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Cláudio Antônio Cardoso Leite
Faculdade Pitágoras, Belo Horizonte
Resumo: O artigo tenta rastrear as fontes das características do protestantismo no Brasil e sua ressonância
com as tendências culturais contemporâneas hedonistas, consumistas, egocêntricas e emotivas que
destoam das bases culturais do protestantismo histórico. O evangelicalismo brasileiro, genericamente,
parece ter como base não o protestantismo reformado alvo dos estudos de Weber, mas sua vertente
alterada pelas idéias de "bondade" e "liberdade" leibnizianas que influenciaram o arminianismo e o
wesleyanismo a qual, associada ao espiritualismo pentecostal, formou uma expressão religiosa afeita à
característica irracionalista e "mediúnica" da religiosidade brasileira. Esse substrato mostrou-se propício ao
encontro com a cultura do consumo pós-moderno, da fluidez e do descompromisso doutrinário, criando um
etos religioso da "ética emotiva e espírito consumista".
Perturbados ou não, perplexos, talvez, fato é que as coisas mudaram. E nas mudanças
esboçamos explicações, teorias compreensivas, modos de esquadrinhar as novas formas. E para
o nosso caso, a religiosidade na modernidade tardia, duas perspectivas nos chamam a atenção e
parecem verossímeis. A primeira esboça que, não mais fenômeno religioso, mas fenômenos
religiosos constituem um mosaico multiforme, complexo, fúsil, instável e dinâmico de crenças
coexistentes, sem necessariamente, aparentemente ao menos, pautar por uma coerência rígida
entre si.
Os próprios quadros tradicionais e institucionalizados das religiões pro forma se recortam, são
infiltrados por tonalidades outras, como a renovação carismática na igreja Católica Romana, ou o
reavivamento pentecostal nas denominações clássicas e históricas do Protestantismo. No rastro
do Orientalismo espiritualista, a todo instante surge uma miríade de novas seitas místicas,
mágicas, esotéricas que tornam fácil a qualquer um percebe a nova caracterização da experiência
religiosa.
Aquelas noções de poder espiritual, dons, tratamentos espirituais, holismo que a Modernidade
fez crer que desapareceram em nosso distante passado tradicional “retornaram”, afloram e
encontram seu lugar no fluxo da cidade, no mercado – essa feira hipertrofiada e desprovida de
pessoalidade –, na mídia, um extraordinário mecanismo de propagação de carisma, do apelo
fortemente emocional, veiculando imagens e signos proporcionadores de uma significativa
transformação de vida por meio da satisfação individual imediata. Nas palavras de Antoniazzi, um
dos proponentes dessa perspectiva,
Cláudio Antônio Cardoso Leite é Professor universitário, Mestre em Sociologia pela UFMG, Bacharel/Licenciado em
Ciências sociais e realizou estudos na L’Abri Fellowship, no Reino Unido. É atualmente professor da Faculdade Pitágoras
de Belo Horizonte. É membro fundador do Centro de Estudos da Religião Pierre Sanchis (UFMG) e da Aket - Associação
Kuyper de Estudos Transdisciplinares.
André Tavares Silva Santos é graduando em filosofia na FAJE, em Belo Horizonte. É membro fundador do Centro de
Estudos da Religião Pierre Sanchis (UFMG) e da Aket - Associação Kuyper de Estudos Transdisciplinares.
A princípio, esse ambiente seria “impróprio” e “avesso” à religião. E para a religião naquele
sentido estrito do senso comum, da instituição, da hierarquia, sim, esse ambiente funciona como
areia movediça sob os fundamentos da religiosidade moderna e ocidental. Entretanto, se nos
ativermos àquele sentido de compreensão da religião como sendo o núcleo duro, o cerne mais
primal que permite, sustenta e fornece as categorias sobre as quais se erguem e se armam os
laços sociais e, por fim, a própria sociedade e a cultura, como nos ensinou Durkheim (2003), e
com quem concorda, ao menos em parte e aqui, Herman Dooyeweerd; temos por certo que
mesmo essa configuração cultural e societária sustenta uma dimensão religiosa. E ainda, se
Dito de outro modo, e agora na dimensão das estruturas, segundo Featherstone (1995:159),
temos indícios de que a religião, a experiência religiosa, acomodou-se ao hedonismo e ao
consumismo encontrando expressão mesmo no “homem light” edificado sobre o vazio de
sentidos últimos.
Tomando como exemplos privilegiados os trabalhos de Max Weber (2003) e Colin Campbell
(2001), segundo os quais “[...] uma afinidade entre uma ética e um espírito específicos deu
origem a impulsos psicológicos 1 que orientam a vida cotidiana do indivíduo” (Featherstone,
1995:164), identificamos a possibilidade teórica de que crenças específicas ou complexos éticos
forjem comprometimento e realização emocional.
O Protestantismo no Brasil apresenta uma história de contornos muito próprios. Para a colônia
portuguesa, num momento em que a metrópole está fortemente compromissada com a agenda
da Contra-Reforma, a fé protestante, sobretudo durante o período colonial, refere-se à ameaça
do invasor, sejam os franceses (a expedição liderada por Villegagnon para a formação da France
Antartique contava principalmente com soldados e colonizadores protestantes calvinistas do
braço suíço), sejam os holandeses (Nassau estabelece a liberdade de culto no Recife holandês, e
traz consigo pastores protestantes). Desse ponto de vista, a vitória luso-brasileira na Batalha de
Guararapes e a conseqüente expulsão dos holandeses, de algum modo, é também uma vitória do
Catolicismo Romano contra o Protestantismo invasor.
1
A capacidade de um “etos religioso” gerar resultados específicos na psiqué humana também é trabalhada em: SENNETT,
Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, no capítulo: “O narcisismo é a ética protestante dos
tempos modernos”.
2
O termo é empregado aqui incluindo sem distinção o pentecostalismo histórico, as variedades de neopentecostalismo e
os movimentos carismáticos nas denominações protestantes históricas, por não considerarmos essa distinção necessário
ao nosso argumento geral.
estabelecer e ser aceito pelo povo, praticante que era de um catolicismo popular de tradição rural
que gerava uma disposição religiosa muito diferente da protestante. Até a primeira onda de
renovação espiritual, ou avivamento, o número de evangélicos é proporcionalmente muito
pequeno.
Contudo, já no século XX, sobretudo a partir dos anos 70, o crescimento passa a ser a olhos
vistos. Adiantando-nos um pouco mais, o aumento galopante do número de evangélicos se torna
um fenômeno no campo religioso brasileiro. De acordo com o censo do IBGE, em 1991 9,05% da
população se dizia evangélica, em 2000 o índice salta para 15,4%, o que perfaz um crescimento
de 70,7%. E não paira sombra de dúvida de que esse crescimento está diretamente associado à
multiplicação das denominações pentecostais, que aparecem em três ondas (Freston, 1994),
superando rapidamente a participação das igrejas protestantes históricas. Em face a isso, a
revista Veja numa edição de julho de 2002 tinha como matéria de capa o tema do crescimento
evangélico no Brasil: “A Nação Evangélica. O maior país católico do mundo está ficando cada vez
mais evangélico. E isso começa a mudar muita coisa no Brasil”. Cabe aqui um breve comentário:
tomamos a revista Veja como um indicativo da percepção do fenômeno do crescimento
evangélico pela sociedade brasileira. Os evangélicos que há pouco tempo atrás eram uma
minoria restrita a camadas sociais mais baixas, em alguns ano passam a ter uma grande
representatividade e atuação, sendo inegavelmente uma influência em áreas importantes, como
na moral sexual (90% deles acreditam que tal moral é igual para os homens e para as mulheres),
na política (crescendo a cada eleição o número de candidatos e candidatos eleitos evangélicos,
aumentando a participação e representação do segmento), na mídia eletrônica (são mais de 300
emissoras de rádio e TV controladas por evangélicos), nos negócios (cerca 25000 empresários
evangélicos no país) e na cultura em geral (música gospel, literatura e educação, com um
faturamento que gira em torno de dois bilhões de reais)3.
O que se torna imperativo fazer agora, e é isso que pretendemos nesse trabalho, é tentar
compreender o que tornou possível ao evangelicalismo brasileiro um tamanho crescimento.
Porque a resistência inicial cedeu lugar a uma explosão de crescimento e expressividade? Que
fatores sócio-antropológicos poderiam ser levantados como hipóteses explicativas para o
fenômeno?
Não nos parece possível apontar historicamente a existência de algum período propriamente
“moderno” no Brasil. O próprio processo de modernização do país já se dá tardiamente, o que nos
dá a impressão que, ao invés da clássica narrativa de passagem do tradicional para moderno
(como na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos), o Brasil transita entre o universo tradicional
e a modernidade tardia, ou ultramodernidade ou pós-modernidade. E é nessa característica do
processo que entendemos estar uma poderosa chave para a compreensão da formação do etos
religiosos do protestantismo pentecostal brasileiro na contemporaneidade. Duas características
puderam se articular nesse contexto: o emocionalismo pentecostal e o hedonismo típico da
modernidade tardia.
Segundo o psiquiatra Enrique Rojas (1996), a sociedade atual, devido ao seu caráter
hedonista, niilista e materialista, termina por levar os indivíduos a uma insatisfação emocional
3
A Veja já havia mostrado tal crescimento alguns anos atrás, na revista de julho de 1997. Nesta ocasião os evangélicos
estavam ganhando uma notoriedade nacional e haviam se tornado alvos de acirrada investigação científica, teológica e
jornalística. Uma grande parcela dessas investigações destacou a lógica do mercado (MARIANO, 1996) como fator
determinante da terceira onda de crescimento dessas igrejas. (FRESTON, 1994).
que traz à tona um estilo de vida relativista na moral, com um eixo de conduta baseado na moda,
voltado para o consumo, para busca de realizações pragmáticas e para os anseios afetivos e
emocionais dos indivíduos. Ora, em consonância com a busca de tais realizações e anseios
parecem estar as igrejas protestantes pentecostais, pois, de acordo com Pierucci, estas igrejas
“[...] oferecem uma forma de religiosidade muito eficaz em termos práticos, pouco exigente em
termos éticos e doutrinariamente descomplicada” (2000a: 288). Também oferecem soluções
imediatas para as insatisfações emocionais, pois a religiosidade dessas igrejas é caracterizada
“[...] por um estilo de culto fortemente emocional, voltado para o êxtase, com papel de destaque
para a glossolalia, o exorcismo e o milagre, visados sempre como resultados palpáveis a ser
experimentados de imediato” (idem). Além da presença, por um longo período de tempo,
durante os encontros religiosos, de músicas que levam os indivíduos comuns ao “[...] êxtase
como enlevo necessariamente eventual em face das exigências da vida cotidiana [...]” (Weber,
1994:280).
Antes de avançar na análise do etos protestante na atualidade, é preciso recorrer aos estudos e
investigações anteriormente feitas sobre o tema. Um autor privilegiado, sem sombra de dúvidas
é Max Weber, que se deteve na investigação dos etos religiosos e do comportamento protestante,
valendo-se, para isso, da análise de obras teológicas dos séculos XVI e XVII, e de alguns autores
do século XVIII (Zinzendorf e Wesley). Segundo Weber a ética protestante conduzia o fiel a uma
conduta ascética e racionalizante em relação ao mundo “[...] onde o fiel deveria agir neste mundo
temporal, se afastando do ‘[...] gozo da riqueza com o subseqüente ócio e às tentações da carne’”
(Weber, 2003:118), para atender à sua vocação de trabalhador cujo intuito era o de aumentar a
glória de Deus na Terra. Essa atitude e postura religiosa diante da realidade mundana se articulou
muito com o “espírito” do capitalismo, também racional.
Weber não faz uma distinção rígida entre as várias seitas protestantes. Para ele, calvinistas,
puritanos, pietistas, metodistas, batistas, dentre outros, apesar de suas próprias peculiaridades
e divergências, eram todos protestantes4; muito embora nem todos possuíssem o “espírito do
capitalismo”. Entretanto, o mais importante é que em todo etos religioso protestante havia uma
propensão à conduta “ascética” e “racional” que, segundo destaca Souza, era nisto que o
protestante deveria guiar a sua vida
4
Se formos nos deter no termo “protestantes” de forma mais especificamente histórica, seríamos levados a considerar
como tais somente os luteranos, pois foram eles que, diante da ofensiva Dieta Imperial, convocada por Carlos V,
Imperador do Sacro Império Romano, “[...] reagiram com um protesto formal (daí o nome ‘protestantes’) [...]” (Ver
SKINNER, 1996:470-1).
Este etos religioso protestante levava a um procedimento tão racional de conduta que,
segundo Weber, desaprovava o prazer e a emoção, sublimando também os aspectos
“sentimentais” da vida. Campbell destaca esse aspecto ao afirmar que tal etos era então uma das
mais “poderosas forças anti-hedonistas que o mundo conhecia” (Campbell, 2001:146 ). Tal
argumento foi desenvolvido por Weber na caracterização do aspecto ascético que ele atribui a
este etos cultural. Segundo ele, apesar do prazer e dos sentimentos estarem presentes na vida
como algo natural que Deus criou, o protestante ascético via-os como algo que devia ser colocado
à parte devido às características “irracionais” que ambos possuíam. Weber expressa isso nos
seguintes termos:
Nesse sentido, a atitude psicológica que então era adotada é a de repulsa a qualquer resposta
impulsiva à vida. É o que também destaca Campbell:
emotivo e pela abertura ao prazer, uma “[versão] ‘emocionalista’ da doutrina calvinista dos
sinais, [e que] se desenvolve pela primeira vez nos cultos da benevolência e da melancolia,
depois num sentimentalismo plenamente amadurecido” (Campbell, 2001: 195). Segundo
Campbell, é possível “[...] concluir que havia não uma, mas duas poderosas tradições culturais de
pensamento e “ética” associadas que se desenvolveram a partir do puritanismo inglês do século
XVIII” (2001:195).
A filosofia otimista leibniziana desempenha um papel de influência fundamental, uma vez que
Leibniz, ao estabelecer as condições da liberdade, afirma que é necessário estar presente no
agente: inteligência (uma vez que um ato não inteligente não pode ser livre), espontaneidade (o
ato depende tão somente das motivações interiores do agente, excluindo coações exteriores), e
contingência (ou seja, a possibilidade de se realizar a ação oposta). No modelo monista
leibniziano, a liberdade não se refere a fazer ou não a escolha, mas refere-se à capacidade da
5
Estes eram intelectuais calvinistas ligados ao Emmanuel College, de Cambridge, que também criticaram a predestinação
como um “fatalismo arbitrário do Divino”. Como teólogos, procuraram construir uma alternativa ao sistema de Calvino,
resolveram incorporar à teologia protestante aspectos da teologia natural dos filósofos gregos, como fora feito
anteriormente à Reforma com os primeiros Pais da Igreja, e, assim, acabaram por construir uma teologia filosófica com
mais influência de Platão que de Agostinho. (Para detalhes sobre as diferenças entre as críticas dos arminianos e desses,
cf. CAMPBELL, 2001:154-162).
6
A crença na predestinação, defendida pelo calvinismo, significava que o homem, por si mesmo, não pode fazer nada
para ser salvo. A salvação dada a alguns homens advém do decreto dado pelo Deus absconditus, inescrutável em seus
eternos desígnios. E este decreto, no sentido da racionalização metódica da conduta ética, é que fundamenta a base
dogmática da moral do “etos protestante racional” (WEBER, 2003:96), bem como a eficácia de tal conduta (SOUZA,
1999:28). Já para James Arminius (1559-1609), tais aspectos da idéia de predestinação são equivocados e deveriam ser
reformulados para dar uma boa consistência ao calvinismo. Segundo ele, estes aspectos fazem de Deus o autor do pecado
e, do homem, um autômato nas suas mãos (Cf. CAIRNS, 1995: 264 -5). É o que também destaca CAMPBELL, que o
debate teológico de Arminius se centrava sobre a questão: “[...] se se devia considerar que os eternos decretos de Deus
haviam predestinado a queda em pecado de Adão e Eva: se houvessem, como afirmava Calvino, então podia ser
declarado que Deus se tornou autor do pecado, mas, se não, por que não se devia considerar que também os filhos de
Adão e Eva podiam determinar “livremente” seu destino?” (CAMPBELL, 2001:156).
alma de depender tão-somente de si mesma para fazê-la, não dependendo de nada mais para
isso. A idéia da liberdade prevista e prefixada por Deus influenciou a teologia protestante como
forma possível e alternativa à predestinação calvinista: há uma disposição no sujeito (ou na
mônada), que já está prevista e programada desde a eternidade e é conhecida por Deus, e que
mesmo sendo uma ação moralmente má, e tomada por Deus pra estabelecer um bem maior,
posterior e conseqüente.
Uma criatura feita à imagem de um Deus benevolente, bondoso e amoroso, também é divino
nesses aspectos; a expressão dessas qualidades divinas está na expressão dos sentimentos, que
devem, então, ser cultivados e livremente manifestados – ou seja, não se faz o bem por um
entendimento ou por uma consciência do dever ser posto em prática através de uma rígida
disciplina do comportamento e pelo estabelecimento das responsabilidades éticas e dos deveres
morais, como a filantropia calvinista, mas pelo movimento íntimo e emocional da bondade
presente naquele que é por natureza bom.
7
Não haveria, como outrora, uma concepção de que a não contenção dessa natureza e sentimento seria algo irracional.
Como podemos perceber, a análise de Campbell implica que o declínio das primeiras
convicções presentes no etos religioso protestante racional alterou a relação entre a crença e a
emoção, de modo que essas emoções religiosamente geradas se haviam tornado uma fonte de
prazer nelas próprias e, por isso, havia uma ampla relutância em abandoná-las. É o que afirma o
próprio Campbell:
Todas essas transformações são de fundamental importância, como vimos, para passagem de
uma ética protestante desconfiada e desaprovadora dos elementos emocionais e do prazer para
um abertura significante para “coexistência articulada” entre o etos religioso e a demanda
emocional do indivíduo. O desenvolvimento dessa nova forma de protestantismo dá origem a um
movimento ainda mais potente em suas formas emocionais e que agregou as experiências
místicas como ponto forte da doutrina e da experiência do crente: o pentecostalismo, que, como
vimos, é a forma de protestantismo que conseguirá ampla entrada na sociedade brasileira
justamente por reunir essas características (emocionalismo e espiritualismo), bastante
conformadas ao etos cultural e societário brasileiro, como aqui temos advogado e tentado
demonstrar. Para tanto, citamos Paul Freston, para quem o pentecostalismo brasileiro
8
Para CAMPBELL, nas sociedades modernas surge um hedonismo distinto daquele das sociedades tradicionais, um
hedonismo de propensão autônoma e auto-ilusiva. Tal propensão é caracterizada com sentido diverso ao pensamento
utilitarista, pois nesta (...) o indivíduo tem de substituir os estímulos verdadeiros pelos ilusivos e, por meio da criação e
manipulação de ilusões – e, conseqüentemente, pela dimensão emotiva da consciência -, construir seu próprio ambiente
aprazível. (CAMPBELL, 2001: 284)
9
Segundo NOBRE (2003:61), “A ética puritana, contudo, levou uma rasteira e viu-se secundarizada. O sentido
‘vocacional’ da ética puritana – a atividade ascética no mundo entendida como um chamado divino – dessubstancializa-se
para indicar um sentido profissional – a atividade mundana como obrigação decorrente da submissão do indivíduo às leis
societárias - , portanto, sem o sentido de um ‘chamado’”.
As mudanças na doutrina e teologia protestante, que acima descrevemos, contribuíram pra que
fosse possível a coexistência articulada entre um determinado etos religiosos protestante e as
demandas emocionais dos indivíduos na modernidade e na modernidade tardia. As mudanças no
protestantismo que conduziram ao pentecostalismo evangélico são de tal ordem que torna-se
difícil, se não forçoso, classifica-lo weberianamente como protestante.
Que fatores sócio-culturais poderiam estar ligados a essa “descaracterização”? Uma delas
seria o desenvolvimento do pentecostalismo num estágio avançado do processo de secularização
da modernidade ocidental. Esse processo confinou a religião à esfera privada da vida do fiel,
subjetivando a dimensão desse tipo de experiência. A retirada da religião da esfera pública para
a esfera privada faz com que a conversão a uma religião se torne um processo de mudança,
redefinição, adaptação e construção da identidade e do comportamento do fiel fortemente
estabelecidos no foro íntimo e privado, na consciência subjetiva: uma experiência emotiva,
portanto intransferível e pessoal. Isso envolve mudanças de várias ordens: nas relações de
gênero, na moral sexual, e na administração econômica do espaço privado, como, por exemplo,
na alteração da agenda de consumo. (Mariz e Machado, 1997:83) Mas também, mudanças de
atitude em relação a problemas emocionais, como a depressão, ansiedade (muitas vezes
causados por precariedade econômica), nervosismo, vícios, dentre outros; todos ligados à
insatisfação afetiva típica do vazio emocional que caracteriza o ‘homem light’ (Rojas, 1996).
Bem diferente do etos “racional”, no “emocional” não há uma preocupação excessiva com a
autodisciplina, com um mandamento divino de chamamento à ascese e com a ética de
responsabilidade no trabalho. Em amplos setores do protestantismo brasileiro que partilham do
“etos religioso protestante emocional”, apesar de haver também um esforço dedicado ao
trabalho, defende-se em primeira instância um enriquecimento rápido e imediato advindo das
bençãos divinas, através de intervenções milagrosas de Deus nos negócios seculares, idéias
também peculiares às da “Teologia da Prosperidade” 10 . Os fiéis, devido às promessas
pentecostais referentes à solução para a insatisfação dos anseios não supridos, são motivados
pela certeza de que “devem usufruir das riquezas deste mundo e devem lutar por elas” (Mariz e
Machado, 1997:82). Mas essa luta se dá mais por uma certeza emocional pragmática do que pela
competência vocacional, em que o fiel vê a si próprio como um sócio dos empreendimentos de
Deus nesta terra (Mariano, 1996); ou então,
10
Para mais detalhes sobre tal teologia, vejam MARIZ e MACHADO (1997), MARIANO (1996) e MONTES (1998).
milagrosa e, como por um passe de mágica, não há mais necessidade de restrições éticas e nem
de mecanismos estratégicos11 para contenção dos instintos naturais. Segundo Weber (2003),
este aspecto milagroso é o que termina por tocar na rigidez ética da racionalidade religiosa, pois
o resultado se dá por um fato singular e isolado e, não, como resultado de algo processual. É o
que ele enfatiza fazendo alusão a uma “religião emocional”, quando se refere à doutrina de
santificação de Wesley, que
Aqui é importante destacar que esse conceito de santificação é o que prevalece no etos
religioso pentecostal e nos adeptos da teologia da prosperidade. Weber, em sua obra, faz uma
dura crítica a esta concepção, pois ela está intimamente relacionada a uma ostentação financeira
peculiar dos “novos ricos” por ele descritos, sendo estes muito parecidos com os empresários
adeptos do pentecostalismo em questão. Weber afirma que, do mesmo modo que
No que concerne a alguma desventura que recaia sobre o indivíduo, no etos emocional, não é
sua responsabilidade, mas sim produto da ação do “mal” ou do “diabo” (Mariz e Machado,
1997:80-1). Do mesmo modo são interpretadas as causas dos problemas emocionais; os
sentimentos ruins, sensação de vazio, perda de sentido da vida, angústias e descontroles
psicológicos (Rojas, 1996). Todos solucionados após a adesão a este etos religioso, conforme
Mariz e Machado (1997: 81), pois o indivíduo só se liberta daquelas quando se torna um fiel
religioso, isto após ter tentado várias soluções, por exemplo, no caso de depressão, após ter
passado por vários tratamentos médicos, terapias com psicólogos e auxílios psiquiátricos.
Enfim, um último ponto sobre a relação entre o etos religioso emocional e o emocionalismo
hedonista contemporâneo é a questão do consumo. No etos religioso racional, a ascese “[...] agiu
poderosamente contra o desfrute espontâneo das riquezas; restringiu o consumo, em especial o
supérfluo” (Weber, 2003:127). Pelo etos emocional, a postura é outra, pois seus adeptos se
configuram como um poderoso mercado consumidor. Segundo Mariz e Machado (1997: 83), há
uma associação entre a conquista de sonhos de consumo e a participação efetiva neste etos
religioso. Além disso, é fato que o consumo hoje é direcionado por um hedonismo onde a máxima
do comportamento é a busca do prazer acima de tudo (Rojas, 1996: 19) sendo este de cunho
auto ilusório próprio desta nossa época (Campbell, 2001:114-139). Sendo assim, do hedonismo,
Neste etos religioso em questão, como filhos de um Deus onipotente, os fiéis, como já dito,
“devem usufruir das riquezas deste mundo e devem lutar por elas” (Mariz e Machado, 1997:82),
11
Por exemplo a adoção de dietas vegetarianas e de banhos frios para inibir as tentações sexuais. Cf: WEBER
(2003:119).
portanto, têm o direito de sonhar com o melhor e o mais prazeroso, e também de realizar estes
sonhos. E é aí que surge também a questão de uma identidade cultural do mercado consumidor
tipicamente “evangélico”, onde o marketing destaca-se por um gama de produtos de marca
religiosa específica, como os do mercado literário, fonográfico, da TV, do vestuário (camisas,
bonés) e dos adornos em geral (adesivos, broches, anéis). Além de toda uma estratégia de
parafrasear os símbolos e logotipos de marcas famosas, onde há uma imitação visual
caracterizada pela presença de frases bíblicas, pelo nome de Jesus ou de igrejas. Há, assim, uma
espécie de “griffe” ou “moda” evangélica, onde não só os bens de consumo tornam-se sagrados,
mas também os bens simbólicos, justamente por adquirirem um “status” espiritual. Deste modo,
não só o etos pentecostal estaria aberto ao consumismo hedonista de hoje, mas também
estimularia em si a produção de bens a serem buscados, tendo estes bens, imagens cujos
significados poderiam ser específicos, ou, ainda, significados que dependeriam da subjetividade
pessoal de cada consumidor, ou seja, dos devaneios emocionais (Campbell, 2001: 114-139) e
espirituais dos fiéis.
Isso parece estar refletido na história da pregação evangélica no país, tal como aqui,
sumariamente, tentamos narrar aqui. A relação confusa do Brasil com a modernidade,
definindo-nos como um composto híbrido semi-moderno mesclado com elementos resistentes do
universo tradicional que encontram na modernidade tardia um nicho bastante fértil para se
rearranjarem, tomando novas formas e expressões. Aquele protestantismo moderno, tipificado
na obra de Weber, obviamente enfrentaria sérios obstáculos para se estabelecer como religião
“popular”. A cultura brasileira acolheria muito mais calorosamente o que lhe fosse afim, o que
carregasse o elemento personalista, emotivo, carismático, místico e exagerado. Parece-nos,
então, que as formas de protestantismo emotivo se articularam de forma bastante eficaz aos
valores hedonista da cultura brasileira, se apresentando como um etos religiosos apropriado para
atender às demandas dos fiéis. Teríamos aí uma hipótese para o salto do crescimento evangélico
e uma chave para a problematização desse fenômeno social e cultural.
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