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EDUCAÇÃO MÉDICA

A Síndrome da Exclusão Social:


compreensão das origens da violência/
contraviolência no Brasil
The social exclusion syndrome: comprehension of the
violence/counter-violence origins in Brazil
Antonio Benedito Lombardi1, Carolina Couto de Azevedo Cysne2, João Pedro Arruda Moraes Raso2, João Víctor
Soares Assunção2, Pedro Rodrigues Greco2

DOI: 10.5935/2238-3182.20160022

RESUMO
1
Médico Pediatra. Doutor em Ciências da Saúde. A indiferença humana no Brasil desde o início da colonização tem produzido e per-
Professor. Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Departamento de Medicina. Betim, MG – Brasil; petuado o fenômeno da exclusão social. Um exemplo é a escravidão que durou cerca
Professor Adjunto(aposentado). Universidade Federal de de 350 anos. Esse fenômeno excludente materializa-se ao produzir uma diversidade de
Minas – UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de
Pediatria, Belo Horizonte, MG – Brasil. fatores de risco biopsicossociais impactantes desde a gestação e em todos os períodos
2
Acadêmicos do Curso de Medicina. Pontifícia Uni- do ciclo de vida, acumulando e deixando sequelas profundas. Na década de 80 ocor-
versidade Católica de Minas Gerais, Departamento de
Pediatria, Betim, MG – Brasil. reu interação sinérgica perversa entre o fenômeno da exclusão social e a entrada das
drogas no nosso meio. A criança maior, o adolescente e o adulto jovem, muitas vezes
socialmente vulneráveis, encontraram nas drogas duas possibilidades: a primeira, usar e
abusar de drogas por várias razões, entre elas, baixa autoestima, para aliviar ansiedade
e depressão, raiva; devido a uma personalidade extrovertida, impulsividade e inclinação
ao comportamento de risco. E a segunda possibilidade, “empoderadora”, entrar para
o tráfico como meio de subir na vida e também por razões subjetivas. Esses caminhos
quase sempre resultam em dependência química, “overdose”, hospitalizações, práticas
de atos infracionais, prisões, mortes e homicídios. O estudo indica que primariamente
ocorreu violência histórica contra esse contingente populacional e que, muitas vezes,
essa violência desencadeia um fenômeno também complexo, a contraviolência. A abor-
dagem da violência/contraviolência deve focar, simultaneamente, sua origem (cultura
da indiferença) e as consequências (fatores de risco e impactos biopsicossociais).
Palavras-chave: Exclusão Social; Condições Sociais; Determinantes Sociais da Saúde;
Desenvolvimento Humano; Drogas Ilícitas; Violência.

ABSTRACT

The human indifference in Brazil since the beginning of colonization has produced and
perpetuated the phenomenon of social exclusion. The example is the slavery, which
lasted about 350 years. This exclusive phenomenon has materialized itself as it has
produced a diversity of biopsychosocial risk factors, which has impacted the individuals
in all their life cycle periods from the gestation, accumulating and leaving their effects.
In the 80’s there was a perverse synergic interaction between the phenomenon of social
exclusion and the entrance of drugs in our environment. The older child, the teenager and
the young adult, socially vulnerables, find in drugs two possibilities: first, use and abuse
of drugs for many reasons such as low self-esteem, to alleviate depression, anxiety and
Instituição:
anger; due to an outgoing personality, impulsivity and more inclined to take risks; second
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, possibility, “empowering”, entering the drug trade as a way of getting ahead in life and
Departamento de Medicina
Betim, MG – Brasil
also for subjective reasons. These pathways often always result in addiction, “over-
dose”, hospitalization, infraction acts practice and also, arrests, deaths and homicides.
Autor correspondente:
Antonio Benedito Lombardi
The study of these cases in our history context shows that we face a primary historical
E-mail: lombardiab@uol.com.br violence against a huge population group that often this violence triggers a complex

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A Síndrome da Exclusão Social: compreensão das origens da violência/contraviolência no Brasil

phenomenon, the counter-violence. The approach of


violence/counter-violence should focus, simultaneously, zinho aparentemente assustado, como que prevendo
on both the origin (culture of indifference) and the conse- o que viria.
quences (risk factors and biopsychosocial impacts).
Key words: Social exclusion; Social Conditions; Social
Determinants of Health; Human Development; Street
Drugs; Violence.

INTRODUÇÃO

“The way we organize our affairs, at the


community level or, indeed at the whole societal
level, are matters of life and death. As doctors
we cannot stand idly by while our patients suffer
from the way our societies are organized. Ine-
quality of social and economic conditions is at
the heart of it” (Michael Marmot)”.
Discurso proferido por Michel Marmot,
Presidente da World Medical Association,
no dia 16 setembro de 2015 em Moscou.

O começo de tudo: a criança na história Figura 1 - Descobrimento do Brasil.


do Brasil Fonte: PORTINARI2, 1956.

A tentativa de escravidão de índios não foi bem-


Na história do Brasil, mais especificamente no livro -sucedida. Os colonizadores decidiram então trazer
“História das Crianças no Brasil”, da historiadora Mary os negros para trabalhar neste país. Com a escravi-
Del Priore1, encontram-se informações significativas dão, vieram os navios negreiros. Dos escravos desem-
que mostram que a violência contra a criança e o ado- barcados no mercado de Valongo, no Rio de Janeiro,
lescente no Brasil esteve presente desde a descoberta no início do século XIX, 4% eram crianças. Destas,
do país. Constata-se, desde as primeiras navegações, a apenas um terço sobrevivia até os 10 anos. Por outro
utilização de crianças como membros das tripulações lado, uma imagem muito forte que ficou da socieda-
dos navios portugueses do século XVI e XVII e que de escravista em um momento da formação do povo
chegaram, em determinados períodos, a constituir o brasileiro é a de uma criança branca que mandava e
grosso da tripulação. Os “miúdos” eram encarregados o adulto escravo obedecia.
dos trabalhos mais pesados e arriscados a bordo, bem A escravidão durou cerca de 350 anos. Com a aboli-
como explorados por seus pares embarcados na qua- ção da escravidão as crianças e adolescentes morado-
lidade de marujos, sofrendo frequentemente abusos res das antigas senzalas continuaram a trabalhar nas
sexuais, maus-tratos e humilhações. fazendas de cana de Pernambuco. A experiência da
Em terras brasileiras, no início da colonização, escravidão havia demonstrado que a criança e o jovem
aconteceu primeiramente a escravização dos índios. trabalhador constituíam uma mão de obra mais dócil,
Eles foram escravizados, tiveram suas terras rouba- mais barata e de adaptação mais fácil ao trabalho.
das, foram mortos. Muitos morreram de doenças tra- Não bastando o uso de crianças como escravos,
zidas pelos europeus, como a varíola e o sarampo. encontram-se relatos na história de cartas desespera-
Entre os mortos estavam as crianças e os adolescen- das de mães, mesmo as escravas analfabetas, tentan-
tes, fato, inclusive, que permanece até hoje. A destrui- do impedir que seus filhos partissem para a Guerra
ção física também foi acompanhada pela destruição do Paraguai.
cultural. O quadro de Portinari2 (Figura 1) sobre o A entrada maciça de imigrantes capaz de alavan-
descobrimento do Brasil mostra um pequeno indio- car a incipiente industrialização do final do século

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trouxe consigo a imagem de crianças no trabalho ram para São Paulo. Trabalhavam na construção civil
fabril com jornadas de 11 horas em frente às maqui- e nas indústrias por salários muito baixos e a maioria
nas de tecelagem e apenas 20 minutos de descanso. morava em favelas e em barracos.
Tornaram-se simplesmente substitutas mais baratas As crianças e adolescentes também fizeram parte
do trabalho escravo. desse fenômeno migratório, como retrataram João Ca-
Com o fim da escravidão e a entrada em massa de bral de Melo Neto e Portinari por meio de suas obras
expressivos contingentes de imigrantes advindos de geniais. Ambos mostram como as crianças, os ado-
diversas partes do mundo, São Paulo tornou-se palco lescentes, os adultos jovens, os velhos, enfim, como
de uma conformação social sem precedentes. Cres- essas famílias de retirantes estavam adoentadas.
ciam paulatinamente a indústria, o comércio e o mer- Veja-se:
cado de serviços e, consequentemente, a miséria, a
exclusão social, a violência e a pauperização de vas- Morte e Vida Severina
tas camadas populacionais, excluídas do universo da
produção e do consumo.1 […] Somos muitos Severinos
No que se refere às crianças nesse período (fim iguais em tudo na vida:
da escravidão) e ao abandono das mesmas no Brasil, na mesma cabeça grande
no livro “História Social da Criança Abandonada”, a que a custo é que se equilibra,
autora Maria Luiza Marcílio3 afirma que: no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
Com o fim da escravidão, o sistema que exis-
e iguais também porque o sangue
tiu foi sempre o da forte concentração de rendas e
da exclusão, de marginalização de uma faixa con- que usamos tem pouca tinta.
siderável da população. Em sua quase totalidade, E se somos Severinos
as crianças que eram abandonadas provinham iguais em tudo na vida,
dessa faixa de miseráveis, de excluídos. A pobre- morremos de morte igual,
za foi a causa primeira – e de longe a maior – do mesma morte Severina:
abandono de crianças em todas as épocas3. que é a morte que se morre
de velhice antes dos trinta,
Ainda no que se refere à situação da criança na de emboscada antes dos vinte,
época, com o fim da escravidão: de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
[...] vale registrar que circulava, já naquele
é que a morte Severina
século, sempre que se discutiam os problemas
da imigração, um slogan que afirmava: “o me- ataca em qualquer idade,
lhor imigrante é a criança nacional, querendo-se e até gente não nascida).
dizer com isso naturalmente que a melhor forma Somos muitos Severinos
de assegurar a médio prazo uma força de traba- iguais em tudo e na sina:
lho, a qual supostamente não carregava consi- a de abrandar estas pedras
go problemas comuns ao imigrante estrangeiro, suando-se muito em cima,
como a língua, os costumes, a saúde, a tradição,
a de tentar despertar
a cultura, etc., era cuidando da infância que as-
sim o retorno seria mais garantido”.4 terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar algum roçado da cinza.
Segundo Schmidt5, de 1930 a 1945 os investimen- Mas, para que me conheçam
tos do Estado deram prioridade total à indústria na melhor Vossas Senhorias
região Sudeste. Os estados de São Paulo, Rio de Ja- e melhor possam seguir
neiro e Minas Gerais foram os privilegiados. O Norte a história de minha vida,
e o Nordeste continuariam agrários, dominados pelo Passo a ser o Severino...
latifúndio e pelas oligarquias locais. Os camponeses (MELO NETO, 2000, p. 46)6.
nessas regiões continuavam em grandes dificulda-
des, por isso, desde 1930, centenas de milhares de João Cabral, nesse trecho transcrito, não apenas
nordestinos emigraram para as grandes cidades do mostra as condições de saúde dos Severinos, mas
Sudeste. Entre 1930 e 1945, mais de meio milhão fo- também a condição da terra onde deveriam retirar

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o sustento da família. Agora veja-se Portinari7, o qual de crianças e suas famílias que foram estudados por
retrata na sua arte visual a sina dos retirantes; primei- Lombardi em 199510 e 200911.
ramente (Figura 2), as condições em que estavam
durante a caminhada:

Figura 4 - Favela.
Fonte: PORTINARI9, 1957.

Geralmente, nesses aglomerados surgem e para


eles confluem uma diversidade de fatores que colo-
cam em risco o crescimento, o desenvolvimento e a
Figura 2 - Os Retirantes.
Fonte: PORTINARI7, 1955. saúde das crianças.
Obviamente, muito mais adversidades a criança
tem enfrentado durante a formação da sociedade
A seguir, Portinari8 retrata o espaço (Figura 3) que brasileira, ou seja, desde os nossos primórdios a His-
os retirantes ocupariam em uma região metropolita- tória mostra como o Estado e a sociedade forjaram
na, onde começaria a se formar um aglomerado: progressivamente uma cultura em relação à criança
e ao adolescente marcada pela indiferença, pela in-
sensibilidade, pela negligência, pela não cidadania.
Essa cultura permanece muito viva entre nós até
hoje, veiculando essas características indesejáveis e
perpetuando seus impactos negativos.

A CULTURA DA INDIFERENÇA,
O FENÔMENO DA EXCLUSÃO SOCIAL
E OS IMPACTOS DIFUSOS NA SAÚDE

Assim, nestes 515 anos da existência deste país


essa cultura excludente tem sido responsável pela
Figura 3 - O Morro. origem e pela manutenção do fenômeno da exclusão
Fonte: PORTINARI8, 1933. social que produz impactos biopsicossociais sobre o
sujeito, a chamada “síndrome da exclusão social”,
E depois de alguns anos esse espaço já total- tese de doutorado de Lombardi11, que pode ser resu-
mente ocupado e retratado por Portinari9 (Figura mida evolutivamente:
4), denominado favela. Isso remete ao aglomerado ■■ pela materialização dessa cultura da indiferença,

onde, em condições semelhantes, viveria um grupo a qual é concretizada pela produção crônica de

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uma multiplicidade de diferentes fatores de risco tresse tóxico.13 Assim, além de ser um tema atual, é
biopsicossociais; importante destacar alguns conceitos fundamentais:
■■ pela exposição desses sujeitos a esses múltiplos ■■ o conceito de determinantes sociais de saúde:

fatores de risco em todos os períodos do ciclo de ■■ os determinantes sociais de saúde são condi-

vida: gestação, período neonatal, lactente, pré- ções nas quais as pessoas nascem, crescem,
-escolar, escolar, adolescente e adulto jovem; vivem, trabalham e envelhecem, incluindo o
■■ pelos múltiplos impactos biopsicossociais simul- sistema de saúde. Essas circunstâncias são pro-
tâneos em todos os períodos do ciclo de vida; duzidas pela distribuição de dinheiro, poder e
■■ para muitos dos impactados, resultando em uso recursos em níveis global, nacional e local, os
e abuso de drogas e/ou na entrada para o tráfico; quais são eles próprios influenciados por es-
■■ pela existência de um fenômeno complexo no colhas políticas. Os determinantes sociais de
qual os sujeitos afetados são ao mesmo tempo ví- saúde são responsáveis pela maior parte das
timas de uma violência histórica e, muitas vezes, desigualdades de saúde - diferenças injustas e
muitos se tornam protagonistas de uma resposta evitáveis encontradas no estado de saúde den-
igualmente complexa, a contraviolência, resultan- tro de um mesmo país e entre países (WHO).14
te de uma interação perversa entre o fenômeno
da exclusão social e a generalização das drogas; Essas observações preocupam porque no Brasil
■■ pelo caráter autoexcludente e intergeracional des- milhões de brasileiros ainda nascem, crescem, vi-
ses impactos sobre os sujeitos, arrastando-os para vem, trabalham e envelhecem em condições precá-
a espiral descendente da exclusão social e contri- rias de vida, para onde converge ampla variedade de
buindo, assim, para a perpetuação do fenômeno. adversidades sociais que podem afetar negativamen-
te o crescimento, o desenvolvimento e a saúde de
crianças e adolescentes. Essas condições precárias
CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES de vida existem porque ainda persiste a injustiça so-
E PERSPECTIVAS cial no Brasil.

■■ o conceito de experiências adversas na infância


“Social injustice is killing people (EAIs):
on grand scale.” (WHO, 2008)12.
■■ experiências adversas na infância (EAI) são

situações que levam ao aumento no risco


Para finalizar, faz-se necessário fortalecer alguns de crianças e adolescentes experimentarem
conceitos vistos anteriormente, assim como acrescen- impactos negativos na saúde ou outras con-
tar alguns outros aspectos relacionados aos mesmos sequências sociais durante o curso da vida.
que surgiram durante a apresentação do texto, com o Refere-se aqui aos indivíduos abaixo de 18
objetivo de contribuir para a compreensão do que foi anos, os quais são abusados ou negligencia-
chamado síndrome da exclusão social. Existe ainda dos, vivem em lares onde estão presentes a
hoje uma preocupação mundial em relação a milhões violência doméstica, o abuso de drogas ou ál-
de famílias mundo afora que ainda enfrentam inúme- cool, a doença mental, a criminalidade ou a
ras adversidades expondo suas crianças muito preco- separação ou vivem sob custódia, por exem-
cemente a essas adversidades. Essas crianças correm plo, em abrigos. Em muitos casos, múltiplas
elevado risco de ficarem impactadas não apenas na EAIs são vivenciadas simultaneamente.
infância e adolescência, mas também na idade adul-
ta, quando diferentes repercussões clínicas continu- Experiência de adversidade tende a se agrupar (vá-
am como resultado desses impactos precoces na vida rias EAIs ocorrendo ao mesmo tempo) e aqueles que
dessas pessoas. Conhecimentos científicos mostram, experimentam quatro ou mais adversidades têm risco
inclusive, como as adversidades sociais atuam deixan- significantemente aumentado de prejuízos na saúde
do suas assinaturas nos genes, no cérebro, na mente durante o curso de vida comparados com aqueles sem
e no corpo das crianças expostas a essas diferentes EAIs. É também provável que algumas EAIs tenham
adversidades, como consequência do chamado es- mais impactos negativos do que outras, embora, como

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elas são experimentadas (e medidas) frequente e si- Aqueles que experimentam condições adversas
multaneamente, isso seja difícil de ser verificado. são mais prováveis de serem filhos de pais os quais
Nem sempre a criança é impactada pela expo- eles próprios foram expostos a EAIs. Essa transmis-
sição às EAIs, como, por exemplo, algumas vezes a são intergeracional de adversidades é uma forma de
separação dos pais, na qual a violência doméstica desigualdade que reduz a mobilidade social.15
se encontra presente, pode ser fator protetor para o Há necessidade de intervenção precoce, de pre-
bem-estar das crianças. Entretanto, evidências na venção de doenças e de promoção de saúde e de de-
Inglaterra e em outros locais mostram que crianças senvolvimento humano; de diálogo entre diferentes
e jovens expostos às EAIs correm mais risco de mor- áreas do conhecimento e entre os setores responsá-
te ou lesões antes de atingirem a idade adulta e de veis por esse público formado por crianças e adoles-
mortalidade prematura na idade adulta. Por exem- centes. O conceito de saúde deve integrar as políticas
plo, mulheres expostas a duas ou mais EAIs antes públicas de todos os setores de uma administração
da idade de 18 anos têm risco de morte de 80% em (economia, direito, educação, indústria, agricultura,
torno de 50 anos quando comparadas com aquelas desenvolvimento social, habitação, emprego, trans-
não expostas a alguma EAIs. Indivíduos expostos porte, saneamento, etc.), fazendo parte da cultura
a EAIs têm mais chance de morrer jovens e de ex- da governança. Esses setores devem atuar de forma
perimentar uma variedade de doenças – incluindo coordenada e coerente. As políticas de saúde não de-
câncer, doença cardíaca, doença pulmonar, doença vem ser consideradas ações planejadas e colocadas
hepática, acidente vascular cerebral, hipertensão, em prática isoladamente pelo setor saúde e desvincu-
diabetes, asma e artrites. EAIs aumentam também o ladas dos outros setores.16
risco de doença mental. A Organização Mundial de Esses conceitos essenciais devem ser introduzidos
Saúde estima que 30% das doenças mentais no adul- precocemente pela Universidade durante a formação
to em 21 países podem ser atribuídas às EAIs.15 Fren- profissional a partir das atividades de ensino, pesqui-
te a todos esses dados da literatura relacionados aos sa e extensão, sendo que esta última, representando
impactos das adversidades sobre as pessoas durante uma atividade carregada de significados, traduz o mo-
os diferentes períodos do ciclo de vida, não causam mento em que a universidade se encontra com a comu-
surpresa os impactos biopsicossociais causados nidade. E a comunidade é a razão e a patrocinadora
pelo fenômeno da exclusão social e resumidos na da existência da universidade, devendo ser, portanto,
descrição da síndrome da exclusão social. protagonista nesse processo. O pagamento da nossa
Existem três caminhos em potencial por meio dos dívida social é uma prioridade urgente.
quais as EAIs podem impactar a saúde:

■■ a partir do aumento de comportamentos perigo- REFERÊNCIAS


sos para a saúde tais como abuso de álcool ou
substâncias, tabagismo, comportamento sexual 1. Del Priore MD, (organizadora. A história das crianças no Brasil.
7ª ed. São Paulo: Contexto; 2013. 445 p.
de risco, violência e criminalidade ou compor-
tamentos que levam à obesidade. Por exemplo, 2. Portinari C. Descobrimento do Brasil. Óleo sobre tela, 199x169
cm. Distrito Federal, Banco Central do Brasil.
aqueles os quais experimentaram quatro ou mais
3. Marcílio ML. História social da criança abandonada. 2ª ed. São
experiências adversas na infância têm 11 vezes
Paulo: Hucitec; 2006. 331 p.
mais riscos de usar heroína ou crack/cocaína.
4. Lapa JR. Os excluídos: contribuição à história da pobreza no
■■ a partir de impacto nos determinantes sociais de
Brasil (1850-1930). Campinas: Editora Unicamp; 2008. 245 p.
saúde – particularmente evidente é o impacto
5. Schmidt MF. Nova história crítica: Ensino médio. São Paulo: Nova
negativo nos resultados educacionais, no empre- Geração; 2008. 840 p.
go, na renda – cada um dos quais tem impacto
6. Melo Neto JC. Morte e vida severina e outros poemas para Vozes.
na saúde. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2000. p. 46.
■■ a partir de impacto genético, epigenético e no 7. Portinari C. Os Retirantes. 1955. Desenho a lápis de cor/papel, 33
funcionamento neurobiológico os quais também x 32cm. Coleção particular, Rio de Janeiro, RJ.
impactam a saúde por meio do curso de vida.13 8. Portinari, C. O Morro. 1933. Óleo sobre tela, 114 x 146 cm. Rio de
Janeiro, RJ, Brasil. The Museum of Modern Art, New York, NY.

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9. Portinari C. Favela. 1957. Óleo sobre tela, 46 x 55 cm. Museu Na- 13. Shonkoff JP, Garner.The lifelong effects of early childhood adver-
cional de Belas Artes. Rio de Janeiro, RJ - Brasil. sity and toxic stress. Pediatrics. 2012; 129:232-46.
10. Lombardi AB. Repetência e evasão escolar em classe sócio-eco- 14. World Health Organization. Health Topics. Social Determinants
nômica desfavorecida: um estudo de 39 crianças de 1ª série de of Health. 2015.[Citado em 2015 set. 08] Disponível em http://
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11. Lombardi AB. A síndrome da exclusão social: as origens, os fa- and Inequalities in Prevalence and Effects. 2015. [citado em
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