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Antonio Andrade | Antonio Carlos Santos | Ariadne Costa Celia Pedrosa | Diana Klinger | Florencia Garramufio Jorge Wolff | Luciana di Leone | Mario Camara Paloma Vidal | Rafael Gutiérrez | Raul Antelo Reinaldo Marques | Wander Melo Miranda INDICIONARIO DO CONTEMPORANEO Celia Pedrosa | Diana Klinger | Jorge Wolff | Mario Camara Organizadores ( evrroraufmg ) - © 2018, Os organizadores © 2018, Editora UFMG Este livro ou parte dele nao pode ser reproduzido por qualquer meio sem autorizagao escrita do Editor. 139 Indicionario do contemporaneo / Antonio Andrade ... [et al.) ; Celia Pedrosa ... [et al.] organizadores, — Editora UFMG, 2018. Belo Horizonte: 263 p. : (Babel) ISBN: 978-85-423-0255-4 1. Literatura. 2. Arte, 3, Teo; Antonio. II. Pedrosa, Celia. TIL, Elaborada pela ASSISTENCIA EDITORIAL Direrros AvTorats Coorpenacio pe textos PREPARAGAO DE TEXTOS REVISAO DE PROVAS Proyero GrArico FORMATAGAO E CAPA PRoDUGAO GRAFICA ria critica. 4. En. saios. I, . Série, Andrade, CDp: 804 CDUu: g2 iblioteca Professor Anténio Lui Pai FAFICH/UEM IG Eliane Sousa Anne Caroline Silva Beatriz Trindade Michel Gannam Ana Teresa Ca, Gabriel Prado Cassio Ribei de Maree bein 8 Poo origin Alessandra Magalhieg Warren Marilac ™MPOS, Dara Domingues ¢ 0 CONTEMPORANEO Desde meados do século XIX, caminhar pelas ruas vem funcionando como uma das principais motiva¢6es para a experiéncia de contemporaneidade da arte - captada emble- maticamente por Baudelaire na cena do poeta que deixa aair e enlamear sua aura em meio a multidao e ao transito turbulentos da cidade moderna. Apropriada como tema e procedimento, essa experiéncia implicou o enriquecimento formal e a ampliac¢ao do alcance das diferentes lingua- Bens artisticas, como exemplificam as pra icas do poema €m prosa.ou-da-colagem — originadas la contaminagao : do especificamente literario e pictérico por elementos da Cotidianidade urbana. Mas deflagrou também um Pprocesso €uma desestabilizacio da ideia de arte tal como entio *ssociada aos valores hierar quizantes de originalidade e éutonomia, Assim evidenci: ‘a a importancia polémica que Passam a ter nogées como a de ready-made ea de tr 5 8 i ouvé, cunhadas por dadafstas e surrealistas, ands — overdo ( Mancok Duckomp) ON vi 4 tres objet Na passagem do século XIX para 0 século XX, es outros diferentes movimentos de vanguarda investing, neste processo. Compreendendo-o como de aproximecse entre arte e vida, nele articularam a tentativa de ultrepes, samento de limites formais e materiais e a dos | até entio legitimadores do artistico - a escola, o mus ma eee o eu, a biblioteca, a academia. Evidentemente, as contradigdes . eas aporias que assombram e ao mesmo tempo fecundam todo procedimento de inscricio sociale temporal nao deixaram deai se apresentar. Tporisso que, a partir da metade do século XX, 0 esva- ziamento da forca transgressora da arte moderna, 1 OFF nizada em novos CO fores e obras exemplares, reconduzida & biblioteca, 4 escola e ao museu, passa a ser desafiado por praticas artisticas e criticas que recoloc; emdiscussao as fronteiras entre 0 arfistico ¢ 0 nao artistico, aarte ea vida. Um século antes, essa forga transgressiva fora identificada exemplarmente por Walter Benjamin’ no modo como na nova vida urbana a perda da aura podia ser associada a emergenela de uma nova linguagem visual - 0 cinema. E ainda ao fato de esta implicar tanto 0 aprovei- tamento de novas tecnologias de produgao e reprodusao quanto, em consequéncia, um tipo de recepgao dispersa e diferenciadamente coletiva, ao mesmo tempo solici- tando e problematizando 0 ocularcentrismo da cultura do W: Banfovrin : agin, & Henican Mes pitten 126 OCONTEMPORANEO rtistico, 0 tecnico i timento eo cultural. 9, hoje mais uma yez, o reinvest! Tio Pot acts om maior evidencia Jocalizado no de ser CO 5 : nessa forga PO stistica interage com diferentes te 0 a pratica @ a evi mo aed a agi Feproducao nao S° eee s de nalogis oe rede a tipografia ea fotografi, ° V" dco também vor ixagem de vozes € ruidos, Jo ea mix: Tografia, a gravaca ob oe rtual de imagens € sons. Ao radica: 0 efeito acabou circunscrito pela jjeto moderno,’a arte até a programagao virtu lizar procedimentos cuje monumentalizacao idealizante do Pro mais uma vez tenta paradoxalmente se renovar'e se afirmar através da aposta numa expansao que implica simulta- neamentea fragjlizacdo ea contaminagao de sua especifici- dade. Nao por acaso, a nogao de campo expansivo, sugerida por Rosalind Krauss a propésito da escultura,” tem se mos- trado mais que produtiva, indispensavel, para entender os efeitos dessa aposta em praticas hibridas, que colocam em tensio nao apenas diferentes meios e suportes mas, prin- Bids , ko ae instaura um movimento de Passagens, sidades diferenciadas, constitutivo de y due, conforme ressalta Paola Berenstein aon dizer ser uma coisa ou outra, mas quer ding oe rlamente uma coisa e outra, Estar em Processg oo aasformacio. Nao é apenas estar em meio wed meio, mas ser o préprio meio: : mi-lieu.”™ Se ; a ; nd arquitetura funcionaria exemplarmente as ea SC espacy intermedidrio, ponto de uniao e separasio que — ee. ups limites némades e onde um nao lugar esté em viasdee " les ‘omar um lugar praticado, vice-versa, Como nio apne der aqui a porosidade das fronteiras entre a arquitetura e as artes plasticas, que remete & nogo da “escultura num campo expandido” de Rosalind Krauss, jé mencionads anteriormente? Como nao surpreender também o mote im tem um, da perda de especificidade da arte contemporanea, mar- cada pela implosao dos meios considerados préprios de cada arte — aqui o medium como um meio, fomentador de légicas identitarias e da autonomia e acabamento da obra, distinto daquele milieu? Se em seus desdobramentos ao longo das primeiras décadas do século XX a proposta vanguardista de relacéo entre arte e vida acabou mantendo-se atrelada a uma on cepgao de obra caracterizada por seu acabamento, ae produto de uma linguagem especifica, na arte atu: 144 0 CONTEMPORANEO by motiva a busca de abertura e a aceitagio da incomple— tude, privilegiando cruzamentos multiplos e fortuitos, em {nteragdes dindmicas que inclusive colocam em questo a separagao entre 0 artistico € o nao artistico. Podemos dizer que desde entao o paradigma representativo e 0 paradigma ficcional, que caracterizaram Tespectivamente as estéticas Classica e moderna, dao lugar a uma énfase na performatividade. Nesse sentido, também ao contrério da concep¢ao hegemonicamente moderna, a inscricdo no seu tempo e na sua circunstancia vai fazer com que a atividade artistica se deixe afetar por um movimento de anomia, de impre- tiko classifies ota Ue HEGTOGETUETETEEaa tants consequentemente as formula¢ées idealistas e identitarias sobre sua fungao sociopolitica, tensionando paradoxalmente movimentos de expansio e de crise. Estes abalam tanto a ideia de forma em seu carater de singularidade auténoma Quanto também a crenga em sua capacidade de represents- a0 plena de realidades individuais ou coletivas origindrias, Isso porque, de fato, a énfase no carter de gesto, de envio e€nderecamentg)implica uma preocupagio com o puiblico que o concebe agora enquanto indeterminado, anénimo, miltiplo, hibrido. da forma e de sua expectativa de recepgio e alcance vai OCONTEMPORANEO 145, ser apontado, nao por acaso, de modo seminal, na lei que Silviano Santiago propde da poesia de Ana re Cesar e, nela, da op¢ao por uma estética prosaicae epist Hina em que 0 leitor/receptor € presen tolar rtor ca fundamental, 4 esse respeito, valoriza 0 modo como nessa opcio conviyem, vontade de aproximacao e o negaceio, numa duplicidag que nos convida a recusar a dicotomia entre a poesia file a dificil, que vigorava em sua época como extensio daquela que, opondo rigor e comunicabilidade, percorre, em dif. rentes matizes, toda a avaliagao critica da poesia apdsa modernidade.” Sintomaticamente, essa questao vai ser, trés déca- das depois, em 2011, 0 eixo da releitura de Ana Cristina proposta por Marcos Siscar, que nela ressalta o carater dramitico, lacunar, da subjetividade em sua relagio com aalteridade, andlogo ao do poema com sua destinagio. Essa caracteristica é, segundo ele, indicativa de uma con- cepgao de forma como acontecimento da crise ~ na lin- guagem, na afetividade, que considera fundamento muitas vezes sublimado da modernidade cuja repotencializagio pode alimentar a produtividade da arte e do pensamento contemporaneos.* A distancia temporal entre essas duas leituras jé eviden- cia a vitalidade da poesia de Ana Cristina e das pergunt#s que provoca sobre o modo de inser¢ao do poético em su? 146 0 CONTEMPORANEO circunstincia ou, melhor dizendo, sobre 0 poético mesmo snquanto circunstanci. Na verdade, ela vem produzindo tantas novas leituras, que nos autoriza a considerd-la um dos acontecimentos mais significativos da poesia e da cri tica de poesia pos-1980. Ao se desdobrar em diferentes tinhas de forca, essa posterioridade vem Ihe conferindo sum valor exemplar contraditério, que contempla, em um espago de tempo muito curto, desde a construcao de uma identidade autoral e artistica hierarquicamente distinguida quanto sua problematizacao.* Na esteira de muitas de suas provocagées, a contempo- raneidade da poesia brasileir] vem sendo compreendida centre-lugar em que se tensio- ‘ham 0 poético e 0 prosaico, a meméria € 0 momento, 3 intimidade e a extimidade, a escrita como conversacio. 16 leitura. Os valores de crise e de anonimato vio ser ‘entao reafirmados, a identidade subjetiva e textual se abrindo enquanto constelagio de rastros e efeitos da rela- 0 a0 mesmo tempo intrinseca e imprevista entre pro- dugio e recepcaa, Essa compreensio vai motivar a énfase no conceito articulagio de corpo e palavra, sempre tendente & pluralizagio e a ressonincia,* como no impor- tante ensaio de Flora Siissekind sobre a “poesia-em-vo- es” de Ana Cristina referido na nota 35. Seu uso implica que a forca estética e existencial do afetivo seja vista como G. Sekaaafind > corso de aay rere. OCONTEMPORANEO 147 decorréncia paradoxal de sua vulnerabilida cidade de deixar-se contaminar pelo di como considera Florencia Gatramufi.” Essas perspectivas ganham mais amy tro dos conceitos de desterritorializagaio que Flor Para avaliar as formas contempordneas de rela a (Tatura e experiéncia urbana e de pansivi wie Florencia Garramuio toma emprestado < eae os Rosalind Krauss sobre a escultura, a que nos teferiman st inicio. Ela o utiliza para identificar 0 efeito cada wee nat presente de procedimentos que transgridem os Tne te artistica do literério - 0 de, de sa cang Verso, andnimo, plitude va0 20 encoy, ‘gem verbal - bem como sua relagdo também especifica com determinada origem autoral-e inscriga0 sécio-histérica” £ importante notar que, nessas abordagens, ¢ focalizada com certa énfase a tendéncia ao hibridismo entre oyerbale co visual. Podemos considerar que essa tendéncia se justia como retomada problematizante de tradicdes diversas, até antagénicas, mas igualmente fundamentais & organizagio da cultura e da arte ocidentais, como a associagio entre viséo e pensamento racional, a distingao entre poesia e pin- tura, a radicalidade transgressiva das artes visuais vanguat” distas, e como movimento de interagio e confronto com a informagio visual hegeménica na vida contemporaine. 148 0 CONTEMPORANEO , original e ficcional de seu uso da lingua- gnificativo hoje na leitura de Javra e imagem, cdo, por outro ona releitura aso, tem lugar sig jago da relacao entre palavis st concretismo. Tal reavalia o de um investiment 2 tico e expansivo da produga0 plas- j4 referidos Hiélio Oiticica e Lygia 40 Os diferentes modos de articulagao dessas tendén- Paper’, antagonizadas, tem papel central na cena liter- clas: artes jam espaco significativo poetas que fazem da via Mpeia linguagem pictoriea, fotografica e/om cinema- fica um recurso fundamentals ou que explicitam le cor genealogia poética concretista, atua- raoctjova com 0 uso poético de novas tecnologias visuais. Satros ainda desenvolvem simultaneamente produgo de poesia e de artes visuais; ou ainda se aventuram nos cami- Fhos abertos pela midia digital para a transformacao dos suportes da palavra e para os novos meios de reprodugao € circulagdo de compésitos de textos e imagens. Um olhar atento a narrativa contemporanea haves também de detectar, na heterogeneidade de seus projetos, realizagdes, tendéncias, uma forca que rasura e subverte aquela “libido do pertencer” ~ segundo expressio de Michel ae Tornou dominante no mundo moderne uma fa a limites e meios especificos, na esteira de um Nao por act oesia a reaval como nica» a tec se beneficiads jado, tem Se jado, t ; to carater performa tica neoconcretist dos togral modo contundente sua en i Pensamento conceitual, abstrato, empenhado em capturar OCONTEMPORANEO 149 identidades puras. Para Serres, a essa légica se contrapg, Sharma capaz de melhor responder, com sey a. fragmentirio, processual, multiperspectivistico, a pergun. tas como “quem sou eu?”, “quem &vocE?"" A6 ulrape sar fronteiras entre discursos, campos disciplinares ela pode instaurar movimentos de “saida para fora “formas de nao pertencimento”, » inespecifica”.” ~T Em relagéo a esse ultrapassamento, podemos notay, por exemplo, que a tensao entre yetbabe visual que vj mos enfatizando pode ser percebida também na produgio narrativa, como em Paisagem com dromedério (2010), de Carola Saavedra, que assim revela a seu modo as bases artes, desi roduzindo uma “arte ate instaveis da literatura hoje. Em termos de enredo, o relato gira em torno do drama envolvendo um triangulo amoroso constituido por um casal de artistas - Erika, a narradora, e Alex - e a jovem Karen, cuja morte leva Erika a se isolar em uma ilha na casa de Vanessa, sua galerista. Esse relato éemitido por um gravador, onde Erika gravou mensagens para Alex contando suas experiéncias na ilha, insinuandoo caréter espectral das identidades pessoais. O gravador esté em cima de uma mesa de madeira, tinico mével existente numa sala espagosa e vazia, quase na penumbra. Como, dis: . & ivo de enunciacao, ele captura nao somente a vn poallxe Secu . ‘ (0, Erika, como também todo o som ambiente: ruido do ven! 150 0 CONTEMPORANEO do mar e de objetos que caem, sons da televisio e do radio, de passos mais ou menos pr6ximos ou distantes, conforme revelam notagées em itélico apés ou em meio a cada sessio de gravagio. O leitor é afetado entdo por uma sinfonia dis- sonante responsavel pelo carter entrecortado e desconti- uo da narrativa, com a voz de Erika sendo atravessada por diversas outras vozes e sons. Como esse gravador na sala vazia, 0 texto de Saavedra performa um espaco expositivo em que um procedimento técnico reatualiza, desaurati- zada, a relacdo entre arte, literatura e poténcia narrativa. Podemos dizer que se trata aqui de um texto ou “obra-ins- talagao”, segundo nogio com que Wander Melo Miranda mais uma vez exercita a produtividade da expansio critica que desconstréi o limite entre linguagens artisticas.¥ Além desse aspecto, ha em Paisagem com dromedario outras formas de interagéo com as artes visuais ~ a foto- grafia, o cinema, 0 video. Em varios momentos, entio, a narrativd emula a arte conceitualcomo quando Erika caminha pela orla gravando o barulho do mar selvagem a fim de desenhar um contorno actstico da ilha, formada Por areia e lavas de vulcio, para um trabalho que intitula- ria “Contorno de uma ilha”. Noutra passagem, estimulada Pelo filme Sob 0 céu de Lisboa, de Wim Wenders, a per- sonagem imagina um homem nao com uma camera, mas com um gravador na mao gravando os sons de diferentes uvlo ponredo. *.*—oconrewrorineo GY) cidades (Nova York, Berlim, Buenos Aires) nado horério, para uma exposigao sobre a hi: das cidades. Entram aqui ainda as discussées ‘Alex em que sio invocadas e problematizad, &m deter Storia song entre Bika 2S aS relacs i lag entre arte e vida. Ges No que concerne & narrativa contemporine nati » Ocupa espago significativo as que colocam em cena eseyn critores » artistas empenhados na producio de uma obra e as en as com materiais de arquivo — colecées de textos, imagens is ; ° e sons, lstas de afazeres -, que 0s fazem interagir com out, 05 sujeitos, tempos e espagos. Esse & 0 caso do romance Nore nites (2002), de Bernardo Carvalho,* que tem vatios narra, dores, um dos quais desenvolve pesquisas em arquivos pes. soais, histéricos e antropoldgicos, em ambientes académicos do Brasil e do exterior, com 0 intuito de escrever um livro sobre o suicidio de um jovem antropélogo norte-americano ocorrido entre os indios krahé, em Mato Grosso. O relato desse narrador-escritor contém indicios autobiogrétficos que o aproximam do préprio autor, cuja fotografia ¢é inclu- sive usada no livro. A ele se associam, em contraponto, vozes de outros narradores e personagens, empiricos uns, inventados outros, compondo um mosaico com diferentes versées e visGes dos acontecimentos narrados. Assim se pode caracterizar como pertencente a essa linhagem um texto como Cujo (1993), do escritor artista 152 0 CONTEMPORANEO plistico Nuno Ramos, que nos apresentao artista em seu ftelié-arquivo, lidando com a mistura de seus materiais - gua, alga, lama, vidro derretido sobre o breu, felt... -¢ refletindo sobre técnicas de composigio. Em seu esforco, de “arrancar a pele das coisas” para aprender afala intima desses materiais, acaba revelando o caréter proteico e dis- perso da matéria, dificil de nomear: “Cansei de arrancar a pele das coisas. Da sempre no mesmo: atrés da madeira, a madeira, dentro do éleo, 0 éleo, no interior do plistico, o plistico. A natureza é mais repetitiva do que gostariamos de admitir.” Em seu atelié, vislumbramos 0 caos que antecede a fatura da obra, que articula materiais dispares e incongruentes ~ sal e breu, vidro e resina, por exemplo ~ em equilibrio instavel, numa tentativa, conforme acen- tua Rodrigo Naves,” de “historicizar e dar dignidade ao mundo material” sem remeté-lo a uma esfera mistica. Em ambos esses casos, 0 movimento de autorreferéncia tem um cardter muito diverso daquele que, nas posticas modernas, implicava a valorizagao da criatividade indi- vidual do artista e a afirmagio “metaliteraria” do card- ter construtivo e ficcional da obra. Pois agora, apesar de alguma critica ainda enxergar nesses procedimentos um sinal de isolacionismo autotélico, de esvaziamento ¢ alie- nagao da atividade artistica, essa autorreferéncia se consti- tui em procedimento de questionamento subjetivo, de um OCONTEMPORANEO 153 lado, oe € de desestabilizacao das id Pecificidade de lingua, , artistico, de outro, sem ds Nesse movimento, em relagao a poesia, lias mesmas de obra autonomic a semel A hang do que pode ser vis cm a por um modo de aproximacsy, gnlrearte vida nt autor eletores taste mee cujo prosaismo e i manuseio dramatico de iid mistica quant incompletude evitam t. nos ine (0 a tautologia realista. ~ eons Na tentativa de compreender(o contemporing) con- sideramos priticas e nogées artisticas e criticas marcadas pela heterogeneidade, expansividade, inespecificidade. Nao por outro motivo, em relagao & literatura contemporinea francesa, 0 critico Christophe Hanna cunhou a expresso ientificados”, que Flora Sissekind avaliar a produgio brasileira, 44 Nele reencontra- “objetos verbais nao id vai tomar emprestada para se mesmo titulo. de{voz}desdobrado agora n° ga de experienciss da literature ticas€ em ensaio a que dé mos o uso fulcral da nog0 reconhecimento da importante presen’ corais em diferentes manifestasoes estéticas, i instalagdes Plést no teatro, passando Pel cinema, instala¢ jstura de artes sonoras- Nessas. id eens kad eed o Ook manifestacoes» além dam sta val a ensaista Val, yrerature jal de poesia. . special de pocsi— por tensio e deses- oP al conjunto de aspecio® associados por ter ; “ja vai identificar como ‘modos de interrogaio ‘rio (e artistico em gerah acrescente-se) © multaneamente da bors histdrica. Associando-08 0 250 prasileiro, as manifestagoes politicas de junho de 2013, ela savida a pensar a relagao ent” hora histérica, con- ravés de categorias tabilizagao> do campo literé nos € femporaneidade e dimensso coletiva at ecéntricas como as de anonimato> multidéo, anomia, dis- persao e auséncia- Formacées e nogoes, referidas elaboragées Sao essas singulares € Ce en a dis- seminagao daf categoria do contemporane? )pelos discursos que buscam dar conta da representagao do presente histo- fico, deslocando as nogbes de moderno ¢ pés-moderne- Como gesto de interrups 9 provisbria deste ensaio, tor na-se oportuno retomar criticamente 0 ja cléssico ensaio de Giorgio Agamben sobre 0 contemporaneo. Ao relacio- rico ao intempestivo nietzschiano, 0 filésofo vai consi- dera-lo uma tomada de posi¢ao em relagio ao presente, ou seja, ao que esta fiante de nds ¢ nos afeta, Tal posigao oe OCONTEMPORANEO 155 comporta uma desconexio, uma inatualidade oy na medida em que consiste numa “singular Tela proprio tempo, que adere a este ¢, a0 mesmo toma distancia; mais precisamente, tempo que a este adere através de discronig 540 co tempo, 4 » del ©8886 4 relacao com ° uma dissociaca, pees iagao, cronismo”.” Estar colado e plenamente identinead ma 10 a0 tempo impossibilita melhor vé-lo. Jé 0 movimey hoe nto amb, valente de distanciamento e adesio ao presente oqo explicitag © que ser considerado essencialmente temporal: do presente, com 0 passado ¢ o futuro como camadas heterogéneas que misturam na simultaneidade de elementos heteroctOnizss Nao por acaso, Agamben vé o poeta como um Sujeito con. temporaneo de seu tempo, ao trazer como exemplo poems “O século”, de Osip Mandel’stam, indiciando o espaco das artes como profundamente antenado com a contemporanei- dade. O poeta seria alguém que “mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber nio as luzes, mas o escuro”® Cabe existéncia na contemporaneidade do moviment ter em conta aqui que as luzes do século relacionam-se,em Agamben, a um mundo de hegemonia do midiatico e espe- tacular ~ a “sociedade do espetéculo” em Guy Debord -, que produz uma adesao acritica ao presente enquanto atualidade, Presenca plena. Como resisténcia a isso, um olhar voltado ara.as sombras ativa uma visio periférica e libera a percepsio do escuro da ideia de passividade e inércia. 156 OCONTEMPORANEO ma forma de problematizar essa sua compreensio do jma " remporanco consistecm apontar nela uma recusa do pre- con! elhor sente- mel e ea ae feta da. destruigio da experiéncis fundads em Benjami i seu desconforto com 0s dispositivos tecnolégicos aos ser re omo causa de processos indiferencizdos de subjti- ae «e dessubjetivagio." Na elaboracao de Agamben a esse yespeito, Georges Didi-Huberman detects um tom apoca- liptico ¢ a expectativa de uma redencdo absoluta. Contra- pondo-sea um ea outra, €a obscuridade do tempo presente que funciona como sua motivacio, Didi-Huberman propée pensar a possibilidade de resistencia das “Pequenas lu sobreviventes circunscritas 4 imanéncia do tempo historico.” Mas uma leitura mais atenta ao ensaio sobre o contem- poraneo de Agamben nos permite visualizar outro enca- minhamento da questio. O movimento ambivalente de distanciamento e-adesio, a percepsio da luz no escuro do presente podem constituir-se em procedimentos que nos levam a estranhar o presente, para melhor ter consciéncia dele, de modo que possamos conecti-lo com outros tem: POs, 0 passado e o futuro, de maneira a transformé-lo elera historia de modo inédito. Nesse sentido, aquelas formagées que apontamos em relaco a literatura, as artes e 2 cultura, em sua coralidade e expansividade, iluminam um cambio Perceptivo-reflexivo, em que o contemporineo pode ser izendo, do presentismo ~ visivel quer na sua OCONTEMPORANEO 157 apreendido como uma dobra reflexiva sobre o presente, um modo critico pepe viva enfrentar a seducao do presentismo — Um Present e srransitivo, sem didlogo com o passado € 0 ftir. Notas 1 f. Walter Benjaminy fem Magia e téctca, ar (ad. Sergio Paulo Rovanet, procediment, geste proeto em César Aim Areva Pequeno manual de procedimentes, sobre de rte na rade ut reprodudade ec politica ensaios sobre trata istéla acura, ‘so Paul, Basiliens, 1985, v2, Obras escotids 2 Vera diferenca entre Sehitura, em Abandonar a literatura Caitbo, Arte & Letra Editor, 2007- ampo ampliado, Revista Gaver, Rio 5 Cf Rosalind Krauss, A escultura no ¢ Arte e Arguitetura no Bra Janeiro, Curso de Especalzago Historia da AE PUC Rion 1p: 129-137. 1984 + A.curadoria da exposicto Tombo foi de -Thais Rivitti, A de Rebecca Hornfoide Acieao Dantas responssvel pela organo de excelente catélogo (quepode Maret rao na imtenet) eM qUe con OU sobre diferentes aspects Sr eapatho da artista, em trades tbe texcelentes de Renato Revende ‘Sonia Augusto. las Bourriaud, Estética react 2008, p28. 5 Nicol ronal, trad. Denise Bottmann, Sie Pts ‘Martins Fontes, jado por Silvano Santiagns¢ neste, for ae itempordnea da ar © Mais adiante retorr sua importincia para a disc > Informagdes sobre o projeto "BI de Jennifer Wen Ma estio dispontvels ccachantment/>,acesso em 9 set, 2014 cidade” a instaleio p1Asia - A Asia ocupaa ‘phasiaartbtise-oF cem 2050 6 29 F- 201 onigcoes plat nn rreescreveramodernidaden inumano:conside ais Spote Alexandre, Lisb0% sores ner oe Phistoire 4 partir d'un ‘sujet ui lui donne sens- Etla modernité Mare Bloch, Apologia da histéria ou 0 affco Rio de Janeiro, Zahar; 2002 Cf. Georges Didi-Huberman, Diante do tempo, nistéria da arte anacronismo Se seereiye trad, Vera Casa Nova ¢ Marcia Arex Belo Horizonte, Editora UFMG, 2015. Cf. Luciana Quillet Heymann, Olt jllet Heymann, O lugar do Darey Ribeiro, Rio de Janeiro, Contracapay arquivo: a construgio do legado de 2012, p. 23-30- Cf. Didi-Hube i "| 4 Didi-Huberman, Diante do tempo CAberturs Capitulo 2, especialmente). Cf, Jacques Derr Jacques Decrda,Mat dea ‘uma impressio freudiana, trad. Cliudia i Rego. Rio de Janeiro, Relume Dumaré, 2001, P- 3} OCONTEMPORANEO 159

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