segundo Aristételes, no tratado de ‘Metafisica IV,1, existe uma ciéncia que estudaoente ‘enquanto ente (6n ¢ én) e as propriedades que he correspondem enquanto tal. Esta ciéncia é a “filoso- fia primeira” ou metafisica, Ora, é inegdvel que o objeto da Metafisica seja 0 “ser”, ou melhor, o ente enquanto ente®. Pois, uma 2 Ametfse tom ldo defined vrioe modes como clei qu exude o cer enquant st as propradadeegue'oacomponham nece=sviamente 18 coisa 6 conhecer um mundo de entes sabendo vaga- mente que eles sao alguma coisa, tendo subjacente, por assim dizer, a nogao de ser como emerge da experiéncia quotidiana e do conhecimento cientifico. Outra coisa é fixar a atencao sobrea realidade doer, considerado nao sob aparéncia desta ou daquela forma; mas simplesmente o fato de que isso é alguma coisa,um “ens”, com o intuito de identificar as suas propriedades, a sua razdo fundante. Para isso, & preciso ir contra a corrente, pois a nossa tendénciaéfirmar-se nos caracteres particula- res e deixar o ser num segundo plano’. Aristételes também esclarece quea palavraser se diz de muitas maneiras, entretanto, todos estes sen- tidos se referem a uma tinica coisa (Metafisica, 1V,2). Esta coisa da qual se predica o ser em sentido primé- rio é a “substéincia” (ousia), 0 ente por si e em si, do qual dependem os acidentes. Assim, para Aristételes, “o objeto das inquirigdes de todos os tempos, passados e presentes, a pergunta constante a respeito do que é oente tf ta 6n) se reduz aestedado:oqueéa substancia?” (Metafisica, VI). Na verdade, o que se observa, na reflexao meta- fisica aristotélica, 6 certo deslizamento do plano princpas Arctstsles como lac doe peinspve primero danatarezne oral ant come mere da propre eaten na possbdader nda ‘ents dower ensieredoem rua aignde|Heldegpe crore sate ‘st princpoe pelos (llsen) Oeeaco das delnes poder st con ‘ar mar as fefriae nea bstam pana qsl ca rove goed ‘a bipvesgeciometaiien 6a reocuprin dedebriraransempremae Sn feadee” Monn Yada @ Piao, to Prk, Pa 158 23 Vann Roig 1967, 9p SEIT lament d Pio, Brena, Rec “La Sean ct transcendental para o categorial, convertendo a metafisica numa investigacdo de substancias. Dai que, para Aristételes, o mundo inteiro esta susten- tado sobre entes que repousam em si ou em subs- ‘ancias, Entre as substancias, existe uma que é a mais nobre de todas e auto-suficiente, 0 Theds, o qual, como objeto de desejo ou de amor, move a todas sem ser movido. Assim sendo, a teoria da substancia deve culminar numa investigacao sobre Deus. Nao 6 es- tranho que Aristételes qualifique sua “filosofia pri- meira’ de teologia, Os comentaristas do Estagirita assinalam ocaré- ter dual quea metafisica teve desde inicio:oenteem geral, de um lado, e, do outro, Deus. O elo de ligacéo entre os dois ¢ a substancia: o tinico elemento da physis capaz de mediar os dois pélos. No pensamento cristao, ambos os temas sio articulados através da teoria da criacio, desconhe- cida para Aristoteles. Deus entra na Metafisica a titulo de Causa Primeira do ser. No horizonte eris- tao-escolastico, a questao do ser recebe um novo enfoque. Os modernos, por sua vez, resolveram o velho problema dadualidade, distinguindo uma metafisica geral, chamada Ontologia, que trata dos primeiros prineipios do conhecimento humano, da outra metafisica especial que, & luz dos primeiros princi- pios, analisa a questo do mundo, da alma ede Deus. A Cosmologia, a Psicologia racional e a Teologia natural seriam partes especiais, dependentes da Metafisica Geral ou Ontologia. 20 Em resumo, pode-se dizer que 0 objeto da metafisica 6 0 ente enquanto ente, que sempre possi- bilitou a pergunta pelo ser em geral e pelos primeiros prinefpios e causas do ser. Todavia, a resposta a tal pergunta, ainda que sob formas aparentemente iguais, mudou de acordo com 0s distintos horizontes histéricos da cosmovisdo iloséfica’, idéia aser desen- volvida no préximo capitulo. 1.5. A QUESTAO DO SER Como ja foi elucidado, a Metafisica se define classicamente como a ciéneia do ente enquanto ente. Por isso, a questao do “ser” torna-se uma questo fundamental. Na expressao shakespeariana, eis a grande questao da angustiada existéncia humana: ser ou nao ser. Oente é 0 participio presente do verbo ser. Signi- fica “aquilo que 6”. 0 “aquilo” evoca certa individua- lidade, € aquilo que ¢ e nao outra coisa. Por assim dizer, o “ente” é, acima de tudo, aquilo que pode ser determinado, individualizado e reco- mhecido a partir de sua identidade. O acento recai sobre a sua reallizacio evocada mediante. partiefpio. German ML Argo, ot pp. 22.28 au “Ente” éalgumacoisa, Porisso, pode-se fazer dele um substantivo, um fatodo qual se poderia abstrairo“é”, oato de ser. verbo “ser” é palavra mais comum da lingua- gem e da comunicacao. Nao se pode pronunciar trés ou quatro oragdes sem o seu uso ou a sua interferén- cia, No infinitivo, o verbo indica uma acao possivel, nao realizada. O verbo nao é, portanto, ‘qualquer coisa”, mas uma possibilidade de atividade. Uma atividade que poderd ser exercida porque ainda nao 6,e0ser4, mediante o participio presente, tornando- se assim ato realizado, algo atualizado. Osgregos distinguiam “ser” e“ente”, acrescentan- do um artigo ao participio, substantivando-o. Os latinos esperaram, até o infeio da Jdade Média, para separar 0 verbo “esse” do nome “ens”. Nas linguas latinas, normalmente, se traduz “to dn” por “ser” e comum substantivar 0 verbo no infinitivo. E compreensivel esta tendéncia de fazer passar 0 infinitivo para o substantivo, ja que, para nos, é quase impossivel pensar em um sem 0 outro, O participio significa “aquilo” que 6. Ora, a expresso recebe 0 seu peso exato sobre o “6”, do verbo no presente ativo: “aquilo” que ndo “é”, de fato, nio é. Existe, neste caso, prioridade do verbo sobre o subs- tantivo. De modo inverso, “ser” é “o que 6” se é presente e ativo: se age, se faz “isto”. Para nés, 6 necessério pensar ‘nisto” que “é”, para, enfim, poder conceber 0 “ser”, pois “ser” 6 “ser” isso ou aquilo. Percebe-se, entao, que existe uma circularidade entre infinitive € participio, circularidade articulada no presente 22 ativo, O ente pode ser sem importancia, insignifican- te; 0 fato de que ele “é” o torna importante, unico, particular. A distincao sutil, que as Iinguas usavam para diferenciar 0 sentido do verbo “ser” em relacdo ao “ente”, levou a criacio do verbo “existir”. “Existir” significa, antes de tudo, ser efetivamen- te, de modo real. A existéncia evoca a realidade de fato. Enquanto a existéncia é “de fato”, ela é “em presenca” de alguém, diante do qual o fato ndo pode ser eludido, evitado'. 1.6.0 METODO Agquestdodométodo noseoloca diantedocaminho ‘a ser pereorrido, da via mais segura para chegar ao saber metafisico. Na abordagem do método, ja esta implicita a pergunta: Como se faz metafisica? Por qual senda se adentrar, para tentar destringar a complexa questo do ser? As tentativas foram varias: a) Referindo-se aos escolasticos, 0 objeto da ‘Metafisica era tratado de maneira nominal. 5 Paul Gilbert, aso Spirit. Carn di Met, pp. 24 23 O discurso, num primeiro plano, considerava 0 enteenquantoente, como também os transcendentais, entendidos como proposigées fundamentais. A com- preensio do ente se estruturava a partir da expli- citacdo das categorias ontolégicas classicas (ato poténcia, substancia e acidente etc.) Odiscurso finalizava com a questao da causalida- de, através da qual se procurava estabelecer a cone- xo ontolégica, e nao simplesmente categorial ou logica, entre o ente miltiplo e contingente, eo ente enquanto ente, considerado absolutamente. Tal esquema exige um procedimento de dialética descendente, tornando-se um método puramente ra- ional, que reconduz ao concreto diversoa unidadede uum prinefpio, O ser, em sua diversidade, fica reduzi- do a0 enquadramento hermenéutico do conceito, do principio. A diversidade se dissolve na unidade, no sentido do Uno! b) O método da metafisica nao poderia ser eviden- ‘temente um “método experimental”. O ser nao é um dado que alguém poderia examinar através dos sen- tidos e da experiéncia interna. O ser nao é fisico nem psicol6gico. Nao é um objeto de cobaia a serdissecado no laboratério ou num diva de um psiquiatra. A experiéncia, qualquer que seja, s6oapreende através de suas determinagdes. Se por “experimental” se tem uma compreensdo mais larga, no sentido de “fundado sobre a experién- cia’, € possivel, entdo, falar de uma “metafisica my indutiva”: a que propdem problemas e questiona- mentos, preparando assim o terreno, o material para a metafisica tout court; porém, nao a substitui ©) A metafisica nao é a pura explicitagao de uma intuicdo intelectual. Para Malebranche e 0s onto- logistas (Gerdil, Gioberti, Lavelle), a idéia do ser nada mais é que o Ser mesmo de Deus, que se revela 0 espirito humano como exemplar eminente dos seres. Esta deducéo incorre em panteismo. 4) 0 método da metafisica ser4, talvez, a pura e simples analise do conceito abstrato do ser e a dedu- do de tudo aquilo que nele esta implicito? ‘A nogao de ser nao é isolavel, circunspecta, como 1a do triangulo, do potassio... Nao é um objeto que posso colocar diante do espfrito e consideré-lo dal di fuori. O ser nao é uma “idéia geral”, ordinéria. Pelo contrario, eu mesmo sou o ser, estou envolvido por aquilo que,em mim, é profundamente subjetivoeque se torna o objeto do meu estudo. O problema do ser, segundo esta compreensio, ndo é somente um pro- blema, mas um “mistério”, no sentido de G, Marcel. O ser € algo que me envolve, que perpassa toda a minha interioridade. Por este motivo, nao pode ser tratado como se fosse uma simples andlise ou uma construcao objeti- va. O discurso, radicalmente objetivo, tende a esque- cer que ohomem também é ser. Ou, na interpretacio heideggeriana, o tinico ser capaz.de propor a questio do ser. 25 e) E possivel adotar o método fenomenolégico? Basta deserever o ser como ele simplesmente se apresenta? ‘Temos de levar em consideracao que o ser como ser néo 6 um simples fendmeno, no sentido hus- serliano. O ser é propriamente aquilo que a reducao fenomenologica deixa “entre paréntesis”. O leitmotiv que guia a reflexao husserliana 6 “zu den Sacken selbst”, para encontrar pontos sélidos, dados indubitaveis. Mas, para que isso se realize, 6 preciso fazer epoché, cuja exigéncia basica é a sus- pensao de todo juufzo sobre o que diz a filosofia, as ciéncias, as pressuposicées da vida cotidiana, colo- cando tudo entre paréntesis. Oobjetivoriltimo daepoché 0 desocultamento. 0 mundo sempre est af; o problema é o significado que ele tem para todos os sujeitos. Daf se pode perceber ‘que existe algo que é impossivel ser colocado entre paréntesis—a onsciéncia: ocogitocom a suacogitata, isto 6, a consciéncia na qual se manifesta tudo o que aparece. ser, no entanto, se manifesta a consciéncia, nao podendo ser reduzido a mero fendmeno, pois transcende a esfera da intencionalidade, sendo esta, para Husserl, a caracteristica basica da cons- cigneia. Heidegger aplica ométodo fenomenolégicoaexis- téncia, de modo especial, ao Dasein: existente aberto 20 ser e mediante o qual o ser vem a si, 6 posto em questao. Na analitica existencial heideggeriana, o ser se confunde com a realidade humana em seu processoe 26 projeto temporal, que est marcado pela inquietude © pela angiistia No fundo, 0 Dasein sempre tinico, singular: “meu”. Em vista disso, a reflexdo metafisica nao corre o risco de permanecer fechada na confissao ou na autobiografia? Sartre, em L’Bire et le Néant, procurou construir ‘uma ontologia fenomenolégica. Mas, as suas anéli- ses utis e sugestivas pressupdem a reducaodoserao fendmeno do étre-en-soi e etre-pour-soi. E claro que a fenomenologia pode ser uma exce- lente introducao a metafisica; nao é, porém, a metafisiea, visto que o ser nao é objeto de intuicao, no se da & maneira de um fendmeno, do qual é suficiente a descricéo. A metafisica transcende o proprio fenémeno’ £) Adotaremos 0 método que prestigia os lugares, do “assombro”, pois valorizamoso sentido de “assom- bro” econsideramos que a metafisica precisa sempre ser repensada e, continuamente, re-descoberta. Avalorizagao dos lugares do “assombro” desperta © nosso interesse para duas constatacbes: Aprimeiraéada dimensiohistérica dametatisica, “assombro” é experiéncia histérica. Sua esfera de envolvimento atinge um horizonte localizado no es- aco e no tempo, tornando-se ponto de referéncia (0 lugar-comum) que dé vida a investigacao metafisica. Por causa disso, seguiremos a trilha da histéria da 1 ara maior aprofandamento sobre a questo do malo meta, ef. cep de Finan, opt 1020, 27

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