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O cinema livre de Andrea Tonacci

Os filmes de um dos maiores diretores brasileiros podem ser vistos online na


plataforma spcine

O Brasil precisa descobrir o cinema de Andrea Tonacci. Autor de uma das mais
contundentes obras de nossa história, reconhecido pela crítica como um dos nossos
maiores cineastas, é ignorado pela maioria dos brasileiros. Esse desconhecimento fala
muito de nós, de como nossos maiores mestres nos são estranhos. Uma boa
oportunidade de aproximar-se deste trabalho singular foi aberta pela Spcine, plataforma
pública da prefeitura de São Paulo, que disponibiliza filmes online. São seis filmes do
diretor, de diferentes épocas: 'Olho no olho' (1966), 'Blablabla' (1968), 'Bang Bang'
(1970), 'Conversas no Maranhão' (1983), 'Serras da desordem' (2005) e 'Já visto, jamais
visto' (2013). Eles podem ser vistos gratuitamente até o início de março. Depois será
cobrada uma taxa de 3,99 por exibição.
Andrea Tonacci nasceu em Roma no dia 1º de setembro de 1944, um ano após a
rendição da Itália às forças Aliadas. Suas lembranças da terra natal foram retrabalhadas
em seu último filme, 'Já visto, jamais visto'. Ele chegou ao Brasil com a família aos 11
anos. Vivendo entre a colônia italiana e as novas amizades, tornou-se, na juventude,
estudante de arquitetura e engenharia. Nesta época, frequentou o circuito de cineclubes
da cidade e se aproximou de Rogerio Sganzerla que, apesar da juventude, já trabalhava
como crítico de cinema. Juntos, realizaram seus primeiros filmes: 'Documentário'
(1966), de Sganzerla, e 'Olho no olho' (1966), de Andrea Tonacci. Em seu primeiro
curta, que pode ser visto na plataforma Spcine, Tonacci capta o mal-estar de uma
juventude alienada vivendo sob regime autoritário. Mal-estar que se traduz em apatia e
violência gratuita, face de uma adesão, ou ao menos uma não objeção à ordem vigente.
Essa conivência é manifestada pela passividade com que ouvem as notícias do rádio, no
carro no qual circulam ao longo do filme.
Seu segundo curta, 'Blablabla' (1968), contrapõe-se a diversos filmes do Cinema Novo
que buscavam, a partir de uma extensa argumentação retórica, explicar o golpe de 1964.
Tonacci busca compreender o momento seguinte ao golpe a partir do blá blá blá dos
líderes políticos, militares e militantes, construindo discursos em um estado de quase
esquizofrenia. Há um único personagem que se descola deste vazio retórico: uma
guerrilheira latino-americana, vivendo nas selvas a luta revolucionária. O filme é um
dos primeiros a apontar o papel dos novos meios de comunicação na política brasileira e
foi considerado uma afronta ao regime militar. Na sequência, Tonacci partiria para um
período de exílio por conta desta obra.
Em 1970, o diretor lança seu primeiro longa-metragem, 'Bang Bang'. Nele encontramos
um protagonista que foge de seu próprio filme, da estrutura e linguagem de uma obra de
ação e suas convenções. Um dos filmes mais originais do cinema brasileiro, apresenta
um personagem deslocado dentro da estrutura do filme de ação, característico da
indústria cultural. Ou, melhor dizendo, um 'desloucado' (expressão criada pelo crítico
Gunther Anders para caracterizar os personagens do escritor Franz Kafka), Paulo Cesar
Peréio descobrindo a forma de interpretação singular que marcaria futuramente sua
carreira.
Diferentemente de outros filmes da época, uma das marcas de 'Bang Bang' é a profunda
acuidade estética com que seus planos são elaborados. Nota-se, também, como em
outras obras do cineasta, a ausência de um sentimento nacional popular que marcou
muitos trabalhos do Cinema Novo e, de forma diversa, muitas obras do cinema
experimental, (pensemos, por exemplo, em uma certa nostalgia de um Brasil que se
perdeu com o golpe, presentes em obras de Rogério Sganzerla e Julio Bressane). Intuo
que este sentimento 'nativo', de pertencimento, era estranho a Tonacci por este ser um
estrangeiro dentro de seu próprio espaço: se não era propriamente brasileiro, tampouco
sentia-se italiano. Chegando ao Brasil com os pais que se afastavam do fascismo e das
guerras europeias, depara-se com uma ditadura que marcaria sua juventude. Este
sentimento de estranhamento, de 'exílio' como condição de existência, trouxe ao seu
cinema um sentido libertário, de quem não possui amarras com uma pátria e se joga no
mundo com profundo desprendimento. Assim como o protagonista de 'Bang Bang' é um
estranho dentro da estrutura que habita (o filme), Tonacci é um deslocado no país de
adoção, incapaz de qualquer saudosismo, o que não implica por outro lado que não
sentisse um profundo afeto pelas experiências vividas no país.
O filme seguinte foi 'Interprete mais, pague mais' (1975), obra rara, que não se encontra
na plataforma, e que precisa urgentemente ser recuperada. O filme é um dos mais
importantes documentários sobre o teatro brasileiro dos anos 1970, ainda por ser
descoberto pelo público e crítica.
Na segunda metade dos anos 1970, Andrea Tonacci dá um novo rumo em sua trajetória,
aproximando-se da questão indígena. Em 'Conversas no Maranhão' (1983), ele filma o
povo Timbira. Sem compreender o que eles dizem quando dão depoimento em sua
língua nativa, o realizador opta por apresentá-los para os espectadores sem traduzi-los,
alimentando em quem assiste a mesma sensação de deslocamento que ele viveu no
momento em que captava as imagens. Uma das marcas desse filme é a câmera do
diretor, que se relaciona diretamente com os indígenas, como se fosse um personagem.
Nos anos seguintes, Tonacci faria um mergulho no universo indígena, realizando
imagens, experimentos e diálogos com povos de toda a América. Parte deste material
nunca foi editado. Antes de falecer, o diretor pretendia transformá-lo em um novo
trabalho. É um projeto que segue vivo e será realizado um dia por sua companheira de
vida e montadora Cristina Amaral. Entre esses materiais está 'Os Arara' (1981). Andrea
faria um documentário para a TV Bandeirantes que registraria a aproximação da Funai
de uma tribo até então isolada. A série foi cancelada porque Andrea e a equipe da Funai
negaram-se a adiantar o processo natural do encontro para seguir os interesses da
emissora. O diretor finalizou os dois primeiros episódios, onde ainda não encontramos
os indígenas, mas seus vestígios e os planos de aproximação dos antropólogos e
indianistas. A série encontra-se até hoje incompleta, tendo seu terceiro episódio,
justamente o episódio do encontro, por montar. Mais uma vez encontramos um Tonacci
deslocado diante de uma ética de produção que se mostra incompatível com a lógica
comercial da TV que o contratara. Nos anos seguintes, encontramos um diretor
buscando realizar seus projetos, sem, no entanto, compactuar com as formas de
realização então vigentes. Tonacci, um exilado por natureza, exila-se também de um
processo cultural que considerava equivocado e nocivo por sua visão mercadológica.
Anos se passariam até que surgisse 'Serras da Desordem' (2005), um clássico de
nascença, talvez o maior filme brasileiro do século XXI. A obra conta a saga de
Carapirú, índio sobrevivente de um massacre do povo Awá-Guajá nos anos 1970.
Carapirú foge e vive uma espécie de exílio, isolado de seu povo e sua tribo, caminhando
por diversas regiões do Brasil, buscando sobreviver. Muitos anos depois é acolhido pela
Funai e reencontra-se com seu filho Txiramukum, mandado por coincidência para
Brasília para, em nome da tribo, reconhecê-lo. É um reencontro absolutamente
surpreendente, pois assim como o filho acreditava que o pai fora morto no massacre,
Carapirú acreditava que o filho não houvesse sobrevivido. Ele volta à sua tribo, mas
sente que já não é o mesmo, tampouco a aldeia. Um segundo exílio, interno, começa
para Carapirú.
Notemos que este sentimento de deslocamento é uma constante no cinema de Tonacci e
seguirá presente até sua última obra, 'Já visto, jamais visto', um pequeno ensaio sobre o
tempo. Não o tempo vivido, sentido como tal, mas o tempo da rememoração,
estruturado como um sonho. O filme é um inventário de memórias, que joga luz sobre a
obra pregressa do diretor. Foi realizado a partir de arquivo pessoal de Andrea, com
imagens que cobrem um período de quatro décadas, com registros familiares captados
por seu pai ainda nos anos 1950 na Itália, cenas inéditas ou não de seus primeiros
trabalhos, imagens cotidianas, registros de viagens e filmes inconclusos. Fica explícito
mais uma vez neste trabalho a dialética entre rigor formal e liberdade processual com
que o diretor elabora seus filmes, construindo um processo onde a experimentação é tão
fundamental quanto o filme em si, o que resulta em uma obra aberta a múltiplas
interpretações, com forte tendência iconoclasta.
É simbólico que em “Já visto, jamais visto” Tonacci trabalhe pela primeira vez
sua origem italiana. Seja interagindo com seu filho usando as vestes que seu pai usara
na 2a guerra (o pai aparece em fotos com trajes militares ao longo do filme), seja lendo
um trecho de 'O Desprezo', de Alberto Moravia, um dos grandes autores italianos do
século XX, onde o escritor reflete sobre a feitura de um filme: “Naturalmente pode
também acontecer que o filme seja de qualidade superior, que o diretor e os
colaboradores estejam ligados já em precedência de mútua estima e amizade e que o
trabalho se desenvolva naquelas condições ideais que possam verificar-se em qualquer
atividade humana por quanto ingrata, mas estas favoráveis combinações são raras,
como, de fato, são raros os bons filmes...” Não é coincidência também que este livro
tenha sido adaptado para o cinema pelas lentes de Godard, uma das referências do
diretor. Com 'Já visto, jamais visto', encerra-se uma vida dedicada às imagens. 'Já visto,
jamais visto’ 'é constituído de buscas, intuições e reflexões imagéticas. Apresentando-se
como personagem, Tonacci é, nesse trabalho, um elo entre seu pai (passado) e seu filho
(futuro), ambos também personagens do filme, constituindo um ciclo (infância, vida
adulta - paternidade, velhice e morte) que se repõe em uma continuidade afetiva, um
estar no mundo que carrega alguma coisa daquele que antes se foi. 'Já visto' se relaciona
com diversas temporalidades, buscando não uma coerência temporal, mas simbólica.
Temporalidades e simbologias diversas tecem uma teia de alusões e significados abertos
a interpretações múltiplas e que remetem também a outras experiências e filmes.
Apontam, sobretudo, para a incompletude de uma vida refletida numa obra em
processo.
Poucos cineastas levaram tão a sério seguir uma existência coerente com sua
prática artística. Nesse sentido, Andrea foi um dos últimos artistas modernos brasileiros,
entendendo por intelectual moderno aquele que se dedica, com suas ideias e
pensamentos, a promover a liberdade e o conhecimento, embora muitos autores digam
com frequência "que as grandes narrativas de emancipação e esclarecimento se
encerraram", como nos lembra o crítico literário Edward Said. Há, em Tonacci, uma
ética em relação às imagens, que o aproxima do pensamento de Jean-Paul Sartre, em sua
reflexão sobre a liberdade como condição definidora do homem e sua ideia de
responsabilidade decorrente desta condição. É a partir dessa busca por um ideal de
liberdade que talvez possamos nos aproximar da dialética entre rigor e ruptura de seu
cinema, que não se adequa a nenhuma convenção e escapa de soluções fáceis e
explicativas. Em um debate pouco antes de sua morte, Tonacci definiu seu trabalho
como: “esse sentimento de liberdade, essa... Responsabilidade! Com a vida, com os
sentimentos, com os afetos, com a relação, com a confiança. E não com a profissão...”
A condição dupla de italiano e brasileiro, somado à simpatia por ideais
anarquistas, e sua postura de desconfiança frente à política institucional e aos discursos
hegemônicos (mesmo no campo da esquerda) resultam em uma postura de profunda
independência. Ao contrário da maioria dos diretores de sua época, Tonacci nunca
abraçou em seus filmes um discurso sobre a brasilidade, ou a defesa de um projeto
nacional-popular totalizante. Seus filmes explicitam o que fica de fora desse projeto, às
bordas do “Brasil Grande”. A escolha pelo diálogo com diferentes povos indígenas em
seus filmes não é gratuita. Sendo ao mesmo tempo brasileiros e não brasileiros, ocupam
um território tutelado e sempre exposto a invasões e saques. Cultivam em seu cotidiano
uma vida não capitalista, ou ao menos uma tentativa de vivê-la. Estrangeiros em seu
próprio país, os indígenas são o retrato mais acabado da violência incutida no discurso
de país uno. Longe de qualquer discurso nativista, defende o direito a um modo de vida
próprio e celebra a busca pela liberdade em um mundo condicionado por ideologias
violentas. Não há exaltação de brasilidade, mas respeito à alteridade.
A mesma postura pode ser encontrada em outros trabalhos. É difícil encontrar
em ‘Bang Bang’ uma relação explícita com o Brasil. Lógico que podemos relacionar o
personagem de Peréio, vivendo uma fuga incessante ao longo do filme, ao sentimento
de medo e perseguição presentes no cotidiano da ditadura. Mas o deslocamento central
do personagem é em relação ao próprio filme, à linguagem cinematográfica e às
repetições temáticas dos “filmes de ação”. É a linguagem hegemônica que está em
questão em um momento em que alguns diretores até então identificados com o
movimento do Cinema Novo abraçavam um ideário comercial que foi “apelidado” por
eles mesmos de Cinemão.
Portanto, o que está em jogo é o processo de desideologização da imagem. A
ideia de pátria é estranha a este cinema. Se há alguma adesão por parte do cineasta é a
uma ideia de liberdade, calcada na verdade das imagens. A crônica que Tonacci faz de
seu mundo é universal não por ser local, mas por ser única. Um olhar exilado, que
encontra em seu caminho tantos outros exílios. A imagem é a memória particular de um
tempo. Tonacci no cinema brasileiro é Carapirú, vagando por territórios estranhos,
onde estabelece novas relações/ revelações e encontra-se em personagens que o
traduzem: ao olhar para seus personagens e traçar imagens tão singularmente belas,
Tonacci parece nos afirmar, como Gerard Nerval: Eu sou um outro”.

Os filmes de Tonacci podem ser vistos na plataforma Spcine:


https://www.looke.com.br/movies/dist/spcine/andrea-tonacci-filmes

Thiago B. Mendonça é crítico de cinema, diretor e roteirista.

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