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Cuido Imaguirrne

Custódio Luis S. de Almeida


Manfredo Araújo de oliveira
(organizadores, lohanna Selim 291 •
Metafísica contemporânea lógica daquilo sobre o que falamos quando falamos sobre coisas eternas ou persisten-
2 Autora
Andrt lederc
Chrlstina Sdneleler
calda Imagelre

tes (incluindo coisas viventes e pessoas).


A ontologia analítica do século XX não teve sucesso em vencer a preocupação
Ontologia de processo* Hans Burkhaiel
loto !Mesquinho
Johann. Seita

tradicional com entidades "estáticas", em que pese suas orientações científicas e em


que pese desenvolvimentos científicos (a teoria da relatividade, a fisica quântica) su-
José nada Aznxla
lomat L Puntel
Malte& Araújo de 01Nelr
gerindo o primado de processos ou eventos. Como as ferramentas formais da ontolo-
Mania Si Cavalcante Schubad gia analítica, tais como o cálculo do predicado, são interpretadas de modo padroniza-
johanna Seibt Nelson Gonçalves Gomes
oswaldo lbateaubriaad
Osvaldo Glacoia Junto;
do sobre um dominio de "objetos" com aspecto de substância, a pesquisa ontológica
Vero Wdal ' do século XX — com as poucas exceções anotadas abaixo — até mesmo reforçou o
% cortou
preconceito tópico e teórico da tradição I. Só recentemente ontólogos analíticos co-
V VOZES meçam a explorar a idéia que um esquema ontológico poderia postular que entidades
Id. per'
Ontologia é a análise filosófica do "que (dizemos) que há". Mais precisamente, dinâmicas são entidades por seu próprio direito ou são mesmo entidades básicas nos
as teorias ontológicas oferecem uma análise daqueles tipos de entidades com as quais termos em que noções familiares de tipos "estáticos" de seres (coisas, pessoas, fatos
estamos comprometidos em considerá-las como existentes. Esses comprometimen- etc.) podem ser definidas.
tos são refletidos na maneira com que raciocinamos e falamos sobre nosso mundo Uma ontologia de processo é uma teoria ontológica que contém, entre suas catego-
cotidiano (ou um domínio científico). Deste modo, a ontologia interessa-se, primor- rias, isto é, suas noções explanatórias básicas, categorias para entidades dinâmicas?. A
dialmente, por uma análise sobre aquilo que, pode-se considerar, tratam as declara- mais completa e tecnicamente mais desenvolvida ontologia de processo é certamente
ções verdadeiras (de alguma linguagem natural ou científica). ainda a de Whitehead, mas o termo "ontologia de processo" não deve ser equacionado
No dia-a-dia dizemos freqüentemente ou insinuamos que há coisas, pessoas, rela- com a filosofia de Whitehead. Há um número de perguntas históricas (menos sofistica-
ções, propriedades ou fatos. Correspondentemente, a tradição ontológica tem-se preo- das) sobre entidades dinâmicas que precedem a Whitehead. Alem do mais, o fio da na-
cupado com a análise destes tipos de seres, discutindo sentenças sobre esferas de bron- valha da pesquisa ontológica inovadora parece, no momento, voltar-se para os proces-
ze, tijolos e casas, corpos humanos, o navio de Teseu, a "palidez de Kallias", a paterni- sos a partir dos topos, mas não necessariamente para Whitehead.
dade de Salomão, e assim por diante. Mas, e certamente não menos freqüente, falamos Deve-se distinguir duas formas desta recente "virada processual". Implementa-
também no dia-a-dia sobre processos e eventos de natureza flsica, social, cultural e ções mais conservadoras consistem simplesmente em extensões "multicategóricas"
mental. Dizemos ou insinuamos que há tempestades, ondas de calor, viagens, movi- de arcabouços ontológicos conhecidos que põem, lado alado, "velhas e estáticas" ca-
mentos, acidentes, competições, concertos, escolas, mercados, guerras, recuperações,
promessas, cálculos, descobertas, alegrias, dores, nascimentos e mortes, e assim por
diante. Deste modo, pode-se esperar que a tradição ontológica também contenha um
vasto corpo de pesquisa devotado ao estudo de processos e eventos.
1.Apenas raramente autores notaram que a leitura padronizada de fórmulas quantificadas contém pressupo-
Desde o começo da ontologia na Antigüidade, contudo, o foco de análise tem sições questionáveis (cf. Geach, l951 e W. Sellars, 1960, 1979). Desde o inicio dos anos 80, contudo, L.B.
sido sobre vocábulos aparentados para entidades que parecem ser "estáticas" ao in- Puntel questionou vigorosamente contra o "dogma da ontologia de objetos" em ontologia analltica (cf. e.g.
vés de "dinâmicas", isto é, sobre entidades que não estão mudando ("eternas") ou Pulite!, 1990). Seguindo a liderança de Dintel, identifiquei uma rede de pressuposições que a ontologia do
século XX tomou para si da tradição da substáncia ontológica (Seibt, 1990). Rescher 1996 estende essa linha
persistem durante a mudança ou, então, sobre entidades que são mudanças em si. Por de argumento, chamando a atenção para as pressuposições da ontologia de substância em outras disciplinas
toda a sua história, a ontologia tem operado sobre a premissa de que o tipo "primário" filosóficas além da ontologia.
ou básico de entidades é "substância" ou, mais genericamente, a interpretação onto- 2.Falarei, daqui para frente, sobre "categorias dinâmicas" como forma reduzida de "categorias de entida-
des dinâmicas". Isto 6, o adjetivo "dinâmico" não é usado de modo atributivo nesta construção (de acordo
com seu uso na noção de "lógica dinâmica" e em contraste com "sistema dinâmico" ou "entidade dinâmi-
ca"). Que essas categorias (isto é, conceitos teóricos de ontologia) por si estejam em desenvolvimento é
uma tese que alguns ontólogos processuais têm mantido (e.g. }lege°, mas que não é cantam-latira de onto-
* Tradução do inglês de Custódio Almeida. logia de processo.
• 292 2. Ontologia de processo lohanna Seibt 293 •
tegorias e novas e dinâmicas categoriasi. Proponentes mais radicais da ontologia de processo. Na conclusão (seção 5), coloco uma questão: o que desejamos ser, substân-
processo ou metafisica processual mantêm, contudo, que tais adaptações conserva- cias solitárias ou interatividades?
doras de esquemas conhecidos vão, provavelmente, passar por cima do verdadeiro
potencial inovador de uma "virada processual". Eles sugerem que arcabouços com-
1. Dois obstáculos tradicionais
pletamente novos devem ser desenvolvidos baseados numa rejeição (pelo menos
parcial) destas decisões teóricas fundamentais que guiam a pesquisa ontológica tra- De aparente valor, o preconceito ontológico tradicional em favor de entidades
dicional e geram a fixação desta última nas categorias "estáticas". estáticas é certamente espantoso. O conhecimento mais íntimo que temos, quer di-
No que se segue vou concentrar-me em ontologias processuais radicais, isto é, zer, o conhecimento sobre nossa própria maneira de estar no mundo diz respeito a
sobre esquemas que visam servir como alternativas completas para uma abordagem acontecimentos ao invés de estados de coisas: vivência, percepção, ação, pensatnen-
substância-ontológica ou tropo-ontológica. De fato, a ontologia de processo e a me- to. Por que, portanto, são as categorias dinâmicas absolutamente negligenciadas na
tafisica processual perseguem, tipicamente, revisões teóricas mais abrangentes. Por investigação filosófica? Por que é a ontologia tradicional tão obviamente silenciosa
que isto é assim explicarei na seção 1 onde aponto duas razões gerais para a negligên- sobre as muitas formas de mudança? É por que o declínio, a desintegração, a ruína é
cia das categorias dinâmicas na história da ontologia. A ontologia e a metafísica pro- urna dessas formas, e uma vez que abraçamoS a mudança e o efémero, experimenta-
cessuais visam, tipicamente, à revisão teórica dentro da ontologia ou metafisica, elas mos o desconforto psicológico conectado à contemplação de nossa própria morte?
não são "terapias" da metafisica. Como explico na seção 2; a metafisica processual, Ou, dado o chocante contraste com a ênfase budista no "tomar-se" como a forma uni-
na tentativa de vencer preconceitos tradicionais, tem prestado, ocasionalmente, à on- versal da realidade empírica deveríamos nós atribuir a ênfase ocidental sobre a per-
tologia de processo um péssimo favor ao propor que um comprometimento com enti- manência à influência da ortodoxia cristã? Foram a mudança e o dinamismo excluí-
dades dinâmicas não pode tomar a forma de uma teoria. De modo comum, contudo, dos do domínio do ser verdadeiro porque um Deus que sabe sobre um mundo genui-
propostas tradicionais, com vistas a uma ontologia ou metafisica processuais têm namente mutante não pode ser imutável?
sido apresentadas como teorias de. substituição. Conforme insinuo na seção 3, as Qualquer que seja, em última instância, o significado de tais fatores externos
idéias centrais da ontologia de processo já têm sido usadas "de modo sub-reptício" para a negligência tradicional das entidades dinâmicas na ontologia ocidental, há
pelos ontólogos substanciais. Deste modo, a ontologia de processo não é estranha à duas razões históricas intrafilosóficas que são bastante mais decisivas em minha per-
história da ontologia e da metafisica especulativa, mas uma parte que é marginaliza- cepção. A primeira nasce de interações de teses epistemológicas e .ontológicas de
da ou escondida na "história oficial". Na seção 4 eu alego que a marca distintiva das projetos filosóficos que viemos a classificar como "metafísica". Muito embora os
ontologias processuais em si é um apelo explícito à noção de dinamismo. Há três termos "ontologia" e "metafísica" sejam usados de modo intercambiável por muitos,
concepções diferentes de dinamismo e correspondendo a estas diferentes noções de há dois projetos que se pode e se deve destinguir. Se nós concordarmos que a senten-
dinamismo pode-se distinguir diferentes tipos de ontologias processuais. Nas subse- ça "há gatos" é uma sentença verdadeira, podemos perguntar (a) sobre a que espécie
ções 4.1 até a 4.3 ilustro cada tipo. de entidade, pode-se considerar, esta sentença se refere, dado o que nós considera-
Nestas subseções troco meu estilo de apresentação a fim de trazer o leitor para mos subtendido nesta sentença, e (b) se o que nós consideramos ser verdadeiro é real-
mais perto do projeto de ontologia de processo. A subseção 4.1 dá ao leitor uma visão mente verdadeiro. Uma teoria ontológica lida apenas com a questão (a): ela discorre
de programador com respeito à "dialética" de Hegel. Conforme explico na subseção sobre que tipos de entidades, pode-se considerar, tratam estas sentenças (de uma lin-
4.2, para os jornalistas é bastante fácil entender Whitehead. Na subseção 4.3 reflito guagem natural ou científica), que tomamos como verdadeiras°. Urna teoria metafí-
pausadamente sobre rios e dou indicações sobre trabalhos atuais que versam sobre sica é uma empreitada mais abrangente, tomando ambas as questões (a) e (b): ela visa
a dar conta do que realmente trata o conhecimento verdadeiro. Em outras palavras,
uma metafisica é ontologia mais epistemologia — ela combina uma teoria ontológica
3.0 contraste "conservador" versus "radical" deve ser absorvido com um pouco de fel, é claro. Ele não pode
ser aplicado diretamente se a única categoria básica de um esquema for diversificada em subtipos "estáticos"
e "dinâmicos", conforme sugerido por proponentes da ontologia de tropas que trabalha em vista de uma can- 4. Retomando a temlinotogia de Husserl, as teorias ontoIngicas são, também, freqüentemente, caracteriza-
cepçâo dinâmica de Copos, ou se houver dependências definidoras simétricas entre categorias estáticas das como teorias de "fazedores de verdades" — como teorias de entidades que poderiam tomar verdadeiras
(substância) e categorias dinâmicas (processo), cf. e.g. Beller & Herre, 2003. essas sentenças que tomamos como verdadeiras.
' jára
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de tipos de entidades (uma teoria de categorias) com uma teoria epistemológica de no 1) qualquer tipo de mudança pode ser representado, especificando-se o seu ponto
conhecimento e verdade. de inicio e o seu ponto de fim. Ele alega que qualquer mudança pode ser caracteriza-
Como as teorias de categorias ontológicas estavam, tradicionalmente, profiinda- da em termos de estados qualitativos opostos da entidade que "está passando" pela
mente imersas em tais projetos metafísicos mais amplos, elas tinham de estar sintoni- mudança (mais tarde chamada de "substrato"). Por exemplo, se você celebra a noite
zadas com suposições epistemológicas da estrutura de imersão. A rejeição de Parmê- de sábado e leva o domingo inteiro para se recuperar, Aristóteles alegava que a sua
nides á mudança e à pluralidade apresenta o caso paradigmático para esta interação. recuperação pode ser analisada em termos de três coisas — você, a entidade que "pas-
Parmênides notou que negações tais como "a Acrópole não é branca" pode ser enten- sa" pela mudança e os dois estados qualitativos opostos — estar alegre e estar sóbrio —
dida de duas maneiras. Tanto como uma designação direta de uma falta, quanto como que marcam o começo e o fim da mudança. As fases intermediárias mais desagradá-
uma designação indireta de um aspecto positivo (ser colorido). veis de sua recuperação São descartadas nesta análise.
Considere que escolhemos a primeira opção. Uma carência não é dada no sentido A "análise de estado" de Aristóteles para a mudança sugere a visão reducionista
do que a gente possa saber sobre ela como tal, independentemente do atributo positivo de aspectos dinâmicos — o que é real é o substrato e os estados fronteiriços da mudan-
que esteja faltando. Com base na premissa epistemológica de que a realidade sobre a ça, enquanto a transição em si não é. Embora o próprio Aristóteles não tenha dado o
qual trata o conhecimento verdadeiro é tudo e apenas o que sabemos como tal, não aval para tal posição reducionista, é assim que a "análise de estado" tem sido inter-
pode haver qualquer conhecimento verdadeiro sobre carências. Conseqüentemente, pretada, em grande parte, na história da ontologias. Além do mais, enquanto Aristó-
não pode haver também conhecimento verdadeiro de nada que esteja em mudança, isto telas dava crédito a vários tipos de substratos, a história da ontologia interpretava a
é, de qualquer coisa que esteja ganhando alguns atributos e faltando outros. Se aplicar- "análise de estado" de modo muito mais restritivo: como a alegação" de que todas as
mos, novamente, a premissa epistemológica que a realidade é tudo e apenas o que sa- mudanças são mudanças de entidades ou "substâncias" concretas, particulares, con-
bemos sobre ela como tal, o resultado é que as mudanças não são reais. táveis. Se a análise de estado for combinada com tal restrição, ela parece, de fato,
uma ferramenta teórica poderosa. Ela parece oferecer uma interpretação econômica
A segunda opção, por outro lado, reduàse à primeira, Parmênides alega, uma mais ao mesmo tempo altamente versátil sobre o que falamos sobre desenvolvimen-
vez que um atributo positivo não pode ser concebido como tal sem se conceber a ex- tos que podem ser usados para individualizar mudanças e diferenciar um número de
clusão ou carência de outros; deste modo, mesmo as diferenciações são irreais — o tipos básicos de desenvolvimento, tais como a alteração, o movimento, o aumento, a
Ser é imutável e único, isto é, completamente homogêneo. diminuição, a composição e a decomposição.
Os metafísicos, após Parmênides, rapidamente rejeitaram a mencionada premis- Os dois fatores históricos intrafilosóficos mencionados para a negligência das
sa epistemológica, rejeitando também a segunda parte do argumento (a irrealidade entidades dinâmicas obviamente suplementam e dão sustentação um ao outro. A ale-
de quaisquer diferenças). Curiosamente, contudo, eles retiveram a primeira parte do gação episterbológica pannenidiana de que entidades dinâmicas não podem ser "co-
argumento, isto é, a irrealidade da mudança. Por toda a história da metafísica a posi- nhecidas colho tais" pode ser facilmente justificada em combinação com uma leitura
ção por exclusão era de se tomar a postura parmenidiana contra a mudança: uma vez restritiva da "análise de estado" da mudança, e vice-versa. Para o desenvolvimento
que a dinâmica da mudança como tal não pode ser matéria sujeito da inquirição ra- bem-sucedido de uma ontologia de processo é de máxima importância observar-se
cional, as mudanças não podem ser incluídas numa teoria do que realmente existe. que os dois fatores históricos mencionados refletem uma intuição teórica poderosa
O influente modelo parmenidiano de se derivar alegações ontológicas a partir de no âmagO de duas redes de suposições que constituem os paradigmas dominantes de
suposições epistemológicas pode ser considerado, portanto, como a primeira razão pesquisa em epistemologia e ontologia, respectivamente. A alegação de que mudan-
ças como essas não podem ser conhecidas é parte do paradigma persistente basilar
intrafilosófica para o ostracismo das noções dinâmicas na metafisica ocidental. A se-
gunda razão repousa na interpretação escolástica tradicional das inquirições ontoló- que se vê na epistemologia e no seu foco característico sobre a "dádiva". De modo si-
gicas de Aristóteles. Aristóteles estudou o fenómeno da mudançá.(como ocorrência e milar, a análise de estado da mudança é um componente essencial do "paradigma da
substância" em ontologias.
diferença) mais cuidadosamente e de maneira mais abrangente que qualquer outro fi-
lósofo antes e depois dele até Whitehead. Contudo, ele operava com uma análise de
mudança que se abria para más interpretações como uma conta "deflacionária" dos
fenômenos dinâmicos. De acordo com a análise aristotélica da mudança (Física, li- 5. Para o próprio relato dinâmico de Aristóteles sobre o ser e a unidade das coisas, compare Gilli, 1989 e 2003.
6.Cf. e.g. Seibt, 1990b c 2002.
_s
• 296 2. Ontologia de processo lohanna Seibt 297 •
A fim de desenvolver uma promissora metafísica procesSual seria necessário re- de apresentação, a metafisica processual é freqüentemente posta na vizinhança de
mover não apenas os remanescentes da epistemologia parmenidiana e a estado-análi- programas de "terapia filosófica". Isto é particularmente desviante, urna vez que a
se da mudança, mas também partes consideráveis dos paradigmas de pesquisa aos metafísica processual não é uma terapia oriunda da metafísica, conforme queriam
quais eles estão vinculados. A epistemologia contemporânea já realizou uma mudan- Nietzsche, Wittgenstein ou Derrida. No máximo, a história da metafísica processual
ça de paradigma deste gênero, seguindo a chamada de Wilfreid Sellars para uma é uma série de tentativas para oferecer a terapia dentro da metafisica — ou revisão teó-
epistemologia antibasilar que deixou o tradicional "mito do dado" para trás. rica, em suma.
Se, por outro lado, se busca desenvolver, meramente, uma ontologia de processo Propostas de ontologia de processo ou metafisica são programas reformativos vi-
(teoria de categoria baseada em processo), considerações epistemológicas podem sando a promover um novo conjunto de conceitos analíticos em termos dos quais po-
ser, então, postas de lado e apenas o segundo obstáculo, a análise de estado restritiva, demos entender o que nos cerca, nós próprios e a relação entre nós próprios e o que
permanecer. Dado o profundo enraizamento da análise de estado na rede de pressu- nos cerca. A meta engendra duas tarefas, uma crítica e outra construtiva.
posições do paradigma da substância, a remoção deste segundo obstáculo eleva-se a
Primeiro, a tarefa critica consiste em mostrar que categorias tradicionais (substân-
uma revisão teórica altamente abrangente em ontologia. Em contraste à epistemolo-
cia ou objeto, atributo, pensamento, percepção etc.) podem ser sujeitas a possíveis teo-
gia, contudo, a ontologia contemporânea não realizou ainda tal mudança paradigmá-
rias de revisão uma vez que elas são termos teóricos, não importando quão familiares e
tica, continuando ainda nas ganas do "mito da substância"7.
naturais elas possam parecer. Para usar unta expressão de A.N. Whitehead, a tarefa crí-
Só depois das últimas duas décadas, os ontólogos começaram a rejeitar algumas tica de metafísicos processuais consiste em chamar a atenção pano fato de que a meta-
das suposições fundamentais do tradicional paradigma de substância. A remoção do física tradicional cometeu a "falácia da concretude mal colocada", que "consiste em
segundo obstáculo, isto é, da análise de estado da mudança, juntamente com pressu- negligenciar o grau de abstração envolvido quando uma entidade real é considerada
posições teóricas que dão suporte a ele, é ainda a tarefa primária para o trabalho cor- apenas ate aonde ela exemplifica certas categorias de pensamento". Em outras pala-
rente sobre processo. vras, dado nosso-presente hábito teórico, poderia parecer muito mais "intuitivo" cate-
gorizar nós próprios e as coisas ao nosso redor como substâncias em lugar de intera-
2. Duas tarefas das revisões da teoria ontológico-processual ções de processos. Mas aquela categorização não é menos construída ou planejada do
que esta, ela é meramente mais bem entrincheirada em termos históricos.
Como sugeri na seção anterior, uma metafisica processual combinando uma epis-
Segundo, após a desinstitucionalização de conceitos analíticos familiares, a tare-
temologia com uma teoria de categoria, deve ser desenvolvida contra pressuposições
fa construtiva do filósofo processual é vislumbrar novos conceitos analíticos e inves-
teóricas profundamente enraizadas na epistemologia e na ontologias. Os proponen-
tigar o seu potencial explanatório.
tes históricos de uma metafísica processual, de Heráclito até Whitehead, estavam
perfeitamente cientes de sua situação dialética peculiar como opositores da corrente Muito embora as ontologias ou a metafísica processuais tipicamente sejam pro-
teórica principal. Tentando cercear, imediatamente, o mito do dado e o mito da subs- jetadas como teorias de substituição, há algumas exceções para esta regra. Existem
tância, eles empregaram várias estratégias retóricas a fim de colocar suavemente alguns filósofos processuais que sustentam que a metafísica processual só pode assu-
seus leitores dentro de uma nova perspectiva teórica. Devido a estas peculiaridades mir a tarefa crítica, pois o dinamismo e as entidades dinâmicas não podem ser a maté-
ria sujeito de qualquer teoria. Por exemplo, baseado em observações fenomenológi-
cas, o filósofo francês Henri Bergson argumentou que o dinamismo é o conteúdo
7. Cl Seibt, 19961,. apenas de nossa experiência consciente imediata. Nossa concepção teórica da reali-
8. Ontologia de processo, metaftsica processual e filosofia processual são freqüentemente usadas cambili-,
dade empírica, como um arranjo espácio-temporal de itens conceitualmente discre-
vais entre si. Na minha opinião, é útil usar-se estes rótulos para designar projetos de revisão de diferentes es-
copo& Uma mitologia de processo pode estar encaixada numa metafisica processual a qual, por sua vez, tos, deforma o que experimentamos. Quando ouvimos uma canção, temos uma expe-
pode ser parte de tuna filosofiaprocessual, isto é, o esforço mais amplo para opor-se ao jogo de quatro para- riência dela intuitivamente dentro da dimensão não-estendida de "duração", per-
digmas tradicionais de pesquisa: omito do dado (epistemologia), o mito da substância (mitologia), o "mito
do fantasma na máquina" (G. Avie, filosofia da mente) e o "mito do museu" (Quine, semântica). Mas,
cebendo "um no outro, cada um permeando o outro e organizando a si próprios...
note-se que algum proponentes recentes do processo usam o termo "metafisica processual" para designara
visão teórica até mesmo mais abrangente do que o que eu chamo aqui de"filosofia processual", ou seja, posi-
cionamento orientado pelo processo dirigido a todas as disciplinas da filosofia, cf. e.g. Rescher, 1996. 9.Whitehead, 1929: 8.
• 298 2. Ontologia de processo Johanna Selbt 299
[como] uma variedade qualitativa sem qualquer semelhança.com número... constan- substância, encontramos utilizações mais ou menos sub-reptícias das entidades dinâ-
temente a ponto de se encerrar e constantemente alterada na sua totalidadepela adi- micas e das relações dinâmicas a fim de preencher lacunas explanatórias de sistemas
ção de alguma nota nova"I°. Contudo, quando tentamos imaginar sobre o que experi- metafisico-substanciais. Neste sentido, o pensamento processual aparece como um
mentamos, fazemos uma construção disso como uma seqüência de unidades distin- componente integral, não obstante oculto (ou mesmo "reprimido") da história da me-
tas, arranjadas num tempo "espacializado". A experiência conceitualizada em tem- tafísica da substância.
po, destacando unidades discretas, toma possível a referência simbólica, enquanto a
Por exemplo, a fim de explicar o movimento dos elementos, Aristóteles admitia
primeira, a experiência intuitiva de duração, não o faz. A experiência de duração re-
que algumas mudanças não são mudanças em substância, mas são atividades que se
flete, contudo, mais acuradamente, a estrutura da realidade: como um campo dinâmi-
autoperpetuam sem substrato material. De modo similar, Leibniz tentou prestar con-
co de qualidades entrelaçadas. Assim, para Bergson, a mania tradicional por substân-
tas da unidade de suas mônadas ou átomos metafísicos estipulando que as ditas mô-
cias ou unidades discretas é um resultado "trágico" inevitável da tentativa de se cons-
nadas eram dinamicamente unificadas — da mesma maneira que a alma humana é a
truir uma teoria da realidade — a construção de teoria requer referência simbólica,
fonte ativa do pensamento, assim uma mônada é a fonte ativa da atividade de se "des-
mas a referência simbólica, por seu lado, requer uma organização de experiência que
fiar" as qualidades da mônada. Para dar um terceiro exemplo, vários metafísicos têm
distorce o conteúdo da experiência e, assim, a referência simbólica erra, irremedia-
confiado a entidades de autogeração as posições mais vitais; deste modo, a fim de
velmente, o alvo. Podemos experimentar a verdadeira natureza processual da reali-
evitar uma infinita regressão de propósitos, Santo Tomás de Aquino estipula um "ato
dade, mas não podemos ter uma consciência "clara e distinta" dela.
puro" (ação agindo sobre si própria e para si própria), o que fecha o seu sistema "por
De acordo com a posição "antiteórica" de Bergson que é, até certo ponto, parti- cima", enquanto Descartes aponta, no argumento "cogito", para a existência autova-
lhada por William James e Samuel Alexander, os aspectos dinâmicos da realidade lidada de uma "coisa pensante", para fechar o seu sistema "pela base".
estão além do alcance da construção da teoria: a natureza processual da realidade é,
Esses desvios curiosos do paradigma ontológico-substancial não são "deslizes
teoricamente, "inefável". Contudo, a maioria dos filósofos processuais contempo- •
teóricos", mas importantes indicações da promessa explanatória de entidades dinâ-
râneos, de duas uma, ou rejeitam a "desconstrução" da referência simbólica de Berg-
micas e relações dinâmicas. De modo interessante, todos os esquemas ainda existen-
son ou insistem que, no processo de conceitualização, uma boa parte da natureza pro-
tes de ontologia de processo incorporam uma ou mais das tia idéias que acabam de
cessual da realidade, sobre a qual se poderia teorizar, é "deixada de lado".
ser mencionadas: (a) a idéia de que as "atividades" ou constâncias dinâmicas podem
desempenhar o papel teórico tradicionalmente desempenhado pelas substâncias; (b)
3. Ontologia de processo: uma história oculta a idéia de que o dinamismo pode ser tomado inteligível por meio de uma comparação
com a atividade mental humana; e (c) a idéia de que uma teoria não precisa ficar dis-
O pensamento processual tem a sua própria tradição às margens da história da
tante de uma auto-referência.
ontologia e da metafisiea. Para se delinear esta tradição, costuma-se citar urna lista de
filósofos bem conhecidos que, explicitamente, endossaram uma abordagem orienta-
da para o processo ou baseada no processo em ontologia ou metafísica e, explicita- 4. Três tipos de ontologias processuais
mente, rejeitaram uma abordagem baseada em substância; tais listas incluem, de
Os ápelos ocultos à ontologia de processo por metafísicos da substância diferem
modo comum, Heráclito, Platão, Hegel, Nietzsche, Charles Sanders Peirce, William
daqueles às ontologias processuais propriamente no que diz respeito a uma alegação
James, Samuel Alexander, Henri Bergson, John Dewey, Alfred North Whitehead,
crucial. Ontologias processuais (d) abertamente incluem o "dinamismo" como uma
George Herbert Mead, Martin Heidegger, Wilmon H. Sheldon, Roman Ingarden e
das possíveis atrações de tipos básicos de entidades (próximo a possíveis atrações
Charles Hartshome. Contudo, o pouco que se tem obtido até agora é o fato que a his-
tais como particularidade, concretude, individualidade, contabilidade, complexidade
tória da metafísica da substância, em si, fornece uma indicação até melhor da viru-
etc.). O compromisso público com dinamismo, como um conceito teórico analítico, é
lência e do potencial do pensamento processual. Por toda a tradição da metafisica da
a marca registrada de uma abordagem baseada em processo.
'Mais precisamente, uma ontologia T é uma ontologia de processo para o caso (i)
10.Bergson, 1998: 156. de a maioria dos tipos de entidades básicas postuladas serem caracterizadas como en-
11.Cl'. James, 1998 e Alexander, 1998. tidades "dinâmicas", isto é, o "dinamismo" é um predicado teórico de T, e (ii) o pre-
.5
• 300 2. Ontologia de processo Johanna Seibt 301 •
dicado "dinamismo" não é, redutivamente, definido em T, isto é, não é definido em pectivas. Deste modo, espero despertar suficientemente sua curiosidade para entrar
termos de tipos de entidades para as quais o predicado não tem sustentação em T. por sua própria conta no estágio de precisão e além.
A maioria das ontologias processuais introduz a noção de "dinamismo" como um
predicado não definido ou implicitamente definido. Contudo, a partir da maneira como 4.1 Processo como mudança ou diferença dinâmica (Hegel)
o dinamismo é ilustrado ou elucidado e a partir da maneira como ele funciona em ex-
planações processuais ontológicas, parece que o dinamismo é um conceito complexo. De acordo com Hegel, a realidade é a auto-realização de um sistema de estruturas
Ele combina três aspectos conceituais: diferença, produtividade e sustentação ou con- de transição. Hegel chama estas estruturas de Begriffe, mas elas não são conceitos ou
tinuidade. Estes três aspectos do dinamismo correlacionam-se a três intuições diferen- representações. Os Begriffe não são entidades mentais, tampouco entidades físicas
tes acerca do sentido básico do termo indicador de categoria "processo". Primeiro, a persa, mas ocorrem como entidades de toda a sorte: mental, flsica, social, simbólica,
categoria de processos pode ser introduzida usando-se nosso senso comum de entendi- cultural. Um Begrjé uma espécie de dinamismo comparável a uma parte de um pro-
mento de mudanças, deste modo trazendo para primeiro plano o aspecto da diferença grama de computador, como uma iteração, recursão, ciclo de retroalimentação, ou
dinâmica na noção de dinamismo; segundo, a categoria de processos pode ser introdu- uma página de rede interativa. Mas não há nada que se compare com um Begriff he-
zida em cima do modelo de forças de desenvolvimento, o qual traz para primeiro plano geliano na maneira péla qual um computadoise compara a um programa de compu-
o aspecto da produção dinâmica; e, finalmente, a categoria de processos pode ser mo- tador. Begriffe são "programas" que são implementados por outros programas e se-
delada de acordo com a nossa noção de senso comum de uma atividade, o que traz para qüenciados por eles — a "matéria" é um Begrt ff ou espécie de dinamismo tanto quanto
primeiro plano o aspecto de sustentação dinâmica ou continuidade. "forma", "estrutura" ou "função". A realidade consiste em programas (dinamismo
de uma certa espécie) implementando outros programas (dinamismo de certa espé-
Diferentes avenidas teóricas escancaram-se dependendo de se alguém considera
cie). Conforme Regei diz, "por trás da cortina [dos Begrlffe] não há — nada."
a mudança, força ou atividade como o sentido primário do dinamismo. No que se se-
gue, esboçarei três ontologias processuais em que cada uma desenvolve uma dessas Os Begriffe, na sua maioria, são espécies complexas de dinamismo envolvendo
intuições centrais sobre o sentido primário do dinamismo e o processo. Contudo, as três seguintes espécies de transações". O primeiro dinamismo básico é um movi-
como parecerá, a partir destas ilustrações, os três aspectos conceituais do dinamismo mento "oscilatório", como aquele descrito por um programa de computador com
não podem ser dissociados um do outro — eles vêm em um "pacote negociado" e im- duas sub-rotinas continuamente chamando uma a outra. O segundo dinamismo bási-
plicados em qualquer concepção não-redutiva de processo. co é uma automodificação, similar a programa de computador chamando urna. sub-
rotina (uma de suas partes) que modifica aquela mesmíssima chamada'. O terceiro
Ao oferecer estas ilustrações, meu modo de apresentação será, contudo, de certo dinamismo básico é uma auto-realização, comparável a um programa de computador
modo, idiossincrático. Seguirei o conselho de Whitehead segundo o qual novas teo- com uma sub-rotina que reafirma o programa de encaixe. Tudo, desde pedras a su-
rias são melhores encontradas ao longo de "três estágios de crescimento mental": pemovas, de enzimas a elefantes, de sereias à sinfonias, de guerra tribal à guerra glo-
O estagio do romance ê o estágio de primeira apreensão. A matéria bal, todo fenômeno natural, cultural, social, econômico, mental realiza um dinamis-
sujeito temo fulgor da novidade; ela tem dentro de si conexões inex- mo complexo específico constituído pelos três tipos mencionados de dinamismo.
ploradas com possibilidades semi-abertas por lampejos e semi-es-
condidas pela riqueza do material... O estágio da precisão.., é o está-
Os Begrje são transições. O caso paradigmático de Hegel para tal transição é
gio da gramática.., forçando os estudantes a aceitar um dado modo uma negação que destaca que a noção de processo em debate aqui é largamente ex-
de se analisar os fatos... O estágio da generalização ...é um retomo ao plorada na diferença, na mudança. O dinamismo de um Begriff não é fluxo, mas
romantismo com a acrescida vantagem de idéias classificadas e téc- "passagem controlada", como num programa. Os Begriffe são transições, mas eles
nica relevante12.
Meu alvo aqui é apenas o estágio do romance. Ao invés de oferecer as instruções 13.0 próprio Hegel tem maneiras diferentes de denotar estes tipos básicos de dinamismo (e.g. "a fixação da
em si, tentarei simplesmente dar ao leitor uma "sensação" das idéias básicas e pers- antítese", "a síntese" etc.) e se poderia até questionar se a divisão entre tipos constituintes básicos de dina-
mismo e tipos complexos de dinamismo poderia ser mantida, uma vez que, na ontologia de Ilegal, os consti-
tuintes não permanecem os mesmos em diferentes encaixes contextuais.
14.Note-se, todavia, que a auto-referência num programa de computador é realizada como referência para
12. Whitelicad, 1929: 17ss. uma cópia, enquanto Hegel tentava pensar auto-referência de modo estrito.
• 302 2. Ontologia de processo lohanna seibt 303 •
são também relacionados entre si por transições, como uma rede de programas em narnicamente estruturada — isto é, um lugar que confirma a estrutura interna delas e
interação que parcialmente se copiam dentro um do outro. A transição entre Begnffe corresponde a esta estrutura.
é chamada por Hegel de "dialética". Este não deve ser pensado como um procedi- À alegação de Hegel de que a evolução de estruturas dinâmicas tem um ponto
mento mecanicamente determinado, mas ao invés disso como uma interação contro- final pode ser mais facilmente entendida se seguirmos a própria linha de exposição
lada por órbitas paramétricas e elos por defindr, semelhante à maneira pela qual uma de Hegel e apresentá-la a partir de um ângulo antropológico. O ponto final acima
página de rede se desdobra por meio de botões e elos para outras páginas de rede. mencionado do processo dialético da complexificação dinâmica é alcançado quan-
Como interações entre Begriore (dinamismo, programas) realizam novos Begriffe do tudo "cai dentro de sua verdade", isto é, quando tudo desenvolveu completa-
(dinamismo, programas), a rede de Begrzffe está continuamente evoluindo. É isto mente seus potenciais estruturais. Guiado pela tradicional idéia da verdade como
que, pela perspectiva de Hegel, comanda a história do mundo —um processo comple- assimilado, Hegel pensa a verdade em termos de congruência estrutural, ou como
xo de rotinas dinâmicas em interação criando, uma para outra, diferentes e cada vez poderíamos dizer a partir do presente ponto privilegiado, em termos de auto-simi-
mais complexos encaixes contextuais dinâmicos. laridade. Estruturas auto-similares (tais como triângulos de triângulos de triângu-
Estamos familiarizados com este processo de complexificação dinâmica, Hegel los ou um ciclo de retroalimentação de ciclos de retroalimentação etc.) são estrutu-
alega, uma vez que esta é a maneira pela qual pensamos e podemos nos vigiar pen- ras cujas partes repetem a estrutura do todo. Para Hegel, a verdade ou a completa
sando. Os relacionamentos epistemológicos e semânticos entre nossos conceitos du- realização é alcançado quando não há mais quaisquer diferenças estruturais entre
plicam as relações ontológicas entre as estruturas dinâmicas que Hegel chama de Be- um dinamismo e seu contexto de encaixe.
grje. Para descobrir estas relações precisamos seguir o "movimento de reflexão" A intuição subjacente para esta curiosa concepção da verdade vem à. tona quando
em nossa própria mente, nada mais que isso. Pense, por exemplo, no conceito de "al- a aplicamos a nós próprios. Quando você realmente é quem você é? Quando você
g urna coisa". Você não pode pensar neste conceito claramente sem ser conduzido ao existe como a pessoa que você é, "autenticamente"? Você não pode determinar cla-
conceito de "um outro" pela reflexão. Agora, devido ao contraste que se descobriu, o ramente quem você é sem refletir sobre quem você é para os outros -r.você não ape-
primeiro conceito aparece "numa nova luz" — o opor-se a "um outro" tomou-se parte nas é alguma coisa por seu próprio direito, ou "em si próprio", mas você é também
do conteúdo semântico de "alguma coisa". Mas, é claro, o que "um outro" representa algo "para os outros". Mas —uma vez que você tem concepções dos outros do mesmo
também mudou devido ao confronto com uma "alguma coisa" que é o oposto dele; modo que eles têm concepções sobre você — isto implica irhediatamente que você é
esta mudança no significado de "um outro" influenciará, por seu lado, o significado uma espécie de ser que constrói um modelo dos outros incluindo de você próprio Mi,
de "alguma coisa" e assim por diante. Portanto, a única maneira pela qual podemos em termos hegelianos, que você está "para si próprio". Deste modo; ao determinar
pensar as estruturas às quais os conceitos de "alguma coisa" e "uma outra coisa" se quem você é, você deve levar também em consideração que a sua visão de si próprio
referem é, pois, pensando-as como transições, como dinamismo. e de sua relação com outros poderia não corresponder;'-acuradamente, a quem você
Chamemos "Cl" a transição de "alguma coisa" para "uma outra coisa"; o movi- realmente é por você próprio e com os outros — isto é, que o que você é "para-si-pró-
mento de volta, chamado de "C2", incorpora Cl como o seu passado dinâmico, isto prio" poderia não corresponder, acuradamente, ao que você é "em-si-próprio". Você
é, ele é definido como o retomo de Cl. O dinamismo de transição que consiste no alcançai seu "modo autêntico de ser" se você for, em si-próprio, o que você é para-
movimento Cl e o retomo C2 é, ele próprio, um novo dinamismo C3, corresponden- os-outrés e para-si-próprio. Quando este é o caso para tudo o mais, quando as rela-
do ao nosso conceito de "ser-alguma-coisa-outra". Mas este conceito só pode tam- ções dinâmicas intemas de toda entidade repetem as relações dinâmicas do seu con-
bém ser pensado em contraste com um outro ("ser-em-si"), o qual gera uma nova es- texto, a história do mundo pára.
trutura dinâmica envolvendo todos os três anteriores e assim por diante. Prosseguin- Esta "condição de fechamento", além do fato de que as interpretações de Hegel
do ao longo destas linhas, Hegel define centenas de tipos de dinamismo que são, ele de conceitos parecem, freqüentemente, forçadas e não convincentes, tomaram seu
sugere, o conteúdo semântico de nossos conceitos mais gerais. esquema sem atrativos para muitos. Contudo, isto não afeta a intuição geral de Hegel
No curso da história do mundo, os componentes dinâmicos da realidade, Hegel de que o universo é a interação de programas mutuamente modifieadores ou dina-
argumenta, tomam-se mais e mais "o que eles realmente são". O encaixe dinâmico mismo de transição e que "ser" e "ocorrer" têm muitos sentidos diferentes (tais como
fornece aos Begnffe o local apropriado num sistema abrangente de uma realidade di- "ser-para-outros" além de "estar posicionado no espaço" (ou espaço-tempo) confor-
me determinado para as substâncias tradicionais e partículas materiais newtonianas.
BIBLppoll'Sá
304 2. ontologia de processo Johanna Seibt 305 •
4.2 Processo como produção: A.N. Whitehead mais ainda que você não é um ser humano, nem mesmo um ente senciente, mas a en-
tidade mais básica que tem sustentação na ciência atual, isto é, um quark. A sua con-
A "filosofia do organismo" de A.N. Whitehead, conforme amplamente descrita tabilização de informações, claro, não é mais um ato consciente, não é a compreen-
em seu Processo e realidade, é explicitamente designada como uma ontologia para a são, mas "preensão", isto é, o processamento de informação no sentido mais genéri-
ciência natural contemporânea's. Mas ela é muito mais do que isso — de fato, ela é, co. Você é, portanto, uma "entidade real", trabalhando num processo de "concres-
podemos dizer, o mais completo e mais bem-sucedido, em termos explanatórios, es- cência" dos resultados de todos os processos anteriores de concrescência (de certo
quema ontológico já desenvolvido. A ontologia de processo de Whitehead apresenta modo, você é uma mônada leibniziana com janelas apenas para o passado). Tudo que
a aventura especulativa de se criar um arcabouço de categorias onde os elétrons po- há é uma entidade real como você: um processo de entrar em existência culminando
dem ser tão facilmente acomodados quanto as emoções, onde a liberdade humana é em um instante de completo ser. Tal processo, com um definitivo resultado, nós o
radicalizada sem se depor Deus e que contem a base ontológica de uma ética não ba- chamamos normalmente de um evento.
seada em interesse próprio. A fim de entrar no sistema de Whitehead, junte-se a mim
no seguinte experimento de pensamento. Você é, assim, um evento no grupo de eventos contemporâneos. Os eventos pas-
sados, antes de você, não existem (eles existem meramente "objetificados" dentro de
Imagine que você tem a tarefa de compilar artigos de jomais sobre um certo evento você), nem existem os eventos antes de você. Imagine agora que desqualificamos a
político em sua universidade, digamos, sobre urna ação afirmativa. Você lê todos os expressão temporal nesta descrição. Você é um evento num grupo de eventos que ob-
jornais locais sobre o caso, coleta e analisa a informação enquanto escreve o seu pró- jetificarn todos o mesmo grupo de eventos (uma maneira alternativa de dizer que no
prio artigo. Imagine agora que você desaparece completamente depois de entregar o seu grupo de eventos todos têm o mesmo passado causal); nenhum evento pertence a
seu artigo. Seu artigo servirá como input para a próxima pessoa a compilar artigos de este grupo que objetifica qualquer evento desse grupo (uma maneira alternativa de
jornais sobre o caso. Você não existirá mais enquanto este outro autor estiver escreven- dizer que nenhum evento pertence a este grupo que está em seu futuro causal): Você
do, mas você existirá para ele "objetificado" pelo seu artigo que carrega sua avaliação é um evento num grupo de eventos cujo vir-a-ser (concrescência) ocorre fora do tem-
específica da informação disponível para você, o seu "toque pessoal", uma reflexão da po e espaço — o seu tornar-se é complexo, ele tem uma "divisão genética" em fases,
"meta subjetiva" que você perseguiu ao escrever. Somado a isso, imagine agira que mas estas não correspondem a estágios temporais ou partes de um intervalo tempo-
você não existia antes de escrever o artigo — portanto, que você não é qualquer outra ral. Quando o seq tomar-se é completado, quando você trabalhou qualquer que seja a
coisa exceto o autor daquele artigo e, de fato, você não é nada mais do que aquele pro- informação potencialmente relevante disponível a você, quando você alcançou a fase
cesso individual de escrever: você não é nada mais do que um processo que você indi- de "satisfação" e assim você é, você acrescenta, com a sua condição de ser, urna re-
vidualiza por sua perspectiva e a sua meta. Se isto soa paradoxal (como posso eu ser gião de espaço-tempo. Em assim fazendo você "perece". Juntamente com todos os
nada mais do que um processo e ainda assim um fator que pilota e determina este pro- outros eventos do seu grupo de eventos de co-tomar-se você se constitui num presen-
cesso?), lembre-se que não se pode ser apenas um indivíduo, pode-se, também, tor- te, um amo de tempo e pedaço de lugar que podem ser divididos matematicamente
nar-se um indivíduo — "[o seu] ser é constituído por (o seu) tornar-se. Esta é a regra do ("divisão coordenada") num contínuo de pontos. O espaço-tempo acontece, assim,
processo. Isto é, a informação que entra determina qual perspectiva pessoal ou "meta em unidades discretas, constituídas para sempre de novas ondas de eventos que se
subjetiva" poderia ser realizada numa compilação e vice-versa, a "meta subjetiva" de- tomaram (tempo perfeito) e pereceram no seu momento de ser — "não há qualquer
termina que rota a compilação de artigos prévios vai tomar. Rigorosamente falando, continuidade de tornar-se, mas um tomar-se de continuidade". (A estrutura do espa-
urna vez que você está se tomando um indivíduo, você existe apenas por um instante de ço-tempanonstituído é tal que ele pode ser coordenado de várias maneiras, com rela-
"término" ou "satisfação": quando o seu processo de escrita está terminado, quando tivas relações de simultaneidade definidas sobre eventos objetificados.)
você realizou seus potenciais e a sua meta subjetiva foi alcançado.
Finalmente, olhemos para os ingredientes do processo que é o tomar-se a "con-
Imagine agora que os artigos que você compilou são todos os artigos já escritos crescência" do seu ser. Como jornalista você suprime alguma informação, destaca
antes de você, isto é, objetificação de todos os escritores anteriores a você. Imagine informação e trabalha nova informação, faz comparações, contrasta, classifica, qua-
lifica. Ao fazer isso, você cria urna estrutura na matéria da notícia e (de propósito ou
não) exemplifica um certo estilo ou cultura. Você está realizando alguns dos "poten-
15. Whitehead era um matemático e filósofo que foi o co-autor, com B. Russel, de a Principia mathematica e ciais'? (padrões e valores) do material da notícia, potenciais que atendem sola meta
desenvolveu uma teoria matemática muito própria de relatividade especial. Sua filosofia é melhor entendida subjetiva e expressam sua "forma subjetiva", isto é, a espécie de pessoa que você é.
como uma tentativa de trabalhar as implicações metaftsicas dc resultados de ciência basilar ao seu tempo, em
particular a teoria da relatividade assim como os primórdios da física quántica,
Whitehead chama isso de "potenciais puros", também de "objetos eternos", uma vez
• 306 2. Ontologia de processo Johanna Seibt 307 •
que eles são acessíveis não apenas para você mas para qualquer entidade real. De
4.3 Processo como atividade: a teoria de "processos gerais"
fato, quando você e seus amigos jornalistas escrevem sobre temas semelhantes e de
uma maneira semelhante, os mesmos potenciais são realizados dentro e através de cer- Há várias rotas alternativas para a ontologia de processo na atual discussão. Por
tas seções de ondas de eventos. Conjuntos de eventos, que realizam os mesmos poten- exemplo, na nova linha da pesquisa "biossemiótica", biólogos e filósofos da biologia
ciais estruturais ou padrões, formam "sociedades". Os potenciais estruturais comuns empregam idéias da metafisica de Peirce para uma interpretação de processos bioló-
repetidos (ordens em série de) de sociedades de eventos são o que os seres humanos gicos e evolução biológicals. Na robótica e na pesquisa da inteligência artificial, re-
percebem como objetos duradouros tais como moléculas, mesas ou planetas. A per- sultados experimentais parecem sugerir que o aprendizado baseado na motivação e
sistência através do tempo e o acaso, o tipo de existência no tempo que atribuímos a na formação de conceitos são mais bem modelados por meio de arquiteturas ontoló-
nós próprios, assim como as coisas duradouras ao nosso redor, são assim geradas gicas processuais19. De modo similar, em psicologia teórica, filosofia da mente e
pela nossa percepção da "agenda" estrutural comum das ondas de eventos.
ciência cognitiva há um número crescente de autores juntando-se â posição "interati-
A noção de Whitehead de uma entidade real integra todos os três tipos de idéias vista". O interativismo fornece um registro naturalista de "fenômenos emergentes",
mencionadas no começo da seção 4. (a) Entidades reais são "atividades sem sujeito". em particular, para substituições da ontologia cartesiana tradicional de entidades
(b) A relação dinâmica entre entidades reais ("preensão") é modelada de acordo com mentais (representações, cogmições, emoções) em termos de processos de intera-
a atividade da percepção humana (subcognitiva). (c) As entidades reais determinam ção". Trabalhos recentes-em ontologia de processo têm também brotado de projetos
para si próprias quem elas estão para se tomar; embora os vetores de informação de de pesquisa em filosofia da ciência, assim como de ciência da computação, em parti-
eventos antecedentes numa maneira causal influenciem a natureza individual de uma cular de manutenção de base de dados e representação do conhecimento para vários
entidade real, eles não a determinam. É esta ênfase sobre a irredutível espontanei- domínios da ciência médican . Finalmente, há pesquisa recente sobre processos mo-
dade de entidades reais que poderia compor uma das mais atrativas feições do esque- tivada pelas metas explanatórias da própria ontologia tradicional. Como tenho argu-
ma de Whitehead. Como apenas o presente existe (com o passado "armazenado" em mentado, quando descartamos premissas centrais da tradição da substância-ontoló-
vetores de informações e o futuro sendo não-existente), as decisões sobre entidades gica podemos dissolver os problemas tradicionais da individualização, universaliza-
reais são, no sentido mais radical, decisões livres. No mundo whiteheadiano tudo se ção e persistência, assim como desenvolver registros mais promissores de causa,
deve engajar em "autoprojeção" e carrega a "responsabilidade" para a realização de emergência, potencialidade, coisificação e personalização. Especialmente signift-
aspectos "valiosos" da realidade. cante nesta conexão é a rejeição de duas premissas tradicionais. A primeira premissa
A ontologia de processo de Whitehead, onde os processos são produções estrutu- é que qualquer indivíduo concreto é urna entidade particular e (b) completamente de-
radas com resultado definitivo ou ponto culminante poderia ser melhor chamada de terminada, isto é, uma entidade que (a) necessariamente ocupa, a qualquer tempo
uma ontologia de eventos. Whitehead foi o único filósofo processual até agora cujo isolado, uma região espacial única. A segunda premissa é que qualquer indivíduo
trabalho gerou um seguimento maior de whiteheadianos que discutem seu arcabouço concreto necessariamente tens — em si, sem que possamos ser capazes de declará-la —
com completa atenção sobre os detalhes técnicos16. Há, contudo, um número cres- uma infinidade de atributos definitivamente específicos. Essas duas premissas fazem
cente de ontólogos analíticos, filósofos da ciência e até cientistas que consideram bastante sentido desde que se assuma que os blocos ontológicos de construção são
mais o espirito do que a letra e demonstram a fertilidade teórica geral da perspectiva substâncias ou objetos, entidades semelhantes a coisas e pessoas as quais, obviamen-
de Whiteheadn. te, não °Correm multiplamente no espaço. Contudo, uma vez que assumimos que o
mundo consiste em atividades, podemos abrir mão das constrições da particularidade
e da determinação e ganhar um grupo de novas estratégias explanatórias.
16.A bolsa Whitehead tem seu própriée jornal, Process Studies, com presença organizada em várias socieda-
des internacionais de pesquisa.
18.Para indicações relevantes cf. Emmeche, 2003.
17.Entre as mais notáveis (e notadamente diversas) aplicações recentes estão ouso das idéias de Whitehead
19.Cf. Manzotti, 2003.
para uma interpretaçâo ontológica da linguagem e do discurso (Forescue, 2000 e 2003), do trabalho (Parkan,
2003a e 20031)) e da teoria de campo quântica axiomática (Hittich, 2003). Que as teorias mais recentes da 20. Cf. em particular o trabalho de Mark Biekhard, conforme pesquisado em Bickhard, 2003.
gravidade quântica operem com estrutura discreta para o espaço-tempo é, certamente, um desenvolvimento 21. Cf. Needham, 2003 e Beller& Marre, 2003.
excitante a partir de um ponto de vista whitehcadiano. 22. Cf. cm particular meus 19901%1995, 1996a, 1996c, 1999, 2000,20046,2004c. Cf. também Rescher, 1996.
• 308 2. Ontologia de processo lobanna Seibt 309 •
Para que se veja esta conexão, considere-se a famosa afirmação de Heráclito de dizer verdadeiramente que é água; quase toda parte (espacial ou temporal) de uma re-
que "você não pode entrar em um mesmo rio duas vezes". Há dois problemas aqui. O gião onde está nevando é, novamente, uma região onde está nevando.
primeiro problema é o seu corpo. Antes de você entrar no rio, seu corpo está seco,
Tal recorrência em espaço e tempo pode ser convenientemente declarada em ter-
quando você sai, seu corpo está molhado. Em que sentido ficou o seu corpo o mesmo
mos de "automeridade" ou "ser-parte-de-si-mesmo"24.
durante esta mudança? O segundo problema é o rio. Conforme Heráclito aponta, "so-
bre aqueles que entram nos mesmos rios, diferentes e diferentes águas correm" e, por- (AUT) Uma entidade E ê espacialmente ou temporalmente automera
se ela retém, pelo menos, uma parte espacial e uma parte temporal r
tanto, rigorosamente falando, o rio não pode permanecer o mesmo ao longo do tempo. da região ocupada por E, se o tamanho der é maior do que G, então E
Comecemos com o segundo problema, concentrando-nos nos rios. Heráclito está existe em r25.
certo desde que prossigamos a partir de uma descrição de estado do rio, isto é, çonsi-
deramos o rio como sendo uma série Sn de "instantes fotográficos" estáticos do rio, Fluir é espacialmente e temporalmente uma entidade autômera. Se existe fluir
onde cada instantâneo do rio consiste em um grande número de moléculas d'água em numa região espácio-temporal RI, então R tem muitas partes espaciais e temporais
Ti Tj que são regiões onde há fluir26. Dados os critérios de identidade puramente fun-
posições espaciais Pi. Como o rio flui, aquele "instante do rio" Sk no qual você entra
na segunda-feira difere do instantâneo SI no qual você entra na terça. Nossa conversa cionais para as atividades, o que ocorre em Ti e o que ocorre em Tj é a mesma ativi-
de todo dia sobre a mesmice dos rios é, portanto, rigorosamente falando, errônea e, dade ou "material dinâmico" chamado fluir. Há, pois, duas (diferentes) regiões espá-
cio-temporais contendo o mesmo indivíduo dinâmico, nomeadamente, fluir.
no máximo, um atalho conveniente para "na segunda-feira e na terça-feira eu entrei
em dois diferentes estágios do rio que são ambos parte da mesma seqüência de está- A maneira para guardar a persistência e atender o desafio de Heráclito é, pois, in-
gios do rio que chamamos de "o rio". sistir que ao se falar sobre "o rio" estamos falando sobre a atividadefluir. Quando
Por outro lado, se tomarmos o rio como sendo um curso, Heráclito está errado e você alega ter entrado no mesmo rio ontem e hoje, você está literalmente correto --
nossa conversa diária sobre a mesmice dos rios é correta. Fluir é uma atividade. Usa- • não é apenas um rio semelhante mas o rio idêntico, uma vez que, para as atividades, a
mos o termo "atividade" de maneira bastante ampla para denotar ocorrências que são identidade é uma matéria (de exata e funcional) similaridade.
tanto (a) atos realizados por um agente (ler, correr, rolar) ou aflições de um meio (flu- A solução para o segundo problema sobre a mesmice transtemporal dos rios
ir, borbulhar, soprar); como (b) ocorrências que nem são atos de um agente nem afli- pode ser transferida para o primeiro problema sobre a mesmice transtemporal do cor-
ções de um meio e, portanto, são denotadas por sentenças com sujeitos "manequins" po da pessoa. Onde você está há duas atividades biológicas complexas, "corporifica-
(cf. "está chovendo", "o fogo está ardendo", a radiação eletromagnética está viajan- ção" e "sua-corporificação". Ambas são puramente individualizadas ftincionalmen-
do através do espaço vazio")23. As atividades logicamente portam-se muito.serne- te, do mesmo modo comofluir, borbulhar, arder etc., e assim se repetem no tempo,
lhantemente a materiais — elas assumem "quantificadores de massa" ("muito", "pou- isto é, são literalmente as mesmas ou idênticas ao longo do tempo pelo tempo em que
co"), como tais elas são "livres" e precisam ser "empacotadas" em quantias contáveis continuam. A "sua-corporificação" é diferente da "minha-corporificação" exata-
("uma hora de corrida"). Mais importante, atividades e materiais são entidades con-
cretas cujas condições de identidade, no entanto, têm a aparência das condições de
identidade de "universais" tradicionais. Enquanto a localização é importante para a 24. As afiniÜades entre o papel lógico das expressões para atividades e materiais são conhecidas dos filóso-
individualização das substâncias (este gato aqui vs. aquele gato lá), as atividades e fos desde Aristóteles, mas têm recebido discussão detalhada apenas dentro do debate lingülstico do século
materiais são individualizados ou diferenciados em aspectos puramente funcionais XX sobre a "Aktionsarten" e aspectos verbais. Os autores, de modo comum, contudo, não falam da autome-
ou qualitativos (água vs. leite, fluir vs. borbulhar etc.). Isto é refletido no fato de ma- ridade, mas de homomeridade ou semelhança-particidade, que é a alegação mais fraca de que materiais e ati-
vidades contem parte da mesma espécie como o todo. Note que o predicado "E é automero" não diz que E
teriais e atividades poderem acontecer novamente no espaço e no tempo (ou ambos). tem a si como parte.
Quase toda parte espacial de -urna região ocupada pela água é algo da qual podemos 25.0 é o "tamanho granular" da automeridada de E e varia para entidades de diferentes espécies. Para a água
ele pode saro tamanho espacial de várias moléculas, para a fumaça ele pode ser o tamanho espacial de um ser
humano adulto e, conforme foi notoriamente especificado por um presidente americano, o tamanho tempo-
ral de uma típica inalação.
26. Note que não devemos falar de um fluir aqui — pois cairíamos de volta no hábito tradicional de transfor-
23. CO. Broad pode ter sido o primeiro a destacar as peculiaridades de tais atividades, rotuladas de "sem su- mar materiais e atividades em somas de porções ou um material ou atividade. A porção que flui cru R es por-
jeito" ou "processos absolutos"; Wilfred Sellars denominou-as de "processos puros". ção de fluir em a são diferentes: porções são detalhes específicos.
• 310 2. Ontologia de processo lohanna Seibt 311 •
mente como uma maneira de fluir difere da outra, tal como descer a corrente vs. flu- atividade, embora lenta", isto não deve ser "considerado tese" de uma ontologia de
tuar a esmo. processo. As teorias ontológicas não devem mudar nossas maneiras comuns de falar,
Mas não terminamos ainda. Quando dizemos que o seu corpo mudou, isto é, que ou manchar as diferenças entre conceitos gerais tais como coisa, atividade, desenvolvi-
inicialmente estava seco e agora molhado, implicamos (i) que o seu corpo permaneceu mento, propriedade etc. Contudo, ao invés de alegar que as coisas são atividades,
o mesmo transtemporalmente, e (ii) que ele é agora diferente do que era então. Até pode-se definir um predicado técnico inspirado em nosso conceito de atividade, basea-
agora, esclarecemos a identidade transtemporal dos rios e corpos, mas o que dizer so- do em nosso senso comum e, depois, alegar que nossa conversa sobre coisas e ativida-
bre a diferença tempo afora? O Amazonas é uma atividade genérica, a corrente d'água des é sobre entidades dessa Categoria. Este é o procedimento da Teoria Geral de Pro-
chamada "Amazonas". Esta corrente ocorre em diferentes tempos de diferentes modos cessos onde sentenças sobre coisas, atividades, materiais, eventos, estados, proprieda-
específicos: como uma corrente rápida ou uma corrente lenta ou uma "corrente-en- des, relações, capacidades e pessoas são analisadas em termos de subtipos de uma nova
quanto-carrega-lama-e-folhas". De maneira similar, a atividade de "ser-o-seu-corpo" categoria ontológica de indivíduos dinâmicos chamados processos gerais28.
em diferentes ocasiões ocorre como "ser-o-seu-corpo-faminto" ou "ser-o-seu-cor- Processos gerais são indivíduos que são (i) concretos, (ii) dinâmicos, (iil) não-
po-com-febre" ou "ser-o-seu-corpo-enquanto-carrega-gotas-d'água" etc. particulares, isto é, eles são mais ou menos recorrentes em espaço ou tempo ou am-
Denomino esta análise de persistência de visão recorrente da persistência — é bos, c (iv) não-determinados, isto é, eles são mais ou menos genéricos. De acordo
uma opção teórica nova no debate contemporâneo sobre a persistência. Os partici- com a teoria dos processos gerais, não há quaisquer entidades em particular (essencial-
pantes deste debate estão divididos em dois campos, promovendo tanto a assim cha- mente de modo único localizadas) ou completamente determinadas (essencialmente
mada "visão da resistência" como a "visão da perduração" da persistência. De. modo em última análise específicas) no mundo. Poderia muito bem ser que alguns proces-
bem grosseiro, a visão da resistência diz que quando as coisas mudam há uma coisa sos (tais como você) acontecem ocorrer em apenas uma região espacial a qualquer
(tradicionalmente chamada de "substrato") que continua idêntica através do tempo. tempo. De modo similar, poderia haver processos superespecíficos dentro do arranjo
Contudo, a visão da resistência tem dificuldades de explicar a diferença transtempo- .de indivíduos dinâmicos mais ou menos genéricos. Mas o quadro básico da Teoria
ral — se aquilo que se diz que muda é o que permanece idêntico, em que sentido é a di- Geral de Processos é um mundo de dinâmicas entrelaçadas que são mais ou menos
ferença depois da mudança? A que se pode imputar a diferença transtemporal? Por recorrentes no espaço, mais ou menos recorrentes (uniformes) no tempo, e mais ou
outro lado, a visão da perduração descreve todas as entidades persistentes em quatro menos genéricas. De modo interessante, parece que tal esquema pode ser usado para
dimensões como estágios de seqüência, conforme rascunhado acima. Mas os perdu- a interpretação ontológica tanto do senso comum como da ciência — entidades flsi-
rantistas têm dificuldades em explicar a identidade transtemporal — se se considera as co-quânticas parecem menos diferentes das entidades da vida diária sé começarmos
coisas mutáveis como seqüências de coisas-estágio diferentes, tudo que se obtém é a com a análise de sentenças como "está nevando" ou "está queimando", ao invés de
unidade transtemporal ou a identidade transtemporal, não identidade no sentido es- sentenças sobre navios e esferas.
trito. Contudo, a visão da resistência e a visão da perduração foram uma alternativa
teórica exaustiva apenas até o ponto onde se adere à idéia de que todas as entidades
persistentes são indivíduos particulares determinados tais como substâncias ou se- 5. Processo e práxis
qüências de estágios. A terceira opção da visão da recorrência aparece tão logo se A ontologia tem mesmo uma "arena prática", uma vez que toda teoria ontológica
presta atenção ao fato de que materiais e atividades são indivíduos concretos exata- tem implicações de até onde entendemos a nós mesmos em relação ao mundo e aos
mente como coisas e, ainda assim, perseveram por meio de critérios diferentes de in- outros29. A ontolo :ia da substância su ere .ue som. 'arte de undo de unida-
dividualização".
des independentes nao-envolvent rela 6es são ex s ao que elas sao — um
Na visão da recorrência, nossa conversa sobre a persistência das coisas (seu cor- mundo no qual agentes h e e ' e eservam sua autonomia Or Melo
II Inel os de e
po) é para ser analisada em analogia à conversa sobre a persistência de atividades "Caciainterneia,
(fluir). Contudo, as coisas não são atividades. Muito embora, por razões retóricas,
pudesse ser tentador se usar jargões tais como "tudo flui — mesmo uma pedra é unia
28.Cf Seibt, 2003 e 2004b. Em publicações anteriores chamei a categoria de "mascas dinâmicas" e "proces-
sos livres".
27. Para discussões mais detalhadas da visão da recorrência cf. Seibt, 1996c e 2004c. 29.Cf. Browning, 1990.
• 312 2. Ontologia de processo lohanna Selbt 313 •
Toda a moderna filosofia articula-se ao redor da dificuldade de se des- Aristotle on substance: the paradox of unity. Princeton: Princeton University
crever o mundo em termos de sujeito e predicado, substância e quali- Press, 1989.
dade, particular e universal. (3 resultado sempre produz violência con-
tra aquela experiência imediata que expressamos em nossas ações, HATTICH, F. Whitehead's process philosophy and guantum field theory. Paderborn,
nossas esperanças, nossas simpatias, nossos propósitos... Descobri- 2003 [Dissertação de mestrado].
ruo-nos num mundo sibilante, em meio a uma democracia de criaturas HELLER, B. &KERRE, H. Formal ontology and principies of GOL. Onto-Med Report,
companheiras; enquanto, sob algum ou outro tipo de disfarce, a filoso- 1. Leipzig: Universitãt Leipzig/Forschungsgruppe Ontologies in Medicine, 2003.
fia ortodoxa pode apenas nos apresentar a substâncias solitárias...30
Em contraste, as ontologias processuais, tipicamente, sugerem sue pertencemos MANZOTTI, R. A process based architecture for an artificial conscious being. Axiomat-
a um mundo de entidades em evolnelo_e_interação — entidades MIC são de modo in- hes, 14, 2003 [Riccardo ManzOtti is associated with: Lira Lab/Dist/University of Ge-
trínseco re_lacionadas, mas cujo relacionamento não determina inteiramente o que noa].
somos. Os ontólogos processuais convidam-nos para nos concebermos a nós mes- NEEDHAM, P. Continuants and Processes in Macroscopic Chemistry. Asiomathes, 14,
mos corno uma espécie de dinamismo complexo de interação (emergente, não-line- 2003.
ar) semelhante_a_labaredas e vórtices, onde os processos que entram nesta interativi-
PARKAN, B. A process-ontological account of work. Axiomathes, 14,2003, p. 219-235.
dade não podem ser usados, de modo previsível, para determinar o__eurso da intera-
ção. Em outras palavras, mesmo que os ontólogos processuais normalmente enfati- SEIBT, 1 . In: WEBER, M. (ed.). After Whitehead. Frankfurt: Ontos-Verlag, 2004, p.
zem que nós somos, de modo intrínseco, relacionados com o que nos cerca e com os 113-135.
outros, isto é feito nas formas de_u_ma_dinâmica interativa, de modo que quem nós so- Metaphilosophy, n. 35, 2004, p. 775-783.
mos será sempre uma matéria oue_gós mesmos moldamos para que nós sejamos.
Quanta, trepes and processes: on ontologies for QFT beyond the myth of subs-
Para que uma ontologia de processo revele-se convincente depende não apenas tance. In: KUHLMANN, M. (ed.). Ontological aspects of guantum field theory. Singa-
de sua consistência ou poder de explanáeão. Em grande parte dependerá em qual pore: World Scientific, 2002, p. 53-93.
mundo nós queremos viver e como queremos nos ver a nós próprios.
. Philosophicat &adies, vol. 101, 2000, p.253-289.
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