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DyINAAKe RELIGIOSO Questées praticas e tedricas THIAGO RAFAEL VIEIRA JEAN MARQUES REGINA Prefitcios de Tues Gandra Martins e Franklin Ferreira VIDA NOVA 3" EDIGAO Peet SUMARIO Apresentacio. Nota a esta edi Nota introdutéria .. Pr Prefacio com enfoque jurtdico Ficio com enfoque teoldgico Introdusao capiruto 1: Temas propedéuticos no direito religioso.... Titulo 1: Axiomas Segao 1: O Direito religioso, candnico e eclesidstico. Seco 2: Preambulo constitucional e sua natureza juridica Subsegao 1: Histérico . Subsegao 2: Conceituagio e forca normativa .. Subsecao 3: Axiomas presentes no preambulo .... Secao 3: 1. Liberdade de crenga e culto. : 2. Liberdade religiosa, dignidade da pessoa humana e vida... 94 3. Liberdade religiosa, liberdade de expresso e dignidade da pessoa humana Titulo 2: O Estado laico Segdo 1: A teocracia na 105, poderes religioso € + 106 temporal... DIREITO RELIGIOSO Subsegao 1: Teocracia (pura) e teocracia cesaropapista Subsecio 2: A génese da laicidade . Segao 2: O Estado laico colaborativo brasileiro... Subsegao 1: Sistemas de onganizago estaral quanto a rel Subsegdo 2: Separacao das ordens Subsegao 3: Modelo atual brasileiro Subsegao 4: Conclusao sobre o modelo brasileiro de laicidade. Seco 3: Escusa (objegao) de consciéncia Subsegio 1: A lei n.° 13.796/2019 (falta as aulas por motivos religiosos ou de consciéncia)... capituto 2: Ordenamento juridico vigente ¢ dircito religioso ....185 Titulo 1: A igreja no ordenamento nacional e internacional .. Secio 1: Organizagio religiosa e associagio civil. Segio 2: A vedagao ao embaraco no decreto 119-A/1890 e demais normas..... Subsecio 1: Constituicdo Brasileira de 1988 Subsegao 2: Declaragao de direitos da Virginia... Subsegao 3: Declaragao Universal dos Direitos do Homem e do Cidadio... Subsegao 4: Pacto Internacional sobre Direitos Civis € Politicos de 1966... ne Subsegao 5: Convengio Americana de Direitos Humanos — Pacto de San José da Costa Rica... ++ 200 Subsecao 6: Convengao Europeia de Direitos Humanos ... 202 Subsecao 7: Declaragaio das Nagdes Unidas sobre a Eliminagao de Todas as Formas de Intolerancia e de Discriminagao Baseadas em Religido ou Crenga. Titulo 2: Das normas protetivas nacionai Seco 1: Estatuto dos Refugiados... 209 SUMARIO. Secao 2: Do Alvar Municipal : Do Direito de Reuniao. do Cédigo Penal Brasileiro. Segao 5: Da Lei do Crime Racial Se¢io 6: Do Dia Nacional de Combate & Intolerancia Religiosa.. Segao 7: Do Estatuto da Igualdade Racial Segao 8: Do Cédigo de Processo Civil. Secao 9: Do Estatuto da Crianga e do Adolescente... Secao Secao Seco 10: Do Estatuto do Tdoso.. Seco 11: Oragées, leitura da Biblia e outras praticas religiosas dentro da jornada de trabalho ... Titulo 3: O Direito 4 Religiao aos administrados..... Seco 1: Ensino Religioso .. Segio Seco 3: Conclusio do Capitulo 2 : Assisténcia Religios capiruLo 3: Da organizagio religiosa Titulo 1: O nascimento juridico da Organizagao Religiosa Segao 1: CNP] e Estatuto Social... Subsegao 1.1; A desnecessidade de CNP] para as congregagoes .... Secao 2: A criacio do Corpo Canénico da Igreja Brasileir: Segio Subsegao 1: A elaboragao do Estatuto Social Subsegdo 2: Modelos comuns de Governanga Eclesidstic: Etapas para a criacdo da Organizacao Religiosa Subse¢ao 2.1: O modelo luterano confessional brasileir Secao 4: Alteracao e reforma do Estatuto Social ... Secao 5: Inscrig¢ao e Alvard Municipal e Plano de Prevencio Contra Incéndio.... Seco 6: Plano Diretor Municipal DIREITO RELIGIOSO Secdo 7: Escrituragao Contabil Fiscal e Digital. Subsegdo 1: Escriturago Contabil Fiscal . Subsegao 2: Escrituragao Contébil Digital... Titulo 2: Do funcionamento interno da Organizagao Religiosa...305 Seco 1: Da admissio e demissio de membros..... Segio 2: Responsabilidade civil da Diretoria Estatutdria nas organizagoes religiosas... Segao 3: Cisio da igreja — grupo dissidente e divisio do patriménio... Titulo 3: Situag6es cotidianas da Organizagio Religiosa ..... Segao 1: Usucapiao Subsecdo 1: Usucapiao extraordindric Subsecao 2: Usucapiao ordinario ... Subsecdo 3: Sucessaio de posses. Subsecao 4: Usucapiao especial urbano e rural Subsegao 5: Processo judicial de usucapiio .. Segao 2: Contratos Sedo 3: Dano Moral... Subsecao 1: Conceito de responsabilidade civil Subsegio 2: Por que reparar? Subse¢ao 3: Os tipos de reparagao .. 1, Dano 2. Dano Material... 3. Dano Moral... Subsegao 4: Responsabilidade Subjetiva e Responsabilidade Objetiva .... Subsegio 5: Organizagies religiosas e responsabilidade Civil 1. Culto piblico. 20 SUMARIO. © uso do piilpito... Direito de vizinhanga Admissao e recusa de membros .. yr ey Disciplina eclesiastica e exclusao de membro: > Responsabilidade dos administradores.... Segao 4: Conclusio sobre Responsabilidade Civil e Dano Moral..366 Seco 5: A acessibilidade nos templos de qualquer culto e 0 decreto 10.014/201 capituto 4: Os lideres .... Titulo 1: O ministro de confissio religiosa Seco 1: O ministro de confissio religiosa na ordem econémica constitucional.. Subsecio 1: Do sacerdote e da inexisténcia de vinculo trabalhista e a CLT... Co Subsegao 2 : Do fiel consagrado e o vinculo trabalhista..... Seco 2: Prebenda ministerial .. Segao 3: Direitos sociais do ministro de confissio religiosa Segio 4: A Seguridade Social . Segio 5: A Previdencia e 0 elemento religioso Subsecao 1: Contexto histérico. Subsegao 2: Terminologia aplicada . Subsecao 3: Contexto atual. 1, Inscrigdo e dependentes 2. Da qualidade de segurado 3. Das modalidades de beneficios previdenciarios.. Seco 6: A contribuiggo previdencidria da Organizagio Religiosa.... Seco 7 Imposto de Renda Retido na Fonte — IRRE ... Seco 8: Remuneragao do presidente da Organizagio Religion. 406 a DIREITO RELIGIOSO Segao 9: Visto temporario de entrada para ministro de confissio religiosa estrangeiro ou missiondrio no Brasil......410 Subsecao 9.1: Visto temporirio de entrada para ministro de confissao religiosa brasileiro em outro pat Se¢io 10: Ministro religioso e a proibigdo de depor capiTuLo 5: Direito tributdrio e direito religioso. Titulo 1: Imunidade tributaria religiosa ..... Segio 1: Introdugao 1. Regra-matriz. 2. Tributo 3. A imunidade tributari: Segdo 2: A imunidade tributaria religiosa... 1. Finalidade essencial e auséncia de normas suplementares condicionantes . 3 2. Efeitos da imunidade e diferenga da isengao tributiria .. Subsegao 1: O alcance da imunidade tributdria religiosa... 431 Exemplos praticos do alcance da imunidade tributaria religiosa... 1. Residéncia do ministro religioso . A igreja como locatéria... 2. 3. A igreja como locadora .... 4. A sede dos escritérios de representacao (convengées). 5, 6, . IPVA... . TBI... 7. 1CMS.. Secao 3: Diferenga de imunidade e isengao tributaria. Secio 4: Conclusio.... Titulo 2: O fundamento da imunidade cributiria (eclesidstica) religiosa... 22 SUMARIO. Conclusao . Posfacio . Anexos .. Anexo 1: Legislagdes.. o + Resolugdo normativa n.° 39, de 28 de setembro de 1999 (concessao de visto para ministros religiosos).. + Lei n.° 6.923, de 29 de junho de 1981 (dispoe sobre 0 servigo 480 de assisténcia religiosa nas Forgas Armadas).... + Resolugao n.° 8, de 9 de novembro de 2011 (estabelece diretrizes para a assisténcia religiosa nos estabelecimentos prisionais) Anexo 2: Modelo: + Modelo 1: Deciséo colegiada em proceso ético-disciplinar * Modelo 2: Pedido de imunidade de IPVé Bibliografia. Indice onomistico... 23 APRESENTAGAO obra Direito eligioso, daautoria de Thiago Rafael Vieirae Jean Marques Avec constitui, na verdade, um verdadeiro tratado a respeito de uma temitica pouco encontradiga nas estantes das livrarias de nosso pais. Cuida de um profundo estudo desenvolvido através de muita pes~ quisa e envolto em aspectos resultantes da longa experiéncia dos seus autores na atividade profissional da advocacia, area em que tém militado ao longo de suas carreiras coroadas de éxito e vitérias. Obviamente nao se pode deixar de mencionar que a inspiragao que thes provém é fruto da dedicagao & oragio € que o Espirito Santo de Deus concede sabedoria a quem lhe pede, para que possa alcangar 0 objetivo a que se propée, ¢ a concede gratuitamente, porque conhece a obra do coragao de cada um daqueles que recorrem a essa grandiosa riqueza. A abordagem aplicada nao € meramente tedrica, mas demonstra © conhecimento experimentado e cultivado como meio de aprofundar © proprio contetido que apresentam nesse grande empreendimento ju- ridico ¢ literério, pautado em convicgao e seguranga, por meio das quais a arte da escrita apresenta-se suave e bastante clara, de modo a permitir idade. Ha abordagem de temas relevantes, exempli gratia, desde questdes a assimilago de seus fundamentos com inegavel faci vinculadas ao direito Religioso, Canénico e Eclesidstico, 4 Liberdade de Crenga e Culto, aLaicidade do Estado, perpassando a andlise do Ordenamento Juridico Vigente e 0 Direito Religioso — desde o decreto n? 119-A, de 7/1/1890, 4 vigente ordem constitucional e até os varios tratados internacionais que regulamentam a liberdade religiosa em nivel de direitos humanos, frente aos tribunais europeus. Por certo, h4 questies de ordem administrativa para efeito de es- tabelecer 0 correto funcionamento de uma igreja perante 0 Municipio, DIREITO RELIGIOSO seus registros nos 6rgaos publicos e cartoriais, as atividades internas e, fundamentalmente, a matéria relativa a usucapiao, por razdes dbvias ligadas ao Direito de Propriedade onde se estabelece uma organizagao religiosa. ‘Vemos, ainda, temas ligados a responsabilidade civil, especialmente a lesio do direito de personalidade, culto piblico e, um ponto fulcral, os lideres religiosos, com abordagens criticas e fundamentadas na ordem pre- videncidria, em dias que antecedem mais uma Reforma da Previdéncia. Inequivocamente, nao passou ao largo uma das matérias mais de- batidas nos tiltimos tempos — a ordem tributaria — em que a imunidade constitucional, amparada pela limitagao ao poder de tributar da Uniao, voltando-se exatamente para os aspectos que fogem da assisténcia cabivel ao Estado em termos de amparar os menos favorecidos por meio da filantropia. Logo, diante de todo esse apanhado que sustenta esta obra, que ultrapassa as suas quinhentas paginas, nao poderia deixar de entoar loas aos seus ilustrados e respeitaveis autores, que brindam a comunidade religiosa do pais com a mais completa obra editada no Brasil nos tiltimos tempos, com esse incomensuravel contetido de profundo estudo e anilise pautados na mais apurada técnica do conhecimento. Desejo, portanto, a todos quantos dela se valerem, o melhor provei- to e que tudo seja para o engrandecimento do nome de Deus, na certeza de que o resultado seja o mesmo para todos aqueles que se dedicaram a sua leitura: 0 pleno éxito do estudo do seu contetido, que muito enri- queceré o conhecimento dos seus dedicados leitores. Dr. José po Carmo Veica pe Ouveina, mestre em Direito Processual, doutor em Direito Politico e Econémico, pés-doutor em Direito em Salamanca, Espanha, desembargador aposenta- do do Tribunal de Justica de Minas Gerais, professor de Direito e Religiio da Universidade Presbiteriana Mackenzie, assessor especial da Consultoria Juridica do Instituto Presbiteriano Mackenzie, presbitero em disponibilidade da Primeira Igreja Presbiteriana de Belo Horizonte, Minas Gerais 26 NOTA A ESTA EDICGAO D= gragas ao amado Deus tritino pelo despertar de nossas vo- cagées e pela oportunidade de tornarmos nossa fé ativa no amor, ao mesmo tempo em que continuamos a aprimorar este trabalho de conscientizagao e discussio do tema. Direito Religioso é uma drea de investigacao juridica que veio para ficar e, certamente, daré ainda muito © que discutir nos prdximos anos. Temos a grande alegria de apresentar nossa obra remodelada, re~ visada, ampliada e, a partir de agora, sob a bandeira de Ediges Vida Nova! Queremos registrar nossa gratidao por toda a parceria que tivemos junto aos amados irmaos da Editora Concérdia, com especial agradeci- ‘mento aos queridos rev, Nilo Wachholz (editor) e rev, Waldemar Garcia Carvalho Jr. (gerente comercial), que ndo mediram esforgos para tornar realidade o langamento deste trabalho, cuja repercussao nacional tem sido muito positiva. Jé vemos o reflexo desta empreitada em outras obras que esto surgindo para discutir a tematica, inclusive no Direito Religioso, © que muito bem fara para agregarmos valor ao assunto. O livro vem com novidades. A maior é uma segao inteira dedicada ahistoria da teocracia, desde a Antiguidade classica até o papa Bonifacio VIII, no século 14, onde demonstramos a interagao do Estado com a igteja e as diversas variagdes desse modelo, Estamos sempre a revisar 0 contetido de dispositivos legais aplicaveis ao assunto (a produgio legis- lativa brasileira sempre nos obriga a esse exercicio), como, por exemplo, a instrugdo normativa REB n.° 1897/2019 que desobrigou o cadastro de CNP] para congregacGes filiadas a igrejas-sede e que nao possuam autonomia de gestio fnanceiro-administrativa. Nossa eterna gratidio a Deus, 4 nossa familia, 4 equipe do VR Advogados, companheiros do dia a dia no atendimento juridico a DIREITO RELIGIOSO intimeras organizagoes religiosas no Brasil. Aos companheiros do IBDR — Instituto Brasileiro de Direito e Religiao, pelo apoio sincero e pelos lindos projetos em construgao! Ainda temos que registrar a parceria de queridos amigos pela prestimosa ajuda na revisio do livro, em espe- cial ao dr. Augusto Ventura, dra. Natammy Bonissoni, Barbara Alice Barbosa, pelo querido amigo e irmao prof. Franklin Ferreira por toda ajuda, além de todos os amigos que nos honraram com seus endossos para esta nova edigao. Soli Deo gloria! Os Aurores, Porto Alegre, 25 de setembro de 2019 28 NOTA INTRODUTORIA Awe € uma dimensao singular da vida humana e marcou lesde sempre a histdria da humanidade. Resguardar a liberdade de crenca, culto e organizagio religiosa é, por esse motivo, uma questio de esséncia existencial, como meio de salvaguarda da identidade e da digni- dade humana. Tal liberdade é um dos elementos estruturantes do moderno Estado Constitucional, desenvolvido como reagao ao autoritarismo teolé- gico-politico da cristandade medieval, por um lado, e contra 0 absolutismo monarca do Estado moderno,' por outro, com previsio na Declaragao Universal dos Direitos do Homem, de 1948: “Todo o homem tem direito 4 liberdade de pensamento, consciéncia e religido; este direito inclui a liberdade de mudar de religido ou crenga e a liberdade de manifestar essa religido ou crenga, pelo ensino, pela pratica, pelo culto e pela observancia, isolada ou coletivamente, em ptblico ou em particular” (art. 18). Devido & sua abrangéncia e complexidade, o estudo da liberdade religiosa carece de um ramo especifico do conhecimento juridico, capaz de explorar 0s seus fundamentos, principios e, sobretudo, a legislagao aplicavel. E precisamente esse o propésito do livro Direito Religioso: questées priticas e tedricas, escrito pelos juristas Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina; obra esta que sai na vanguarda no estudo do tema no Brasil, de inigualivel contetido tedrico e de relevancia pratica singular no contexto nacional. Embora seja um livro com importantes reflexdes académicas e de cunho fllos6fico, Direito Religioso € a0 mesmo tempo um importante "Jonatas E. M. Machado, “Tempestade perfeita? Hostilidade a liberdade religiosa no pensamento teorético-juridico”, in: Valério de Oliveira Mazzuoli; Aldir Guedes Soriano, orgs., Direito a liberdade religiosa: desafios e perspectivas para o século XXI (Belo Horizonte: Férum, 2009), p. 113. DIREITO RELIGIOSO manual de utilizagao pratica, cuja leitura é recomendavel nao somente aos operadores da ciéncia juridica que militam na area e aos lideres religiosos em geral, cristdos ou nao, mas a todas as pessoas interessadas na protegao € na materializagao da liberdade religiosa em suas diversas nuangas. A uniao da teoria com a pratica deve-se ao constante estudo e a atuacao profissional dos autores na defesa e assessoria juridica de orga- nizagdes religiosas no pais. Conheci os doutores Thiago Vieira e Jean Regina anos atrés, nas atividades da Associagao Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) — entidade na qual ocupam cargos de diretoria. Mas foi nos nossos estudos de pos-graduacao em Estado Constitucional e Liberdade Religiosa, desenvolvidos nas universidades Mackenzie (Brasil), Coimbra (Portugal) e Oxford (Reino Unido), entre 2015 e 2016, que tive a satisfacao de com eles conviver, aprender e presenciar o compromisso de ambos com o Direito Religioso. A presente obra, portanto, é 0 resultado de profunda pesquisa e da experiéncia de dois eximios advogados, que lidam diariamente com as implicagées da liberdade religiosa, e conhecem na pritica os desafios do seu exercicio no dia a dia, seja em virtude dos empecilhos provocados pela burocracia estatal, seja por causa do desconhecimento de grande parte da sociedade acerca da amplitude dessa garantia constitucional, O livro encontra-se organizado de modo didatico e de facil uti- lizagio. No capitulo 1, os autores apresentam os aspectos introdutérios do Direito Religioso, notadamente a distingio em relacio ao Direito Can6nico e Eclesidstico, bem como estabelecem os fundamentos da li- berdade religiosa e da laicidade do Estado Brasileiro. No capitulo 2, abordam 0 Direito Religioso a luz do ordenamento juridico nacional ¢ internacional. O capitulo 3 tem um cunho mais pratico, no qual desta- cam-se 03 aspectos juridicos das organizagses religiosas, com relevo para a criac4o, elaboragao do estatuto e funcionamento destas entidades. Os lideres so 0 tema do capitulo 4, notadamente a anilise juridica sobre 0 30 NOTA INTRODUTORIA enquadramento do vinculo com a organizagio religiosa e a seguridade social. O capitulo 5 aborda a imunidade tributaria das instituigdes, uma importante garantia para a salvaguarda da liberdade religiosa. Por fm, 0 tiltimo capitulo contém a conclusio da obra. Portanto, Direito religioso nao é 0 trabalho de dois escritores aven- tureiros descomprometidos com a causa, mas, sim, o resultado, ainda que nao definitivo, do empenho de profissionais compromissados com a defesa da liberdade religiosa no pafs, que escrevem sobre aquilo que conhecem e com que lidam diariamente. Enquanto jurista e professor universitario dessa disciplina, expresso minha alegria em poder presen- ciar a publicagao de importante produgao literaria na seara juridica, na medida em que supre uma grande lacuna no mercado editorial brasileiro. Mais ainda porque o livro vem em um contexto cultural que clama por obras dessa natureza, em decorréncia da distorgio do principio da laicidade — que tenta relegar as expresses de fé ao Ambito privado — e da indiferenga com as visdes religiosas de mundo em geral, e com a visio de mundo cristie m particular. Direito religioso: questoes prdticas tedricas & uma obra indispensavel para os nossos dias, ¢ tende a se tornar um classico em curto espaco de tempo. Dr. Vatmir Nascimento MiLomem Santos, diretor de Assuntos Académicos da Anajure (Associagao Nacional de Juristas Evangélicos), professor de Direito Religioso, mestre em Teologia, tedlogo e comentarista biblico da Assembleia de Deus 31 PREFACIO com enfoque teoldégico Um guia para a igreja crista diante do Estado constitucional ma das questées que vém ganhando importancia entre pastores, Un e mestres da igreja crista, sobretudo no Ocidente, diz respeito a como as igrejas locais — e mesmo organizagées cristis — de- vem se relacionar com as “autoridades superiores” (Rm 13.1, NAA). Se até num passado recente as questdes que mais preocupavam estes obreiros e membros das igrejas eram questdes ligadas 4 organizacao interna da igreja e a disciplina eclesidstica, atualmente os temas so mais tensos: Como deveria sera relacio da igrejacomo Estad ? Independencia, cooperagao ou controle — como intentaram na Alemanha os nacio- nal-socialistas, entre 1933 e 1937? Ou a igreja depende do Estado, em alguma ou em qualquer medida, para subsistir? Seria um tipo de érgao do Estado? Ou recebe sua raison d’étre diretamente do soberano Rei dos reis, em sua revelagao nas Sagradas Escrituras, sendo assim constitufda como comunidade da Palavra de Deus e dos sacramentos? Essas si0 questdes que foram colocadas diante da igreja na Antiguidade e durante a Reforma, mas que nos tiltimos anos ressurgiram com forga, por conta da maré de secularizagao que atinge 0 Ocidente. Outra questo que também se impde é: 0 que vem a ser, de fato, 0 Estado laico? E como se distinguem as nogoes de Estado laico ¢ laicizagao? Em sintese, o Estado laico é aquele em que nao hi religiao oficial ‘ou que é neutro em matéria religiosa, e no qual a igreja e o Estado esto DIREITO RELIGIOSO separados, ainda que possam cooperar entre si. A laicizagao refere-se a um. Estado assumidamente nao religioso, que nao apenas rejeita preceitos reli- giosos como também é velada ou abertamente hostil a fé crista e suas ex- presses ptiblicas, Em suma, a laiciza¢ao produz um Estado antirreligioso. Ea haicizagio rejeita no qualquer religido, mas rejeita especifi- camente 0 cristianismo — a fé herdeira da alianca que Deus estabeleceu com um povo, Israel, no Antigo Testamento, e que, de acordo com o testemunho do Novo Testamento, a partir da ag3o do Espirito Santo na encarnagao de Jesus Cristo e em sua vida, morte expiatéria na cruz, ressurreigao e ascensao a Deus Pai, atraiu homens e mulheres de todos os povos e nages a essa tinica alianga, graciosa e inquebrantavel. Para tornar mais clara a distingao e entendermos o alcance das diferengas entre Estado laico e laicizagao, podemos imaginar um conto de duas pragas. Em certa cidade havia uma praca, ¢ essa praca era o lugar onde as pessoas se reuniam para debater questes referentes 4 cidade. Qualquer cidadio poderia tomar um caixote, ir ao centro da praca, pousar 0 caixote no cho e proferir seus discursos. Esses cidadios poderiam ser religiosos ow no. Todos poderiam discursar na praca. Menos os cristios. Pois a fé desses era identificada como instrumento de opressao, um tipo de bpio que sedaria as massas, criando imobilidade e levando as pessoas a se sub- meterem a poderes mais elevados e tiranicos. Dai 0s laicizantes nao tolerarem o que eles caricaturizam como uma f€ opressora, opressiva e intolerante. Assim, ainda que cristios e igrejas possam manter sua fé, como concessao do Estado, essa é relegada e empurrada apenas para o ambito privado ou, quando muito, dos en- contros religiosos. Esse é 0 modelo de laicizagao, que tem sua origem na sangren- ta Revolugao Francesa do século 18, e se tornou muito influente no Ocidente latino — conectado a paises em decadéncia, que nao somente tém perdido sua identidade nacional, mas também experimentam um 34, PREFACIO COM ENFOQUE TEOLOGICO ambiente de crises sociais, econdmicas e de crescente intolerancia. Mas havia outra cidade, na qual também havia uma praca. E essa praca era 0 lugar onde as pessoas se reuniam para debater questdes referentes 4 cida- de. Qualquer cidadao poderia tomar um caixote, ir ao centro da praga, pousar o caixote no chio e proferir seus discursos. Esses cidadaos pode- riam ser religiosos — ou nao. Todos poderiam discursar na praga. Havia liberdade de expresso para todos — todos! Inclusive para os cristaos. Esses, como todos os outros cidadaos, poderiam e deveriam expressar livremente suas crengas em publico. Tal liberdade era vista como um direito inato a cidadaos livres que vivem em uma cidade livre. Esse é 0 modelo de Estado laico moderno, que tem seus inicios na Reforma protestante do século 16, mas, sobretudo, com as reformas de puritanos ingleses, escoceses e americanos nos séculos 17 e 18. Portanto, éum modelo influente sobretudo nos paises anglo-saxdes, mas também na Suiga e na Holanda — paises onde nunca houve uma ditadura autori- taria ou toralitaria. Isso foi um fator importante na liberdade, expansao, prosperidade e pujanga destas nagées, experimentadas ainda hoje. Esse € um dos debates mais importantes de nosso tempo, com implicagGes importantissimas para a igreja crista. A esse debate estao co- nectados todos os demais debates éticos nos quais a igreja est envolvi- da, tais como: a liberdade em se afirmar o ensino da Escritura de que 0 comportamento homosexual é pecado, frente 4 defesa intransigente de politicas identitérias, como as de género e orientagao sexual; a ahrmagao segundo a Escritura de uma agenda pré-vida — diante das press6es de nao cristaos pré-aborto; e se o Estado pode ou nao desfavorecer organizacdes cristés que se oponham a tais agendas e, consequentemente, nao somente cortar subsidios, mas até mesmo negar reconhecimento a tais instituigdes. Essas sio questSes que esto no centro do debate na Europa e, ago- ra, até mesmo nos paises anglo-saxdes, a medida que o antigo modelo de Estado laico vai sendo relegado ao passado, e vai ganhando proeminéncia © modelo de laicizagio. 35 DIREITO RELIGIOSO Portanto, um grande desafio para pastores, presbiteros e mestres é a organizagao da igreja, mas nao apenas na questao de como a igreja se constituird em termos biblicos, mas também de como essa igreja se relacionar4 com o Estado e suas leis, nem sempre claras ou justas. Assim, recomendo com entusiasmo esta obra inédita em portu- gués, fruto de longo e dedicado trabalho de dois advogados evangélicos: Thiago, um batista carismatico, e Jean, um luterano confessional. Alids, deve-se destacar, a uniao de dois autores vindos de tradigSes evangélicas diferentes torna essa obra ainda mais rica, relevante e abrangente. Assim, 0 que 0 leitor tem em mos é um livro-texto imprescindi- vel para cristaos de todas as denominagSes que queiram honrar a Deus nao s6 no servigo em comunidades que tenham uma estrutura eclesial que esteja conformada a Escritura, mas também na devida sujei¢ao as autoridades que procedem de Deus, que “foram por ele instituidas”, e isso “por dever de consciéncia” (Rm 13.1,5, NAA). FRANKLIN FERREIRA, pastor da Igreja da Trindade, diretor e professor de Teologia Sistemética e Histéria da Igreja no Seminario Martin Bucer, em Sao José dos Campos, Sao Paulo, bacharel e mestre em Teologia, autor de varias obras, entre elas Teologia sistemdtica (Vida Nova) € Contra a idolatria do Estado (Vida Nova) PREFACIO com enfoque juridico autonomia de um ramo do Direito d-se 4 medida que seus fun- damentos, principios, normas e regras vao adquirindo autonomia, diferenciando-se de outros ramos e conformando um conjunto proprio de disposigdes submetido 4 Lei Suprema. Interpreta-se, pois, em face de outros conjuntos, em regimes e situagGes definidos e distintos dos demais que regulam uma sociedade. A complexidade do mundo moderno tem gerado aparecimento de direitos de primeira, terceira e quarta geracées, os quais formatam no- vos conjuntos normativos, cuja autonomia gera, por decorréncia, novos ramos, num proceso permanente. E de lembrar que © clissico direito ptiblico e direito privado dos romanos sucedeu © direito civil e penal da Antiguidade, pois nao se discutiam, no periodo anterior, as diversas dimensdes do direito puibli- co, como se percebe ao ler o que sobrou, por exemplo, dos Cédigos de Shulgi, Hamurabi, Ur-nammu, Lipit-Ishtar, nas leis de Manu ou de Amon. O poder exercido por reis, imperadores e farads era intocével, Detinham um direito de cardter divino, que permaneceu em muitas das civilizagGes antigas, em suas primeiras legislagdes escritas. Essa evolugio gradativa, sempre tomando por base a expansao de Roma, nao arrefeceu nem durante a Idade Média. De rigor, todo o direito evoluiu em quatro momentos cruciais. O primeiro ocorreu a partir da primeira conformagao de regras dos homens modernos, apés as civilizagies de Neanderthal e Cro-Magnon. Nelas, os costumes formavam o complexo regulador das aldeias, vilas e primeiras cidades. DIREITO RELIGIOSO Veio, a seguir, o direito dos impérios nascentes, com a formulagao de normas escritas, pela primeira vez. Uma caracteristica deste perfodo é que o direito escrito regulava, fundamentalmente, a relagao de poder com o povo. O poder, por ser con siderado concessao ofertada pelos deuses, nao necessitava de regulagao perante o povo. Todos os primeiros cédigos sao, portanto, leis outorgadas para a convivéncia do povo, concedidas pelos governantes, sem parti pacio direta da populagio. Caracteristica dessas duas primeiras fases é sempre a crenga do homem em seres superiores. Apenas os judeus e Akenaton, no Egito, na XVIII Dinastia, acreditavam em um tinico Ser Supremo. Todas as ou- tras religies admitiram uma infinidade deles, lembrando-se que a india chegou a cultuar aproximadamente trés mil deuses. A partir do pensamento grego e, principalmente, dos filsofos dos séculos que antecederam a trindade urea (Sdcrates, Platao e Aristételes), é que o homem descobriu que a tutela dos que o governavam poderia ser contestada, que o homem tinha uma dignidade intrinseca e que 0 poder deveria ter o consenso dos cidadaos. Uma nagao descobre, entao, que a regulacao da sociedade deveria compreender 0 exercicio da cidadania, nio s6 nas relagSes entre os governados, mas também naquelas dos que os governavam. A duragao de 2.200 anos da nag4o romana, desde o reinado, re- publica, império, tanto na Roma ocidental quanto oriental (753 a.C. a 1453 d.C_), deveu-se a ter tornado o direito seu grande instrumento de governo, com outorga de direitos de cidadania romana, que permitia ao cidadao superioridade de tratamento perante os nacionais dos paises conquistados. Mesmo durante o terceiro século — em que os imperadores e césares sucediam-se numa velocidade fantastica, muitos deles assassina- dos por sucessores que nem por isso escapavam de morte semelhante — 0 direito cidadania foi respeitado. 38 PREFACIO COM ENFOQUE JURIDICO Foi o direito romano que permitiu a expansao de seu dominio, alicergado em técnica militar excepcional, em que se deve destacar 0 “quadrado romano”, eficientissimo nos combates contra barbaros e ou- tros povos. Tal técnica facilitou que Roma, com um pequeno niimero de soldados, distendesse consideravelmente seu império. A média de sol- dados, quando de sua maior extensao territorial, estava em torno de 350 mil homens, ou seja, na época da Pax Romana. O jus gentium e o jus civile romanorum garantiram o império por séculos, e, quando desapareceu o Império Ocidental, em 479 d.C., foram as Instituigdes Justinianas e o mesmo arcabougo juridico herdado dos ocidentais, ou seja, do Império Romano ocidental, que prevaleceram até Constantinopla ser tomada por Maomé II, no fim do século 15. Mesmo durante a Idade Média, o direito romano continuou in- Aluenciando todas as nagdes que nasceram dos povos barbaros vitoriosos, ainda sobre o forte impulso da religiao crista, tornada oficial em Roma, desde 315 d.C., por Constantino. As Ordenagées Portuguesas (Afonsinas, Manuelinas e Felipinas) ea legislagio formatada pouco antes, sob o forte impulso do direito romano, desembocaram na quarta era em que vivemos, a do consti- tucionalismo moderno, que, de rigor, tem inicio com a “Magna Carta Baronorum”, em 1215, na Inglaterra, apés a revolugao dos bardes contra Joao Sem Terra, e continua com a promulgagao da Constituigao ameri- cana, de 1787, ea francesa, em 1791, as trés com conotagdes bem distin- tas. A primeira, com equilibrio entre o poder e 0 povo representado pelos bardes; a segunda, em que o poder e 0 povo tém como objetivo maior a patria; e a terceira, com o cidadao sendo o centro do ideal nacional. Na evolugao do constitucionalismo moderno, nao se pode esque- cer que, apés a derrota dos Estados Pontificios e sua absorgao, a partir de Garibaldi, na Italia unificada, houve uma separagao entre o Estado e as instituigdes religiosas. Continuaram, porém, as religides a influenciar a 39 DIREITO RELIGIOSO conformagao do poder, na maior parte dos paises, com sinais evidentes de sua presenga, visto que, na esmagadora maioria deles, o povo acreditava em Deus, sendo minoritéria a populacao agnéstica ou reduzidissima aquela ateia. Nessas quatro formas de direito regulatério, que examinei mais pormenorizadamente nos livros Uma breve teoria do poder, Uma bre- ve introdugdo ao Direito e Uma breve teoria sobre 0 constitucionalismo,? a complexidade da vida em sociedade foi, a evidéncia, multiplicando a autonomia dos ramos do direito, com o que, hoje, o ntimero de ramos auténomos é significativo, principalmente se comparado com a defi- nigao de Ulpiano de que “Hujus studi duae sunt positiones, publicum et privatum”. Lembro apenas alguns: direito constitucional, direito penal, direito administrativo, direito processual, direito financeiro, direito ti- butario, direito econdmico, direito ambiental, direito 4 educagao, direito da informatica, direito 4 comunicagao, direito do trabalho etc. E nesse quadro que se pode falar no direito & religido. Ha, efe- tivamente, um direito 4 religido, nao s6 decorrente das quatro ordens a que me referi, onde o direito ou era alicergado na religiéo, como entre os judeus, ou inspirava todas as agdes, como nas Leis de Amon, nas diversas eras do império egipcio (alto, médio e baixo, inclusive no ptolomaico, excegao feita aos 18 anos de Amenophis IV, entre as XVIII e XIX dinas- tias), continuando sua influéncia até os dias atuais, como nos juramentos perante os tribunais americanos, realizados com a mao sobre a Biblia, ou dos governos espanhdis até seu tiltimo primeiro-ministro, que se negou a fazé-lo. De qualquer forma, uma forte corrente procura ver na separagio entre o Estado e as instituigées religiosas uma caracteristica de Estado ateu. ‘ma breve teoria do poder (Sao Paulo: Revista dos Tribunais, 2009); Uma breve introdugéo ao Direito (Sa0 Paulo: Migalhas, 2015); Uma breve teoria sobre 0 constitu- cionalismo (Sao Paulo: Migalhas, 20° PREFACIO COM ENFOQUE JURIDICO Faz-se necessiria, nesse ponto, uma consideragao relevante para as conclusdes deste brevissimo estudo. E sobre a laicidade no Direito. E importante lembrar que a ideia de laicidade decorre do que de- veria ter sido natural na formatagao do Estado Moderno, ou seja, que 0 Poder Religioso nao se confunde com o Poder Politico. O Poder Religioso cuida das relagdes do homem com Deus, e o Poder Civil, das relagdes dos homens entre si, em sociedade, ou nas sociedades organizadas em Estado. Sao dois poderes diferentes, com areas de atuago diferentes. No exercicio da cidadania, todavia, tanto os que acreditam em Deus, quanto os que nao acreditam tém o direito de atuar. O Poder Laico nao é um poder ateu nem agnéstico. No seu m= bito, nao se coloca a influéncia do Poder Religioso sobre as estruturas laicas, pois sio poderes diferentes. Na politica, nao se exclui a atuagéo dos que tenham convicgio religiosa. Em outras palavras, numa auténtica democracia, tanto os que creem, que so a maioria, quanto os que nao creem, que séo a minoria, tém idénticos direitos, podendo atuar como desejarem, de acordo com suas convicgdes, apenas exercendo, quanto ao Poder Politico, os seus direitos de cidadania. Tém, os crentes, voz ativa, assim como os néo crentes, e podem expor e lutar por stias conviccdes, principalmente no que diz respeito a “direitos humanos” e “individuais”, conforme os padrdes morais da religiao que professam, os quais a histéria tem de- monstrado serem superiores aos daqueles que nao acreditam em nada, sendo na propria existéncia e na moral pessoal por cada um formatada. Estes tendem a ser mais relaxados, condescendentes em relagio a tais principios. Nao sem razao, no clissico Os irmios Karamdzov, 0 per sonagem Ivan, que nao respeitava Deus, declara: “Se Deus nao existir, tudo sera permitido! do Paulo: Martin Claret, 2013. 41 DIREITO RELIGIOSO E que na maioria das religiGes universais que respeitam a auto- nomia da vontade — que foi por Deus, em primeiro lugar, respeitada, ao permitir que sua criatura o negasse — os valores morais tém proemi~ néncia, o que é menos comum entre os ateus € agndsticos, embora tais valores possam ser professados também por eles. E que a inexisténcia de qualquer liame com a responsabilidade, nos que vivem a vida para si e consideram a morte o fim de tudo, pode acabar tornando os valores morais relativos, apesar de que, para muitos dos que acreditam em Deus, isso também acontega, sempre que se apegam As conquistas materiais, intelectuais ou de poder que adquiriram. Tal percepgao tem demonstrado, todavia, que, no exercicio da cidadania, os que acreditam terminam por defender teses mais condi- zentes com a dignidade humana do que os ateus e agnésticos, que mais se aproximam da personagem dostoievskiana. O Estado laico, todavia, nasceu em decorréncia do abuso dos go- vernos daqueles Estados em que o poder era exercido sob a aparente pro- tecao da religido. Os maiores abusos eram praticados pelos detentores do poder, colocando a religiio como um escudo a justificar suas pretensées, endo como uma forma de atuar conforme o bem da comunidade que representavam, E, a evidéncia, com o Iluminismo, na Franga, contra as monarquias absolutas, a ideia propagou-se com os excessos naturais, tal qual ocorreu na Revolugio Francesa, em que a deusa “Razao”, criada por Robespierre, levou 0 pais ao maior banho de sangue de sua histéria (entre 1792 e 1794). A separacio, portanto, entre Poder Religiado e Poder Politico foi uma decorréncia natural — e, a meu ver, necessaria — do exercicio da democracia; mas, no exercicio da cidadania, tanto podem exercer 0 Poder Politico os que acreditam, como os que nao acreditam em Deus. As pes- soas vinculadas a uma religiéo, da mesma forma que 0s ateus, agndsticos ou indiferentes, tém o mesmo e rigorosamente igual direito ao exercicio 42 PREFACIO COM ENFOQUE JURIDICO da politica, lembrando-se que, quando Garibaldi conquistou os Estados Pontificios, condenando Pio IX a ficar ilhado no Vaticano, mais clara~ mente ficou realgado © papel da igreja. A partir dai, s6 teve papas santos € seu papel pastoral, com elaborago das mais importantes enciclicas sobre a revolugao social. A Leao XIII, mais do que a Marx e as Constituigdes mexicana e de Weimar, deve-se a grande revolugao social do fim dos séculos 19 e comegos do 20, com a famosa enciclica Rerum Novarum. A ela se sucederam muitas outras elaboradas pelos pontifices romanos, inclusive pelos trés tiltimos (Joao Paulo II, Bento XVI e Francisco). Sio poderes diferentes, que atuam sobre a mesma populagio — menos no caso do Poder Religioso, e mais no do Poder Politico —, mas que nao retiram de cada cidadio, crente ou nfo, o exercicio do mais amplo direito & cidadania. Nada mais pobre, todavia, na visio redutora do papel do Estado, do que pretender fazer com 0 que o Poder Laico exclua qualquer ideia defendida por aqueles que acreditam em Deus, que so a maioria, e admita apenas aquelas defendidas por ateus e agnésticos, com o que 0 direito de definir os direitos politicos do Estado acabaria em mios da mi- notia privilegiada dos que nao tém qualquer credo. Nem a Democracia Ateniense seria tao elitista. A histéria ja demonstrou 0 banho de sangue que uma concep¢ao dessas acarretou nos Estados, que, por se dizerem laicos, condenaram todos 0s que acreditavam em Deus. A Unido Soviética de Stalin é, tal- vez, aquela em que uma concepgao laica do poder provocou ntimero de mortes mais elevado que o terrivel holocausto nazista ou as diversas depuragées étnicas africanas, assim como dos regimes menores asidticos, aexemplo de Camboja ou Miamat. A histéria, que é a grande mie da verdade, que narra 0 aconte- cido e, como numa partida de xadrez, nao esconde qualquer aspecto da realidade, pois tudo esté 4 mostra, tem demonstrado que, apesar de 43 DIREITO RELIGIOSO abusos perpetrados em Estados teocraticos — e falo do radicalismo de uma minoria iskimica, nao da maioria dos que acreditam em Maomé —, nos Estados laicos que nao respeitam os direitos de todos os cidadaos crimes maiores tém ocorrido nas ditaduras que sufocam a religiéo, como a stalinista. Tampouco € possivel esquecer as milhares de vidas tiradas, sem qualquer julgamento, em fuzilamentos nos pareddes, pelo sangui- nario tirano Fidel Castro, na mais longeva ditadura da América, que é aquela de Cuba. As ditaduras laicas geram mais hecatombes que qualquer Estado “radical” religioso. O certo é que o Estado laico nao é um Estado ateu. Nele, apenas 0 poder religioso e o poder politico estao separados, mas todo o cidadao, crente ou nao, tem os mesmos direitos politicos de procurar auxiliar os governos e as estruturas estatais, com seu trabalho e suas convicgdes. Por fim, é de se lembrar que a Constituigao brasileira foi promul- gada sob a protegao de Deus, embora conserve minhas diividas se Deus estaria de acordo com tudo o que [A escrito est: . Seu preimbulo tema seguinte dicgao: PREAMBULO. Nos, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democritico, desti- nado a assegurar 0 exercicio dos direitos sociais e individuais, a liber- dade, a seguranga, 0 bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justica como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solugao pacifica das controvérsias, promulgamos, sob a protesdo de Deus, a seguinte CoNsTITUIGAO DA REPUBLICA FEDERATICA DO BRASIL.! ‘Constituigao da Repiiblica Federativa do Brasil (Brasilia: Senado Federal, 1988), rif dos autores. PREFACIO COM ENFOQUE JURIDICO Compreende-se, pois, que, nesta evolugao do direito e na regula- mentagao necessaria para que a autonomia de cada ramo com suas ca~ racteristicas préprias seja respeitada, haja, de rigor, um direito religioso, nos diversos ordenamentos juridicos do mundo. Este perfil é também albergado pelos principios constitucionais em nosso pafs, no que a plu- ralidade democratica e a liberdade de pensar nao poderiam — como que- rem os desavisados em matéria juridica, que defendem uma concepgao equivocada de Estado laico — excluir a participagao dos que creem num Ser Superior e de suas instituig6es. Estas pessoas e entidades, que so a maioria em todas as nacoes, é que necessitam ser respeitadas pelo direito nacional de cada pais. E de se lembrar que a faléncia do Estado sov ico, que cerceava a religiao, fez com que esta ressurgisse, numa demonstragao de que 0 ho- mem tem uma necessidade irrenuncidvel de adoragao a Deus e, quando nao 0 adora, passa a adorar deuses humanos, que o levam imediatamente a desgraga, como Hitler, Stalin, drogas, dinheiro, sexo. Tudo isso nao passa de substitutivos do Senhor do Universo para preencher o vazio na alma humana. A propria Constituigao Brasileira, além do preambulo ja citado, em diversos dispositivos, configura principios e regras proprias de direito religioso, como nos artigos 5.°, incisos IV, VI, VII, VII, X; 150, inciso VI, letra “b”; 143, §§ 1. € 2.°; 210, § 1.°,, cujas dicgdes 10 as seguintes: Art. 5° Todos sio iguais perante a lei, sem distingao de qualquer natu~ reza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade do direito a vida, a liberdade, & igualdade, a seguranga e & propriedade, nos termos seguintes: L.] IV —é livre a manifestagio do pensamento, sendo vedado 0 anonimato; VI [...] —¢ inviolivel a liberdade de consciéncia e de crenga, sendo as segurado o livre exercicio dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a protecao aos locais de culto € a suas liturgias; 45 DIREITO RELIGIOSO VII —é assegurada, 0s termos da lei, a prestagdo de assisténcia religiosa nas entidades civis e militares de internagao coletiva; VIII —ninguém ser privado de direitos por motivo de crenga religiosa ou de convicgao filoséfica ou politica, salvo se as invocar para eximir-se de obrigagio legal a todos imposta e recusar-se a cumptir prestagio alternativa, fixada em lei; L.] X — sao inviolaveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenizagio pelo dano material ou moral decorrente de sua violagao; L.] Art. (). Sem prejuizo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, € vedado 4 Unido, aos Estados, a0 Distrito Federal e aos Municipios: VI — instituir impostos sobre: L.] b) templos de qualquer culto; LJ Art. 143. O servigo militar é obrigatério nos termos da lei. § 1.° As Forgas Armadas compete, na forma da lei, atribuir servigo alternativo aos que, em tempo de paz, apés alistados, alegarem imperativo de consciéncia, entendendo-se como tal o decorrente de crenga religiosa e de convicgao filoséfica ou politica, para se eximirem de atividades de cardter essencial- mente militar, (Regulamento) § 2.° As mulheres e os eclesidsticos ficam isentos do servigo militar obrigatério em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir, (Regulamento) LJ Art. 210. Serdo fixados contetidos minimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formacao basica comum e respeito aos valores culturais e artisticos, nacionais e regionais. § 1.° © ensino religioso, de matricula facultativa, constituiré disciplina dos horarios normais das escolas puiblicas de ensino fundamental. 46

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