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Guido Imaguire 1

Custódio Luis S. de Almeida


Manfredo Araújo de Oliveira A substância e suas alternativas:
(Organizadores) feixes e tropos
yuido Imaguire
Metafísica contemporânea
Uma das principais tarefas da metafísica é a classificação da realidade em suas
Autores categorias mais gerais. Para o senso comum, a realidade parece ser composta de ob-
André Leclerc jetos (ou coisas), que têm certas propriedades e que estão em relações uns com os ou-
Christina Schneider tros. Esta maçã é uma coisa que tem a propriedade de ser vermelha e está numa rela-
Guido lmaguire ção com a mesa, ela está sobre a mesa. O objeto Sócrates tem a propriedade de ser
Hans Burkhardt mortal e uma relação com Platão, ele é seu mestre. Este tipo de observação levou à
tripartição de afiasfundartientais da ontologia: coisas, propriedades e relações.
João Branquinho Tais categorias são gerais porquenão.se aplicam apenas ao mundo fisico; também o
Johanna Seibt domínio abstrata da matemática apresenta tal estrutura: o número 3 possui a proprie-
José Maria Arruda dadede sar iroirtar e está na relação maior que em relação ao número 2. De modo se-
Lorenz B. Puntel melhante, na dimensão institucional podemos falar de objetos como a República Fe-
derativa do Brasil, que tem a propriedade de ser presidencialista e está numa relação
Manfredo Araújo de Oliveira de paz com a Argentina. Relações não precisam reunir necessariamente duas coisas,
Marcia Sá Cavalcante Schuback elas também podem reunir três ou mais coisas: a cadeira fica entre a mesa e a poltro-
Nelson Gonçalves Gomes na, o número 3 fica entre o 2 e o 4. Distinguem-se, nesse sentido, relações binarias
Oswaldo Chateaubriand (que correlacionam duas coisas, p. ex. amar, ser maior que, estar ao lado de, é ca-
Oswaldo Giacoia Junior soá cpti,:ie.)4e relações ternárias (mie correlacionam três coisas como A está en-
Vera Vida! tre Ift, e C', A deu .8 para C, etc.), quiternárias (A ama .9 mais do que Cama .0), etc.
Uma característica fluidamental das propriedades e relações é que elas podem
ocorrer reiteradamente no mundo, quer dizer, elas podem ser multiplamente instan-
ciadas. A propriedade vermelho ocorre nesta maçã, naquela camisa, naquele caro. A
HIIIIIHIIIIIIIIR relação &dg r que ocorre entre o 3 e 02; entre° 5 e ó 4, entre este cachorro e aquele
outro. Considerando uma relação uma propriedade não de uma coisa, mas sim de
t, 0.892.000.3
EDITORA •
VOZES
Petrópolis
•.1. PliESERVE
SUA FONTÉ
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Uma estrutnracompleXa (uma n-iipla ordenada) de coisas, a tradição costumou reunir


prOpfieclades ç relações numa categoria única — a Cafégoiiidoi uniVérciis. Ci_nom.e
"UniY.M7i1r advém da capacidade que essas entidades têm de ocorrer em diferentes
lugares (nãoápenas no sentido fisico), tempos e entidades. Por isso, muitos autore2
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chamam relações simplesmente de propriedades (binárias, terciárias, etc.); outros propriedades: Pedro era cabeludo, agora ele é careca. Este tipo de observação levou
tratam propriedades como relações monádicas. ao desenvolvimento de um outro tipo de categoria, considerado central na ontologia
Mas não apenas coisas têm propriedades. Também propriedades têm proprieda- clássica:. substância. O termo "substância" vem do latim "substantia" - "aquilo que
des: o azul da camisa é bonito. Aqui, a camisa é o objeto, o azul é a propriedade, e a subjae; "que esta.. por detrás dos atributos". O conceito clássico de substância (no
beleza do azul é uma propriedade da propriedade azul. Propriedades de propriedades gregõ ousia ou hypóstctsis) foi originalmente caracterizado por Aristóteles nas Cate-
são chamadas de propriedades de segunda ordem. A tradição desde Aristóteles, que 5)-nd contexto da sua crítica à teoria das formas de Platão, como aquela coisa
em geral usa o termo "acidente" ao invés de "propriedade", fala de "acidentes de aci- individual (portanto, não predicado ou relação) à qual inerem várias propriedades ou
dentes". A lógica moderna, de modo análogo, fala de predicados de segunda ordem. etribrites,..eaquantsi ela mesmo não inere e não é, tem pode ser, propriedade de qual-
Também relações, de qualquer ordem, podem ter propriedades, A relação maior que quer outra coisa, e que ele chamava de "to de ti" (Metafísica, V 8, 1017b). Sócrates é
tem as propriedades formais: ela é transitiva (se A é maior que B e B maior que C, en- mortal, grego, filosofo, justo, etc. Em Sócrates inerem vários atributos: ele é, portan-
tão A é maior que C), anti-simétrica (se A é maior que B, B não é maior que A), e an- to, uma substância. Vermelho, por outro lado, não é uma substância, mas sim um
ti-reflexiva (A não pode ser maior que A). Além dissojambem as propriedades de atributo que inere a algumas substâncias, pois apesar de vermelho ter atributos (ser
qualquer ordem estão em relações: O azul desta camisa é mais escuro que o azul da- bonito, ser uma cor), o vermelho é atributo de outras coisas, e uma substância nunca é
quela calça. Aqui, a propriedade da camisa está na relação mais escuro que em rela- atribiLtoslemada. Vale lembrar que em Aristóteles as categorias em geral, e em parti-
ção à propriedade da calça. Toda a realidade pode ser entendida e descrita ao se dis- cular a substância, se constituem tanto como modos de ser quanto como modos de
tinguir tais categorias em suas diversas ordens numa complexa estrutura hierárquica. pensar/dizer, ou seja, existe uma estrita correlação entre ontologia e epistemolo-
Os universais são distribuídos e instanciados de modo nem sempre regular no gia-k—
. . era
—áratica - substância é assim tanto estrutura ontológica quanto conceito.
mundo. Mas a construção do mundo não é completamente caótica. Pelo contrário, os Aristóteles também caracterizou a substância nos livros Z e H da Metafisica a
universais ocorrem muitas vezes agrupados de forma muito característica: Algo é partir da noção de composição de forma e matéria (no chamado hilemorfismo). A
branco, pequeno, rapidamente saltitante, peludo - isso é um coelho. Algo é verme- s atE ars-e7-1 a forma individual, anterior ao composto. Mas a caracterização da
lho, macio, com agradável perfume - isso é uma rosa. Uma eoncentração caracterís- suitstadaitaEr io substrato (hypokeimenon) de atributos e de mudanças ao longo do
tica de várias propriedades em uma classe de objetos fundamenta o que se chama de tempo-paretéTét Xido a concepção mais estável e de maior influência na filosofia
tipos naturais (natural lcinds). Espécies biológicas formam uma classe de objetos posterior. Em especial a rioção de substância imaterial, rejeitada pelos materialistas,
com inúmeras, embora não todas, propriedades comuns. se tomará central na filosofia posterior: exemplos são Deus no medievo e a alma hu-
A ocorrência de propriedades no mundo segue estruturas bastante regradas; mana na modernidade.
mundo é, em sua maior parte, altamente monótono'. Mas justamente essa regularida- Três noções fundamentais caracterizam o conceito de substância, e precisam ser elu-
de é que nos permite compreender o mundo, captá-lo Corh nossa estrutura conceitua!: cidadas; individualidade, independência ontológica e identidade transtemporal. Uma ou-
bananas são em geral compridas, curvas, amarelas, penduradas em cachos. Um mun- tra característica freqüentemente associada à substância é a de identidade trans-munda-
do no qual os tipos naturais mudassem constantemente de propriedades tornaria nos- na: que Sócrates ainda seria o mesmo indivíduo numa situação contrafática, ou seja, que
sa sobrevivência improvável. Existe urna relativa constância no mundo.
Sócrates pode ser identificado como indivíduo em outros mundos possiveis3.
Uma substância é fundamentalmente algo individual, ou seja, uma entidade particu-
1. Substância2 lar (i.e. não universal) com ocorrência única na realidade. Os atributos (croi.4343rixoÇ:
Dizer que o mundo é relativamente constante não significa dizer que ele é com- "aquilo que vai com outro"), por outro lado, são universais e dependentes ontologica-
pletamente constante. O mesmo objeto pode, ao longo de sua existência, trocar de mente das substâncias. Inwagen (1993) propõe uma identificação de indivíduos por um
processo negativo, ou seja, dando contra-exemplos -coisas que não são indivíduos: mo-
dificações, coleções, substâncias químicas e eventos.
1.Veja ILH. Price, 1998: 23.
2.Esta seção não pretende ser uma exegese fiel da metafisica de Aristóteles, mas apenas uma apresentação
da ontologia tradicional, especialmente na escolástica, que remonta a tal autor. 3.Veja o capítulo de André Lettere neste livro.
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A inerência de uma propriedade em uma substância é a reli:4o mais finidamen. • Este esquema distingue três diferentes relações entre substância prima e suas de
tal na compreensão desta categorização ontológica clássica. Lidgilisticamente, tal re- terminações: Sócrates exemplifica a gênero humano, instancia a qualidade universa
lação é expressa na forma de uma sentença predicativa: o fato dç que a substância Só- da sabedoria e nele inere a sua sabedoria particular.
crates tem o atributo da mortalidade é expresso através da sentgnça "Sócrates é mor-
A substância é plassicamente caracterizada, além disso, pelo seu elevado grau de
tal". O sujeito lingüístico "Sócrates" representa a substância Sóbrates, o predicado 4.`é
autonomia ou indebendência ontológica°. A noção de dependência e/ou independên-
mortal" a propriedade da mortalidade. O fato de que a substância maçã tem a proprie-
cia mitológica preéisa ser elucidaria. Para isso, recorremos à concepção introduzida
dade de ser vermelha é expresso na frase "a maçã é vermelha". Disso se deriva um
por Husserl (1970,:cap. 1): A é dito ontologicamente dependente de B, quando A pre-
simples critério lógico-lingüístico para a distinção de substâncias e atributos: en-
cisa de B para ser ou existir. E B é ontologicamente independente de A se B não pre-
quanto uma expressão de um atributo pode ocorrer como sujeito ou como predicado
de uma frase, o termo que representa uma substância é sempre sujeito e nunca predi- cisa de A para existir. Um exemplo: O cabelo de Sócrates precisa de Sócrates para
ser, existir. Sem Sócrates, o cabelo de Sócrates não poderia existir. Logo, o cabelo de
cado. Vermelho é claramente um atributo, pois apesar da palavra "vermelho" ocorrer
como sujeito da frase "vermelho é urna cor", ela pode ocorrer como predicado em Sócrates é ontologicamente dependente de Sócrates. A cor do cabelo de Sócrates, por
outras frases, por exemplo em "o carro é vermelho". Sócrates é um caso claro de sua vez, precisa dd cabelo de Sócrates para ser, pois sem o cabelo de Sócrates, não
substância, poiso nome "Sócrates" só pode ocorrer como sujeito, nunca como predi- poderia haver uma cor do cabelo de Sócrates. A dependência ontológica é urna rela-
cado. Um possível contra-exemplo a este critério seria dizer que na frase "Este ho- ção transitiva: se A depende ontologicamente de B e B depende ontologicamente de
mem é Sócrates" a expressão "Sócrates" não ocorre como sujeito, mas como predi- C, então A depende ontologicamente de C — sem Sócrates não haveria nem cabelo,
cado. O erro desse aparente contra-exemplo reside no fato de que em tal frase "ser menos ainda a cor do cabelo de Sócrates. Aplicando ao nosso terna a noção de subs-
Sócrates" é, de fato, predicado no sentido lingüístico, mas não no sentido lógico. A tância: Sócrates é uma substância e a sua sabedoria é um acidente. Repare-se que
frase, a rigor, não tem a forma sujeito-predicado, mas sim a forma A relação B, como quando se diz que é ontologicamente independente de A, ou que B não precisa de
2+2 = 4, o que se percebe claramente ao constatar sua estrutura simétrica ("Este ho- A para ser ou existir, não se pretende dizer que B não precisa de A para ser exatamen-
mem é Sócrates" +-• "Sócrates é este homem", assim como "2+2=4" <—> "4=2+2"). te o que E é. Sócrates é ontologicamente independente do seu cabelo porque Sócrates
Outro contra-exemplo seria uma frase na qual a substância ocorre como parte do pre- poderia ser careca, mas é claro que Sócrates não seria como ele á (a saber: cabeludo),
dicado lingüístico: "Platão foi repreendido por Sócrates". Mas pode-se perceber que se ele não tivesse cabelo.
esse tipo de sentença, onde uma palavra que designa uma substância ocorre como É uma questão 'clássica, aliás, se uma propriedade não instanciada continua exis-
parte do predicado, não deve ser sempre compreendida como uma sentença do tipo tindo como uma entidade real (para Platão os universais são formas ou entidades ob-
relacional: "A repreendeu B", afirmando a relação entre duas substâncias, e não uma jetivas que independem de sua instanciação para existirem)s. Se todos os objetos ver-
predicação de uma propriedade a uma substância. melhos do mundo desaparecessem, a cor vermelha continuaria existindo? Realistas
Angelelli (1967/1991) resumiu essa categorização ontológica de Arist6teles com moderados dizem que sem objetos vermelhos a cor vermelha não existiria mais: uni-
auxílio do chamado "quadrado ontológico": versalia in rebus. Nominalistas negam sua existência, pois universais são meras pa-
lavras,flatus vocis. Platonistas diriam que os universais subsistem independentes das
substância segunda atributos universais coisas universalia ante rem, ou, numa reedição contemporânea, que a palavra "ver-
(p, ex.: homem) (p. ex.: sabedoria) melho" continuaria a ter um significado, e o significado seria justamente esta cor, e
que ela continuaria existindo, mesmo não sendo exemplificaria em nenhum objeto,
exemplificação instanciação da mesma forma que a nona sinfonia de Beethoven continua a existir mesmo que se
quebrem todos os discos onde está gravada. Em todo caso, a substância parece não
substância primeira inerência atributos particularizados
(p. ex.: Sócrates) 4
(p. ex.: a sabedoria de Sécrates) 4. A expressão "elevado grau de autonomia" é propositalmente vaga aqui, posto que diferentes teorias de
substancia irão propor diferentes graus de autonomia. As teorias monistas, por exemplo, reivindicarão um
grau maior de autonomia para as substâncias que as teorias pluralistas.
5. Veja neste livro cap. 5 da parte II: "Universais e Particulares: platonismo e nominaliúno".
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apresentar tal tipo de dificuldade, ela continua existindo independente das suas pro- deve ser preso porque o homem que fez o crime na semana passada não é o mesmo
priedades específicas (o que não quer dizer que ela possa existir completamente isen- que a policia prendeu ontem.
ta de atributos!) cela pode trocar vários dos seus atributos (más não todos!). Por isso, Vejamos mais de perto o que significa dizer que as coisas mudam. Aparentemen-
Aristóteles caracteriza a substância como um substrato, como uma espécie de "reci- te, as coisas mudam tanto em suas propriedades como em suas relações com as outras
piente" onde as propriedades estão agrupadas, contidas. coisas. Essa mudança pode ser definida em termos de perda ou de ganho de proprie-
A vagueza presente na noção de independência ontológica é responsável por de- dades. Perda de propriedade: Umwdeterminada coisa x muda, quando x tem, num
bates acerca da aplicação correta da noção de substância na modernidade. Enquanto momento t1 uma propriedade pi e x não tem num momento t2 (sendo t] anterior a ti)
para Aristóteles, seres humanos particulares seriam exemplos plenos de substância, Pi- Ganho de propriedade: Uma determinada coisa x muda, quando x tem, num mo-
para autores como Espinosa somente Deus poderia ser uma substância, pois somente mento t2, uma propriedade PI e x não tem num momento t1 (sendo t1 anterior a t2) pi.
Ele, enquanto causa de si mesmo (causa sul), diferente dos seres finitos, é completa- Pode-se perguntar se toda perda cie propriedade implica automaticamente um ganho de
mente independente ontologicamente, isto é, independente não apenas de um porta- outra propriedade: Se Sócrates adquire a propriedade de ser careca, ele automatica-
dor, mas também de uma causa exterior6. Os seres finitos necessitam de Deus, que é mente perde a propriedade de ser cabeludo. Por outro lado, se Lula perde a proprie-
responsável não apenas pela criação, mas também pela preservação (doutrina da dade de ser presidente, qual propriedade ele adquire? A propriedade de ?trio-ser-pre-
"preservado") da sua existência. sidente? A suposição da existência de propriedades negativas é muito controversa,
A independência ontológica está correlacionada com outra noção fundamental, a podendo 'gerar anit bl omias: x tem a propriedade de não-ter-nenhuma-propriedade.
saber, a noção da mudança e da identidade transtemporal: a substância tem a capacida- Um bom candida para a instanciação desta propriedade estranha é o nada, pois o
de de manter sua identidade e individualidade mesmo trocando algumas das suas pro- nada, diz-se tradicionalmente, não tem nenhuma propriedade (nihili nullae sunt pro-
priedades com o passar do tempo. Sócrates é independente ontologicamente da pro- prietates). É a propriedade de não-ter-nenhuma-propriedade uma propriedade tam-
priedade de ser cabeludo, porque ele pode raspar a cabeça e continuar a ser ele mesmo. bém? Neste caso, o nada teria a propriedade de não ter nenhuma propriedade, o que
Sócrates é jovem e forte, depois ele se toma velho e fraco, mas ele permanece sendo o . parece anfinõrnico. É claro que este problema só surge por obscuridade semântica e
mesmo indivíduo. Não se deve supor, no entanto, que somente propriedades necessá- pode ser facilmente solucionado com uma semântica logicamente disciplinada. Pen-
rias são permanentes: a propriedade de ter nascido às oito horas da noite é permanente so, por isso, ser necessário distinguir propriedades genuínas de pseudopropriedades9.
minha, c jamais poderá ser retirada de mim, embora ela seja contingente7. Em todo caso, pode-se propor uma definição mais neutra de mudança, sem se com-
prometer com uma decisão sobre esta questão: uma determinada coisa x muda, quan-
Heráclito lançou o famoso exemplo do homem que não pode se banhar duas ve-
do x ganha ou_percle uma propriedade.
zes no mesmo rio, pois tanto ele quanto o rio já não serão o mesmo na segunda vez, de
onde se poderia concluir que a permanência do mundo é ilusória. A idéia de que o A solução ao Problema de Heráclito é simples: se ao invés de definirmos o rio
mundo é altamente monótono seria um engano, segundo ele, pois tudo está constan- como uma porção determinada de água (o que, aliás, ninguém faria intuitivamente) o
temente mudando: pauta rei, tudo flui. Esta intuição, aliás, está na base da ontologia definimos como o espaço fisico determinado pelo leito do rio e a totalidade da água
de processos8. Em todo caso, é intuitivamente claro que reconhecemos a identidade que flui neste espaço em toda "história" do rio, o paradoxo desaparece. No momento
de objetos apesar de suas mudanças temporais: a carteira de identidade que fiz há vá- do banho do personagem de Heráclito a porção de água é outra, o momento do rio é
rios anos atrás ainda é válida, pois eu sou o mesmo indivíduo. Dificilmente um assas- outro, ruas o rio é o mesmo. Expresso de modo contemporâneo: a referência de um
sino conseguiria convencer o juiz recorrendo a Heráclito e reclamando que ele não termo como "o rio Amazonas" não é uma determinada porção de água, como o para-
doxo supõe, mas sim o espaço fisico e toda e qualquer porção de água que por ali pas-
sar. Se pudéssemos "transportar" o rio Amazonas para a África, ele deixaria de ser
o rio Amazonas. Melhor: não faz sentido falar em "transportar um rio"; pode-se, no
6.É justarnente contra esse conceito de substância emEspinosaque Hegel (1966: 164-169) apontará sua crí-
tica, antecipando o argumento da teoria de feixes, de que a noção de uma substância absoluta e independente
das suas propriedades é ininteligível. Voltaremos a esse argumento na próxima seção.
9.Eu pensaria uma solução neste sentido: Propriedades genuínas formam conjuntos, tanto o conjunto vazio,
7.Veja artigo sobre O essencialismo desde Knpke, de André Leclerc.
como conjuntos unitários ou a classe universo, enquanto pseudopropriedades não determinam nenhuma
8.Veja neste livro cap. 2 da parte ILI: "Ontologia de Processos". classe ou conjunto. O que está em jogo aqui é, em última análise, una paradoxo do tipo de Russell.
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máximo, mudar o rumo do seu leito. A questão seria, é claro: o quanto podemos mu- Em termos da nossa categorização clássica, pode-se caracterizar a identidade
dar para que ele continue a ser ele mesmo? Mas esta é outra questão. Da Mesma for- como uma propriedhde completamente universal: tudo é idêntico a si mesmo, ou, o
ma, não se deve tomar o estado momentâneo de uma pessoa como seu critério de que dá no mesmo: nada é diferente de si mesmo. Como expressou Wittgenstein no
identidade. Sócrates não é idêntico à sua fase de criança, nem de adulto, nem de ve- Tractatus (TLP 5.5303): "dizer de duas coisas que elas são idênticas é um con-
lho. Ele é, de certa forma, a totalidade composta pelos três. tra-senso e dizer de uma coisa que ela é idêntica a si mesma não é dizer rigorosamen-
Tudo o que foi dito até agora vale, de modo semelhante; para relações de qual- te nada". Parece qu6 essa afirmação de Wittgenstein pressupõe o princípio de que
quer aridade. Que as coisas mudam, isto parece fora de questão. Alguns filósofos, to- uma predicação que não exclui nada não tem significado algum. Segundo tal princí-
davia, ergam
. entaram contra essa evidência, afirmando exatiMente o oposto de Herá- pio, determinado est negatio. Assim, dizer que algo é idêntico a si mesmo diz tão
dito, ou seja, que o movimento é mera aparência, e que h'réalidade última não está pouco quanto dizer nue algo é um ser. Como tudo é um ser, dizer que algo é uni ser é
em movimento, pois é estática. Um argumento é famoso paradoxo do movimento de o mesmo que não dizer nada de determinado.
Zenão. A noção de movimento e mudança foi introduzida ágora somente devido a Da universalidade da categoria do ser, bem como da universalidade da identida-
•sua importância para a compreensão da substância como um substrato cuja identida- de, parece que se pode concluir uma coextensionalidade de ambos. Mas isso não é
de perdura através de várias mudanças. A noção de substância depende do fato de dado. Se tudo que existe é idêntico a si mesmo, pode-se propor a identidade como
• que as coisas mudam e que, apesar disso, podemos reconhecer a mesma entidade critério do ser, Como o fez Quine (1981: 102) no seu famoso dito "no entity without
; (identidade) em diferentes momentos. identirtrifie exiSte uma entidade sem identidade). Ou seja: algo que não tem identi-
Dissemos que a substância mantém sua identidade mesmo mudando de proprie- dade não é, a rigor, nada.
dades. Isso nos levou ao tratamento da noção de mudança, restando agora esclarecer Podt-se pensar a identidade como uma propriedade monádica universal, ou
o que se entende por identidade. como uma relação diádica que toda coisa tem consigo mesmo. Em geral, a identidade
As expressões "identidade" ou "ser idêntico a" são associadas a outras expres- é expressa através dh enunciados com a cópula "é": "A é 5". Mas é claro que nem to-
sões da linguagem ordinária como "ser igual" e "ser o mesmo que". Em primeiro lu- dos os enunciados desse tipo indicam uma identidade; contra exemplos são: "Kimba
gar, deve-se notar que todas estas expressões são predicados diádicos, ou seja, indi- é um gato", "a baleia é um mamífero" ou "Deus é". Diferente destes contra-exem-
cam unia relação binária; "A é idêntico a (é o mesmo que/é igual a) B". Mas essas ex- plos, um enunciado de identidade é sempre simétrico (se A=B então B=A), reflexivo
pressões são ambíguas, podendo indicar dois tipos de relações diferentes: a identida- (A=A) e transitivo (se A=B e B=C, então AC). Se definimos relações como conjun-
de qualitativa e a identidade estrita, também chamada de identidade numérica. Quan- tos de pares ordenados, podemos também dizer que a identidade é a menor relação
do alguém diz: "eu tenho um livro igual ao seu" ou "o meu livro é o mesmo que o reflexiva, ou como diagonal do produto cartesiano de qualquer conjunto de entidades
seu", indica uma identidade qualitativa: o livro que eu tenho é um outro exemplar do por ele mesmo.
"mesmo" livro, ou seja, com o mesmo título, do mesmo autor, da mesma editora, etc. Mas, como saber se um enunciado de identidade é verdadeiro? O princípio de
Mas, se nós colocássemos nossos livros numa gaveta, haveria nela dois livros, e não identidaãe. mais famoso foi formulado por Leibniz e é conhecido como principium
um. Logo, eles não são idênticos no sentido estrito ou numérico, assim como não o idaditatis.inclisce-rnibilium, o princípio de identidade dos indiscemíveis: Se ,A e B
são duas !atinhas de Coca-Cola, por mais similares que elas sejam. Num outro con- têm absolutamente todas as propriedades em comum, então A e B são idênticos. Na
texto, se eu dissesse "nós dividimos o preço e compramos juntos um livro, e por isso, verdade Leihniz conheCia dois princípios diferentes:
o meu livro é o mesmo que o seu livro", neste caso se trataria da identidade estrita ou
(1) Indisc. ernibilidade dos idênticos: Se x é idêntico a y, x e y têm todas as proprie-
numérica: não se trata de dois livros muito parecidos, mas sim realmente de um só li-
dades em comum: Vxy (x-'y VP (Px Py). O predicado? pode, a rigor, ter qual-
vro. Neste sentido, a minha mãe é numericamente idêntica à mãe do meu irmão. É in-
teressante perceber que enquanto a identidade qualitativa permite uma variação de quer aridade, mas por motivo de simplificação da formalização, supomos aqui que
graus (maior ou menor quantidade de predicados comuns a A e B), a identidade nu- todos os predicados de qualquer aridade podem ser reduzidos a predicados monádi-
mérica é, em geral, considerada absoluta: ou ela subsiste ou não, tertium non datur. cos. Assim como com outros princípios, também este parece pertencer a um campo
A identidade.que-interessa. à metafísica é esta segunda, a identidade estrita. intermiário entre.a lógica e a metafisica. Por isso, para muitos, este princípio é in-
question ve e incffitroVélso "como uma noção lógica. A expressão formal acima
8, 280 1. A substância suas alternativas: feixes e tropos Guido imaouire 281
indicaria apenas o uso do sinal "=", assim como "AvB estipula o uso O princípio de indiscemibilidade dos idênticos tem como contraparte lingüística
do sinal de disjunção. Por contraposição deste princípio, pode-se concluir que se x e o princípio de substituição salva veritate: Se dois termos t1 e t2 denotam a mesma en-
y têm alguma propriedade diferente, eles não são idênticos: •Vxy (xn -4 3P (Px A tidade, então, em toda frase em que um destes termos ocorre, este pode ser substituí-
v A Py). do pelo outro sem alteração do valor de verdade da frase: Por exemplo: Se a frase
(2)Identidade dos indiscerníveis: Se x e y têm exatamente as mesmas proprieda- "Pele é o melhor jogador de todos os tempos" é verdade, então a frase "Edson Aran-
des, x e y não são duas, mas sim urna e a mesma coisa: Vxy .(VP (Px PA -4 tes do Nascimento é o melhor jogador de todos os tempos" também é verdadeira. (Os
x=y). Aplicando esse princípio de identidade à substância e sda subsistência no tem- dois princípios são, a rigor, diferentes: mesmo duas entidades não representáveis lin-
po, no entanto, parece surgir um problema. Sócintes no dia 1 não tem todas as proprie- giiisticamente obedecem ao princípio de indiscernibilidade de idênticos, este é inde-
dades em comum com Sócrates no dia 2, pois pelo menos a idade exata já não é mais pendente de qualquer linguagem). Esse principio lingüístico apresenta certas limita-
a mesma. Perdeu Sócrates a sua identidade? Deixou Sócrates de ser ele mesmo? No ções em contextos iliodais e intensionais, mas isso não importa no momento.
que consiste exatamente a identidade de Sócrates? Esta difícil questão é unn dos desa- Em geral, quando se trata do problema da identidade, se pensa na identidade de
fios clássicos da metafísica. Os críticos do conceito de substância utilizam este pro- entidades particulares: Vênus é idêntica à estrela matutina e idêntica à estrela vesper-
blema como um argumento contra o conceito de substância. Os defensores do con- tina, o autor de Waiferly é Scott. Mas poder-se-ia reeditar a questão aplicada a uni-
ceito de substância terão duas estratégias básicas: (1) não usar o conjunto de proprie- versais? Parece certo dizer que o vermelho é idêntico a si mesmo. Seria obviamente
dades de um determinado momento como critério de identificação de uma substân- errado estipular a identidade de predicados recorrendo aos objetos que têm as proprie-
cia, mas sim o conjunto total de propriedades de toda história de uma substância, ou dades (p. ex., "F e G são idênticos se todos os objetos que forem F forem também G),
(2) destacar alguns atributos essenciais (um cerne no feixe total de atributos) que per- como demonstram os famosos exemplos de predicados com a mesma extensão: hu-
manecem através de toda mudança (para Sócrates, por exemplo: ser grego, ser mor- mano e bípede implume ou seres com coração e seres com rins, etc. Temos de recor-
tal, ser humano, etc. Todas estas propriedades permanecem constantes em toda sua rer a predicados de ordem superior, predicados de predicados. Reformulando o prin-
vida e, inclusive, após ela). cípio de Leibniz poderíamos dizer: se as propriedades F e G têm todas as proprieda-
A primeira alternativa é a saída de Leibniz, que introduz o conceito da notio com- des (de segunda ordem como, p. ex., ser uma cor) em comum, então F e G são idênti-
pleta ou conceptus completus. O conceito completo de um indivíduo é a totalidade de cos. Semelhante a esta questão da identidade transtemporal existe a questão referente
; todos os predicados desse indivíduo durante toda sua existência. Imagine que Sócra- à identidade trans-mundana, ou seja, a identidade de um indivíduo em vários mundos
possíveis. Essa discussão é intimamente ligada à semântica modal (de sentenças
tes tem no sábado 1000 fios de cabelo, e no domingo 999 fios de cabelo. A identidade
de Sócrates é garantida da seguinte maneira: Sócrates não é definido como a substân- como "Aristóteles poderia não ter sido filósofo"), e é discutida em outros capítulos
deste livro.
cia que tem no sábado a propriedade de ter 1000 fios de cabelo e tem no domingo a
propriedade de ter 999 fios de cabelo, mas sim, que tem nos dois dias (melhor: sem-
• pre) ambas as propriedades. Ele tem tanto no domingo a propriedade de ter no sába- 1.1 Críticas à ontologia da substância
do 1000 fios de cabelo, como tem já no sábado a propriedade de ter no dom. ing o 999
• fios de cabelo. Ou seja, Leibniz computa todas as mudanças de um indivíduo, todas Os empiristas britânicos foram os pioneiros no longo processo de derrocada da no-
as propriedades com sua indexicalidade temporal, à sua essência. ção de substância. Locke ainda aceitou de malgrado tal noção: a substância seria aque-
le substrato desconhecido que sustentava as propriedades que apreendemos dc uma
A segunda alternativa é abraçada por Aristóteles, que destaca na substância indi- coisa. Quando experenciamos uma substância, o que percebemos, a rigor, nunca é o
vidual um cerne de propriedades essenciais, as quais têm de permanecer constantes a suSitrato, mas as inúmeras propriedades (cores, formas, cheiros, etc.) que inerem na
fim de que ela mantenha a sua identidade, e um conjunto de propriedades acidentais, sublfaTiatEâããêxitiba tem uni forte teor epistemológico, e a avaliação de seu peso de-
que podem ser trocadas sem danos à identidade. Sócrates pode deixar de ser filósofo, pend—eii da relevância que se atribui à epistemologia como determinante da ontologia.
cabeludo ou barbudo, pode engordar ou emagrecer, mas ele não pode perder a sua ra-
cionalidade, pois essa é uma propriedade essencial. A maior dificuldade desta solu- Uma crítica imanenternente ontológica que corresponde, grosso modo, à crítica
ção residiria no estabelecimento de um critério convincente de distinção entre pro- anterior, foi feita por Berkeley, e afirma que não faz sentido supor um substrato para
priedades essenciais e propriedades contingentes. além das propriedades que constituem a entidade. Essa crítica é denominada frc-
.282 1. A substância e suas alternativas: feixes e tropas Guido imaguire 283 k
qüentemente de argumento do:`:streap tease ontológico": se extrairmos todasas pro- considerada um arglimento no sentido de reabilitação de um aspecto central da subs-
priedades que inerem numa substância, restará um substrato nu, ou suporte (chama- tânclã (nridentidade contrafática ou transmundana).
do de "bare particular") que nada suporta? Isào parece claramente um contra-senso.
Para ele, portanto, corpos materiais seriam meros feixes de ptopriedades, e apenas as
2. Categorias alternativas: teoria dos feixes e de tropos
almas seriam substâncias (imateriais). Hume é responsável pela radicalização dessa
critica, aplicando à substância imaterial alma a mesma estratégia de dissolução que 2.1. Óntologia de feixe
Berkeley aplicara aos corpos materiais: uma alma nada seria além do mero feixe de
suas percepções. Kant, por sua vez, faz uma critica à concepção metafísica da subs- A teoria dos frites (bundle themy) afirma que não existe um substrato nem uma
tância enquanto categoria ontológica, recuperando, no entanto, a sua dimensão epis- substância anterior e independente dos universais. Pelo contrário, o que se considerou
temológica: a categoria de substância é condição de possibilidade do conhecimento. ser uma substância 6 simplesmente um conjunto ou um feixe de propriedades. Sócrates
não é um suporte (um recipiente) para os atributos mortalidade, sabedoria, humanida-
Essa crítica à noção de substrato é hoje reeditada numa formulação semântica,..4.
ontologia de substância é resultado de uma.teoria atomista, referencialista tio sIgnjfi- de, ser grego, etc., ele é nada mais e nada menos que a totalidade destes atributos.
Cado, na qual se supõe que cada item semântico que compõe uma asserção deve cor- O argumento principal da teoria de feixes é: Se nós retirarmos todos os atributos
responder um item ontológico no mundo. Assim, se na asserção "Socrates é mortal" de uma determinada_substância, não sobra nenhuma espécie de substrato, não sobra
o predicado "ser mortal" representa o atributo da mortalidade, o termo singular "S6- nada.
_ Subtraindo a mortalidade, a sabedoria, a altura, a forma, o peso, etc. de Soera-
crates" deve denotar o substrato no qual inerem os atributos, e não a substância com- tes, não sobra um 'Sécrates, um bare particular sem atributos. .
pleta com seus atributos, pois se assim fosse, todos os enunciados verdadeiros seriam A teoria dos feixes parece ser motivada pela definição de identidade apresentada
analíticos. Por isso, o Princípio do Contexto, amplamente aceito hoje, segundo o qual por Leibniz (embora ele mesmo não a tenha defendido): A e B são idênticos se eles têm
a unidade básica de significado é a sentença e não os componentes subierifenciais todas as propriedades em comum. Se o que determina a identidade de uma entidade é a
isoladamente, suspende a necessidade de tomar um mero substrato como referência totalidade das propriedades, então a entidade pode ser identificada com esta totalidade
do termo singular. A conseqüência natural de uma semântica contextualista é, por- de propriedades. A teoria dos feixes tem assim um fundamento epistemico muito forte:
tanto, uma ontologia de estados de coisas (cf. PUNTEL, 2001). já que não se pode conhecer uma substância diretamente, mas sempre e necessaria-
Algumas críticas mais exteriores foram feitas à ontologia da substância, as quais mente alleidas suas propriedades, então não faz sentido falar de uma substância in-
apontam para a existência de dimensões da realidade; nas quais as categorias de subs- dendente das suas propriedades. Claro que permanece a questão de saber se uma teo-
tância e atributos não seriam aplicáveis, ou aplicáveis somente com fortes restrições, ria metafísica que se baseia em noções puramente epistêmicas não cai no erro que jus-
como p. ex. no domínio dos eventos (chuvas, terremotos, jogos de futebol), na física tamente a metafísica quer evitar: a confusão entre aparência e realidade.
atômica e na matemática (números ou figuras geométricas seriam substâncias?). Um argumento contra a teoria dos feixes foi apresentado por D.W. Zimtnerman
Várias ontologias alternativas foram propostas como sucessoras da ontologia de (1998). Imagine o seguinte mundo logicamente possível: um mundo composto so-
substância (apenas duas delas serão apresentadas em seções seguintes deste capítulo, mente por duas esferas idênticas, com o mesmo material, tamanho, cor e forma. Até \
outras serão apresentadas em outros capítulos nesta parte deste livro). Embora não se mesmo a posição de cada esfera não seria indiscernível, pois sem relação com algum
possa dizer que ela tenha sido definitivamente abandonada, o número dos seus adep- terceiro objeto não pode ser determinada a posição particular de cada esfera. Como
tos foi claramente decrescendo desde o empirismo moderno. Uma das tentativas este mundo é logicamente possível, as duas coisas seriam indiscemíveis, pois elas
contemporâneas mais relevantes de reabilitação da noção de substância foi Leila por são compostas exatamente dos mesmos universais. Como podemos então dizer que
Strawsõri no livro Individuais (1959), no qual ele argumenta a favor da centralidade as duas esferas são realmente duas coisas?
da noção de indivíduos particulares devido a sua importância na nossa prática de Uma possível resposta do teórico dos feixes seria afirmar que cada feixe está dis-
identificar e te-identificar indivíduos. Como substâncias são, em geral, a referência tante dernie.Siiio E liáo é nada problemático assumir que um universal pode estar
de um nome próprio, a semântica modal de Kripke em Naming and necessity (1972), longe de Posto estar em dois lugares distintos — essa é justamente uma característi-
segundo a qual nomes próprios são designadores rígidos que denotam a mesma enti- ca distintiva doa universais. E dizer que podem existir duas coisas (a distinção numé-
dade em diferentes mundos possíveis nos quais tal entidade existe, também pode ser rica) exatamente iguais em todas as suas propriedades não é um bom argumento para
• 284 1. A substância e suas alternativas: feixes e tropos cuido imaguire 285
a teoria da substância, pois ela pressupõe justamente o que quer provar, a saber, a divíduo com o conjunto de propriedades, essa alternativa, que é intuitivamente plau-
existência de substâncias individuais.
sível,-deveria ser possível.
A teoria de feixes deve sofrer uma série de restrições para se tomar plausível. Em Na já mencionada defesa à noção de um indivíduo identificável em vários mun-
primeiro lugar, não se pode admitir que qualquer conjunto de propriedades constituam dos possíveis, Krilclie (1972: 52) critica a ontologia de feikes: "Se uma qualidade é
um indivíduo: o conjunto {elefante, azul, metálico}, por exemplo, não constitui Um um objeto abstrato, 'um feixe de qualidades é um objeto de um nível de abstração ain-
indivíduo. Isso se deve tanto ao fato contingente de que não existem elefantes azuis da maior, e não um particular." De acordo com ele, não faz sentido dizer que um ob-
metálicos, bem como ao fato de que se houvesse tal elefante, ele não seria somente jeto nada mais é que um feixe de atributos, nem que existe um substrato para além
composto por (e assim idêntico a) estas três propriedades. Um indivíduo precisa ser dos atributos - um particular tem todas as suas propriedades e não é um substrato
um conjunto maximamente determinado: para rodas as propriedades "atribuíveis a sem propriedades, o que não" implica que ele possa ser identificado com essa totali-
este indivíduo deve ser determinado se ele a possui ou não, tertium non datur. E se dade depredicados ou comum subconjunto de propriedades essenciais. A dificulda-
Dumbo fosse de fato tal elefante azul metálico, como sabemos que "ser ímpar" não é
de de Kripke está na sua suposição, no mínimo controversa, de que no ato de referir
um predicado atribuível a ele? Por outro lado, mesmo um conjunto maximamente a um objeto, acessamos diretamente a própria coisa (como ele insiste em [1972: 3]
determinado predicativamente não constitui necessariamente um indivíduo, como "If I am tallcing about it, I am talking about it").
seria um indivíduo num mundo possível particular de Leibniz. Ou tomem-se todos
os brasileiros vivos atualmente, e se agrupem (maximamente) todas as proprieda-
des compatíveis abstraídas de cada um deles, formando uma espécie de indivíduo pa- 2.2 A ontologia de troposl°
drão: seria isso um indivíduo?
D.C. Williams propôs (1953/1998) uma teoria que gerou muitas controvérsias,
Para resolver tais questões autores como Russell e Gdodman introduziram a no- ganhou muitos adeptos e é discutida hoje intensamente. Basicamente, a concepção
ção de copresença ou co-instanciação. Somente predicados co-presentes formam de Williams consiste na proposta de uma única categoria ontológica, da qual as cate-
um indivíduo. Mas várias questões permanecem ainda em aberto: De que forma e por gorias clássicas - coisas particulares (substâncias) e propriedades universais (atribu-
que diferentes universais coexistem (se reúnem) numa unidade? Se os universais são tos) - são derivadas. A categoria única é designada por ele de "tropo" e corresponde,
primeiramente dados e as substâncias apenas derivadas, então por que não existem greis° modo, à categoria de atributo individual no sistema ontológico de Aristóteles.
universais "flutuantes" (freefloating), não instanciados? E além disso, por que eles EnibtraTriiiitoa filósofos - como Leibniz, Locke, Rume, Sellars e Goodman - te-
ocorrem com tanta freqüência em grupos similareá, os chamados tipos naturais? nham reconhecido a existência de tal categoria, Williams foi o primeiro a propor uma
Além disso, se um indivíduo é um conjunto de predicados, a troca de uma só proprie- ontologia completa baseada apenas nesta categoria.
dade implicaria a troca de todo o indivíduo. Surgem aqui novamente todas as dificul- Para entender o que é um tropo, torne-se o próprio exemplo de Williams (com al-
dades que discutimos no tópico de identidade transtemporak ou se identifica o indi- gumas adaptações mínimas), a saber, três pirulitos com as seguintes características:
víduo não com um conjunto de propriedades, mas sim com uma seqüência de con- • pirulito 1: vermelho, redondo e de menta;
juntos de predicados (e aí parecemos cair num determinismo), ou se identifica o indi-
víduo com um conjunto de predicados, e aí se tem a cada novo instante de S6crates • pirulito 2: marrom, redondo e de chocolate;
um novo indivíduo. • pirulito 3: vermelho, quadrado e de menta.
A versão mais sofisticada dessa teoria seria uma variante fenomenológica que Segundo a teoria de substâncias e inerência de propriedades diríamos que os pi-
não identifica um indivíduo pura e simplesmente com uni conjunto de propriedades, rulitos são parcialmente semelhantes e parcialmente diferentes. A teoria de Williams
mas "somente afirma a possibilidade fundamental de traduzir todo enunciado sobre seraiera-M-i-idéia de que "dizer que a é parcialmente similar a b significa dizer que
um indivíduo em um enunciado sobre propriedades. "Assim, "há aqui um elefante uma parte de_ a é totalmente ou completamente similar a uma parte de b" (1998: 41).
azul metálico" deveria ser traduzido como "elefanticidade, azul e metalicidade são
instanciados aqui". Essa versão resolve uma série de dificuldades da teoria de feixes,
inclusive a questão, mencionada acima, se seriam possíveis dois indivíduos diferen- 10. Esta seção segue a exposição de D.C. Williams, considerado criador desta teoria, em seu artigo The ele-
tes com exatamente todas as propriedades em comum. Já que não se identifica um in- menti of beteg (Os elementos do ser), em Review of Metaphysics, vol. 7, 1953. Reimpresso INWAGEN,
P. & ZIMMERMAN, D.W. Metaphysies, 1998.
• 286 1. A substáncla e sua alternativas: feixes e tronos Guido Imaguire 237
Todos os três pirulitos são similares num aspecto, eles têm uma parte concreta simi- mente sua similaridade. Em geral, localização é entendida como posição no espaço e
lar, a saber, o palito de cada um. Claro que dois palitos nunca são completamente tempo, mas Williams usa o termo no sentido mais geral abstrato, Como ser ímpar e
iguais em todas as suas propriedades fisicas microscópicas, mas pode-se assumir um. ser primo estão arribos localizados nó mesmo número 3, ou como onipotência e onis-
altíssimo grau de igualdade. ciência estão localizados em Deus. Quando dois tropoa estão no mesmo objeto,
Poder-se-ia dar nomes próprios aos pirulitos, por exetnplo: "bala", "bele" e pode-se dizer que, eles estão ou são co-presentes. Um objetuarticular é definido
coMo soma. de . a propriedade é definida
"bili", respectivamente aos pirulitos 1,2 e 3. E também aos palitos poderiam ser da- . . tidos Os topos 'que são co-presentes. E um
dos nomes próprios: "pabala" (palito de bala), "pabele" (palito de bole) e "pabili" como um conjuntO de todos os topos que estão na relação de similaridade com um
(palito de bili). Todos os três pirulitos são similares porque pabala, pabele e pabili determinado tropo.
são completamente semelhantes. Mas os pirulitos são parcialmente semelhantes e Um argumento favorável à teoria de tropos é o fato de que ela resolve alguns difí-
parcialmente diferentes. Williams procura explicitar então quais são estes compo- ceis paradoxos que aparecem na teoria nominalista. O nominalista, ao rejeitar uni-
nentes que garantem a similaridade e a diferença entre os piritlitos, componentes que versais, identifica um atributo com a classe de todas as entidades que têm aquele atri-
sejam entre si completamente semelhantes ou completamente diferente. Aãim buto. Assim, o atributo da humanidade pode ser identificado com a classe formada
como se pode distinguir os palitos como partes dos pirulitos, também se pode distin- por Sócrates, Platão, Aristóteles, etc., que é exatamente a mesma classe de entidades
guir componentes como a cor, a forma e ti sabor de cada pirulito. Para facilitar a ex- como atributo bípede despenado, de onde resulta que ser humano e ser bípede despe-
posição, podemos dar a cada um destes componentes um nome próprio: "cobaia", nado são, a rigor, o mesmo atributo. Para a teoria de topos a resposta é fácil: o atribu-
"cobele" e "cobili" (cor de 1, 2 e 3 respectivamente), "forbalit", "forbele" e "forbili" to da humanidade não é definido como sendo esta classe, mas sim como a classe for-
(forma de 1, 2 e 3) e "sabala", "sabele" e "sabili" (sabor de 1, 2 e 3). Cada um destes
mada- Pero. tropo da humanidade de Sócrates, pelo tropo da humanidade de Platão,
componentes particulares é chamado por ele.de trapo. perdfitkicrda humanidade de Aristóteles, etc.
É importante perceber que cada tropo é sempre individual, particular. Tanto cobaia Todos os problemas referentes à misteriosa relação entre coisas e propriedades, a
como cobili são casos de vermelhos, mas cada um é um caso especifico. Bala e bili são relação de inerência; de instanciação e o problema da individuação são resolvidos de
parcialmente similares porque cobaia e cobili são completamente similares. Cobaia e maneira quase simplória na teoria de topos: o que a tradição chamou de inerência
cobili são, no entanto, numericamente diferentes (são diferentes entidades). Bala e bili significa' simplesmente que um tropo é componente (uma parte) de um complexo de
"têm a mesma cor" somente no sentido que dois soldados têm o mesmo uniforme, não
topos copresentes. De maneira mais precisa, o significado de "Sócrates é sábio" é
no sentido que dois filhos têm a mesma mãe. Assim, o tropo cobaia e cobili são entida-
simPlesmente que um tropo, o qual pertence à classe dos topos similares de sabedo-
des similares, mas numericamente distintas. Como bala e bili hão somente têm a cor, _.
ra, pertence mi é constituinte no complexo Sócrates, que é a soma de vários tropos
mas também o mesmo sabor, pode-se dizer que eles têm o complexo cor-e-sabor com- •
co-preientèà..0 abismo entre categorias ontológicas (coisas e atributos) e tipos lógi-
pletamente semelhantes — completamente porque cada componente (a cor e o sabor) é
completamente semelhante. O complexo bala e o complexo bili, no entanto, não são Oo's (sujeito e predicado) é superado, pois sê há um tipo de categoria, e as coisas e
completamente similares porque eles têm componentes que não são similares. atributos são Complexos definidos a partir destes.
O inédito da teoria de tropos é justamente isto: ela propõe que os tropos são as úl- A passagem indutiva do caso particular para o universal é interpretado como a
timas unidades componentes de tudo o que existe no mundo, ou melhor, em qualquer passagem de um tropo para um universal (uma classe de topos). Por exemplo: que a
mundo possível. Os tropos são os componentes fundamentais, dos quais todas as ou- luz do sol queimou a minha pele é uma relação de dois topos, que o sol em geral quei-
tras categorias, que a tradição considerava elementares, são meramente derivadas. ScPirladlos seres, humanos é uma relação entre universais, classes de topos. A
Tropos são particulares abstratos, são a ocorrência de uma essência. As outras cate- minha dengue é um tropo, a doença dengue é um universal, constituído pela classe de
gorias, coisas e propriedades, ou substâncias e atributos, são construídos a partir de vários topos.
duas relações fundamentais dõs tropos: localização e similaridade. A relação de lo- Eventos são topos, figuras geométricas são tropos (triangularidade é um univer-
calização é externa— dois tropos não determinam mutuamente a localização do outro sal e um objeto triangular é uma coisa). Quando um homem declara a uma mulher:
— a relação de similaridade é interna —dados dois tropos, eles determinam neceSSatia- "eu adoro a suavidade da sua voz", ele se refere certamente a um tropo, e não a um
30

• 288 1. A subst8ncia e suas alternativas: feixes e tropas Guldo Imagulre 289
universal. Qualquer mundo possível é um mundo completamente constituído por to- PUNTEL, L.B. (2001). "O conceito de Categoria Ontológica: um novo enfoque". In:
pos conectados através das relações de similaridade e localização. O projeto de de- Kriterion. Belo Horizome.
senvolver de modo sistemático e completo uma ontologia de tropos foi realizado por QUINE, W.v. (1981). Theories and things. Cambridge/Massachusetts/London: Harvarcl
,Campbell em Abstract particular (1990). University Press.
Mas a teoria, claro, não é isenta de dificuldades, como p.ex. a questão se tropos. STRAWSON, P.F. (1959). Individuais. London: Methuen.
têm propriedades. Se não admitirmos propriedades de tropos, toma-se difícil expli-
car como se dá a individuação de cada tropo e como eles entram em relações de STJERNBERG, F. (2003). "An argument against the tope theory". In: Erkenntnis, 59.
co-presença 'e semelhança. Se admitirmos tais propriedades, então as categorias de WILLIAMS, D.C. (1953). 'l'he elements of being". INWAGEN, P. & ZIMMER-
indivíduo e universal retomam como fundamentais (embora se possa imaginar que MANN, D.W. (1998). Metaphysics:. the big questions. Oxford: Blackwell.
também essas propriedades podem ser explicadas em termos de tropos de outras or- WITTGENSTE1N, L. (1921/1989). Tractatus logico-philosophicus — Werkausgabe
dens, o que não implica necessariamente num círculo vicioso). Veja Stjemberg, Eand 1. Frankfurt am Main: Suhrkamp.
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