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Pardbolas acerca da Escatologia Futura O Setvo Fiel ou o Servo Mau (Mt 24.45-51; Le 12.42-46) Apesar da import@ncia que Mateus coloca nesta parabola, nao sao muitos os comentarios ¢ as obras que lhe dedicam muita atengao. Classificagao da Pardbola Esta parabola, normalmente classificada como uma parabola de cri- se € uma similitude de antitese dupla, uma sincrise. Ela é uma analogia impltcita de exemplos contrastantes, expressa a partir de uma pergunta metafrica que recebe uma breve resposta positiva € uma promessa de recompensa, seguida de um exemplo negativo e uma ameaca. Esta pard- bola nao apresenta uma nimshal. Questoes que Exigem Atengao 1. 6. A expressao “o meu senhor tarde vira” pressupde a demora da parousia e a ansiedade teolégica da Igreja acerca da demora? Caso sim, isto indica que a parabola foi uma criacao da Igreja Primitiva em resposta a uma crise causada pela demora do se- gundo advento? . Osenhor representa alguma figura? E, caso sim, ele seria uma representacao de Deus-Pai ou de Cristo? A quem esta parabola é dirigida? O servo corresponde aos dis- cipulos ou aos judeus fiéis ou infiéis? Existe alguma énfase nos lideres da Igreja? . Existe alguma referéncia ao segundo advento (ou, parousia)? . O que 0 termo dichotomesei (“partiré ao meio” {Biblia de Jeru- salém], Mt 24.51; Le 12.46) significa? Por se preocupar em atribuir a alguém um lugar entre os hipécritas/incrédulos se esta pessoa jd foi “separada”? Qual € 0 ensino desta parabola? 691 COMPREENDENDO TODAS AS PARABOLAS DE JESUS Material Util de Fontes Primdrias Escritos Canénicos * Antigo Testamento: Salmo 37, especialmente os wv. 9-13 € 34-40 = Novo Testamento: Mt 26.40,41; Mc 14.37,38; Le 22.45,46; Lc 12.35-38; 1 Co 4.1, 2; 1 Ts 5.6-8; 2 Pe 3.10; Ap 3.3, 20; 16.15. Escritos Judaicos Primitivos ™ Susanna 1.55, 59 (0 castigo de dois anciaos pelo falso testemu- nho levantado contra Susanna): “E Daniel disse: ‘Muito bem! Esta mentira te custou a cabega, pois 0 anjo de Deus recebeu a sentenca de Deus ¢ te cortard imediatamente em dois’... Daniel lhe disse: ‘Muito bem! Esta mentira também te custou a cabega, pois o anjo de Deus estd aguardando com a sua espada para te fazer em duas partes e destruir, dessa forma, a vés dois.” # 1Q8S 2.16,17: “Que Deus lhe separe para o mal, e que ele seja cortado do meio de todos os filhos da luz por causa do seu des- vio do caminho de Deus por conta de todos os seus fdolos e do obstaculo da sua iniquidade. Que ele possa designar a sua porgao junto com os amaldicoados por todo o sempre.” * 4Q171 (4QPS37) 2.1-2 afirma que os impios morrerao a espa- da € serdo separados do meio do povo. A hipocrisia recebe uma énfase especial. A separac&o que serd feita aos impios é repetida em 3.11-13 (“separadas e exterminados para sempre”) e 4.1, 18 (“perecerao e sero separados”). Escritos Cristdos Primitivos ® Didaqué 16.1: “Atentai para a vossa vida: ‘que as vossas lampa- das’ no se extingam ‘e os vossos lombos’ nao estejam desafivela- dos, mas estai ‘preparados,’ pois nao sabeis ‘a hora em que vem o vosso Senhor.”” = Sib. Or. 2.177-86 foi modelada segundo a parabola do Servo Fiel ou Servo Mau contada por Jesus. Esta passagem descreve como 692 Pardbolas acerca da Escatologia Futura “benditos” aqueles que séo encontrados vigilantes no momento da vinda do seu senhor. Escritos Judaicos Posteriores & Nas versOes sfriaca, drabe e arménia de Ahigar 3.2; 4.15; e 8.38 Nat, o sobrinho impio de Ahigar, é descrito como uma pessoa que bebe e come com os glutdes e que surra os escravos de ambos os sexos. Ao final ele incha, sua carne se rompe, e ele morre e, na versio arabe, ele vai para o inferno. = 6, Sabbat 153a/Eccl, Rab. 9.8.1 apresenta uma pardbola que fala de pessoas que foram convidadas para um banquete que seria oferecido por um rei, mas que nao tinha hordrio predefinido. Os sdbios se prepararam e estavam prontos; os tolos, que nao se prepararam, nao obtiveram permissao para acesso. Comparagao dos Relatos Os relatos de Mateus 24.45-51 e Lucas 12.42-46 sao extrema- mente préximos e nos proporcionam um bom exemplo de razao para se argumentar a favor da existéncia de uma fonte “Q.” Na maior parte da parabola, os dois relatos nado somente apresentam as mes- mas palavras,*' como também o termo dichotomese? que nao ocorre em nenhuma outra parte do Novo Testamento e somente uma vez na LXX (Ex 29.17). Nos dois relatos, raramente se observa um des- vio da ordem das palavras. As variagdes sio menores, primariamente de carater estilistico e com pouca consequéncia na interpretagao da histéria. A maioria dos estudiosos defende que Mateus preservou de forma mais integra o contetido de “Q” (se € que “Q” existiu mesmo!), salvo no caso de algumas palavras. As diferencas que merecem ser mencionadas sao: Enquanto Mateus utiliza “servo” (dowlos) ao longo de toda a his- toria, Lucas 12.42 utiliza “mordomo” (oikonomos), mas, depois, retorna para “servo.” As outras tinicas ocorréncias de oikonomos nos Evangelhos sao em Lucas 16.1-8. 693 COMPREENDENDO TODAS AS PARABOLAS DE JESUS Mateus chama o servo de “mau” (&akos) em 24.48, 0 que nao esté presente em Lucas. Mateus afirma que a parte do servo mau ser4 com os “hipécritas,” ao passo que Lucas apresenta o termo “infiéis,” que pode ser mais adequado para o seu ptiblico gentio, particularmente se levar- mos em conta 1QS 2.16-17.” Mateus apresenta “ali haverd pranto e ranger de dentes,” nao apre- sentada por Lucas. Em outras partes do Novo Testamento esta expressdo ocorre somente em Mt 8.12; 13.42, 50; 22.13; 25.30; Lucas 13.28. Serd que esta expressdo foi enfatizada por Mateus ou algo que os outros evangelistas néo deram tanta importancia (ou, simplesmente, omitiram)? Este linguajar tem sua origem no Antigo Testamento.® Aspectos Textuais Dignos de Atengao Outras parébolas em formato de trfade apresentam uma figura de autoridade que passa o seu julgamento a dois subordinados ou a dois gru- pos de subordinados: a parabola dos Dois Filhos, dos Talentos/Minas,™ das Dez Virgens, das Ovelhas e dos Bodes e a do Filho Prddigo. As vezes a figura de autoridade esta situada do lado de fora da narrativa da parabola ou esta implicita, como é 0 caso da parabola dos Dois Fundamentos, a dos Dois Devedores, do Rico e Lazaro e da do Fariseu e do Publicano. Cinco pardbolas envolvem a pattida e o retorno do senhor: esta que estamos analisando, a do Porteiro (Mc 13.34-36), a dos Talentos (Mt 25.14-30), a das Minas (Lc 19.11-27), e a dos Lavradores Maus (Mt 21.33,44; Mc 12.1-12; Le 20.9-19). Existem também pardbolas rabf- nicas neste tema. Observe a repetig&o do “comet” (mesmo que por meio de palavras diferentes no grego) e do “heber” da v. 24.38 no v. 49. No relato de Lucas, a énfase do capftulo 12 esté nas ideias escatolé- gicas e nas adverténcias contra sermos dominados pelas preocupagées da vida secular. O contexto do tesouro nos céus, a seguranga e o sentido da vida prepara 0 terreno para os cemas da vigilAncia e da fidelidade. Existe uma simetria entre 12.37 e os vv. 43,44 no uso de uma béngao seguida por recompensa introduzida por “Amém vos digo.” 694 Pardbolas acerca da Escatologia Futura Lucas apresenta uma énfase correspondente na fidelidade e na sabe- doria em 16.8-12 € na fidelidade em 19.17. A ideia de ser colocado a cargo de todas as posses do senhor (Mt 24.47; Le 12.44) é refletida em Mt 25.21,23; Lc 19.17-19 onde os ser- vos sao colocados a cargo de muitos bens ou mesmo cidades. Informagées Culturais Nesta parabola o termo doudos provavelmente se refere a um escra- vo, apesar da palavra também se aplicar a servos em geral. O fato de um escravo scr clevado ao comando de bens e propriedades nao era inco- mum. O melhor exemplo biblico, o qual, inclusive, possui uma redacio semelhante a desta parabola, é 0 relato onde José recebeu autoridade tanto para comandar a casa de Potifar, quanto o rcino de Farad. Vide Génesis 39.4-8 na LXX e Salmos 105.21. Imagine 0 poder que nao estaria nas maos do escravo que comandava o suprimento alimentar de todo o povo! Esta pessoa, literalmente, controlava a satide e o bem-estar dos demais escravos. A embriaguez e a violéncia contra escravos sio, ambas, descrigdes ttadicionais de uma vida fora de controle. Vide Abigar 3.2, 4.15; Le 21.34; Ef 5.18; 1 Ts 5.7. Acerca do significado da palavra dichotomeo, confirma mais adiante, mas 0 fato de pessoas, escravos e mértires serem — e infelizmente isto ainda ocorre nos nossos dias — “separados” (ou, cortados em dois, ou, ain- da, esquartejados) cra algo corriqueiro na vida do mundo antigo. Vide 1 Sm 15.33; Hb 11.37; 0 Martirio de Isatas 3.1-14; a Vida dos Profetas 1.1; 3 Bar. 16.3; b. Sanhedrin 52b. Explicagéo da Pardbola Opgies de Interpretagao 1. A Igreja entendia que esta parabola retratava a relagao de Cristo, como Mestre, como os seus discipulos, os lideres a quem 0 cuidado da Igreja havia sido confiado. Ocasionalmente a pardbola era aplicada a en- trega de esmolas aos pobres.* 695 COMPREENDENDO TODAS AS PARAROLAS DE JESUS 2. Um certo nimero de intérpretes nega que esta parabola seja de Jesus por causa da mengio 4 demora e em funcao das correspondéncias alegéricas. Ela € compreendida como uma criagio a Igreja Primitiva dirigida aos lideres cristdos que tinha por objetivo reforcar a responsabi- lidade que eles tinham nas obrigac@es pastorais.*” 3. Algumas pessoas interpretam esta parabola como uma advertén- cia de Jesus aos lfdetes judeus acerca da iminéncia do dia em que eles prestariam contas, ou mesmo como uma acusa¢ao da infidelidade deles. A unica crise é aquela gerada pela vinda de Jesus. Passado este momen- to, a [greja passou a aplicar esta parabola para a sua propria situacao.™ 4. Esta parabola €, normalmente, vista como a instrugio que Jesus passa aos discfpulos para que permanecam fiéis na sua auséncia antes da vinda do Reino definitivo ou do Filho do Homem, os quais acarretardo 0 Juizo divino.® Neste caso, as correspondéncias tem sua origem em Jesus. A Resolugaio das Questies Esta parébola nfo se restringe ao seu plano de narrativa. Ela é uma analogia implicita e € facil discernir que ela nao esté falando de servos literais em fungao do seu contexto no ensino de Jesus, do uso da hipérbole e do fato da referéncia desejada comegar a se mostrar na escolha de palavras como “bem-aventurado,” “hipécritas”/ “infiéis” e da expressio “pranto e ranger de dentes.” O fato das pardbolas nao se restringirem ao plano metaférico nao é nenhuma novidade para nés, especialmente quando nao hd uma necessidade de se “ludibriar 0 ou- vinte rumo 4 verdade”,” e isto € particularmente verdade no caso das pardbolas escatolégicas. A parabola comega com uma pergunta: “Quem € 0 servo fiel ¢ sé- bio...2” Uma pergunta introdutéria em uma lingua semita pode fun- cionar como o equivalente a prdétase de uma oracdo condicional (por exemplo, Mt 12.11; Lc 14.5; cf. Le 6.9),?! que seria equivalente a “se um setvo fiel e sébio...” Esta é, provavelmente, a intengao aqui, mas o forma- to da pergunta, no minimo, leva o leitor a considerar o que significa ser “fiel e sdbio”.»? Vislumbra-se a existéncia de somente um servo que tem a possibilidade de tomar dois tipos diferentes de aco,” e a julgar tanto pela regra da énfase final, quanto a partir da quantidade de palavras uti- lizadas, a énfase recai sobre o exemplo negativo. 696 Pardbolas acerca da Escatologia Putura 1. A expressdo “o meu senhor tarde vird” pressupée a demora da parousia ea ansiedade teolégica da Igreja acerca da demora? Caso sim, isto indica que a pardbola foi uma criagéo da Igreja Primitiva em vesposta a uma crise causada pela demora do segundo advento? Algumas pessoas consideram que a mengao a demora seria uma prova de que a Igreja deve ter criado esta parabola, ou que ela tenha modificado substancialmente a sua redacio original,” no entanto a demora é necessdria para o desenvolvimento do enredo da his- téria. Na segunda cena, o servo € tentado a eximir-se da responsabilidade somente por causa da demora.” Chronizein (“afastar-se,” “protelar”) nao se trata de uma linguagem técnica comum para se referir A demora” e, a excegio desta parabola, ocorre somente na pardbola das Dez Virgens (Mt 25.5), como uma refer€ncia 4 demora de Zacarias em voltar do Templo (Lc 1.21) e em Hebreus 10.37 — numa citago de Habacuque 2.3 que prometia nao haver postergacao. Como j4 vimos, a demora e a iminéncia andam juntas na profecia veterotestamentaria e nos escritos apocalipticos judaicos.*”” Mas, o que é ainda mais decisivo € 0 fato desta parabola nao tratar de demora, mas da falta de preparo diante do retorno do senhor, quando este ocorre antes do momento previsto. Joseph Fitzmeyer argumenta — de forma correta, em minha opi- niao — que a ideia de que os adagios que tratam da “vigilancia do cren- te” devem ser considerados inteiramente como uma “criacdo da igreja” representa uma supersimplificagao das informagdes contidas no Novo Testamento. A vigildncia e a expectativa sao frequentemente instigadas em conex4o com 0 dia escatolégico de Yahweh no Antigo Testamento.”* Na verdade, seria estranho se Jesus prometesse uma vinda fucura do Rei- no e/ou do Filho do Homem e nfo alertasse acerca da nossa prontidao em vista desta vinda. Esta parabola se encaixa ao ensino de outras proferidas por Jesus que também sio tematizadas na parcida e no retorno. Em fun- Gao disso, e por nao termos base para afirmarmos que a falsa expectativa que o servo tinha pela demora do seu senhor seja uma indicagio de uma demora do segundo advento, existe poucos motivos para se considerar que a parabola tenha sido uma criacao da Igreja.” 2. O senhor representa alguma figura? E, caso sim, ele seria uma re- presentacdo de Deus-Pai ou de Cristo? Todas as tentativas de se negar os significados escatolégicos desta pardbola, como se ela tratasse, original- mente, somente de administragdo ou de mordomia, sem a atribuigio de qualquer contetido substancial ao senhor, 4 sua vinda ou aos servos, 697 COMPREENDENDO TODAS AS PARABOLAS DE JESUS sio malsucedidas.! Quanto mais complexa uma pardbola for, maior serd o nimero de correspondéncias necessdrias para a comunicagao da sua mensagem e, neste caso, estamos diante de uma pardbola um tan- to complexa. Entretanto, quem deveriamos entender que esta partindo e retornando? Alguns addgios indicam que Jesus ensinava que era Ele quem partiria,'! e outros que ele antecipava a sua morte, mas em outros textos e nas parébolas judaicas quem parte é uma pardbola “divina”.!° Esta pardbola se refere a crise presente no ministério de Jesus (como as pardbolas sobre Israel),'°> 4 vinda de Deus na época do Reino futuro, ou a vinda do Filho do Homem na €poca do Reino futuro? Obviamente, os dois evangelistas situam a parabola em relac&o a vinda do Filho do Ho- mem, mas um posicionamento aqui é, em parte, dependente da questo das pessoas a quem a narrativa se refere. A mesma ambiguidade a res- peito da identidade de uma pessoa prestes a retornar pode ser encontrada nas pardbolas das Dez Virgens e dos Talentos/Minas. E concebfvel que Jesus tenha advertido os seus ouvintes a estar alertas e fiéis diante da crise do seu préprio ministério a Israel e que, depois, a Igreja Primitiva poderia, razoavelmente, ter adaptado estas adverténcias as suas expecta- tivas acerca do segundo advento. Mas, é mais provavel que, como Jesus prenunciou um intervalo, as adverténcias se aplicam ao fim dos tempos e ao pleno estabelecimento do Reino, independentemente de se tratar da vinda de Deus ou do Filho do Homem. F concebivel que Jesus tenha tido a expectativa de um intervalo, mas Ele nao nos deixou instrucgdes para a vida neste intersticio de tempo, tampouco nos apontou o tempo do seu cumprimento. Quanto mais agrupamos esta pardbola com outras que enfatizam a vigilancia, tal qual fizeram os evangelistas, sentiremos que ela menos provavelmente se referira 4 crise que Jesus apresenta 2 nac3o. Por que enfatizar a vigilancia por algo que j4 aconteceu?!™ A preocupagio desta parabola, entretanto, est4 mais voltada para 0 tempo durante o intervalo do que com o retorno do senhor.'” Se este for 0 caso, a pardbola representa mais evidéncia de que Jesus se referia a um intervalo de tempo desconhecido que antecederia a vinda do Filho do Homem.'* Haverd uma época de cumprimento, na qual ele completar4 a missao que Deus lhe deu ou, pelo menos, na qual csta missao tera sido completada. Qualquer coisa menos que isso nao resultard na derrota do mal, nem na vindicacao dos seguidores de Jesus. Um intervalo nao diminui a énfase no cardter stibito da vinda. 698 Pardbolas acerca da Excatologia Futura Esta parabola se concentra na imprevisibilidade desta vinda e no fato do servo ser apanhado de surpresa. A parabola seguinte do livro de Mateus, a das Dez Virgens, de maneira inversa, concentra-se na estul- ticia daqueles que nao se preparam para a demora. Nos dois casos, a énfase recai sobre prontidao e a vigilancia, independente do intervalo de tempo ser curto ou longo. No fim das contas, o fato da parabola se referir 4 vinda de Deus ou do Filho do Homem € relativamente indiferente. As duas imagens apontam para o Reino final que viré com poder e gloria. 3. A quem esta pardbola é dirigida? O servo corresponde aos disctpulos ou aos judeus fiis ou infiéis? Existe alguma énfase nos lideres da Igreja? Tanto cm Mateus, quanto em Lucas a parabola é explicitamente dirigida aos dis- cipulos de Jesus (Mt 24.3; Le 12.22).' Lucas forga o leitor a considerar a relevancia que as patdbolas apresentadas em 12.35-40 tém para os dis- cipulos ao apresentar Pedro perguntando se a parabola se destinava aos discfpulos ou ao piiblico maior (12.41). Esta pergunta nao é respondida, o que reforga o compromisso do leitor com a relevancia e a aplicabilida- de deste material e do que a ele se segue.’* Jeremias admitiu que os discipulos poderiam set os destinatdrios, mas argumentou que deverfamos desconsiderar 0 contexto apresen- tado pelos evangelhos e, na mesma linha que Dodd, concluiu que as pessoas originalmente advertidas para vigiarem e cumprir as suas tare- fas eram os lideres judeus, especialmente os escribas, que possufam as chaves que davam acesso ao Reino.'® Podemos apreciar a tentativa de se ouvir Jesus se dirigindo aos lideres judeus, mas é dificil imaginar que Jesus, com esta parabola, tenha por alvo os lideres judeus. Sera que Jesus teria descrito os lideres religiosos fazendo uso de figuras como um servo glutdéo ¢ beberrao que surrava os scus ajudantcs?!!° Além disso, caso tivesse feito, seré que estes lideres, ou os discfpulos teriam compreendido a sua intengio? A parabola nao se dirige & multiddo em geral, mas aqueles que estavam numa relacdo de servitude, isto é, aqueles que tinham um com- promisso expresso. A par4bola poderia ser dirigida aos discfpulos e ter o objetivo de encarregd4-los do cuidado pelo povo de Israel por meio da proclamacio do Reino, da cura, do exorcismo, pelo qual eles teriam que prestar contas no futuro.''! Mas, isto me parece uma forma de alego- rizagao da parabola e considero que a parabola, muito provavelmente, 699 COMPREENDENDO TODAS AS PARABOLAS DE JESUS dirige-se ao grupo maior dos seguidores de Jesus, ¢ nado simplesmente ao lideres, ou aos Doze. Ao interpretar as paraébolas Jeremias dedica pouca atencao ao ensino de Jesus aos discipulos. De acordo com a sua aborda- gem, somente trés parébolas sao, claramente, dirigidas aos discipulos (a da Figueira que Floresce, a do Amigo Incomodado a Meia-noite, e a do Juiz Infquo).'"? Jesus seguramente tentou preparar os seus seguido- res para os eventos que se seguiriam a sua morte (por exemplo, Lucas 22.31,32), e se Ele fez isto, é dificil imaginar que as parabolas nao te- nham feito parte destas instrucGes. Esta parabola é facilmente aplicdvel aos lideres eclesidsticos e Lu- cas, de maneira especial, pode ter tido mesmo em vista estes lideres, s6 que a figura do servo mau é mais dificil de ser ali encaixada do que na hipétese que sugere que ela descreve os lideres judeus.'? A descrig&o é uma hipérbole mas é, provavelmente, melhor que esta representa¢io antitética da fidelidade seja compreendida como se fosse dirigida a todos os seguidores de Jesus, e nado somente aos lideres.!!4 4. Existe alguma referéncia ao segundo advento (ou, parousia)? Nav po- demos fugir da possibilidade de que esta parabola se refira 4 proclama- Gao que Jesus poderia ter feito da vinda de Deus para estabelecer 0 seu Reino € nao ao segundo advento do Filho do Homem. Nada na parabola em si trata explicitamente da identidade do senhor que voltara (yrios, “senhor” ou “mestre”). E 0 contexto de Mateus e Lucas que deixa claro que a referencia diz respeito ao Filho do Homem. Existe uma relutancia verdadeira por parte de algumas pessoas em crer que Jesus poderia ter falado acerca da sua propria vinda futura,' s6 que esta dtivida precisa ser posta a prova. Pois, caso Jesus nao falassc da sua propria vinda, por que € como a Igreja Primitiva teria desenvolvido este tipo de crenga de forma tao r4pida — répida o suficiente para ser atestada na oracio fundamental aramaica Marana tha?''® Jesus tinha a expectativa da justiga que seria feita por parte de Deus. Com esta pergunta chegamos a uma encruzilha- da. Se Jesus cria em uma ressurreicao e se ele cria que o Reino de Deus haveria de vir, independentemente do que lhe ocorresse, é dificil de se imaginar que ele tenha prenunciado a plenitude do Reino de Deus sem que Ele mesmo nao estivesse envolvido nessa plenitude. A sua histéria precisa ter um final.'!’ Se ele proclamava a restauragao escatolégica de Israel ¢ via a si mesmo como uma pessoa que desempenhava uma fungao fundamental nesta restauracao,' a sua partida nao poderia ser o fim 700 Pardbolas acerca da Escatologia Futura de tudo. Por necessidade, Ele também seré restaurado. Dale C. Allison questiona, de forma licita: “E... ser que a probabilidade é mesmo assim to alta contra a ideia de que Jesus, como defendeu Joachim Jeremias, tinha expectativa de uma vindicagao escatolégica, a qual Ele as vezes as- sociava com a ressurreico e, outras vezes, com as figuras de Daniel 7.14, e de que a igreja posterior 4 Pascoa tenha feito os ajustes necessdrios 4 luz da sua fé na ressurreigdo?!!? As palavras exatas utilizadas por Jesus nao podem ser determinadas, mas 0 fato de ele ter antecipado a sua prépria restauragio aos seus discipulos depois da sua partida me parece certo. A tinica op¢io restante é que Ele tenha morrido frustrado, sendo que o seu grito de desespero é a tinica pista que terfamos das reais circunstancias. Se Jesus, de fato, tinha a expectativa de uma restauragio, esta parabola precisa ser compreendida como um incentivo e um alerta aos discipulos durante do tempo da sua auséncia. Na nossa linguagem: cla esta se re- ferindo a parousia. 5. O que o termo dichotomesei (“partird ao meio” {Biblia de Jerusa- lém}, Mt 24.51; Le 12.46) significa? Por se preocupar em atribuir a alguém um lugar entre os hipécritaslincrédulos se esta pessoa jd foi “separada”? Esta palavra rara significa “cortar em dois pedagos” ou “cortar em pedagos,” e apesar de ser frequentemente suavizada, ela denota tanto a crueldade do mundo antigo,'”° quanto o choque que algumas patabolas de Jesus provocam em nés. Como o envio para junto dos hipécritas/infiéis depois de ser “partido ao meio” parece diluir o climax da histéria, algumas pessoas sugerem que dichotomesei se refere 4 morte fisica e ao envio para © castigo eterno junto dos hipécritas/infidis. Alguns seguem a linha de O. Betz: dichotomesei setia uma tradugdo mais literal e dramatizada de uma expresso hebraica que significa “separar do meio de.” Os paralelos proximos que vemos em 1QS 2.16-17 as duas partes do adagio de Juizo da pardbola so apresentados como evidéncias da posigao de Betz.'" A parte mais intrigante da sugestao de Betz, entretanto, permanece igno- rada. Ele apontou para a importancia do Salmo 37 como base para o con- ceito desta “separagiio” feita por Deus na tradicéo de Qumran (vide 4Q Ps37) e sugeriu que esta parabola de Jesus seria uma versio escatolégica daquele Salmo. Os paralelos entre a parabola e 0 Salmo sav notdveis: os justos esperam pacientemente pelo Senhor (Sl 37.7,9,34), dao com ge- nerosidade (vv. 21,26) ¢ herdarfo a terra (vv. 9,11,22,29,34); os impios abusam dos outros (vv. 12,14,32), perecerao (vv. 15,20,38), serao desar- 701 COMPREENDENDO TODAS AS PARABOLAS DE JESUS raigados (“cortados”) (v. 9,22,28,34,38), e rangem os dentes (v. 12). A pardbola de Jesus se parece com uma versdo escatolégica do Salmo 37 aplicada aos disctpulos por intermédio do uso da figura do servo. O material de Qumran confirma a importancia do Salmo ea sua interpretacio escatolé- gica. Este mesmo Salmo, obviamente, é a base da terceira beatitude (Mt 5.5, extraido dos Salmos 37.11). Se este Salmo nao estiver por detrés da parabola de Jesus, ele seria, no minimo, um exemplo da influéncia do Antigo Testamento na formagao das parabolas. O argumento proposto por Betz de que dichotomesei deva ser com- preendido como “separar do meio de” nao é convincentc,!”? por mais Util que o restante deste argumento possa ser. Como a palavra significa “cortar em dois pedagos” ou “cortar em pedagos,” esta separagao deve ser compreendida de forma de forma literal ou metaf6rica? Dentro do con- texto da parabola a palavra é considerada no sentido literal,'”* mas qual 0 significado da comunicagao no sentido literal dentro de uma analogia? A palavra representa uma hipérbole marcante que tem por objetivo real- gar o castigo recebido pelo servo mau, 0 extremo oposto da béngio rece- bida pelo servo fiel. Um outro fator pode ter Ievado ao uso desta palavra. Para algumas pessoas, 0 castigo de ser cortado em dois pedacos reflete a lealdade dividida que j4 era caracteristica do servo mau.!”4 O “pranto e o ranger de dentes” denota sofrimentos e emogdes ex- tremas.'” Esta expressdo ocorre somente sete vezes no Novo Testamen- to, das quais seis estio em Mateus (Mt 8,12; Le 13.28; Mt 13.42,50; 22.13—24.51,25.30), todas denotando a exclusao das béncaos de Deus que ocorreré no fim dos tempos. Cinco destas ocorréncias esto nas afir- mativas finais das pardbolas de Mateus.'” 6. Qual é 0 ensino desta pardbola? O uso que Jesus faz desta parabola para a instrugao dos discfpulos corresponde A énfase na fidelidade que vemos fo seu ensino em outras por¢des das Escrituras (por exemplo, Mt 25.21-23; Le 16.10-13; 19.17). A relacao entre setvas/senhores, que é uma figura consagrada no Antigo Testamento na representagdo do relacionamento entre Deus € 0 seu povo, é frequente nos addgios de Jesus, venham eles ou nao de pardbolas.'?” Obviamente, se a parabola apontar para Jesus, uma Cristologia estard implicita, mas em qualquer um dos casos, a pessoa que “retorna” na pardbola ser4 a responsdvel pelo Juizo.'* A antitesc entre o “fiel € o mau,” € o seu resultado, além de se- duzir 0 ouvinte em diregao a fidelidade, também hes adverte contra a 702 Pardbolas acercu dt Hscatologice Futura infidelidade. A infidelidade em questo, tanto na parabola, quanto em outras partes, nio é a fidclidade num sentido geral, mas a fidelidade na perspectiva do fim dos tempos. No seu cerne, o cristianismo é uma religiao escatolégica e ser cristo significa ter a consciéncia de levar uma vida “entre eras,” a consciéncia de que, apesar do Reino ter chega- do a nés bem no meio da velha era, ele ainda nao esté completamente consumado. Ser cristéos também significa ser fiel, e nao somente crer num conjunto de ideias. Esta fidelidade, nascida da convicy&o € com um componente de incerteza, foi necessdria aos discipulos de Jesus que enfrentaram uma época na qual ele nfo esteve presente. Ela continua sendo necessdria, com toda a convicgao e incerteza na época que se sucede ao Pentecoste. A parabola é um incentivo a uma vida justa e sdbia. O servo sdbio € aquele que compreende o significado do fim — no caso de ele demorar ou nao — e leva uma vida de acordo com esta expectativa. A sabedoria é uma virtude escatolégica. Adaptacao da Pardbola A Igreja nao pode se dar ao luxo de negligenciar 0 aspecto esca- tolégico da sua mensagem. Qualquer visao do Evangelho que deixe de lado o futuro nao corresponde ao evangelho cristo e sera insuficiente para lidar com o problema do mal. Richard Bauckham chega ao ponto de afirmar que sem a parousia Jesus nao poderia ser chamado de Cristo, segundo a compreensdo que o Novo Testamento atribui a esta pala- vra.!” E ele estd correto. Ao mesmo tempo, os cristaos precisam evitar toda espécie de fascinio com especulages a respeito de datas ou épocas a respcito do fim. A natureza dos documentos nfo incentivam, nem fos permitem tracarmos mapas, esquemas, tampouco esbogar a sequ- éncia dos eventos. Qualquer tentativa neste sentido se esfarela diante das evidéncias encontradas no proprio Novo Testamento, além de nao ser 0 objetivo do ensino escatolégico. O seu objetivo foi nos fornecer um alerta, servir de esperanga e ensinar as pessoas acerca de como elas deveriam levar a sua vida no presente. O linguajar violento do “partir uma pessoa no meio” (cf. Biblia de Jerusalém) € ofensivo e produz uma idcia terrfvel a respeito de Deus, se tomado de forma literal, s6 que a intengZo da parabola nio foi a de re- 703 COMPREENDENDO TODAS AS PARABOLAS DE JESUS produzir uma imagem literal de como sera 0 Juizo. Jesus fazia uso costu- meiro de hipérboles e este tipo de linguagem tem 0 objetivo de provocar um choque nos ouvintes. O Juizo é algo sério no ensino de Jesus, mas as nossas afirmagGes teolégicas acerca do Juizo precisam receber uma énfase maiot, sem que, no entanto, a sua setiedade seja menosprezada,“° A ética crista é movida pela Escatologia. As atitudes e o comporta- mento esperado da parte dos cristAos (tais como o amor altruista) estAo fundamentadas em uma Teologia do Reino presente e do vindouro. Sem este alicerce no futuro, a ética passa a ser, verdadeiramente, irracional. Ao mesmo tempo, no longo prazo, a vida apresenta um sério de- safio a f€ crista. Mas, como a Igreja poderia reconhecer tanto a sua propria longa histéria, quanto a sua esperanca viva sem que este com- portamento parca tolo? Tanto a paciéncia, quanto a impaciéncia sao respostas legitimas e necessérias. Em funco da énfase neotestamenta- ria no fato de ninguém conhecer a época, nem o intervalo de tempo até o segundo advento, é necessdrio paciéncia, pois a cronologia e os propésitos de Deus nunca se encaixam na nossa agenda. A paciéncia serve de base para o viver fiel que € 0 tema principal desta pardébola. O cristao sdbio e fiel é aquele que compreende o significado do fim e serve de maneira ativa, independente do tempo restante ser longo ou curto. A impaciéncia também € necessdria, pois precisamos ser impacientes com aqueles que afirmam conhecer a época e tragam esquematizagdes escatolégicas. Devemos ser igualmente impacientes com aqueles que negam a importancia da vindicagao futura de Jesus. Além disso, tam- bém deveriamos ser impacientes ao aguardar a chegada do Fim, incon- formados com o mal ¢ ansiosos pelo tempo cm que o mal seré extinto ea justica, por fim, estabelecer-se-d. A fé crista € sempre uma fé vivida em expectativa, que mira a chegada daquele dia e, em fungdo daquele dia, vive de acordo com esta expectativa.'*! A énfase na fidelidade nos traz, novamente, 4 mente que a fé crista nao diz respeito 4 crenga num conjunto de ideias, mas ao viver de acor- do com certas convicgdes no longo prazo. A igreja normalmente fica impressionada com afirmagées de fé. Mas, somente as palavras e uma fé passageira de nada servem. O que vale é a fidelidade até o fim. 704

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