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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

ESTUDO ESTILÍSTICO E ICONOGRÁFICO DAS ESCULTURAS


EDAN DO ACERVO DO MAE-USP *

Adem ir Ribeiro Junior **


Marta Heloísa Leuba Salum ***

RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do
acervo do MAE-USP. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258,
2003.

RESUMO: O Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo


possui um conjunto de peças de metal fundido usados por uma instituição tradicional
dos iorubás, Nigéria, de caráter político-religioso chamada associação Ògbóni. Os
objetos dos Ògbóni são normalmente feitos de liga metálica, referidos nas publicações
como “bronzes”, sendo edan um tipo específico desses objetos. O objetivo deste
artigo é apresentar um estudo dos edan dessa coleção em que sistematizamos os
dados documentais, históricos e etnográficos correspondentes e os obtidos através da
análise formal, funcional e simbólica das peças. Isso conduziu à caracterização das
esculturas edan da coleção ògbóni do MAE, definindo-as como uma categoria
especifica de produção técnica, mas sobretudo estilística e iconográfica dos iorubás.

UNITERMOS: África: Iorubá - Arte africana: estilística - Escultura em metal -


Iorubá: associação Ògbóni - Mitologia: Ilè - Museus: estudo de coleções.

Apresentação associação é uma instituição político-religiosa tradi­


cional, estreitamente relacionada ao culto a Ilè (“Ter­
O Museu de Arqueologia e Etnologia da Uni­ ra” ou “território”, na forma de uma poderosa divin­
versidade de São Paulo possui um importante, e iné­ dade feminina). As peças dos Ògbóni são, em maio-
dito, conjunto de objetos de metal fundido usados
pela associação Ògbóni1dos iorubás,2 Nigéria. Essa

(1) Traduzimos a expressão corrente Ogboni Society (do


inglês) por “associação Ogbóni”, para não haver engano
(*) Este artigo é resultado de um plano de estudo em pensá-la como uma sociedade no sentido de uma
vinculado ao projeto “Tratamento de acervos africanos nação ou povo, e intensificar o sentido de instituição e de
em museus do Brasil face aos estudos africanistas no país fraternidade que ela possui.
e aos sistemas de catalogação internacional: o caso do (2) Desde já, os termos vernaculares serão grafados
Museu de Arqueologia e Etnologia da USP” conforme a fonética da língua iorubá. A grafia desses
(**) Bolsista PIBIC/CNPq do Museu de Arqueologia e vocábulos varia de um autor para outro (especialmente a
Etnologia e graduando do Departamento de História da grafia dos tons e das vogais específicas do iorubá). Por
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da isso, utilizamos a escrita mais difundida dentro do
Universidade de São Paulo. conjunto das obras citadas. Fazem exceção as palavras já
(***) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade aportuguesadas como axé, ifá, nagô, obi, orixá ou
de São Paulo. mesmo iorubá, que serão grafadas no nosso idioma.

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RIBEIRO JR„ A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Rev. do
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ria, antropomórficas, e, freqüentemente referidas nas membros Ògbóni - o ilédi? É também, segundo a
publicações como “bronzes” 3 bibliografia consultada, o objeto que é empregado
Todas as esculturas dessa associação podem ser, para os usos mais diversificados dessa associação.
genericamente, chamadas de edan, mas adotamos a Por conseguinte, ele se tomou seu emblema.
definição sim plificada apresentada por M orton- O objetivo deste artigo é apresentar uma caracteri­
Williams (1960: 369), segundo quem o objeto edan zação dos edan do acervo do MAE, sistematizando da­
“(•••) consiste essencialmente de duas imagens de dos documentais, históricos e etnográficos corresponden­
latão (ou bronze) - uma de um homem nu, a outra de tes e os obtidos através da análise formal, funcional e sim­
uma mulher nua - unidos por uma corrente, e cada bólica. Dividimos este artigo em três partes: 1. Discussão
uma montada num espeto curto de ferro (raramente bibliográfica; 2. Estudo etno-morfológico dos objetos -
de bronze)” .4Assim, consideramos edan os objetos que está subdividido em quatro itens constitutivos: históri­
apresentados na Tabela I.5 Devemos ainda acrescen­ co das peças; classificação funcional; análise estilística;
tar que, como o seu sinônimo, òlóló, edan é um subs­ análise iconográfica; e, 3. Conclusão.
tantivo feminino (cf. Lawal 1995:41-43 e Morton-
Williams 1960:369), e que se trata, conceitualmente,
de um objeto unitário, ainda que formado por duas 1. Discussão bibliográfica
estatuetas.6
As demais esculturas da associação Ògbóni têm 1.1 Da associação Ògbóni
características semelhantes, mas não apresentam cor­
rente, nem o pino ou espeto de ferro. Em vez disso, O território iombano é composto por vários rei­
têm uma base plana, pés grandes ou pernas ajoelha­ nos, onde os direitos sobre o uso da terra são
das, o que as sustenta na vertical, razão pela qual, patrilineares. O termo yoruba foi difundido a partir
presumivelmente, são usadas em altar, sendo algu­ do século XIX para designar os povos que, além da
mas delas, por vezes, chamadas de onilé ou ajagbo. mesma língua, tinham a mesma cultura e tradições ori­
O objeto de que tratamos neste artigo se distingue ginárias de Ilé-Ifè, onde, segundo os mitos, o primei­
dessas outras esculturas ògbóni, principalmente, por­ ro rei iorubá, Odúduwà, estabeleceu-se, vindo do
que cada membro possui o seu; é um objeto sagrado leste. Apesar disso, essas cidades nunca tiveram uma
que pode ser visto por não iniciados; e, pode ser re­ centralização política e esses povos não se chama­
tirado do santuário onde ocorrem as reuniões dos vam entre si por um único nome. Aqui no Brasil, os
escravos de origem iombá foram mais conhecidos por
nagô e em Cuba por lucumi. Após a partilha colo­
nial da África (Congresso de Berlim de 1884-85),
(3) Cf. item 2.2., em que trataremos dos problemas de esses povos ficaram divididos e hoje estão localiza­
material e técnica.
dos em cinco países: a maioria no sudoeste da Nigéria,
(4) “(••■) consists essentially o f two brass (or bronze)
images, the one o f a naked man, the other o f a naked uma parte na República Popular do Benim (ex-
woman, linked together by a chain, and each mounted Daomé) e alguns grupos no Togo, em Gana e Serra
on a short iron (rarely, brass) spike” Leoa (cf. Verger 1981: 11-16; Adékòyà 1999: 13-
(5) A partir de agora, nos referiremos a cada edan 57). Veja o mapa ilustrativo.
estudado pelo número que apresenta nesta tabela. Todas A associação Ògbóni,8 também chamada de
as fotografias deste artigo foram tomadas por Wagner
Souza e Silva (MAE-USP), a quem agradecemos seu
Òsúgbó, é, como já mencionamos, uma instituição
entusiasmo e colaboração na determinação de vistas que
resultassem em imagens reveladoras e expressivas dos
objetos, sem abrir mão da fidelidade que um estudo
fotográfico científico exige neste caso. (7) Como explica Lawal (1995: 41): Iléodi, “the house of
(6) O uso do artigo masculino na frente da palavra edan só secrets”
pode ser aceitável, então, se for referente ao objeto a que a (8) Não devemos confundir a associação Ògbóni, tradicional
concepção de edan dá forma. Quando escrevemos '"edan ”, entre os iorubás - conhecida na literatura inglesa como
estamos nos referindo, mesmo que implicitamente, ao “Aboriginal Ògbóni Fraternity - A.O.F.” - com a “Reformed
objeto e, por isso, usamos o artigo masculino. Procurare­ Ogboni Fraternity - R.O.F.”, que foi criada em 1914 por um
mos manter esse critério ao longo do nosso texto, no qual o padre anglicano, o Reverendo Thomas Adésínà Jacobson
objeto edan também poderá ser tratado como escultura. Ògúnbíyí, que revisou os rituais e o simbolismo tradicional
Quando escrevemos “figura” ou “estatueta”, queremos para ser aceitável aos cristãos, muçulmanos e indivíduos
designar uma das duas imagens do edan. não-iombás (Lawal 1995:39).

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Tabela I
Esculturas edan da coleção ògbóni do M AE - USP

N° 1 N° 2 N 3

N° 4 N° 5 N° 6

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Tabela I (cont.)
Esculturas edan da coleção ògbóni do M AE - USP

N° 10 N° 11 N° 12

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Tabela I (cont.)

Esculturas edan da coleção ògbóni do M AE - USP

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com funções religiosas, judiciais e políticas. Ela é poderosa e inescrupulosa organização” 10 Frobenius
uma espécie de assem bléia de anciãos da cidade, (apud Morton-Williams 1960:362), explorador e via­
unidos ritualmente, que regem um importante culto jante alemão, partilhava concepções semelhantes quan­
estruturado a partir da cosmogonia dos iorubás - o do, em 1913, caracterizou a Ògbóni da cidade de Ibadan
culto dille, que, às vezes, é tida como mais podero­ como uma “Companhia de Decapitação Ltda” 11
sa do que os orixás, e até mãe de todas as deidades Esses dois autores reproduzem as ideologias
iorubanas (cf. Morton-Williams 1960: 364 e Lawal evolucionistas reinantes na virada do século XIX para
1995: 41-43). o XX, acreditando que as sociedades européias esta-
N ão se sabe ao certo quando essa associa­ vam num estágio “superior” de civilização. Deste modo,
ção foi criada, mas Ulli Beier (apud Costa e Silva todas as práticas culturais que se afastavam do padrão
1996: 569) afirma que ela deve ter sido uma “res­ ocidental, principalmente os assuntos concementes ao
sonância” de um a religião anterior às mudanças Cristianismo, eram prontamente consideradas como
políticas efetuadas pela chegada de Odúduwà (o prova da “inferioridade” de tais povos, e, conseqüen­
“primeiro rei”, ou “fundador da sociedade”) e seus temente, essas práticas culturais eram desprezadas,
descendentes - aqueles que instituíram o culto dos estando, nessa época, seus praticantes sujeitos à per­
orixás. De acordo com C osta e Silva, os sacer­ seguição severa do govemo colonial.
dotes Ògbóni conservaram o poder e o prestígio Arewa e Stroup assinalam opiniões diferentes quan­
dentro do novo sistem a porque sabiam pacificar do se referem às idéias de Webster, que vê essa associ­
Ilè e m antê-la fértil. Os sacerdotes Ò gbóni, no ação como “o último desenvolvimento da sociedade
segredo de suas reuniões, teriam continuado a tribal”, e também de Dennett, que sugere “um aspecto
p raticar sua fé, cuidar da ordem e estabilidade senatorial” para essa associação, o qual protegeria o
social e da m anutenção dos velhos costumes. Por interesse público do despotismo do oba (rei) (Webster,
isso, conform e o autor, “os novos reis viram -se Dennett apud Arewa e Stroup 1977: 274-276).
obrigados a prestar hom enagem aos oniles, ou William Bascom (apud Morton-Williams 1960:
'donos da te rra ’” 362 e apud Arewa e Stroup 1977: 274-276) refuta
Notamos a semelhança desses dados com os a classificação de “sociedade secreta” e afirma que,
colhidos e publicados por Morton-Williams (1960: sociologicamente, a associação é semelhante a ou­
364), que segundo a tradição, “ a Terra (...) existiu tros grupos ou associações religiosas iorubás como
antes das divindades e o culto Ògbóni antes da rea­ dos Egúngún e Agemo. Ele acredita que essa classi­
leza. A Terra é a mãe a quem os mortos retomam. A ficação é imprópria e advenha da distinção rigorosa
Terra e os ancestrais, não as divindades (orixás), são que as culturas ocidentais fazem entre a Igreja e o
as fontes da lei moral” 9 Estado. E, m esm o que considere a associação
O texto mais antigo a que tivemos acesso sobre Ògbóni como religiosa, admite o papel político que
a associação Ògbóni é do Coronel Ellis, que data de ela tem na organização social iorubá.
1894. Nessa obra, ele já aponta dois aspectos dessa Morton-Williams (1960:362), por sua vez, acre­
associação que foram questão de controvérsia du­ dita que ela seja uma típica “sociedade secreta” pelos
rante todo o século XX e sobre os quais, até hoje, seguintes motivos: seus membros têm poderes secula­
não há consenso entre os africanistas: a denomina­ res porque proclamam poderes místicos, o que lhes
ção de “sociedade secreta” e a ambivalência de sua outorga privilégios em relação aos não associados;
competência que compreende, ao mesmo tempo, acredita, também, que ela seja seletiva, que exige al­
assuntos religiosos e seculares. gumas qualidades e feitos dos que pleiteiam integrá-la;
Ellis (1894: cap. V, 2o §) vê a Ògbóni como e, ainda, que seus dirigentes tenham o direito de impor
uma instituição tirânica: “acredita-se popularmente que sansões àqueles que revelam seus segredos e proce­
os membros possuam um segredo do qual deriva seu dimentos ou quebram os acordos firmados.
poder, mas o único segredo parece ser o de uma

(10) “The members are popularly believed to possess a


(9) “Earth (...) existed before the gods, and the Ogboni secret from which they derive their power, but their only
cult before the kingship. Earth is the mother to whom the secret appears to be that o f a powerful and unscrupulous
dead return. Earth and the ancestors, not the gods organization (...)”
(orisa), are the sources o f the moral law.” (11) “Decaptation Company, Limited”

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Essa associação tem poderes maiores que os do tentam a sua função no poder secular. Destacam-se,
oba, pois são seus sacerdotes que fazem os funerais porém, outros autores de referência cuja leitura foi
e o processo de entronização, cujos ritos são funda­ de grande importância para nosso trabalho: Dennis
mentais na instauração, legitimação e manutenção da Williams, que, entre 1962 e 1963, fez entrevistas com
ordem social e política Há um festival anual na membros Ògbóni e com os Akedanwaiye (artesãos
Nigéria, em que o Basorun, chefe do Qyó M isin joga especializados em edan), estudando os objetos em
Ifá13 para saber se o duplo espiritual do oba ainda campo e em coleções, tais quais as da Universidade
suporta sua estadia na Terra. Estando inapto para de Ibadan e do Museu Nigeriano de Lagos; L.E.
governar, o oba é levado a cometer suicídio, fazen­ Roache, que pesquisou durante os anos de 1968 e
do-se envenenar (Morton-Williams 1960: 364). 1969 na área rural de Ijebu-Ode, Nigéria; e, final­
A Ògbóni possui dois graus de iniciação e par­ mente, Babatunde Lawal, que pesquisou durante os
ticipação: o “júnior” ou We-we-xve e o “sênior” anos de 1966 e 1991 em diversas cidades da Nigéria,
Ologboni ou Alowo. Um membro que entra no We- utilizando a tradição oral para interpretar questões
we-we não faz parte dos rituais secretos até ser um polêmicas como o significado do lado esquerdo e o
graduado quando, então, recebe o título de Ologboni. gênero de Ilè (cf. item 2.4).
U m O logboni é especialm ente nom eado como No MAE, alguns folhetos em que se reprodu­
Apènà, sendo ele o responsável pelas funções judici­ zem informações sobre as peças da coleção ògbóni
ais do culto. Há um pequeno grupo de mulheres exis­ apresentam dados da pesquisa inicial de M arianno
tentes na associação, bem menos numeroso em rela­ Carneiro da Cunha.15
ção ao dos homens, elas não presidem os rituais. São
chamadas Erelú e representam os interesses das 1.2 Da confecção e utilização do edan ògbóni
mulheres da cidade nas reuniões (Morton-Williams
1960: 365-370). O título de Erelú aparece no Brasil A matéria-prima e a linguagem estética
atribuído à dirigente da associação feminina Guèlédé
que também existiu na Bahia até os anos 1930 (Car­
A escultura ògbóni se diferencia da escultura
neiro 1967: 64).14
feita para os orixás. Prim eiram ente, há diferença
De acordo com Lawal (1995: 37), pode-se di­
no m aterial usualm ente em pregado. Enquanto as
zer, em síntese, que a associação Ògbóni cultua o
estatuetas de orixás, ou de outras entidades dos
“espírito da Terra”, Ilè, para assegurar a sobrevivên­
iorubás, seriam feitas de fibras, ferro ou m adeira -
cia humana, a paz, a felicidade, a estabilidade social
16 materiais facilmente degradáveis a grande mai­
da comunidade, a prosperidade e a longevidade. Isso
oria das estatuetas Ògbóni é feita com ligas de
dissolve, definitivamente, a impressão pejorativa com
cobre - um m aterial relativam ente m ais durável
que ela foi descrita pela antiga etnografía.
(Williams 1964: 161).17
A maior parte de nossas informações vieram de
Peter Morton-Williams, que fez pesquisas na cidade
de Ò yó, Nigéria, em 1948, e as publicou em 1960.
Foi quem primeiro descreveu a associação Ògbóni (15) No texto sobre os Ògbóni e os edan publicado no
com maiores detalhes, delineando seu papel político catálogo da “Exposição de peças africanas e afro-
e descrevendo rituais e crenças religiosas que sus­ brasileiras” do MAE, no Congresso Internacional da
Escravidão (1988: 27, 30), reproduz-se a legenda usada na
exposição do antigo-MAE, quando no Bloco D do
CRUSP Em sua obra póstuma (cf. Carneiro da Cunha
1983), Marianno refere-se ao edan quando apresenta
(12) Conselho de Estado da cidade de Qyó externos à “etapas da cera perdida” (p. 985), fazendo apenas breve
realeza e, necessariamente, membros Ògbóni. menção aos Ògbóni (p. 986).
(13) Jogo de adivinhação dos iorubás, chamado Ifá, (16) O uso de madeira na escultura ritual relativa aos
regido pela divindade Orumilá. orixás é restrito apenas a algumas entidades ou modalida­
(14) Maria Júlia Figueiredo, do Terreiro do Engenho Velho des de culto (cf. Salum 1999).
da Bahia, tinha o título de lyalóde-Erelú. Sobre as (17) A caracterização metálica dos edan é propósito de
máscaras e a associação Guèlèdé na África e seu uma pesquisa em andamento, realizada por uma equipe
imaginário no Brasil, cf. item 3 - “Nota sobre a Oxum de multidisciplinar de profissionais técnicos e docentes do
Xangô ou sobre a essência da feminilidade” e item 4 - MAE, da Escola Politécnica da USP e da UFRGS, com
“Marcas honoríficas das 'iyáàgba' nas estátuas de apoio do CNPq (Prof. Dr. Responsável: Hercílio Gomes
Frobenius e de Ibadan” (Salum 1999:184-187). de Melo).

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Segundo Elbein dos Santos (1993: 39-41), o isso, as pessoas comuns o temem. A sucessão dessa
cobre e suas ligas são portadores de axé18e esse arte é geralmente de pai para filho, mas é o Apènà
metal faz parte do grupo do “sangue vermelho” do quem , em últim o caso, define quem será um
reino mineral. Mesmo que a pertinência etnológica akedanwaiye. É também o Apènà quem certifica se
ou vernacular dessa classificação seja refutada por a imagem está dentro dos padrões aceitáveis no cul­
Verger (1982: 8), não é de todo im procedente a to, podendo rejeitá-la.
suposição de que a essas ligas seja atribuído, assim As fases de confecção podem ser ilustradas pela
com o por grande parte da hum anidade, pelos Foto 1, compondo-se de seis etapas:
iorubás, um significado maior, por causa da cor, do a) a providência de um bastão, normalmente de
brilho e até da tecnologia dem andada não apenas ferro,20 usado na estrutura da peça como eixo axial;
para a extração e m anipulação de minérios, mas b) a modelagem da imagem em argila; nessa eta­
também pela sofisticação da técnica de elaboração pa, o akedanwaiye mantém uma vigília de três dias e
artística do metal. noites, durante os quais a imagem é mantida no fogo
Williams (1964: 139) caracteriza a estética do para secar. Depois disso, ele faz libações, sim boli­
edan como icônica, linear - “projeção não escultural zando a importância suprema da imagem, em sua for­
de um desenho em cera”, hierática e arquetípica. Isto ma de argila, associada com a Terra;
porque se trata de figuras humanas aparentemente c) o revestimento da imagem de argila com uma
tridimensionais, pelo volume, mas detalhadas, via-de- camada de cera;
regra, apenas de frente, reforçando sua imobilidade d) a elaboração dos detalhes de superfície da
corporal mas feitas de serenas expressões caracte­ imagem na cera, última etapa da modelagem que pre­
rísticas (cf. destaque da Foto 2). Segundo ele, essas cede a fundição, em que são feitos sacrifícios adicio­
c a r a c te r ís tic a s c o n tra sta m com a a b s tra ta , nais. Intensas invocações são feitas em nome do orixá
arquitetônica, descritiva e humanística figuração dos auxiliar da feitura, e nos intervalos são quebrados obis
orixás. Esse autor ainda afirma que essas diferenças (nozes de cola, usadas também para a comunicação
são devidas a distintas funções: enquanto as formas com o mundo espiritual) para se assegurar que o pro­
estéticas das estatuetas usadas no culto dos orixás cesso está indo bem;
apenas “simbolizam o espírito” a arte ògbóni é e) a fundição: o calor derrete a cera, que escor­
sacralizada e adorada como se fosse o “envólucro re por um orifício na parte superior da peça de argila
do espírito” e o lugar, antes ocupado por cera, agora é preenchi­
do com a liga metálica derretida. Essa peça é, então,
O artesão e sua obra embrulhada em um pano branco limpo e colocada
para secar em um lugar seguro. Isso é feito no ocaso
O escultor de edan é chamado akedanwaiye, do sexto dia;
que poderia ser traduzido, segundo Williams, como f) a revelação da imagem : na m anhã do séti­
“aquele que traz o edan ao àíyé” - o mundo mate­ mo dia o m olde é rem ovido e o edan é retirado.
rial. Geralmente ocupada por um ancião, essa profis­ Isso deve ser feito de form a m uito cu id ad o sa e
são é evitada pelos jovens pois está associada à im­ sem força. A im agem é lavada e p o lid a com um
potência e à perda de filhos. Além disso, acredita-se pano branco. O iniciado providencia miolo de um
que homens viris podem alterar a forma sagrada da pão de grãos típico (iku ru ) que é am assado em
imagem. Isso não é tolerado, pois ela deve ser fundi­ cim a do novo edan. O obi é lançado novam ente
da com todos os atributos que a tome um ícone. pelo artesão para se certificar que o objeto está
A confecção de um edan é relatada por Williams pronto para ser levado p ara a casa do iniciado.
(1964: 143-145). Ela exige uma evocação contínua Se a resposta é favorável, novo sacrifício é feito
de um orixá auxiliar.19 Freqüentemente, acredita-se sobre as imagens junto com pim entas. Um pouco
que esse escultor adquire poderes superiores e, por mais tarde, elas são mastigadas pelo akedanwaiye,
que “fala” com o objeto fundido por interm édio

(18) “força vital, que assegura a existência; elemento


dinâmico que permite o acontecer e o devir” (20) Na Tabela VI apontamos a incidência de cinco peças
(19) Não há na literatura disponível menção de qual orixá do acervo do MAE com pinos de ligas de cobre e não de
se trata. ferro. Cf. também uma definição do objeto na Nota 5.

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do obi. No pôr-do-sol, finalm ente, ele é em bru­ a) Rito de entrada ao grau sênior, segundo
lhado em outro pano branco, ju n to com o seu Morton-Williams (1960: 368-369).
m olde, para ser levado ao santuário. Lá, é la v a­
O ingressante deve trazer os animais para
do p elo A pènà. O O lúw o, o o ficiante principal
o sacrifício. Ele se inclina e toca o edan com a
do culto, declara, então, que o edan está pronto.
testa e os lábios antes de os animais serem
Já em sua casa, o iniciado enterra o m olde num
sacrificados e antes de o sangue ser vertido
lu g ar secreto escolhido, onde o edan passará o
sobre ele. Ilè (entidade simbolizada pelo edan)
resto de sua vida (a descrição se refere aos edan
é saudada e o iniciante é instruído pelo Olúwo
de uso pessoal - cf. item 2.2). M as, em bora d ei­
que conclui o rito com uma oração para a
xado nesse lugar, o edan é rem ovido para p ro ­
cidade, como sempre é feito quando um
pósitos ritualísticos, exclusivamente. É lavado pe­
sacrifício é vertido sobre a escultura. Uma
riodicam ente com suco de lim a e algum as ervas
corda com três cauris (búzios) enfileirados é
p ara conter a oxidação do m etal e ser lim po do
amarrada ao redor do pulso esquerdo do
sangue sacrificial.
ingressante e deve ficar lá até o terceiro dia.
Ela é apertada tão fortemente que deixa uma
A escultura e seu uso cicatriz escura no pulso esquerdo, o sinal da
iniciação.
Como dissemos anteriormente, as esculturas
ògbóni têm múltiplos usos. A literatura relata que o b) O mesmo rito anterior, relatado por
Williams (1964:145).
edan pode ser usado, por exemplo, para: prever o
futuro; curar doenças; afastar “maus espíritos”; jul­ No ilédi, um banho é preparado para o
gar cidadãos; enterrar defuntos, entre outros usos. O iniciado numa bacia com água na qual é
edan é o elo que une a comunidade a Ilè. imersa uma escultura edan recém fundida,
Vale a pena destacarmos alguns rituais associa­ previamente purificada por sangue de
dos a essa escultura depois de sua confecção. pombo e ervas m edicinais. A cabeça, mãos,

Foto 1 - Ilustração das etapas de fabricação de uma das imagens do edan pela técnica da
cera perdida.

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pés e genitais do iniciado são lavados pelo oficiais Ò gbóni e anciãos para se reunirem
Olúwo. D epois ele é enrolado num pano no ilédi, onde os adversários são trazidos.
branco da cintura para baixo. O O lúwo O A pènà ouve a disputa e faz um ju lg a m e n ­
invoca bênçãos para o ingressante, que to tentando reconciliar as partes. A m bos
passa o resto do dia evocando força e pagam uma m ulta e providenciam animais
pureza. M ais tarde, Ilè é consultada, por para o sacrifício. O sangue é vertido sobre
m eio do obi, para saber se os ritos foram o edan. Se ficar evidente que um a das
apropriados e se o iniciado foi aceito. Se o partes está m entindo e a disputa não puder
rito não for apropriado, mas o iniciado for ser satisfatoriam ente reparada, uma
aceito, é necessário fazer outro ritual mais provação é im posta: o edan é colocado em
elaborado, com sacrifícios mais numerosos. um a bacia de água (em algum as outras
Q uando o rito é apropriado e o candidato é localidades é adicionado tam bém um
aceito por Ilè, faz-se uma reunião à tarde punhado de terra). Os disputantes são
onde todos os m embros do culto dançam, obrigados a bebê-la. Tem -se que o infrator
especialm ente o iniciado, que dança freneti­ (ou culpado) m orrerá dentro de dois dias.
camente e invoca virtudes para si. A bacia
e) Quando da ofensa entre cidadãos, outro
do banho em que ele foi purificado continua
rito relatado por Morton-Williams (1960:366).
no ilédí coberta por um pano branco, em
que fica a parte do seu dote à associação Alguém que tenha sido seriamente
Ògbóni. Os ritos de oração e purificação ofendido por outra pessoa e que não queira
continuam por dezesseis dias, depois dos estar envolvido numa disputa longa, cansati­
quais o iniciado é considerado um membro va e que envolva outras pessoas, e até
sênior, um Ologboni. feitiçaria, pode apelar para a associação
Ògbóni. Se o assunto é trivial, o A pènà
c) Rito de eleição de oficiante do culto
manda os disputantes procurarem seus
segundo Morton-Williams (1960:369).
chefes comunitários ou os chefes de linha­
Quando um membro Ògbóni é eleito para gem. Se o problem a é realm ente sério, ele
uma função de oficiante do culto, o edan é envia seu edan, convocando ambas as
posto em suas mãos pelo Apènà na presença partes ao ilédi. O m alfeitor precisa fazer um
dos iniciados reunidos. Enquanto ele segura a pesado pagamento em dinheiro e animais
escultura, é dito que apesar de ele agora para o sacrifício. Um a escultura edan é
possuir o título, nunca poderá contar o que trazida para fora e os animais são sacrifica­
acontece no ilédi. dos sobre ela.
d) Brigas entre cidadãos com derrama­ f) Quando da disputa entre os iniciados
mento de sangue - rito relatado por Morton- Ologboni, ainda segundo Morton-Williams
Williams (1960:366). (1960: 366-367).
N a cultura iorubá o derram am ento de Um Ologboni pode acusar outro de
sangue hum ano no chão é sacrílego, a roubo ou de perseguir sua esposa. Em Òyó, na
m enos que se trate de sangue sacrificial. reunião Ògbóni que se segue à acusação, uma
Q uando duas pessoas brigam e alguém é escultura edan é trazida para fora do ilédi e
ferido, derram ando sangue no chão, mesmo posta no chão. O acusado é questionado
que a ferida não seja grave, considera-se sobre a acusação. Se ele concordar que é
ter havido a profanação de Ilè. E ssa verdadeira, o Apènà tentará restaurar as boas
inform ação chega diretam ente ao conheci­ relações. Se ele negar a acusação, precisa
m ento do chefe judicial da Ò gbóni, o declarar na frente do edan: “Se eu fo r
A pènà, pelo povo ou m esm o pelo oba - inocente, eu não sofrerei nenhum dano. Se
tão grave é considerada a situação. Im edia­ eu fiz o que eles estão dizendo, morrerei em
tamente ele m anda um m ensageiro levar um dois dias". O Apènà balança um sino de
edan, o qual é colocado ao lado do sangue bronze consagrado e todos os presentes gritam
derram ado. O A pènà convoca os outros “Axé!". Na região Egbado dos iorubás, as

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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USR Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

partes são postas para beber a água em que a i) Há, finalmente, um rito que marca o
estatueta é imersa. casamento dos Ologboni relatado por
Morton-Williams (1960: 367).
g) Morton-Williams (1960:366) também
se refere a rituais quando ocorre abuso de Um membro Ògbóni idoso, que teme ser
poder. envenenado por uma de suas esposas,
possivelmente subornada por um rival, pode
A associação Ògbóni também pode
casar-se com uma jovem, mandando suas
mandar uma escultura edan para outros
outras mulheres viverem em outro lugar. A
homens nobres da cidade, que julgue estar
nova esposa deve cozinhar e cuidar dele
ultrapassando os limites de seus direitos e
sozinha. Ele a leva ao ilédi e, lá, parte em dois
privilégios. O edan, colocado na porta da casa
um obi; com a ponta do edan ele apanha um
desses homens, impede que alguém cruze o
pedaço e o oferece para ela, pegando o outro
portão principal, sendo um marco de vergo­
para si mesmo. Os dois comem cada qual a
nha, que sinaliza a atitude inconveniente do
sua parte, sendo, assim, considerados unidos
morador. O edan só pode ser removido
ritualmente como as duas figuras que com­
quando o culpado reconhecer sua falta com a
põem a escultura edan, e é dito para ela que
Ògbóni e fizer o pagamento de uma pesada
se o trair certamente morrerá ou ficará louca.
multa, que consiste em animais para serem
sacrificados sobre as imagens.
h) Williams (1964:146)
refere-se a um rito funerário
dos Ologboni usando o edan.
A escultura edan
também desempenha um
papel importante nos ritos
mortuários dos membros da
associação. O corpo é
entregue ao oficiante que
preside a volta do “espírito”
do defunto para o “útero” de
Ilè. Os parentes com pram
animais, cujo sangue além de
essências materiais são
vertidos sobre o cadáver.
São feitas m arcas ao redor
do pulso esquerdo do
corpo. Isso significa a
rem oção dos segredos
concedidos durante a vida.
D urante esse rito o edan é
fincado na terra ao lado das
têm poras do cadáver,
enquanto a corrente que liga
as duas partes da escultura
repousa sobre a cabeça. O
edan só é retirado para o
enterro, ele nunca é sepulta­
do junto com o defunto.
Após o sepultam ento, o
edan volta ao ilédi. Foto 2 - edan 1 (destaque: parte dorsal vista de 3A pela esquerda).

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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

2. Estudo etno-m orfológico dos objetos Essas peças ficaram em depósito no M AE em


nome do Prof. Marianno. Após a sua morte, em 1980,
2.1 Histórico das esculturas edan da coleção elas foram para inventário, e partilhadas entre os fi­
ògbóni do M AE-U SP21 lhos - M ateus Nicolau Carneiro da Cunha e Tiago
Carneiro da Cunha - e o Museu, que recebeu lotes
A primeira peça dessa coleção (Foto 2) foi com­ em doação.25
prada em 1972 da Galeria Segy de Nova York, es­ A Tabela II resume o levantamento da documen­
pecializada em arte africana. Essa galeria, na pessoa tação disponível e sistematiza os dados existentes,
de Ladislas Segy, manteve correspondência com o relativos ao processo de incorporação das escultu­
MAE nessa fase inicial de constituição do acervo, ras ao acervo.
vendendo peças que atendessem aos critérios esta­ Sobre o seu valor documental, observamos
belecidos pelo Museu. Da associação Ògbóni só foi que elas não foram ainda datadas, mas, tendo em
adquirida essa peça.22 vista a época em que foram trazidas da África
Os demais edan foram trazidos da África pelo (1974-76) e o preenchimento “recente” do campo
Prof. Dr. Marianno Carneiro da Cunha, que foi leitor relativo à cronologia em diversas fichas catalográficas
da Universidade de Ifè, na Nigéria entre 1974 e correspondentes, podemos tê-las como do século
1976.23 As peças foram compradas em entrepostos XX. Observa-se que esse culto conservava-se
de venda de arte tradicional no período dessa via­ ainda nos anos 1970. E é possível que, de acordo
gem. As originárias dos iorubás, incluindo as da as­ com Roache (1971:48), tanto nas pequenas vilas
sociação Ògbóni, não puderam ser obtidas na Nigéria como nos grandes complexos urbanos do território
porque esse país dificultava a saída do patrimônio iorubá da Nigéria, a Ògbóni ainda prospere como
cultural tradicional, e foram, segundo consta, prova­ há centenas de anos.
velmente compradas no Benim, ex-Daomé. As pe­
ças, portanto, não foram coletadas em campo, mas 2.2 Classificação funcional
adquiridas de pessoas que as revendiam. A exceção
é o conjunto das peças didáticas das fases intermedi­ Não temos conhecimento de uma tipologia que
árias da escultura pela técnica da cera perdida (Foto permita classificar as peças ògbóni em coleções e
1), que foi encomendado diretamente do artesão. A museus. A primeira medida apropriada para analisar
maior parte da coleção Ògbóni do Museu foi forma­ esse conjunto de peças e, particularmente, os objetos
da nessa viagem do Prof. Marianno.24 edan, foi, então, classificá-los pelo uso ou função.
Primeiramente, as esculturas edan da coleção
ògbóni do MAE foram desenhadas utilizando-se um
(21) Cf. também o histórico do acervo africano e afro- formulário de esboço de peças, o qual foi concebido
brasileiro publicado em Salum e Cerávolo (1993). com os seguintes campos:
(22) Cf. Carta de 27/09/72 - de Ladislas Segy (Galeria a) esboço da peça: campo em que o objeto foi
Segy - Nova York), para Prof. Dr. Ulpiano Bezerra de
desenhado de forma panorâmica de frente, perfil e se
Meneses (diretor do MAE); Certificado da Galeria Segy
emitido em 27/09/72; Carta MAE - C. 300/72, de 13/11/72, necessário de costas, contemplando as vistas que pos­
para Ladislas Segy; Recibo de 08/12/72, assinado por suíam detalhes (a maioria deles não apresenta na sua
Antonietta Borba Muniz de Souza; Carta MAE Of. n° 346/ parte dorsal variações de detalhes; a observação de to­
72, de 20/11/72, para o Reitor da USP, Prof. Dr. Miguel das as vistas, inclusive a dorsal foram contempladas, como
Reale; Carta de 22/11/72, de Ladislas Segy para o MAE;
devem, no estudo fotográfico). As medidas da altura,
Carta MAE - C305/72, de 23/11/72 para Ladislas Segy
(todos esses documentos estão na pasta suspensa
comprimento e largura foram tomadas e anotadas no
“Compras - AF” do Setor de Documentação do MAE). esboço desenhado neste campo. Características que
(23) Cf. Relação da coleção pertencente a José Marianno chamaram a atenção foram evidenciadas com setas.
Carneiro da Cunha, posta em depósito no MAE em agosto
de 1976 (pasta “Depósitos - AF”); Relação da coleção de
J.M.C.C. posta em depósito no MAE em junho de 1977
(pasta “Depósitos - AF”); fichas catalográficas das (25) Cf. Carta de 30/08/81, de Maria Manuela Ligeti
peças; Livro de Tombo do acervo. Carneiro da Cunha para a Profa. Dra. Gilda Reale
(24) Dados da entrevista concedida pela Profa. Dra. Maria Starzynski, Diretora do MAE (pasta “Depósitos - AF”);
Manuela Ligeti Carneiro da Cunha a Suely Moraes Cerávolo Relação da coleção doada por Maria Manuela Ligeti
e Patrícia Raffaini em 08/02/1990, registrada em fita cassete. Carneiro da Cunha ao MAE (pasta “Doação - AF”).

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RIBEIRO JR„ A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

Tabela II
Sistem atização da docum entação das esculturas edan do M AE - USP
Altura Ano de entrada / cidade de origem /
N° Tombo
(± 0,5 cm) forma de aquisição

1. 72/3.4 AB 15,0 1972 / origem desconhecida /


comprado da Galeria Segy - Nova York

2. 76/2.17 AB 21,0 e 22,0 1976 / Abeokutá - Nigéria /


viagem do Prof. Marianno à África

3. 76/d.2.9 17,0 1976/I je b u ( ? ) - N ig é r ia / ^


viagem do Prof. Marianno à África

4. 77/d.4.321 e 322 16,5 1977 / Ilobu - Nigéria /


viagem do Prof. Marianno à África

5. 77/d.4.328 e 329 25,5 1977/ Ilobu - Nigéria /


viagem do Prof. Marianno à África

6. 77/d.4.330 e 331 25,0 1977 / Ilobu - Nigéria /


viagem do Prof. Marianno à África

7. 77/d.4.332AB 16,5 1977/Ilo b u - N ig é r ia /


viagem do Prof. Marianno à África

8. 77/d.4.334 e 335 11,5 e 10,5 1977/Ilo b u - N ig é r ia /


viagem do Prof. Marianno à África

9. 77/d.4.336 12,5 1977/Ilo b u - N ig é r ia /


viagem do Prof. Marianno à África

10. 77/d.4.337 11,0 1977/Ilo b u - N ig é r ia /


viagem do Prof. Marianno à África

11. 77/d.4.343M N 38,0 e 38,5 1977 / Ibadan - Nigéria /


viagem do Prof. Marianno à África

12. Sem número (78/d.6.3AB ou 78/d.6.4AB) 12,5 e 13,5 1978 / origem desconhecida/
viagem do Prof. Marianno à África

13. Sem número (78/d.6.3AB ou 78/d.6.4AB) 11,5 e 12,0 1978 / origem desconhecida/
viagem do Prof. Marianno à África

b) detalhes: todos os elementos de composição - quantidade de figuras;


da peça foram desenhados separadamente em tama­
- gênero: masculino, feminino ou
nho maior. Os principais elementos de composição
indeterminado. Geralmente as figuras masculi­
encontrados foram os elementos corporais (olhos, na­ nas de corpo inteiro possuem o pênis bem
riz, boca, orelhas, barba cabelo, sexos, seios, mami­ evidente. As femininas de corpo inteiro geralmente
los, escarificações ou marcas na pele) e os objetos possuem seios e vagina (que às vezes não
simbólicos (facão, bacia, colar, pulseira, cinto, coroa passa de uma reentrância sutil). A figura que
ou chapéu). não evidencia o sexo (edan 9), mas segura os
c) descrição: o objeto e as figuras representa­ seios, foi identificada como feminina porque
das foram descritos observando nas peças as seguintes essa é a representação típica de uma mulher
características: nas esculturas ògbóni.

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RIBEIRO JR„ A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Rev. do
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-objetos simbólicos: elementos que caso das peças de corpo todo, e pares que não
acompanham as figuras, como por exemplo, exibem os sexos, como são as esculturas só com a
amuletos, bastões, coroas e emblemas; cabeça). Esses pares estão, na maioria das vezes
(69%), ligados por corrente. Mesmo as estatuetas
- gestual: nota-se a posição corporal (em
que não possuem corrente têm argolas, sugerindo a
pé, sentado, de joelhos) e a posição dos
união de uma imagem à outra por uma corrente
membros; e,
provavelmente perdida (exceção apenas do edan
- material: cor e qualidade do metal ou 8). Isso ocorre porque a presença e ligação do
liga usados. mascuüno e do feminino têm significado religioso.
Segundo as informações que Morton-
d) observações: campo em que foram anotadas
Williams (1960: 369-372) obteve, a Terra, assim
referências de esculturas semelhantes, além do esta­
como sua contraparte, o “céu” (Olorun), não é
do de conservação da peça, como os defeitos en­
representada por nenhum símbolo na arte iorubá,
contrados, e, dados relativos à superfície m etálica.
entretanto ela é personificada no edan. As
Esse tipo de objeto, por suas características materi­
imagens, segundo ele, representam um Ologboni e
ais, está sujeito a alteração química (corrosão), o que
uma Erelú servindo ao seu mistério, Awo.21
justifica a deterioração em que a coleção ògbóni se
Williams (1964:142) afirma que “o par, masculino
encontra, sendo necessário identificar sua origem e
e feminino simboliza a união do céu e da terra na
sua gravidade, para adotar meios adequados de in­
qual a existência humana é baseada” 28
terrupção desse processo e de proteção futura.26
Não sabemos se é correto dizer que Ilè seja a
Após os desenhos procedeu-se a uma divisão
contraparte de Olorun, como inferem os dois
inicial das mesmas. Separamos as peças em “gru­
autores. Elbein dos Santos (1993: 56) afirma que
pos” e “sub-grupos” por critérios morfológicos. As
“é comum referir-se à terra como àiyé subenten­
categorias preliminares encontradas podem ser vis­
dendo-se que Ilè, a terra, não compreende a
tas na Tabela III.
totalidade do àiyé e que ao falar-se de òrun, não se
trata apenas do céu, mas de
Tabela III todo o espaço sobrenatural”
Classificação preliminar das esculturas Com o escreve a m esm a
autora, a tradução de
Grupo Sub-Grupos N° do edan Olorun por “céu” pode levar
generonao sem corrente 3 a enganos. Sabem os que
so a cabeça (2) ., , àiyé e òrun são os dois
T identificado com corrente 10
Unitário (3) planos da existência. O àiyé
sem corrente é o mundo material, concre­
corpo inteiro (1) feminino com corrente to (a terra, as águas e,
inclusive, o céu, que se
par sem corrente
só a cabeça (4) cham a sánm o). O òrun é
par com corrente 1 ,2 , 12 e 13
Par (10) um a concepção abstrata, é o
casal sem corrente 4, 6 e 8 mundo espiritual, transcen­
corpo inteiro (6)
casal com corrente 5, 7 e 11 dente, e não pode ser
localizado em nenhuma parte
Com a Tabela III, procuramos orientar o do à iy é , pois ele “é um mundo paralelo ao
estudo bibliográfico, de maneira que as pesquisas mundo real que coexiste com todos os conteúdos
feitas até o momento sobre a associação Ògbóni
fornecessem subsídios teóricos para se atingir os
objetivos desse trabalho.
Notamos que a maioria das esculturas (77%), (27) “The Earth is not represented by any symbol in
é formada por casais (pares masculino-feminino, no Yoruba art, although it is personified. This corresponds to
an absence of representation of its counterpart, the sky
Olorun”
(28) “The pair, male and female, symbolizing the union of
(26) Cf. Nota 17. Heaven and Earth on which human existence is based”

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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USR Rev. do
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deste. Cada indivíduo, cada árvore, cada animal, estamos analisando possui 54 % das peças com
cada cidade etc. possui um duplo espiritual e corpo completo e 46 % delas com a representação
abstrato no òrun', no òrun habitam pois todas apenas da cabeça.
as sortes de entidades sobrenaturais (...), ou, ao M orton-W illiam s (1960: 369) relata que
contrário, tudo o que existe no òrun tem sua ou cada ilédi tem pelo m enos dois edan que ficam
suas representações materiais no àiyé “(Elbein sob respo n sab ilid ad e do A pènà. Um é m aior
dos Santos 1993: 54). que o outro e m ais bem detalhado na execução.
D rew al (apud Law al 1995: 45) interpreta E le nunca sai do ilédi. Os outros podem ser
as im agens do edan referindo-se especifica­ sim plificados a um par de cabeças diretam ente
m ente ao par com o os fundadores originais da sobre os pinos de ferro (sem o corpo) e ligadas
com unidade, um a espécie de “A dão e E v a ” por um a corrente. São eles que seus m en sag ei­
dos iorubás. Porém , L aw al refuta essa interp re­ ros carregam . E ssas peças são as únicas que
tação e concorda com a explicação de M orton- podem ser vistas por não iniciados (com
W illiams (1960: 369) de que nenhum a figura exceção dos àgbá - tam bores ò g b ó n i) e as
representa um indivíduo específico, mas o únicas que podem sair do ilédi. A pós a in icia­
m asculino se refere ao papel do O lúwo, como ção, cada m em bro Ò gbóni recebe um edan,
sacerdote-chefe dos Ò gbóni, e a fem inina que depois de sacralizado se torna um talism ã
rep resenta o papel das Erelú. Law al ainda cham ado iboyvo, que protege o seu dono contra
acrescen ta que o edan precisa estar em par feitiçaria usando o poder dos orixás.
para ser eficaz no culto. Segundo as palavras de Williams (1964: 146) também relata o uso de
um ancião Ò gbóni entrevistado por ele, “(...) o edan como amuleto. Segundo ele, esse edan é
m asculino vai junto com o fem inino” 29 ressal­ semelhante aos outros, apesar de ser mais rústico,
tando que a perpetuação do ciclo da existência ter tamanho menor (entre 5 e 8 cm) e poder ser
depende da união dos sexos; e “o bem vai confeccionado também em chumbo, marfim ou
ju n to com o m al” 30 significando que o cosmos eventualmente em madeira. Esse tipo de edan é
iorubá é um delicado e inseparável balanço levado com o sacerdote, especialm ente durante as
entre o bem e o mal. O fem inino na cultura viagens para ele ser reconhecido como membro
iorubá indica positividade, com placência; o Ògbóni em outras casas de culto.
masculino indica negatividade, rigidez. O fato Roache (1971: 53) tam bém encontrou edan
de o conjunto todo (as duas im agens ligadas sendo usado com o am uleto, devido seus
pela corrente) sim bolizar Ilè, e não apenas a poderes apotropaicos. Ele considera esse tipo
figura fem inina, não quer dizer que essa divinda­ de edan, via-de-regra, um a m iniatura que tem
de seja andrógina, mas sim que é um a divindade cerca de 3 cm de altura, constituído apenas
com pleta; ela é, ao m esm o tem po, “(...) firm e e pelas cabeças.
delicada, boa e má, generosa e perigosa.(...) A cabeça, entre os iorubá, é a parte mais
E la é quem dá a vida e quem recebe o m orto, importante do corpo. É cham ada ori, que,
a ‘M ãe de Todos e ainda a criadora da segundo Ribeiro (1995: 191) significa “literal­
feitiçaria”31 (Law al 1995: 45-46). m ente, cabeça física. Esta é, entretanto,
Agora que discutimos as interpretações sím bolo da cabeça interior chamada ori inu,
relativas à unicidade da escultura edan, vejamos o que constitui a essência do ser e controla
que os autores escrevem a respeito das esculturas totalmente a personalidade do homem, guiando
que se apresentam só com a cabeça e as que e ajudando a pessoa desde antes do nascim en­
possuem o corpo inteiro. O grupo de edan que to, durante toda a vida e após a morte. É pois,
a centelha divina no humano. Ori é que recebe
de Deus [Olorun] o destino, p o r ocasião do
nascim ento da pessoa'1'’
(29) “(... )Tako, tabo, ejiwapo (Male and female go together)” A partir dessa análise bibliográfica, e conside­
(30) “(.. .)Tibi, tire, ejiwapo (Good and evil go together)” rando nosso material empírico, deduzimos que
(31) “(...) she is both firm and tender, good and evil,
existem pelo menos três classes funcionais para as
generous and dangerous.(...) She is the giver of life and
receiver of the dead, the “Mother of All” and yet the esculturas edan. Suas características são agrupadas
originator of witchcraft” na Tabela IV.

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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

Tabela IV
Classificação funcional de edan
Classe Características

edan de ilédi São peças maiores e mais detalhadas, mostrando o corpo todo
do casal de figuras, que permanecem e são usadas em cultos
dentro do ilédi.

edan pessoal (ibowo) São esculturas pessoais que podem mostrar o corpo inteiro das
figuras, mas são de tamanho menor e mais rústicas. Usadas como
amuleto e identificador do associado.

edan de mensagem São usadas pelos mensageiros do Apènà fora do ilédi. São
mais simples, podendo apresentar somente as duas cabeças.

A classificação se baseou na forma e tamanho elementos presentes nas estatuetas. Eles estão
do objeto. Porém, o que define a classe de edan é agrupados na Tabela V. Na Tabela VI, condensamos
o uso que fazem dele, mais que seu tamanho ou os dados da tabela anterior, apresentando um mapa
forma. É possível que imagens simples e pequenas geral de todos os tipos de elementos presentes.
sejam usadas dentro do ilédi e que imagens Lembramos que, por serem modelos, podem sofrer
grandes e elaboradas sejam usadas nos cultos fora algumas variações de tamanho e de acabamento, de
dele. O tamanho da peça, por si só, não expressa o acordo com a peça. Os desenhos dos modelos
menor ou maior poder da escultura, mas pode ser o foram tomados das vistas que dão m elhor
reflexo do poderio político-econômico do reino visualização dos elementos característicos recorren­
iorubá a que pertence. Desta forma, nos é impossível tes. Na maioria dos casos, o desenho foi tomado de
precisar que tipo de uso as peças edan do MAE frente da figura humana. Quando usamos outras
tiveram, pois a documentação das mesmas não tem vistas, elas vão mencionadas na própria tabela. Os
nenhuma indicação sobre isso. Essa classificação, desenhos da Tabela V foram elaboradas em traço
portanto, serve como um instrumento de representa­ digital por Ademir Ribeiro Junior, a partir das
ção e ilustração das diversas formas, possibilidades fotografias tomadas por Wagner Souza e Silva,
de usos e crenças que a escultura edan possui. destacando elementos significativos resultantes da
análise estilística (cf. Nota 5).
A partir do exame das Tabelas V e VI,
2.3 Análise estilística podemos apontar algumas observações que
caracterizam as esculturas analisadas:
A partir da observação das peças, dos dese­ a) as correntes são todas de ligas de cobre. A
nhos e das fotografias, construímos modelos para os literatura consultada confirma que essas ligas são as

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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Rev. do
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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USR Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.
RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.
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Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

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Obs.: 1) Os números correspondem aos respectivos tipos da Tabela V;


2) X: elemento presente;
3) - : elemento ausente;
4) Fe: material de ligas de ferro;
5) Cu: material de ligas de cobre (latão, bronze etc.);
6) *: presente no pulso esquerdo e direito.
RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USR Rev. do
RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

mais usadas, mas registra também que, raramente, um valor tão significativo e importante, a palavra
alguns edan apresentam corrente de ferro (Williams não é usada desnecessariamente e sem prudência
1964: 157-160); (H am pâtéB â 1982);
b) a argola, usada para unir a imagem à g) a barba é um elemento que simboliza a
corrente, é lisa e fica posicionada no topo da sabedoria e a longevidade. De fato, os sacerdotes
cabeça, num plano perpendicular ao plano da face ògbóni são anciãos grandes conhecedores da
(exceção apenas dos edan 9 e 10, que possuem cultura iorubá, pois são iniciados no jogo de Ifá e
argolas na nuca, e do edan 2, que possui a argola grandes depositários da tradição oral. A barba não
num plano paralelo ao plano da face); é um bom parâmetro para a identificação do gênero
c) exceto o edan 13, todas as esculturas das figuras porque as femininas também podem ser
apresentam algum adorno na cabeça, consideran- esculpidas com esse elemento (cf. edan 2);
do-se também, como adorno, a forma de um h) todas as figuras femininas, que apresentam a
cabelo artisticamente penteado (como é o caso dos figuração humana completa, possuem seios, e têm
edan 8 ,9 e 10). Esses adornos possuem formas as mãos estendidas em gesto de oferecimento (cf.
que sugerem um movimento para o alto. Isso pode item 2.4);
ser observado no formato cônico das coroas dos i) quanto ao gestual e aos objetos, observamos
edan 1, 2, 3 ,4 ,5 ,6 , 8 e 9; no formato helicoidal as características abaixo:
das coroas presentes nas figuras do edan 9; no
- quando as figuras do edan não estão
formato cuneano do cabelo das figuras do edan 8;
fazendo o gesto típico Ògbóni (mão esquerda
e, no formato cônico e trançado do cabelo da
sobre a direita) ou segurando os seios, no caso
figura do edan 9. Destacamos que o cabelo da
das femininas, elas portam alguns objetos nas
peça 9 é muito semelhante a um tipo de escultura
mãos;
de altar dos Ògbóni, encimada com pontas como
dois chifres. Morton-Williams (1960: 370, prancha
- as figuras masculinas seguram dois tipos
lia), apresenta um exemplar do Museu Nigeriano,
de objetos', um é relacionado ao gênero
que tem cerca de 76 cm de altura, e é chamada
masculino - um facão ou um porrete - que
onilé ou ajagbo - isto para apontar, aqui, um
fica na mão direita (o lado direito é masculino
exemplo de recorrência de elementos das estatuetas
para os iorubás); o outro tipo é relacionado ao
de altar nos edan propriamente ditos;
gênero fem inino - uma cabaça com alça ou
d) os elementos fisionômicos (olhos, nariz,
uma espécie de bomal - , que fica na mão
boca e orelhas) estão presentes em todas as
esquerda (lado tido como feminino);
estatuetas (com exceção da orelha, que, quando
presente, muitas vezes está voltada para trás, não
- as figuras femininas, por outro lado,
sendo vista, normalmente, de face). Isso ocorre por
seguram apenas um objeto, que é sempre
causa da importância que a cabeça tem em relação
relacionado ao gênero fem inino (bacia, colher
às outras partes do corpo (cf. item 2.2), mas
ou dois bastões);
também pela valorização da parte frontal da maioria
delas; j) as marcas corporais ou escarificações podem
e) todas as figuras das esculturas possuem ser sinais iniciáticos (como os dois símbolos da lua
olhos grandes e o globo ocular projetado para fora. crescente) ou marcas de identidade étnica (como os
Isso é uma característica muito marcante da riscos no rosto);
figuração humana na arte ògbóni', 1) os adereços da cintura ocorrem tanto nas es­
f) todas as figuras possuem a boca aberta. Isso culturas que detalham apenas a cabeça quanto nas
pode ser uma referência à palavra. Nas tradições que se apresentam de corpo inteiro;
africanas a palavra falada tem, além de um valor m) a vagina geralmente é sutil (um vinco no bai­
moral fundamental, um caráter sagrado vinculado à xo-ventre) ou pode nem ser evidenciada, enquanto o
sua origem divina e às forças ocultas depositadas pênis aparece em todas as figuras masculinas de cor­
nela. Além disso, a fala teria o poder de colocar em po todo, e é exageradamente grande;
movimento forças que estão contidas dentro do n) as figuras do edan quase sempre estão senta­
homem, sendo, assim, a materialização ou das (exceto o edan 8, no qual as figuras estão em
exteriorização das vibrações dessas forças. Por ter pé). Aposição sentada é associada em vários lugares

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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USR Rev. do
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da África ao chefe, por isso, é também uma insígnia 2.4 Análise iconográfica
de poder e autoridade - uma postura freqüentemente
associada ao rei; A unicidade do casal ligado pela corrente, o
o) a m aioria das estatuetas possui pinos de realce dos sexos e a importância da cabeça já
ferro. E nquanto 5 figuras (22% num total de 23 foram abordados quando da classificação funcional
im agens) possuem pinos de ligas de cobre, 18 fi­ (cf. item 2.2), que, como vimos, está vinculada, do
guras (78 %) possuem pinos de ferro. M orton- ponto de vista morfológico, sobretudo a esses três
W illiam s, na sua definição estrita de edan, m en­ fatores. Agora nos ocuparemos em analisar a
ciona que tam bém há edan com pino de “b ro n ­ significação de outros símbolos recorrentes nas
ze” ainda que raram ente (cf. N ota 4); e, fin a l­ peças.
mente
p) observamos que muitos dos elementos do
Òsi - o lado esquerdo
edan possuem formas inspiradas no imaginário
Ògbóni que iremos examinar a seguir. Antes porém,
A preponderância do lado esquerdo (òsi) sobre
enfatizamos aqueles que merecem destaque:
o lado direito (òtún) está representada no gestual tí­
- os quatro tipos de nariz encontrados nas pico Ògbóni que coloca a mão esquerda sobre a di­
imagens tendem a ter a base triangular, reita com os punhos cerrados e o polegar escondido
provavelmente inspirados na simbologia (cf. Tabela VII). Eles saúdam Ilè fazendo esse gestual
importante, como veremos, que o número três três vezes na altura do abdome, enquanto dizem uma
possui entre os Ògbóni-, saudação (Morton-W illiams 1960: 372). Os inicia­
dos também se cumprimentam com a mão esquerda
- os braços das figuras femininas, quando e se movem para a esquerda enquanto dançam ao
seguram os seios, ficam numa posição que som das batidas dos àgbá (tambores) dentro do tem­
lembra duas parábolas opostas, ou um duplo plo ou santuário ilédi (Lawal 1995:43).
sinal da lua crescente; Segundo Elbein dos Santos (1993: 70), “de
maneira geral, o que é masculino é considerado
- a barba presente nos edan 1, 2, 3, 5 e como pertencendo à direita e o que é feminino
11 é delineada de modo a lembrar, também, o como pertencendo à esquerda ” . Mas em Drewal
símbolo da lua crescente; isso ocorre, ainda, (iapud Lawal 1995: 43-44), consta que o lado
com o par de orelhas das figuras presentes nos esquerdo nas estatuetas ògbóni não está relaciona­
edan 4, 5, 6 e 11; do ao feminino, mas sim ao sagrado, e por conse­
qüência, aos assuntos potencialmente perigosos.
- as coroas, tendendo a uma forma Lawal discorda dessa acepção, recorrendo à
cônica, delineiam um falo, especialmente as tradição oral, sobretudo aos versos do Ifá, para
coroas dos edan 1 e 11. afirmar que Ilè é uma divindade feminina e que o

Tabela VII

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lado esquerdo, òsi, representa o escondido, o se segue - a progenitura, ou o devir, reiterando os


suave, o poder espiritual feminino, enquanto o lado laços entre passado, presente e futuro. Essa tríade se
direito, òtun, representa a força física masculina, a estabelece quando um Ologboni é visto com as duas
rigidez (cf. um confronto entre essas duas concep­ figuras humanas no peito, usando o edan pendurado
ções em Salum 1999: 168-170). Por isso, a mão no pescoço, como mostra a renomada foto de William
esquerda é metaforicamente conhecida entre os F agg(B lier 1997:97, f. 78).
iorubás como a “mão da p az” ou a “mão do O terceiro elemento é Ilè, o mistério, o próprio
segredo” 32 Com esses novos dados, ele conclui segredo compartilhado (Morton-Williams 1960:373)
que, na iconografia ògbóni, o lado esquerdo - que tem raízes ancestrais. Para Lawal (1995:44),
representa o feminino e o laço entre mãe e filho - e “o número três (eéta), (...) significa poder dinâmico
entre os “filhos da mesma mãe” (Orno Iyá), como (agbára), ambos físico e metafísico. (...) A terceira
os membros Ògbóni costumeiramente se denominam. parte Ilè/Edan - é a força da ligação da promessa,
É importante lembrar que, genericamente e companheirismo, contrato, obrigação, ou responsa­
universalmente, formas côncavas ou massas com bilidade moral” 33
reentrâncias são associadas à vagina e tidas como Esse número, segundo Morton-Williams (1960:
femininas. Fenômeno semelhante ocorre com as 373), também está presente na concepção iorubá dos
“cavernas” ou “grutas”, e com a “terra” . Na três estágios da existência humana: a saída do òrun
iconografia do Cristianismo primitivo é comum para viver no àiyé e eventualmente se tomar um espí­
vermos a Virgem M aria dando à luz no interior de rito em Ilè. Os iorubás também acreditam na existên­
uma gruta, e não em um estábulo. cia de três componentes “espirituais”: èm í(a respira­
No romance “O mundo se despedaça” do ção); ara-òrun (um componente que retom a para o
escritor nigeriano Chinua Achebe (cf. Achebe òrun para renascer), e imole (que se tom a um an­
1983) fica evidenciado o papel central do culto à cestral).
terra também para os ibôs. Tratando da questão, Elbein dos Santos (1993: 71) aponta que três
ainda que literariamente, o autor revela como a são também as forças que constituem o universo e
terra personifica-se em divindade feminina e como tudo o que existe: Iwà, princípio da existência, Axé,
esse culto foi desestruturado pelos colonizadores. princípio da realização, e Àbá, princípio orientador.
Considerando a proximidade geográfica e cultural E, nos terreiros nagôs da Bahia a que se refere a au­
dos ibôs com os iorubás, esse paralelo vem tora, o número três também está ligado à terra: “toda
reforçar a profundidade do significado de Ilè, como ação ritual no ‘terreiro’ está indissoluvelmente ligada
“território” ou “divindade”, na compreensão do à terra; desde Olorun, passando por todos os orixás
imaginário ògbóni. até os ancestrais, todos são saudados e invocados
no início de cada cerimônia derramando um pouco
Eéta - o número três de água três vezes sobre a terra” (idem: 57).

O número três é muito recorrente na iconografia Osu - símbolo da lua crescente


ògbóni. Podemos vê-lo representado nos elementos
triplos ou em forma triangular. A Tabela VIII mostra Drewal (apud Lawal 1995:47) interpreta o
alguns arranjos possíveis, mas há muitos outros símbolo da lua crescente como a abstração de um
encontráveis, de forma idealizada, nos elementos de pássaro, que é um dos emblemas das “feiticeiras”
estilo (cf., por exemplo, as construções de coroas e iorubás. Confira o “edan sentado com pássaros
narizes, ou estruturas das correntes e escarificações ‘mensageiros’” - peça da coleção R. Cte de la
da Tabela V). Burde, (Roache 1971: 51, f. 7 ) - e m que os corpos
De acordo com os autores consultados, a união dos pássaros, representados de perfil sobre a
do masculino e do feminino na imagem do edan sim­
boliza a formação do “terceiro” . Seria como aquele
gerado pela complementaridade de partes, aquele que (33) “The number three (eeta), on the other hand,
signifies dynamic power (agbara), both physical and
metaphysical. (...) the third party - Ile/Edan - is the
(32) “owó àlááfíà (the hand o f tranquillity)” e “owó awo binding force o f a promise, fellowship, contract,
( “hand o f secrecy”). obligation, or moral responsibility.”

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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USP. Re v. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

T abela V III
Eéta - o n ú m e ro três

pemas flexionadas formando um escarificação em forma de vagina em forma triangular com


triângulo - detalhe do edan 5 triângulo - detalhe do edan 7 3 buracos - detalhe do edan 7
(perfil esquerdo). (perfil esquerdo)

olhos tripartidos e nariz em forma porrete (?) com 3 divisões de 3 - corrente com 3 elos e coroa com
triangular, dividido em três — detalhe do edan 4 divisões de 3 —detalhe do edan 12
detalhe do edan 12

cabeça da figura, têm denotada forma de meia lua. Espiral, círculos concêntricos e form a cônica
Outra interpretação vem dos informantes de Lawal,
segundo a qual esse símbolo é Osú, a lua crescente, Os informantes de Lawal (1995:47-48) deram
associado à inovação e a regeneração. Ele é duas diferentes, porém relacionadas, interpretações
conhecido pelas mulheres iorubás, que se baseiam sobre a espiral e os círculos concêntricos que
na fase crescente e minguante da lua como calendá­ aparecem nas estatuetas. A primeira delas diz que esse
rio menstrual. Ora, as “feiticeiras” não deixam de símbolo representa o giro (ranyinranyin) da forma
ser agentes dinâmicos e transformadores, havendo cônica de um caramujo (òkòtó), que é brinquedo de
consonância no cruzamento da argumentação dos criança, e está associado com o crescimento,
dois autores citados. movimento dinâmico e, por extensão, com o poder
Encontramos esse símbolo em vários elemen­ transformador de Exu - o mensageiro divino e
tos dos objetos: nas escarificações na testa das intermediário entre Ilè e edan. A outra versão diz que
imagens (edan 11 e 12), na posição dos braços esses motivos gráficos significam o poder expansivo
femininos segurando os seios {edan 5 e 6), nas de Olocun - a divindade do mar e da abundância. A
orelhas que ficam na parte posterior da cabeça água e a terra são dois aspectos do mesmo fenômeno
(edan 4, 5, 6, 8), no formato do cabelo (edan 8), e cultuado pela associação Gèlèdé como Iyá Nlá
nas barbas de algumas peças (edan 1,5 e 11). Ele (“Mãe-Natureza”), que é chamada, segundo o autor,
pode aparecer de forma dupla como as marcas na “Olókun àjàró òkòtó” - a divindade do mar que gira
testa do edan 12. Exemplos do aparecimento da como o caramujo òkòtó.
forma da lua crescente nos edan vêem-se destaca­ Notamos esses símbolos em diversos elemen­
dos na Tabela IX. tos. Alguns exemplos estão destacados na Tabela

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Tabela IX
Osù - símbolo da lua crescente

formato de lua crescente atrás


da cabeça - detalhe do edan 12

orelhas na parte posterior da braços em forma de osù - detalhe


testa - detalhe do edan 12 cabeça - detalhe do edan 5 do edan 6

X. O que pode vir a reforçar a atribuição do osos iorubás. O edan 9 carrega um par desses bas­
formato cônico, circular concêntrico e espiral a tões, que pode ser uma auto-referência ao edan (uma
Exu é, provavelmente, o formato de glande que imagem do edan segurando outro edan).
algumas coroas apresentam, com o as dos edan 1 c) A bacia é usada pelo Olúwo para lavar o ini­
e 11. O pênis é um dos principais símbolos de Exu ciado (Williams 1967:145), ganhando nova signifi­
(cf. Verger 1981: 78-79), sendo as formas fálicas cação, pois é também essencial nas tarefas judiciais
da escultura dos iorubás atribuídas a essa entida­ (Morton-Williams 1960:366). Geralmente é segura­
de. O cabelo do edan 10 é tam bém muito da pela figura feminina, como no edan 11.
parecido com a cabeleira de Exu da estatuária em d) O facão é um símbolo associado ao masculi­
madeira. no e, por isso, é segurado pela mão direita (o lado
direito é o lado masculino). Simboliza o sacrifício e
Objetos simbólicos também é uma referência às penalidades aplicadas a
qualquer um que revele segredos ou quebre acordos
Os objetos sustentados pelas figuras humanas relativos à associação.
de um edan simbolizam aspectos importantes das e) O porrete também é um símbolo associado
crenças ògbóni e são como que pequenas réplicas ao masculino, como o facão. É segurado pela mão
dos objetos utilizados nos rituais da associação. Se­ direita da figura masculina. Esses dois objetos estão
gue abaixo considerações sobre eles. associados à morte, que é relacionada ao masculino
a) A colher representa a renovação e o reabas­ na cultura iorubá. A morte, ou Ikú, está profunda­
tecimento. É um símbolo geralmente vinculado à fi­ mente ligada à terra e à gênese humana (Elbein dos
gura feminina (como no edan 8), pois remete às mu­ Santos 1993: 106-107).
lheres Erelú que, entre outras tarefas, preparam a f) O bornal - esse elemento que também pode
comida servida no ilédi (Lawal 1995: 47). denotar a forma de uma “cabaça com alça” - está,
b) Os bastões, ou cetros cerimoniais, são sím­ nas peças que constituem nosso corpus de pesqui­
bolos de poder e autoridade dentro dos cultos religi­ sa, sempre no lado esquerdo do corpo de todas as

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T abela X
Símbolos de movimento

mãos em forma de espiral colar com pingente em forma de cabelo trançado - detalhe do
detalhe do edan 6 espiral - detalhe do edan 7 edan 9

coroa helicoidal - detalhe do argola circular trançada - coroa cônica - detalhe do edan 1
edan 1 detalhe do edan 2

figuras masculinas. Parece contraditório, lembran­ Seios


do que, para os Ògbóni o lado fem inino é o es­
querdo, e, ademais, esse elem ento alude à conten­ Todas as figuras femininas sinalizam gestos de
ção de algo poderoso ou valioso, que não pode ser oferecimento com suas mamas cônicas e penden­
visto nem revelado, mantendo-se escondido e ina­ tes. Os seios enfatizam a afeição maternal e
cessível, mas presente. Lembremos que a cabaça é generosidade de Ilè. Segundo Lawal (1995: 46), há
associada, genericamente na África, ao útero, à ges­ um provérbio ògbóni que diz: “o leite dos seios
tação e aos m istérios da vida. É hora de dizer que matemos é doce [ou suave]; nós todos sugamos
os sacerdotes Ògbóni usam um bom al semelhante dele” 34 Ele é entoado três vezes pelos membros
a este objeto do lado esquerdo do corpo quando quando saúdam uns aos outros ou quando tocam o
saem a trabalho (cf. Lawal 1995: 46, f. 10). Pode edan com a língua.
ser uma referência ao grande poder ancestral fem i­ E interessante notar que a figura feminina do
nino de Ilè, que está ligada à “feitiçaria” também. É edan de corpo inteiro, quando não está na posição
importante lembrar que, tradicionalmente, a “feiti­ típica da mão esquerda sobre a direita, parece estar
çaria” entre os iorubás nem sempre é considerada sempre oferecendo algo, de braços estendidos.
uma prática anti-social. As “feiticeiras” iorubás tra­ Nos edan 5 e 6, a figura oferece os seios; no edan
balham com forças muito poderosas e terríveis. Es­ 8, oferece uma colher; no edan 9, um par de
sas m ulheres são anciãs m uito tem idas e respeita­ bastões; e, finalmente, no edan 11 a figura oferece
das na sua comunidade. D iferentemente das cultu­ uma tigela. Todos esses objetos são relacionados
ras ocidentais, que desprezaram e “caçaram ” suas ao gênero feminino (cf item 2.3).
“feiticeiras”, entre os iorubás elas são reverencia­
das e apaziguadas com danças e cerim ônias (cf.
Verger 1992: 23-24; Carneiro da Cunha 1984;
(34) “Òm ú iyá dün ún mu; gbogbo w a la jo nmu ú” ,
quanto à projeção dessa discussão na arte, cf. Salum
traduzido pelo autor com o “the m other’s breast m ilk is
1999: 168-170). sweet; we all suck it”

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Sobre a nudez - são peças iorubás da associação


Ògbóni, que chegaram da África na década de
Os Ógbóni ditam que os seres humanos não 1970 e, provavelmente, são do século XX;
podem esconder nada de Ilè e, em alguns rituais, os
participantes ficam nus. Isso viria a demonstrar, se­ - são objetos de ligas de cobre feitos pela
gundo Williams (1964:146), a imediata relação que chamada “técnica da cera perdida” e com pos­
deve existir entre os homens e Ilè. Em sua pesquisa, tos por um par de imagens baseadas na figura
esse autor constatou que todos os edan de corpo humana. Essas imagens possuem pinos
inteiro são feitos nus. Todos os edan do acervo do metálicos na parte inferior e são ligadas por
MAE, examinados por nós, estão em conformidade uma corrente na parte superior;
com essa regularidade.
- as imagens simbolizam um casal humano
nu. Alguns pares possuem somente a cabeça.
3. Conclusão Quando representam a figura de corpo inteiro,
é comum ver-se nelas a sinalização do gesto
Apontamos a seguir observações que, ao fim ògbóni (mão esquerda sobre a direita).
deste artigo, nos parecem relevantes, tanto do Quando não, elas sustentam nas mãos objetos
ponto de vista teórico, quanto metodológico. determinados. Afigura masculina segura dois
a) Chegamos ao final, com uma síntese bibliográ­ objetos - um ligado ao gênero masculino, que
fica sobre um assunto pouco explorado, de fontes fica do lado direito, e outro ligado ao feminino,
escassas e em língua estrangeira, de pouco acesso que fica do lado esquerdo. Por outro lado, a
entre nós, e, praticamente inexistente em português. figura feminina segura apenas um objeto do
Consideramos que nosso estudo possa vir a contribuir universo feminino com as duas mãos; e,
não apenas para os estudos de coleção, mas para os
de natureza histórica e sócio-antropólogica, bem - nessas esculturas, há uma profusão de
como às pesquisas sobre o Negro no Brasil.35 símbolos materializados por diversos recursos
b) O estudo, objeto deste artigo, permitiu-nos de representação da figura humana. São
delimitar um grupo de peças do acervo de origem perceptíveis pelas marcas corporais, nas
africana do MAE-USP, quantificado, que forma silhuetas de postura, nos objetos-insignias
uma coleção museológica em si mesma, permitindo integrantes, assim como, nos elementos
sugerir denominá-la coleção ògbóni do MAE. constitutivos (como olhos, mãos ou pernas).
Nessa coleção inserem-se, além dos edan aqui Entre os símbolos encontrados estão os
apresentados, as estatuetas “sem pino” e “sem relativos ao número três e à lua crescente,
corrente”, além de algumas outras peças avulsas além dos que indicam movimento e crescimen­
(bastões, recipientes, jóias). Elas serão tratadas em to. Essa caracterização pode ser útil no
uma publicação próxima. trabalho de identificação de outras peças.
c) Outro resultado que nos parece importante
e) No que diz respeito à pesquisa sobre
destacar nesta conclusão é a constatação, pela
coleções, reafirmamos a importância do estudo formal
análise morfológica, da presença ou representação
e funcional como mola propulsora para o exame
no acervo do MAE das três classes funcionais das
aprofundado da documentação escrita, aqui sintetiza­
esculturas edan reportadas na etnografia dos
da, permitindo, no retomo, examinar essas formas
principais autores sobre a matéria.
tão singulares e emblemáticas, desmembrando-as
d) Com o estudo efetuado, temos, agora,
nos seus elementos mais significativos.
embasamento para definir o grupo de esculturas
f) Na possibilidade de estendermos, no futuro,
edan da coleção ògbóni do MAE:
nosso corpus para além das peças da coleção
ògbóni do MAE, os resultados deste estudo
apontam para uma tipologia capaz de auxiliar a
classificação de objetos congêneres conservados
(35) O tema foi objeto da nossa comunicação de
pesquisa, “Edan - emblema da associação Ògbóni na em outras instituições, tendo em vista que não se
África: investigação sobre seu uso no Brasil” (cf. Ribeiro conhece, ainda, pelas publicações especializadas
Jr.; Salum, XISIICUSP, 2003: www.usp.br/siicusp) disponíveis, um trabalho focalizado na matéria

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RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Estudo estilístico e iconográfico das esculturas edan do acervo do MAE-USR Rev. do
Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258, 2003.

RIBEIRO JR., A; SALUM, M.H.L. Stylistic and iconographie study of the edan sculptures of MAE-
USP collections. Rev. doMuseu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 13: 227-258,2003.

ABSTRACT: The Museu de Arqueologia e Etnologia of the University of São


Paulo has a collection of pieces of cast metal used by a traditional institution of the
Iorubas from Nigeria, called Ògbóni society, of political-religious character. The
Ògbóni's objects are normally made of metal alloy, referred in the publications as
“bronzes”, and edan is a specific type of such objects. The goal of this article is to
present a study of the edan of this collection in which we systematize the corresponding
documental, historic and ethnographic data and those obtained through formal,
functional and symbolic analyses of the pieces. This led to the characterization of the
edan sculptures of the M AE’s ògbóni collection defining them as a specific category
of technical, but above all stylistic and iconographic production of the Iorubas.

UNITERMS: Africa: Ioruba - African art: stylistic - Metal sculpture - Ioruba: Ògbóni
society - Mithology: lie - Musei: collection studies.

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Recebido para publicação em 2 de dezembro de 2003.

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