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Mário
de Andrade
e Brecheret
nos primórdios
do modernismo
Para Marcos e Tatiana
RESUMO
ABSTRACT
This article deals with the journalistic writings by Mário de Andrade when he
championed the modernism from São Paulo. In 1920 and 1921 he fought that
the work by sculptor Victor Brecheret, Monumento às Bandeiras [Monument
to the Pioneers], should be placed in a public square, as a way to assert the
art renewal by the occasion of the Independence Centennial in 1922. It focuses
mainly on the writings by the author of Pauliceia Desvairada [Delirious São
Paulo] for the Papel e Tinta [Paper and Ink] magazine from São Paulo, and
for the Illustração Brasileira [Brazilian Illustration] journal from Rio de Janeiro.
que ali se impõe como estudioso da arte Gaudí e de outros europeus contemporâneos,
moderna, sabe traçar pontes com a arte do ao mesmo tempo em que refuta a imitação
passado, da mesma forma que, ao se mover tácita da geometria secessionista alemã ou
no terreno do barroco, vincula-se à moderni- do futurismo italiano. Mais tarde, na vontade
dade, em “A Arte Religiosa no Brasil”, série talvez de republicar, Mário rasura seus textos
também de 1920, na Revista do Brasil. Au- em exemplares dos números da revista 5. E
sente do álbum preto, esse primeiro conjunto comenta na margem do primeiro:
de textos de cunho ensaístico de quem bri-
lhará como historiador da nossa arte, provém “É uma coisa inconcebível como o meu es-
de pesquisa despertada pelas conferências pírito se desenvolveu tardonho e lerdo. Esta
do arquiteto Ricardo Severo, em 1914-15, na hórrida conferência foi escrita em 1918 ou
Sociedade de Cultura Artística. A hipótese 1919. Eu tinha já 26 ou 25 anos. Mas o que
fundamenta-se na separata A Arte Tradicio- está aqui parece coisa de ginasiano pedante,
nal Brasileira: a Casa e o Templo, com autó- indigestado, sem cultura mas lido, com al-
grafo do autor3, guardada pelo jovem que, em gum ralo lampejo de espírito crítico original,
junho de 1919, certamente depois de muita aos 16 anos de idade e suas espinhas” (apud
leitura, havia se lançado no barroco mineiro. Kronbauer, 1993, p. 15).
Palmilhara igrejas, conventos e capelas; em
Mariana, garantira a Alphonsus de Guimara- Fraco lampejo para o impiedoso crítico
ens (1974, p. 29, nota 27), estar se preparando de si mesmo, mas etapa significativa nos tra-
como conferencista4. Então, em 1o de novem- jetos de um modernista que, em fevereiro de
bro de 1919, a Cigarra (6, no 123) estampara 1921, na segunda crônica da série “De São
“O Triumpho Eucharistico de 1733 (Trecho Paulo”, no número 6 da Illustração Brazi-
duma conferência a realizar-se na Congre- leira (com ll e z), reitera ideias externadas
gação da I[maculada] C[onceição] de Santa em “A Arte Religiosa no Brasil”e sua adesão
Efigênia)”, paráfrase de texto setecentista à campanha pelo estilo neocolonial lançada
que, repetida em janeiro do ano seguinte, por Ricardo Severo.
instala a série de quatro artigos na revista
de Paulo Prado e Monteiro Lobato. Nos arti- PAPEL E TINTA,
gos, as impressões de um viajante imaginário
PONTO DE PARTIDA
mesclam-se à análise minuciosa, adiantando
aquilo que o escritor classificará, na década A bonita Papel e Tinta, que nasce em maio
de 1940, como crônica crítica; perfazem um de 1920 e dura até 1921, congrega, em São
ensaio dividido em quatro partes, nos nú- Paulo, escritores e artistas plásticos ávidos de
3 A publicação, conser meros 49, 50, 52 e 54 da Revista do Brasil, contemporaneidade; confraterniza com a Re-
vad a por Mário em
suas estantes, é da em janeiro, fevereiro, abril e junho de 1920. vista do Brasil. Considera-se também do Rio
própria Sociedade de “A Arte Religiosa no Brasil” assemelha- de Janeiro, capital da República. É regida pela
Cultura Artística, em
-se às crônicas da série “De São Paulo” no Sociedade Editora Non Ducor, Duco, ou seja,
1916; Mário de Andra-
de era sócio fundador que tange à pletora de erudição e à postura amigos associados que escrevem, ilustram,
da entidade estrutu- modernista de primeira hora, ostensiva no selecionam quadros para reproduzir, cavam
rada na Pauliceia, em
1911. uso da língua portuguesa falada no Brasil e anunciantes. Não acusa corpo editorial e tem
4 O organizador trans na valorização da nacionalidade. Quanto a em Menotti del Picchia a principal alavanca.
creve trecho de car- esse aspecto, à defesa do projeto neocolonial, Na literatura, conta com Menotti, Oswald de
ta de 15 de julho de
advogando o despojamento das construções, Andrade, Mário, Guilherme de Almeida, que
1919, em que o grande
simbolista lhe conta a adequação ao clima – lição de Severo para se modernizam, apesar do estilo minado por
os planos do seu vi- nossa arquitetura –, acrescenta a denúncia fortes marcas do passado. Nomes consagra-
sitante.
da mistura de estilos, inconveniência que dos como Gonzaga Duque, Cláudio de Souza
5 A reescritura é apre-
sentada por Claudete mascarava a Pauliceia em cidade europeia. e João do Norte (Gustavo Barroso) granjeiam
Kronbauer (1993). O articulista se interessa pelos projetos de leitores. A revista, que imprime pinturas
Reprodução
no art déco, elege a escultura de Brecheret
seu “estandarte” modernista. A ele confia a
criação do logotipo. Em 1920, reassegura os
ideais de transformação na presença cons-
tante de fotografias de obras do criador de
Eva. Essas imagens convivem com as ilus-
trações de Paim, que embelezam as páginas,
sem, contudo, ultrapassar o art nouveau.
No número 2, em junho de 1920, o artigo
de Ivan, “Victor Brecheret”, analisa escultu-
ras; nas páginas seguintes, veem-se as peças
Eva, Ave Maria e Dorso; não há menção ao
Monumento às Bandeiras. Ivan reivindica
o Pensionato do Estado, isto é, aperfeiçoa-
mento em Paris, e insere o artista na “ronda
dos inovadores” – Mestrovic, Bourdelle, Carl
Millès e outros. Para Mário da Silva Brito6
(1958, p. 94), o pseudônimo encobre Oswald
de Andrade. Para mim, origina-se em Mário
de Andrade. Essa hipótese de autoria escora-
-se no estilo, na epígrafe recolhida em Frei
Luís de Sousa, no conhecimento sólido de
história da arte, no nome Michelangelo abra-
sileirado para Miguel Anjo e, principalmen-
te, na religiosidade.
Em Ivan, as manifestações de religio-
sidade, cuidadosamente dispostas no texto, Oswald de Andrade era também católico, O escritor
podem ser aproximadas aos versos de “Reli- pode-se retrucar. Todavia, até aquele ano de modernista
gião”, que exclamam, em Pauliceia Desvai- 1920, a religião nada merecera em seus escri- Oswald
de Andrade
rada, livro marco do modernismo em 1922, tos. Diferentemente, Mário de Andrade, na
“Deus! creio em Ti! Creio na tua Bíblia!// expressão do eu lírico no livro Há uma Gota
Não que a explicasse eu mesmo,/ porque a de Sangue em Cada Poema e nos artiguetes
recebi das mãos dos que viveram as ilumi- na coluna Eclesiastes da revista Miscelanea,
nações!” e condenam a hipocrisia na prática em 1917, ou no “Conto de Natal”, datado de
religiosa católica (Andrade, no prelo). No ar- 1918, que sai em 1926, em Primeiro Andar,
tigo, em 1920, Brecheret é assim anunciado: frisa seu catolicismo norteado pela noção de
“[...] voltou há alguns meses da Itália onde foi Charitas. E declara, no “Prefácio Interessan-
estudar o catecismo da arte”, para, logo de- tíssimo” de Pauliceia Desvairada: “Quem
pois, a análise de um trabalho dele, Cabeça não souber rezar, não leia/ ‘Religião’”.
de Cristo, no âmbito da imaginária religiosa Aplicado leitor de história da arte e de
na história da arte, culminar num ato de fé: estética, como sua biblioteca bem indicia,
Mário, amparando-se no primitivismo preco-
“Naquela imobilidade pensativa, naqueles lá- nizado pelas vanguardas europeias, conclui 6 É interessante pensar
bios sobrenaturais, no ríctus da boca, nas tran- a respeito do Monumento às Bandeiras de que o pseudônimo
Ivan pode talvez deri-
ças arcaicas, o artista conseguiu prender, de Brecheret: “Não é um espelho, é uma fonte var do nome de batis-
modo genial, as tragédias, as esperanças, o sa- viva de criação, impressionante na coerên- mo do grande escultor
crifício divino – todo um calvário de imolações cia com que junta à estilização eloquente do moderno Mestrovic,
com quem Brecheret
formidandas. O Cristo de Brecheret é Deus!”. símbolo a sadia inocência dos primitivos”. era comparado.
IEB-USP
Ximenes; é fundamental obter um financia-
mento na burguesia. Como o cronista cor-
respondente que assina “Mário de Andra-
de” inicia, como já se sabe, em novembro
de 1920, a série “De São Paulo”, que vai até
maio de 1921, na Illustração Brazileira. Ex-
tensas, as crônicas combinam o relato irônico
com a análise; noticiam e narram a história;
traduzem “propósitos” – enaltecer a cidade
moderna, pregar a renovação nas artes e na
literatura. Com irreverência, graça, filtram
nas impressões fatos na cidade, e explicitam
um compromisso.
Em novembro de 1920, a primeira “De
São Paulo” chega ao no 3, ano 8, da Illustra-
ção Brazileira, enfeitada com vinheta e capi-
Victor Brecheret, Tinta e na Revista do Brasil, envolvendo Me- tular belle époque, e esse padrão ornamental
maquete do notti – que se presume o Gedeão do moder- fixa-se na série. Vem sem medo de definir
Monumento nismo –, Oswald de Andrade, Di Cavalcanti, a cidade como “hermafrodita”. Os aconteci-
às Bandeiras
Lobato e até o conservador Raul Polilo, em mentos mostram-se como uma grande soma
1920 (Brito, 1958)10. de sensações e impressões, tentando revelar
Os vanguardistas da Pauliceia conside- através da enumeração, recurso predomi-
ram o Monumento às Bandeiras não apenas nante, o dinamismo urbano que fascina o
representação do desbravamento heroico no cronista. São textos de um apaixonado que
passado, mas sinônimo de uma cidade e de não ignora os problemas de ordem cultural
um estado comprometidos com a moderni- e que, no correr da série, aguçará sua crítica,
dade, prontos para proclamar essa sintonia sem, contudo, buscar as contradições sociais,
nacionalmente no Centenário da Indepen- como o poeta de Pauliceia Desvairada, nesse
dência. Querem que a maquete seja concre- momento imerso na criação do livro de 1922.
tizada para transmitir a mensagem da reno- Por enquanto, o cronista descobre a força se-
vação em uma obra pública, como ocorria na mântica do adjetivo “desvairado”, na captação
Europa. Anseiam contestar, dessa maneira, da pluralidade de sensações, nas sinestesias.
o conservadorismo dominante na sociedade Este, na Illustração, exprime seu deslumbra-
paulistana que convalidara oficialmente a mento com o século XX, com a metrópole
passagem para o bronze do Monumento à que lhe coube, modernolatria cheia do orgu-
Independência assinado por Ettore Ximenes, lho paulista, dissociada da preocupação com
vencedor do concurso que, em 1919, atraíra o sofrimento humano nas cidades moder-
apenas escultores acadêmicos. Nossos mo- nas, traço distintivo na poesia de Verhaeren
dernistas tinham percorrido certamente, em e no expressionismo, leituras que acordam,
1919, embora não a evoquem, a exposição da paralelamente, a consciência do poeta. A
pintura de impressionistas e de esculturas de primeira “De São Paulo” reparte-se entre
Bourdelle, Rodin e Henri Laurens que Pau- a contemplação amorosa, lírica, e a análise
lo Prado, Freitas Vale e o cônsul da França que se alimenta do memorial de Brecheret:
promoveram no saguão do Teatro Municipal
10 O historiador rastreou,
nos jornais paulistanos (Camargos, 2001, p. 178). “São Paulo toda se agita com a aproximação
de 1920-21, todos os O autor de Pauliceia Desvairada deve, do Centenário. Germinam monumentos numa
títulos que para ele
exibissem o desenro- portanto, aclamar o valor de Brecheret; não floração de gestos heroicos; as alamedas ris-
lar da luta modernista. perde a esperança de ver o Monumento às cam o solo em largas toalhas verdes e os jar-
B I B LI O G R AFIA
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