Você está na página 1de 6

“O Aleijadinho”: monstro herói

Luiz Armando Bagolin

“O expressa não mais


”, assim, entre aspas,
aleijadinho
do que um con-
como fizeram Bazin, Mário de Andrade
e outros, com os olhos demasiadamen-
junto de representações que não neces- te contaminados pelo mito. Aplica-se,
sariamente tem como origem um indiví- pelo contrário, na investigação do per-
duo chamado Antônio Francisco Lisboa, sonagem ou dos personagens nomeados
supostamente um artífice, mulato, forro, Aleijadinho a partir da suposição de his-
que viveu em Vila Rica e seus arredores, tórias e caracteres sobre o inventado. E
entre o final do século XVIII e o início do embora saiba, com poucos, que o nome
XIX. Como representação, entre outras Aleijadinho tão somente classifica uma
representações, “o Aleijadinho” é um obra escultórica nas artes exercitadas
conceito que seguiu com vida própria à em Minas Gerais do século XVIII, assim
medida que foi se institucionalizando no como um corpo de doutrinas artísticas
Brasil, desde meados do século XIX, a por aqui operantes desde muito antes
par de interesses políticos nacionalistas, disso, Guiomar se interessa, particular-
em primeiro lugar, mercadológicos, de- mente, em seu livro, pelos critérios que
pois, não correspondendo nunca a uma mobilizaram a construção do Aleijadi-
unidade psicológica indecomponível. nho como representação autoral, ge-
Incorporando o termo tal como cir- nuinamente brasileira e genial, a partir
cula, sem aspas, o Aleijadinho, no livro de meados do século XIX, nos discursos
intitulado Aleijadinho e o aeroplano: literários, históricos e críticos.
o paraíso barroco e o herói nacional, de Tal construção tem início, segundo a
Guiomar de Grammont, é um misto de autora, com o discurso de Rodrigo José
representações metodicamente por ela Ferreira Bretas, sócio do Instituto His-
desconstruídas e analisadas a partir de tórico e Geográfico Brasileiro, publica-
uma estratégia arqueológica. Não inte- do como biografia ou história de feitos
ressa à sua pesquisa, contudo, descobrir memoráveis, em 1858, sob os auspícios
em definitivo as mentiras e as verdades de D. Pedro II. Lembra ao leitor que, à
sobre o homem e a sua obra. Guiomar, época, o Instituto proveu os meios para a
ao contrário do que fizeram diversos invenção e o enaltecimento das tradições
historiadores, não está interessada em culturais brasileiras, sob o olhar atento
desvendar os mistérios sobre a vida e a do imperador, mediante o soerguimento
morte do Aleijadinho, assim como não de um panteão de heróis nacionais, ain-
intenta demonstrar a verdade por detrás da que inventados.
da farsa em torno de sua, suposta, exis- A invenção do Aleijadinho na persona
tência. Tentar refutá-la, segundo a auto- do entalhador Antônio Francisco Lis-
ra, seria uma forma de fortalecer os dis- boa, que provavelmente circulou pelas
cursos daqueles que a reiteraram, assim Minas Gerais do XVIII, coube a Bretas,
como os dos que ainda a alimentam. segundo Guiomar, tendo investido a
Tampouco se propõe a analisar a composição de sua biografia em gênero
obra escultórica atribuída àquele nome, epidítico, que encomia obras e louva vi-

estudos avançados 23 (65), 2009 353


Foto Agência France Press

A Igreja de São Francisco de Assis, localizada em Ouro Preto(MG), é considerada uma das
obras-primas do barroco brasileiro, além de ser uma das realizações atribuídas a Aleijadinho.

354 estudos avançados 23 (65), 2009


das, emulando ao mesmo tempo a céle-
bre novela de Victor Hugo, O corcunda
de Notre-Dame, que era uma predileção
nas leituras do imperador. Bretas, profes-
sor de retórica, foi hábil em montar uma
biografia que move o leitor em direção
à dor, sublime, da vida, deformada e fi-
nita, em confronto com a arte bela e in-
finda, operando por disjunções, quanto
ao ethos, na composição do personagem
Aleijadinho. Reúne com procedimentos
retóricos do gênero referido, a baba ro-
mântica que circulava então, inventando
(imitando ou compondo, não importa)
o Livro de Registros de Fatos Notáveis da GRAMMONT, Guiomar de.
Cidade de Mariana do Vereador José Jo- Aleijadinho e o aeroplano: o paraíso barroco
aquim da Silva, que teria sido publicado e a construção do herói colonial. Rio
em 1790, mas não passa de recurso para de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. 322p.
a instrução sobre o biografado, a confe-
rir-lhe verossimilhança. supostamente, o unissem à Europa, a fi-
O discurso de Bretas, por sua vez, co- gura do Aleijadinho, assim composta, é
move por oxímoro, como o belo-feio, ou também resposta, para a crítica moder-
o monstro que faz maravilhas. Retém-se nista ideologicamente comprometida, do
também nessa oposição um dos critérios colonizado contra o colonizador. Nasce
para as antigas coleções de mirabilia, as desse modo outra representação, cujos
maravilhas, os maravilhosos, por exem- desdobramentos tornaram-se evidentes
plo, onde se compõem, de acordo com a em leituras posteriores, durante o século
ordo naturalis, os caprichos e grotescos, XX, como a do mito poético inventado
os fantásticos da natureza. por Lezama Lima, ou seja, o da arte da
Do ponto de vista da composição, o cultura criolla como arte de resistência
monstro belo ou que faz coisas belas, ou “arte da contraconquista”.
apesar de ser feio e deformado, imita a Se, porém, a Bretas e às ações do
inversão, que faz que céu e terra, paraíso IHGB coube a composição do persona-
e inferno se toquem na “sindérese”, aris- gem Aleijadinho em chave romântica,
totélica, figurada, entre outros lugares, aos pesquisadores do Sphan, contudo,
na relação “despropósito proporcional” sob a direção de Rodrigo Melo de Fran-
e “propósito desproporcionado”, no Il co Andrade, coube a missão, segundo
Canochialle, de Emanuelle Tesauro. Não Guiomar, de provar cabalmente a exis-
necessitaria recorrer, embora o faça, para tência do artista verdadeiro, assim como
construir o ápice da composição daquele da recolha de indícios que pudessem
ethos, à genialidade, como conceito kan- comprovar a autoria das obras a ele atri-
tiano exposto na terceira crítica. buídas. Aparentemente comprometidos
Monstruoso, genial e genuíno, nasci- não com a verificação da farsa montada
do em terras brasileiras, e sem laços que, por Bretas, mas com a sua naturalização,

estudos avançados 23 (65), 2009 355


os pesquisadores do Sphan contribuíram Bazin sugeriu em seus estudos uma
para falseá-la, aceitando os dispositivos relação entre as deformidades físicas tra-
textuais presentes em seu discurso como zidas pela doença que acometeu o artista
testemunhos factuais da história do per- e as distorções em suas figuras escultóri-
sonagem. Ignoraram, assim, como o de- cas, relação a que nomeou de “projeções
monstra argutamente Guiomar, as con- morfopsicológicas”. Assim, sugere, a dor
dições históricas específicas da instituição que o deforma, deforma as suas obras,
colonial brasileira, no século XVIII, para onde se deixam ver, expressivas, as mar-
as quais seriam impensadas ações auto- cas de “ancião atingido por uma doença
rais autônomas, e anômalas, causando cruel”, produzindo da sua mão perfeita,
rupturas no exercício das artes. mesmo a tendo, atrofiada, obra magnífi-
Pensadas como imitação e emulação ca. Infelizmente, essas oposições, presen-
de partes de doutrinas autorizadas no tes nos textos de Bretas e de José Joaquim
tempo em que eram feitas, as artes que da Silva, foram naturalizadas por Bazin e
hoje recebem a classificação de “barrocas” outros, à caça de precisão histórica que
praticavam-se antes como hábitos intelec- confirmassem o Aleijadinho “real” no
tivos ativos assim como o que se expõe na centro da produção de algumas obras,
doutrina tomista e neoaristotélica. Não se por esse nome, autorizadas.
produziam essas artes de forma autoral Como bem lembra Guiomar, ao dis-
nem muito menos eram elas desatreladas curso “morfopsicológico” agregou-se o
de doutrinas que as investiam nos gêneros médico, tendo aliás sido produzida uma
já sabidos pela sua audiência, ao contrário lista de diagnósticos em convenção de
da audiência atual, e desde o XIX, que as doutores mineiros, fantástica, senão ri-
desconhece ou ignora. Para a teoria ou sível, dos possíveis males que abateram
estética kantiana (e neokantiana), con- o artista, acobertados sob o “estigma do
tudo, detentora da atenção da audiência mal de Hansen”. Risível é tal lista, so-
atual, a arte teria como única origem e bretudo, porque outro Hansen, o críti-
regra, a natureza, como sujeito, dotada co João Adolfo, libera o personagem de
no artista, não em todo, mas apenas no tal fardo, auxiliando a autora a inventar
indivíduo genial. as tópicas onde se inscreveriam como
O Aleijadinho foi, assim, postulado, a prosopografia os caracteres e as paixões
par dessa teoria, e de outras, oriundas do do “Aleijadinho”, não o suposto, mas o
romantismo, como uma unidade psicos- personagem.
sociológica, tendo deixado rastros de sua As deformações ou deformidades nas
existência em documentos que atestariam obras escultóricas daquele, por exemplo,
o seu nascimento, vida ou morte, ou nas seriam devidas a efeitos, desejados para o
marcas de sua ação sobre a matéria da espectador, potencialmente ativos a par-
obra supérstite, que, mais do que tudo, tir de adições ópticas na cenografia em
evidenciaria a sua personalidade genial. que se figuram os objetos assim como
Sequente à análise das características for- nesses próprios, e percebidos pelo olho
mais dessa personalidade e sua obra, deu- numa distância calculada. Pois, propõe
se outra representação do artista, como João Adolfo Hansen, no prefácio do li-
façanha de Germain Bazin, sempre cul- vro, a arte, à época, não é “barroca” em
tuado pelos pesquisadores do Sphan. estilo, nem se personaliza em torno de

356 estudos avançados 23 (65), 2009


um artista genial, o que seria impensado a arte brasileira às suas próprias origens,
e anacrônico, mas constrói-se como The- Mário, a exemplo de outros modernis-
atrum Sacrum, e assim foi investida pelo tas, intentou em seu discurso a “redes-
aparato teológico e político colonial. coberta” da arte brasileira, fazendo de
Não interessada em analisar profun- categorias como genialidade e genui-
damente os dispositivos que operam a nidade chaves para o louvor da cultura
obra em seu tempo, mas não deixando mestiça ou miscigenada. Como propõe
de referi-los à medida que avança na re- Guiomar, para Mário, “o Aleijadinho é
construção histórica da construção do o herói, que, como alquimista, promove
personagem “Aleijadinho”, Guiomar a transubstanciação dos elementos [...]
enlaça os participantes dessa ação num transforma a cultura de importações ir-
discurso que imita, a distância, a nove- regulares em algo próprio e inédito”.
la. Reconstitui, desse modo, a conten- À medida que o erige como herói,
da, entre os defensores do mito “Alei- Mário faz proliferar, à volta de sua enti-
jadinho” e os seus detratores, revelando dade subjetiva, desvios de natureza esti-
ao leitor detalhes do que, muitas vezes, lística e étnica, como propôs Elisa Kosso-
se assemelha também à crônica policial, vitch. Assim, o estilo do Aleijadinho não
com exumação de cadáveres, incêndios é o “barroco”, pois sempre escapa ou
inoportunos, ou oportunos, dependen- desliza para “bizantinismos”, “goticis-
do do ponto de vista, e documentos mos”, “renascentismos”, “expressionis-
pertencentes a ordens religiosas que de- mos” etc., assim como não se classificam
saparecem misteriosamente, sem deixar as suas ações na colônia como típicas do
vestígios, se é que alguma vez existiram. “mulato”, pois, extraordinárias à lida do
Há, de fato, tantas histórias relativas à mestiço colonial, miram o sujeito “des-
construção desse personagem, com in- raçado”. Incutida de uma “verdade inte-
teresses tão diversos a cada vez, que não rior”, a arte de Aleijadinho é desviante
causaria estranhamento a sua utilização de categorias que poderiam introjetá-la
para a composição de uma ficção que se na, assim chamada, Renascença italiana.
explicitasse como tal. Como desviante, o estilo do Aleija-
Coube a Guiomar, no entanto, de- dinho atenua a expressão do barroco,
monstrar os dispositivos que estão aquém fazendo-o “dócil” e “pequenininho”,
desses discursos, sem pender para quais- “feito para acarinhar”, segundo Mário,
quer dos lados referidos, uma vez que a o que implica a contenção como afei-
negação veemente da crença na existên- ção pela plasticidade. Desviando-se desta
cia do indivíduo por detrás do mito só última, que é determinação da fase sã,
ajudaria a reforçá-la. opera Aleijadinho, na fase da doença, an-
Por isso, também recolhe e comenta tiplástica, em oposição àquela, a defor-
as notícias dos viajantes como Saint-Hi- mação, na qual a gentileza é substituída
laire, Burton, Eschwege, que passaram pela fúria, segundo Kossovitch.
por Minas no século XIX e início do XX, Desviante em relação ao expressio-
acrescentando-lhes, em visada oposta, a nismo alemão, também, a arte de Alei-
crítica dos modernistas, sobretudo, a de jadinho da fase de Congonhas lhe é,
Mário de Andrade. Ao insistir, na senda contudo, análoga, pois, afastando-se do
de Cendrars, possivelmente, em referir pejo de “primitivista”, revelou-se uma

estudos avançados 23 (65), 2009 357


arte feita com franca “intenção expres-
siva”. Como “deformador sistemático”
ou “raro realista”, o Aleijadinho de Má-
rio de Andrade, afasta-se, porém, da
vanguarda europeia, atenuando-lhe o
páthos, a simpatia pelo nacional. Como
desviante, em sentido contrário, à noção
de abstração, necessária às teses sobre o
expressionismo alemão, conforme Wor-
ringer, a “intenção expressiva” na arte de
Aleijadinho refere ainda a Einfühlung,
numa espécie de ocaso do romantismo.
Na eleição de autores modernos que
problematizaram o ensaio de Mário de
Andrade e sua relação com o modernis-
mo brasileiro, Guiomar se utiliza da voz
de outros para revelar a artificialidade
do caráter mítico do Aleijadinho, ou do
artista genial que ergueu as suas obras,
feitas de um sublime “pequenininho”,
contra o céu azul cobalto das fotos que
hoje as ilustram, em Vila Rica e arredo-
res. Poderia muito bem, nesse céu de fim
de tardezinha, ter voado, como outra
tópica circulante, o aeroplano leonar-
divinciano, que o conde Affonso Celso
projetou em seu discurso, para o “Alei-
jadinho”, de 1911.

Luiz Armando Bagolin é professor do


Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da
USP. @ – lbagolin@usp.br

358 estudos avançados 23 (65), 2009

Você também pode gostar