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Análise Social, vol.

XXXIII (Primavera), 1999

Maria Cândida Proença (coord.), O formativo, na medida em que publica


Sistema de Ensino em Portugal. as intervenções produzidas durante o
Séculos XIX e XX, Lisboa, Edições VI Curso de Verão e, portanto, dispo-
Colibri, 1998, 182 páginas. nibiliza os textos das lições, conten-
do, no entanto, importantes elementos
de informação e reflexão para todos
Com este livro o Instituto de His- os investigadores que se interessam
tória Contemporânea da Faculdade por esta área temática.
de Ciências Sociais e Humanas da Deve o leitor lamentar, porém, a
Universidade Nova de Lisboa ini- ausência nesta publicação de algu-
ciou a publicação dos textos relati- mas das comunicações apresentadas
durante o curso, em Setembro de
vos aos cursos de Verão que há já
1996, facto que enfraquece, por exem-
alguns anos vem realizando.
plo, a existência de uma análise mais
Não há muitas publicações que,
profunda da evolução do subsistema
partindo de contribuições pluridiscipli-
de ensino secundário ou um olhar
nares, procurem dar uma visão do sis-
mais problematizante sobre os exclu-
tema educativo português no período
ídos do sistema — os analfabetos.
contemporâneo, sendo que parte das
O objectivo do Curso foi, segun-
existentes ou pecam por desactualiza- do Cândida Proença, fornecer a pers-
das ou constituem visões parcelares do pectiva histórica que permita com-
sistema educativo. O livro apresenta preender a importância das práticas
um conjunto de textos que represen- educativas nos processos de acelera-
tam algumas das principais tendências da mutação política e social que ca-
de investigação no âmbito da história racterizam o mundo contemporâneo,
da educação. Contém uma análise das e dar resposta «a três questões fun-
questões relativas ao ensino superior damentais na estruturação de qual-
em perspectiva histórica e na actuali- quer sistema educativo: quem ensi-
dade. Integra ainda uma visão nar? O que ensinar? E como ensinar?».
prospectiva do conceito de escola e de Para além das comunicações que
educação que deverá predominar no procuram responder às questões an-
século XXI. Um conjunto de aborda- tes enunciadas, e que constituem o
gens que fogem ao denso formalismo núcleo central, o livro inicia-se com
temático e académico, que normal- um prefácio sucinto e esclarecedor
mente caracteriza este tipo de obras, sobre o conteúdo da obra, integra
conbinando textos mais formais com inicialmente uma visão prospectiva
outros sem tantas preocupações de da evolução dos sistemas de ensino e
carácter académico, o que facilita a termina com duas abordagens sobre
leitura e estimula o estudo. universidade/juventude versus uni-
Visando a formação de um grupo versidade/sociedade.
de profissionais específico, sobretu- O sistema educativo nacional entre
do estudantes universitários e pro- 1820 e 1910 é analisado por Rogério
fessores do ensino não superior, este Fernandes, que organizou o seu texto
1152 livro garante a conclusão de um ciclo em torno da emergência e evolução
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das instituições educativas, no seu bem como ao experimentalismo pe-


conjunto, no quadro dos contextos so- dagógico, que a historiografia tem
ciais, por um lado, e, por outro, procu- vindo a acentuar (p. 58).
rando explicar as continuidades e as O leitor encontrará ainda a descri-
rupturas ao longo do processo. Partin- ção da realidade educativa que os re-
do da génese pombalina, chega à con- publicanos receberam em 1910 e os
solidação introduzida pela Regenera- esforços que realizaram para a muda-
ção, numa reflexão sobre a evolução rem. Neste contexto são analisadas as
do sistema que o autor articula com a várias reformas do sistema promovi-
das na época, constatando a autora o
história do currículo. Fernandes, consi-
seu reduzido impacto na alteração do
dera que a incapacidade da monarquia
número de alfabetizados, sendo, por
para desenvolver e gerir o sistema
outro lado, dado relevo à melhoria do
educativo conduz «à admissão de que estatuto sócioprofissional do professor
um novo regime político se tornava in- do ensino primário. Finalmente, na
dispensável à superação da crise naci- conclusão, Cândida Proença faz radi-
onal. Essa nova forma política seria a car na monarquia constitucional o iní-
República» (p. 45). cio do movimento rumo à modernida-
Cândida Proença intitulou o seu de, considerando ser a continuidade a
trabalho «A República e a democra- característica mais marcante das reali-
tização do ensino». Começando por zações republicanas no campo
expor a génese do pensamento repu- educativo, uma vez «que será a aposta
blicano, prossegue com a equação da na educação cívica como base do futu-
triade republicanismo, positivismo, ro cidadão que marcará a originalidade
socialismo, e conclui situando quer da escola republicana» (p. 70).
o papel da educação na cultura po- A resposta à questão «o que ensi-
lítica republicana, quer os aspectos nar» integra a abordagem à proble-
essenciais do seu ideário educativo. mática dos conteúdos de ensino. Sér-
gio Grácio avança com um texto
O maior volume do labor intelectual
agrangente sobre as relações entre
centra-se numa segunda parte do tex-
ensino técnico e indústrias em que
to em que aborda de forma consis-
equaciona as principais linhas de for-
tente o papel da escola republicana, ça do ensino técnico profissional,
acentuando o desfasamento relativo com particular incidência sobre os
entre, por um lado, o fraco cresci- períodos da I República e do Estado
mento quantitativo e, por outro, as Novo. Colocando-se numa perspecti-
«inegáveis mudanças qualitativas va eminentemente sociológica,
que se traduziram numa nova ideia Grácio remete para o primado da
de escola e em novas formas de pen- esfera política o desenvolvimento
sar a educação e a formação para a deste subsistema, com a oferta repu-
cidadania» (p. 56). A autora reco- blicana de ensino a orientar-se mais
nhece ainda a importância que foi para uma população já alfabetizada,
dada à formação de professores tanto «isto é, com capacidade para votar e,
de nível primário como secundário, além disso, socialmente mais suscep- 1153
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tível de apoiar o regime e, portanto, lizada, mostram já, segundo o autor,


de retribuir com votos a oferta edu- preocupação de aproximar tendenci-
cativa» (p. 75), embora reconheça almente a oferta à procura no quadro
não ter sido esta a única motivação. da política educativa do consulado
O fim do sidonismo é, para o autor, de Marcelo Caetano.
um marco cronológico a partir do A doutrina da «escola única» em
qual se intensifica esta tendência, Portugal é analisada por Casimiro
que é ilustrada pelo desenvolvimento Amado, cuja génese identifica, esta-
do ensino técnico e industrial, acei- belecendo a ligação entre o debate
tando que a grande procura que tive- francês após a primeira Guerra Mun-
ram as escolas industriais e comerci- dial e a polémica nacional que divi-
ais estava relacionada com a boa diu políticos e agentes educativos em
aceitação que os seus diplomados ti- dois grupos, um a favor, outro con-
nham nas fábricas e oficinas. Em fi- tra. Uma questão que só viria a ter-
nais dos anos 30 o Estado Novo con- minar nos anos 30 com a definição
traria a procura popular das escolas do projecto pedagógico do Estado
industriais e comerciais, recusando a Novo e a consequente repressão so-
ampliação da rede escolar por razões bre as ideias que contrariavam o re-
de política económica: «A política ferido projecto. O autor considera
económica do regime, uma vez ree- que este regime procedeu a uma re-
quilibradas as contas do Estado, e ao cuperação do conceito de escola úni-
contrário das expectativas dos seus ca, que no final dos anos 40 se tra-
sectores desenvolvimentistas, acabou duz na criação do ciclo preparatório
por não se voltar decididamente para do ensino técnico e nos anos 60 na
a industrialização e o desenvolvi- introdução do ciclo preparatório do
mento» (p. 80). Nas décadas de 50 e ensino secundário. Estas iniciativas
60 acontece o inverso. Depois do decorriam no contexto do que acon-
impulso da reforma de 1948, que vi- tecia, do ponto de vista da aplicação
sou também libertar a pressão da pro- dos princípios, no Reino Unido e na
cura sobre o ensino liceal — numa Alemanha.
operação de tecnologia social em que Em Portugal, como sabemos, e
os responsáveis pela política educati- Amado sublinha-o muito bem, só de-
va terão interferido no sentido de pois de Abril de 1974 o ideário da
manipularem o volume e a estrutura escola única se configura como uma
do sistema escolar —, que acaba por linha de força essencial, quase in-
ser parcialmente absorvida pela rede questionável em matéria de política
de ensino privado, em franco cresci- educativa, embora os princípios de
mento. As iniciativas governamen- gratuitidade, obrigatoriedade e selec-
tais que marcam os primeiros anos ção, se encontrem ainda muito longe
da década de 70, em que se integra da sua concretização. O autor conclui
já a expansão da rede pública de li- que «o grande problema levantado
ceus, a criação de novas universida- pela doutrina da escola única é o de
1154 des com uma localização descentra- sabermos que sociedade queremos,
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que ideia fazemos das diferenças de prática pedagógica, quer nas institui-
capacidades interindividuais e do des- ções em que a pedagoga trabalhou,
tino a dar-lhes não só no seio da esco- quer pela escola que criou, envol-
la, mas, antes disso, no seio da socie- vendo no seu projecto pedagógico
dade» (p. 110). outros docentes, lançando as semen-
Finalmente, Casimiro Amado con- tes do que se tornaria o fulcro de
sidera que, como teoria pedagógica todas as batalhas pedagógicas no cam-
que é, a doutrina da escola única po do ensino depois de Abril de
move-se tanto no terreno da pedago- 1974: a integração educativa.
gia como no da política, pelo que o Uma abordagem, também interes-
leitor, ao longo do texto, não pode sante ao fenómeno da crise estudan-
deixar de depreender como, e em que til actual, ao nível universitário, é
termos, as vicissitudes da nossa histó- produzida por Jorge Miguel Pedrei-
ria recente se cruzam com este facto. ra, antecedida por uma coerente aná-
À questão «como ensinar» tenta- lise evolutiva das políticas de ju-
ram responder Rogério Fernandes e ventude dos Estados europeus, da
Maria Isabel Alves Baptista. Esta responsabilidade de Álvaro Garrido.
última autora centra o seu trabalho Este último autor define os pressu-
no percurso que liga o ensino mútuo postos sociológicos que constituem a
à pedagogia científica através de um juventude como sujeito social autó-
caminho marcado pela luta contra a nomo, objecto de apetite social e
alfabetização em que pontuam, no político para o Estado e outras instân-
século XIX, os nomes de António cias sociais, tais como a Igreja e o
Feliciano de Castilho e João de Exército, em particular pelo seu esta-
Deus. A formação pedagógica dos tuto transitório na hierarquia social.
professores do ensino secundário é Os Estados totalitários, no perío-
marcada pela influência positivista e do entre guerras, foram os primeiros
experimentalista que marcou os estu- a definir políticas destinadas à juven-
dos sobre educação nos finais de Oi- tude, procurando estabelecer orienta-
tocentos, a coroar um percurso peda- ções que dissuadissem a emergência
gógico que, segundo Isabel Baptista, de culturas juvenis, enveredando,
se orienta para a cientificidade. assim, pela sua «corporização soci-
O papel de Maria Amália Borges al». Garrido analisa os casos das or-
no contexto da «revolução pedagógi- ganizações das juventudes alemãs e
ca» durante o Estado Novo foi ana- italianas, distinguindo, no primeiro
lisado por Rogério Fernandes, que dos casos, a aposta na juventude
situa o pensamento e a luta de Bor- como forma de perpetuar o regime,
ges contra uma «escola excludente», numa universidade em que só ensi-
erguendo a «bandeira da integração navam membros de organizações
educativa» (p. 156), rumo ao pro- nazis e onde era clara a intenção de
gresso social e à democracia. Um inculcar uma ideologia.
trabalho que ultrapassou a simples No caso italiano, o autor alerta para
formulação teórica e foi testado na o carácter híbrido do modelo posto em 1155
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prática, que é marcado pelo compro- dos respectivos quadros dirigentes»


misso entre o regime fascista e as or- (p. 168).
ganizações católicas de juventude, o Acentuando vincadamente o
que impede o monopólio do Estado novo contexto político europeu pós-
nas orientações sobre a juventude. -guerra, Álvaro Garrido considera
É com o modelo italiano que Gar- que Salazar, sem deixar de ter em
rido estabelece um elemento de com- consideração os objectivos originais
paração com a política de juventude da MP, favorece as organizações
salazarista, embora, no caso portugu- católicas de juventude que passam a
ês, o estatuto de parceria com a Igreja usufruir de um estatuto de quase
nunca tivesse sido posto em causa, paridade face à Mocidade Portugue-
contrariamente às tentativas de sub- sa. No entanto, os ventos da influên-
missão das organizações de juventude cia do sindicalismo no movimento
à tutela partidária, protagonizadas por estudantil francês acabam por chegar
Mussolini, sobretudo depois de firma- a Portugal, obrigando a tentativas de
do o eixo Roma-Berlim. revitalização da MP nos meios uni-
versitários, que se intensificam com
O Estado Novo, entre 1933 e
as crises académicas que marcaram a
1945, tentou submeter organicamen-
década de 60. O período marcelista é
te a juventude universitária, median-
já caracterizado por uma descentrali-
te a instituição de medidas que ga-
zação da política de juventude, ad-
rantissem a «ortodoxia ideológica da
mitindo-se a partilha com institui-
universidade», procurando instalar
ções da sociedade civil.
um «fascismo de cátedra» (p. 167). «Universidade e sociedade: os pro-
Relativamente à juventude em blemas actuais». Título que Jorge
geral, Álvaro Garrido estabelece um Miguel Pedreira atribuiu a um traba-
paralelo entre a Mocidade Portugue- lho em que analisa a «crise» da uni-
sa e as organizações de juventude versidade desde os anos 60. Começan-
em Itália e na Alemanha. Criadas no do por questionar a ideia de crise, o
contexto da estratégia destinada a autor considera que «o problema parece
guindar os partidos fascistas ao po- residir em que a universidade já não é o
der, é neste aspecto que se distin- que era e nunca será o que devia ser» (p.
guem das organizações portuguesas; 176). Notando que se trata de um pro-
já que em Portugal tanto a MP como blema que ultrapassa as nossas frontei-
a Legião Portuguesa não terão cola- ras, Pedreira aponta a especificidade
borado na edificação do regime, em- das representações da crise em Portu-
bora tenham contribuído para a sua gal.
consolidação e continuidade. Relati- A messianização da universidade,
vamente à relação entre partidos fas- inculcada na psicologia colectiva, em
cistas e organizações de juventude, o parte devido ao discurso político e ao
autor considera que: «se é certo que seu acolhimento pela opinião pública,
a MP não dependia formal e orga- é um dos traços mais marcantes da
nicamente da União Nacional, não visão que a sociedade tem da institui-
1156 é menos evidente a coincidência ção. Isto é se Portugal se pretendia
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tornar um país moderno, emparceiran- dança: a era digital, nova ciência e


do com os seus congéneres europeus, imperativo tecnológico,
então havia que investir na educação. multiculturalidade, insatisfação de-
Portanto a universidade foi, pois, mocrática, competição global e exclu-
chamada a responder ao desejo de sa- são, desemprego, desintegração das
tisfação das aspirações colectivas e instâncias de socialização, consciên-
individuais: desenvolver o país e ga- cia ecológica, declínio da polis, um
rantir aos cidadãos por ela certifica- contexto de incerteza. A estes para-
dos um emprego bem remunerado. digmas Roberto Carneiro apresenta
Um desafio impossível que, segundo uma primeira resposta: a construção
Jorge Pedreira, transformou a uni- de uma sociedade do conhecimento
versidade num messias mantendo, na rumo a uma escola em que, mais do
actualidade, as desigualdades soci- que aprender, se aprende a aprender e
ais, quer entre estudantes, quer entre em que o conhecimento se constrói
instituições de ensino superior. Na ao longo da vida, num desafio que
incapacidade de poder responder ao ultrapassa a escola, alargando-se a
excesso de expectativas, colocada uma sociedade do conhecimento.
face «a solicitações contraditórias, a
A escola deverá evoluir para uma
universidade encontra-se sob pressão
concepção aberta e livre que permita
e tem de modificar-se, mas modifi-
o desenvolvimento e aplicação do
ca-se pelas iniciativas individuais ou
conceito de life long learning, «uma
de grupo, pelas dinâmicas informais,
instituição que está ao serviço deste
mais do que por grandes orientações
desiderato nobilíssimo: aprender a
reformadoras. As mudanças que as-
aprender, aprender a discernir entre
sim se operam são em alguns casos
permanência e mudança, compreen-
contraditórias, gerando novos pro-
der as referências estáveis de uma
blemas e tensões» (p. 182).
A terminar este artigo, o texto de sociedade; cultivar a memória colec-
abertura da obra em recensão. O li- tiva; perceber os valores que são
vro inicia-se com a publicação da próprios a uma nação e à sociedade
lição de abertura do curso proferida de pertença» (p. 22).
por Roberto Carneiro. O autor enun- Trata-se, sem dúvida, de um livro
cia as principais dificuldades de que importante a vários títulos. Por um
comungam os actuais sistemas de lado, apresenta perspectivas pluridis-
ensino. Retomando a ideia de crise ciplinares de análise do sistema de
global numa era de transição entre ensino, ao mesmo tempo que combi-
«os velhos paradigmas da multis- na o estudo do passado com a visão
secular sociedade industrial e a prospectiva da escola do século XXI.
emergência de novos paradigmas de Por outro, faculta uma visão sintética
características completamente dife- dos temas focados, em parceria com
rentes daquelas que estiveram na interessantes interpretações historio-
base da nossa organização social e gráficas.
económica»(p. 9), são identificados
dez «azimutes», que balizam a mu- FERNANDO GAMEIRO 1157

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