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DOI: 10.5935/2238-3182.20160022
RESUMO
1
Médico Pediatra. Doutor em Ciências da Saúde. A indiferença humana no Brasil desde o início da colonização tem produzido e per-
Professor. Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Departamento de Medicina. Betim, MG – Brasil; petuado o fenômeno da exclusão social. Um exemplo é a escravidão que durou cerca
Professor Adjunto(aposentado). Universidade Federal de de 350 anos. Esse fenômeno excludente materializa-se ao produzir uma diversidade de
Minas – UFMG, Faculdade de Medicina, Departamento de
Pediatria, Belo Horizonte, MG – Brasil. fatores de risco biopsicossociais impactantes desde a gestação e em todos os períodos
2
Acadêmicos do Curso de Medicina. Pontifícia Uni- do ciclo de vida, acumulando e deixando sequelas profundas. Na década de 80 ocor-
versidade Católica de Minas Gerais, Departamento de
Pediatria, Betim, MG – Brasil. reu interação sinérgica perversa entre o fenômeno da exclusão social e a entrada das
drogas no nosso meio. A criança maior, o adolescente e o adulto jovem, muitas vezes
socialmente vulneráveis, encontraram nas drogas duas possibilidades: a primeira, usar e
abusar de drogas por várias razões, entre elas, baixa autoestima, para aliviar ansiedade
e depressão, raiva; devido a uma personalidade extrovertida, impulsividade e inclinação
ao comportamento de risco. E a segunda possibilidade, “empoderadora”, entrar para
o tráfico como meio de subir na vida e também por razões subjetivas. Esses caminhos
quase sempre resultam em dependência química, “overdose”, hospitalizações, práticas
de atos infracionais, prisões, mortes e homicídios. O estudo indica que primariamente
ocorreu violência histórica contra esse contingente populacional e que, muitas vezes,
essa violência desencadeia um fenômeno também complexo, a contraviolência. A abor-
dagem da violência/contraviolência deve focar, simultaneamente, sua origem (cultura
da indiferença) e as consequências (fatores de risco e impactos biopsicossociais).
Palavras-chave: Exclusão Social; Condições Sociais; Determinantes Sociais da Saúde;
Desenvolvimento Humano; Drogas Ilícitas; Violência.
ABSTRACT
The human indifference in Brazil since the beginning of colonization has produced and
perpetuated the phenomenon of social exclusion. The example is the slavery, which
lasted about 350 years. This exclusive phenomenon has materialized itself as it has
produced a diversity of biopsychosocial risk factors, which has impacted the individuals
in all their life cycle periods from the gestation, accumulating and leaving their effects.
In the 80’s there was a perverse synergic interaction between the phenomenon of social
exclusion and the entrance of drugs in our environment. The older child, the teenager and
the young adult, socially vulnerables, find in drugs two possibilities: first, use and abuse
of drugs for many reasons such as low self-esteem, to alleviate depression, anxiety and
Instituição:
anger; due to an outgoing personality, impulsivity and more inclined to take risks; second
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, possibility, “empowering”, entering the drug trade as a way of getting ahead in life and
Departamento de Medicina
Betim, MG – Brasil
also for subjective reasons. These pathways often always result in addiction, “over-
dose”, hospitalization, infraction acts practice and also, arrests, deaths and homicides.
Autor correspondente:
Antonio Benedito Lombardi
The study of these cases in our history context shows that we face a primary historical
E-mail: lombardiab@uol.com.br violence against a huge population group that often this violence triggers a complex
INTRODUÇÃO
trouxe consigo a imagem de crianças no trabalho ram para São Paulo. Trabalhavam na construção civil
fabril com jornadas de 11 horas em frente às maqui- e nas indústrias por salários muito baixos e a maioria
nas de tecelagem e apenas 20 minutos de descanso. morava em favelas e em barracos.
Tornaram-se simplesmente substitutas mais baratas As crianças e adolescentes também fizeram parte
do trabalho escravo. desse fenômeno migratório, como retrataram João Ca-
Com o fim da escravidão e a entrada em massa de bral de Melo Neto e Portinari por meio de suas obras
expressivos contingentes de imigrantes advindos de geniais. Ambos mostram como as crianças, os ado-
diversas partes do mundo, São Paulo tornou-se palco lescentes, os adultos jovens, os velhos, enfim, como
de uma conformação social sem precedentes. Cres- essas famílias de retirantes estavam adoentadas.
ciam paulatinamente a indústria, o comércio e o mer- Veja-se:
cado de serviços e, consequentemente, a miséria, a
exclusão social, a violência e a pauperização de vas- Morte e Vida Severina
tas camadas populacionais, excluídas do universo da
produção e do consumo.1 […] Somos muitos Severinos
No que se refere às crianças nesse período (fim iguais em tudo na vida:
da escravidão) e ao abandono das mesmas no Brasil, na mesma cabeça grande
no livro “História Social da Criança Abandonada”, a que a custo é que se equilibra,
autora Maria Luiza Marcílio3 afirma que: no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
Com o fim da escravidão, o sistema que exis-
e iguais também porque o sangue
tiu foi sempre o da forte concentração de rendas e
da exclusão, de marginalização de uma faixa con- que usamos tem pouca tinta.
siderável da população. Em sua quase totalidade, E se somos Severinos
as crianças que eram abandonadas provinham iguais em tudo na vida,
dessa faixa de miseráveis, de excluídos. A pobre- morremos de morte igual,
za foi a causa primeira – e de longe a maior – do mesma morte Severina:
abandono de crianças em todas as épocas3. que é a morte que se morre
de velhice antes dos trinta,
Ainda no que se refere à situação da criança na de emboscada antes dos vinte,
época, com o fim da escravidão: de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
[...] vale registrar que circulava, já naquele
é que a morte Severina
século, sempre que se discutiam os problemas
da imigração, um slogan que afirmava: “o me- ataca em qualquer idade,
lhor imigrante é a criança nacional, querendo-se e até gente não nascida).
dizer com isso naturalmente que a melhor forma Somos muitos Severinos
de assegurar a médio prazo uma força de traba- iguais em tudo e na sina:
lho, a qual supostamente não carregava consi- a de abrandar estas pedras
go problemas comuns ao imigrante estrangeiro, suando-se muito em cima,
como a língua, os costumes, a saúde, a tradição,
a de tentar despertar
a cultura, etc., era cuidando da infância que as-
sim o retorno seria mais garantido”.4 terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar algum roçado da cinza.
Segundo Schmidt5, de 1930 a 1945 os investimen- Mas, para que me conheçam
tos do Estado deram prioridade total à indústria na melhor Vossas Senhorias
região Sudeste. Os estados de São Paulo, Rio de Ja- e melhor possam seguir
neiro e Minas Gerais foram os privilegiados. O Norte a história de minha vida,
e o Nordeste continuariam agrários, dominados pelo Passo a ser o Severino...
latifúndio e pelas oligarquias locais. Os camponeses (MELO NETO, 2000, p. 46)6.
nessas regiões continuavam em grandes dificulda-
des, por isso, desde 1930, centenas de milhares de João Cabral, nesse trecho transcrito, não apenas
nordestinos emigraram para as grandes cidades do mostra as condições de saúde dos Severinos, mas
Sudeste. Entre 1930 e 1945, mais de meio milhão fo- também a condição da terra onde deveriam retirar
o sustento da família. Agora veja-se Portinari7, o qual de crianças e suas famílias que foram estudados por
retrata na sua arte visual a sina dos retirantes; primei- Lombardi em 199510 e 200911.
ramente (Figura 2), as condições em que estavam
durante a caminhada:
Figura 4 - Favela.
Fonte: PORTINARI9, 1957.
A CULTURA DA INDIFERENÇA,
O FENÔMENO DA EXCLUSÃO SOCIAL
E OS IMPACTOS DIFUSOS NA SAÚDE
onde, em condições semelhantes, viveria um grupo a qual é concretizada pela produção crônica de
uma multiplicidade de diferentes fatores de risco tresse tóxico.13 Assim, além de ser um tema atual, é
biopsicossociais; importante destacar alguns conceitos fundamentais:
■■ pela exposição desses sujeitos a esses múltiplos ■■ o conceito de determinantes sociais de saúde:
fatores de risco em todos os períodos do ciclo de ■■ os determinantes sociais de saúde são condi-
vida: gestação, período neonatal, lactente, pré- ções nas quais as pessoas nascem, crescem,
-escolar, escolar, adolescente e adulto jovem; vivem, trabalham e envelhecem, incluindo o
■■ pelos múltiplos impactos biopsicossociais simul- sistema de saúde. Essas circunstâncias são pro-
tâneos em todos os períodos do ciclo de vida; duzidas pela distribuição de dinheiro, poder e
■■ para muitos dos impactados, resultando em uso recursos em níveis global, nacional e local, os
e abuso de drogas e/ou na entrada para o tráfico; quais são eles próprios influenciados por es-
■■ pela existência de um fenômeno complexo no colhas políticas. Os determinantes sociais de
qual os sujeitos afetados são ao mesmo tempo ví- saúde são responsáveis pela maior parte das
timas de uma violência histórica e, muitas vezes, desigualdades de saúde - diferenças injustas e
muitos se tornam protagonistas de uma resposta evitáveis encontradas no estado de saúde den-
igualmente complexa, a contraviolência, resultan- tro de um mesmo país e entre países (WHO).14
te de uma interação perversa entre o fenômeno
da exclusão social e a generalização das drogas; Essas observações preocupam porque no Brasil
■■ pelo caráter autoexcludente e intergeracional des- milhões de brasileiros ainda nascem, crescem, vi-
ses impactos sobre os sujeitos, arrastando-os para vem, trabalham e envelhecem em condições precá-
a espiral descendente da exclusão social e contri- rias de vida, para onde converge ampla variedade de
buindo, assim, para a perpetuação do fenômeno. adversidades sociais que podem afetar negativamen-
te o crescimento, o desenvolvimento e a saúde de
crianças e adolescentes. Essas condições precárias
CONSIDERAÇÕES COMPLEMENTARES de vida existem porque ainda persiste a injustiça so-
E PERSPECTIVAS cial no Brasil.
elas são experimentadas (e medidas) frequente e si- Aqueles que experimentam condições adversas
multaneamente, isso seja difícil de ser verificado. são mais prováveis de serem filhos de pais os quais
Nem sempre a criança é impactada pela expo- eles próprios foram expostos a EAIs. Essa transmis-
sição às EAIs, como, por exemplo, algumas vezes a são intergeracional de adversidades é uma forma de
separação dos pais, na qual a violência doméstica desigualdade que reduz a mobilidade social.15
se encontra presente, pode ser fator protetor para o Há necessidade de intervenção precoce, de pre-
bem-estar das crianças. Entretanto, evidências na venção de doenças e de promoção de saúde e de de-
Inglaterra e em outros locais mostram que crianças senvolvimento humano; de diálogo entre diferentes
e jovens expostos às EAIs correm mais risco de mor- áreas do conhecimento e entre os setores responsá-
te ou lesões antes de atingirem a idade adulta e de veis por esse público formado por crianças e adoles-
mortalidade prematura na idade adulta. Por exem- centes. O conceito de saúde deve integrar as políticas
plo, mulheres expostas a duas ou mais EAIs antes públicas de todos os setores de uma administração
da idade de 18 anos têm risco de morte de 80% em (economia, direito, educação, indústria, agricultura,
torno de 50 anos quando comparadas com aquelas desenvolvimento social, habitação, emprego, trans-
não expostas a alguma EAIs. Indivíduos expostos porte, saneamento, etc.), fazendo parte da cultura
a EAIs têm mais chance de morrer jovens e de ex- da governança. Esses setores devem atuar de forma
perimentar uma variedade de doenças – incluindo coordenada e coerente. As políticas de saúde não de-
câncer, doença cardíaca, doença pulmonar, doença vem ser consideradas ações planejadas e colocadas
hepática, acidente vascular cerebral, hipertensão, em prática isoladamente pelo setor saúde e desvincu-
diabetes, asma e artrites. EAIs aumentam também o ladas dos outros setores.16
risco de doença mental. A Organização Mundial de Esses conceitos essenciais devem ser introduzidos
Saúde estima que 30% das doenças mentais no adul- precocemente pela Universidade durante a formação
to em 21 países podem ser atribuídas às EAIs.15 Fren- profissional a partir das atividades de ensino, pesqui-
te a todos esses dados da literatura relacionados aos sa e extensão, sendo que esta última, representando
impactos das adversidades sobre as pessoas durante uma atividade carregada de significados, traduz o mo-
os diferentes períodos do ciclo de vida, não causam mento em que a universidade se encontra com a comu-
surpresa os impactos biopsicossociais causados nidade. E a comunidade é a razão e a patrocinadora
pelo fenômeno da exclusão social e resumidos na da existência da universidade, devendo ser, portanto,
descrição da síndrome da exclusão social. protagonista nesse processo. O pagamento da nossa
Existem três caminhos em potencial por meio dos dívida social é uma prioridade urgente.
quais as EAIs podem impactar a saúde:
9. Portinari C. Favela. 1957. Óleo sobre tela, 46 x 55 cm. Museu Na- 13. Shonkoff JP, Garner.The lifelong effects of early childhood adver-
cional de Belas Artes. Rio de Janeiro, RJ - Brasil. sity and toxic stress. Pediatrics. 2012; 129:232-46.
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