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Subcomandante Marcos
Ética e política. Foi a nós que coube esse tema. No vaivém da mídia, que oferece
soníferos a quem não quer velar, desvelar e desvendar a realidade, há várias coisas
que estão ficando ausentes. O Poder vai parafraseando Pablo Neruda e nos canta,
de forma estridente, "Gosto quando calas porque estas como pendente"... do que
digo, e "estas como distante"... esperando a próxima venda da temporada, ou seja,
as próximas eleições".
Veio aí nossa idéia de que se deve fazer menção do ausente, o que agora não
aparece sozinho, mas se exclui mutuamente, neste caso, a ética e a política, mas
também se apresenta sim como se fosse algo lógico, razoável, compreensível,
justificável, aplaudível ... e outros "iveis" que vocês lembrarem.
Fazer menção do ausente é uma das maneiras de reavivar a memória que também
anda para frente. E escolhemos exatamente o tema da ética não só para sublinhar
seu desterro e ausência da política de cima, além do seu encurralamento no espaço
da academia; mas também para sublinhar ou apontar algumas pistas para que, no
abaixo que estamos levantando, a ética e a política finalmente se abracem na única
forma em que podem fazê-lo, ou seja, sendo "outras".
Quando foi que a ética deixou de ser um referencial e foi substituída pelas
pesquisas, o rating, as aglomerações de massas ou de votos, e chegar a comprar,
assim, o plantão contra a fraude eleitoral de 2006 com o recente show de Shakira
no Zócalo?
"Deve-se estar onde o povo está", disseram na época. De tal forma que, com
certeza, estiveram aí, quando a Shakira demonstrava o que eu, humildemente e
com minhas modestas habilidades, lhe ensinei. Sim, isso faz muito tempo. Agora,
já não é fácil mexer as cadeiras toda vez que me acomodo no assento, nas longas
viagens do nosso roteiro pelo Outro México, o de baixo, o da esquerda sem aspas,
sem orçamentos e sem correspondentes designados.
Mas já estou indo pra outro lado, quando seria melhor estar vindo. Bom, chega de
estórias. Estamos falando de coisas sérias e devemos ficar sérios, formais,
contrariados.
Quando foi que a corte parasita da classe política mexicana, com os analistas e
locutores que a acompanham, se transformou numa desordenada equipe de bufões
sem público e sem comédia?
Quando foi que as notícias sobre as trapalhadas da classe política deslocaram, para
baixo, do rating, obviamente, o nível cômico na mídia eletrônica?
E o que se fez da "esquerda" (já coloquei tantas aspas para o termo "esquerda" que
temo acabem no teclado) que caminhou pela via eleitoral (algo compreensível e
importante) e ao passar foi deixando os princípios, ou seja, a identidade, não só
como se fosse um montão de escombros, mas também um peso?
No México de cima, podem dizer, sem corar sequer, que é bom que se golpeie e
prenda o povo de baixo, gente que rala todo dia para conseguir honestamente algo
a levar para suas famílias, que seja privado de sua casa, de seu pequeno comércio,
de sua mercadoria, de seu meio de vida, enfim, que se aplauda (ou se cale, que é
uma forma pior de aplaudir) que, como numa guerra de conquista, se prive - lá em
cima dizem "se expropria" - uma cidade de territórios inteiros para logo entregá-los
a grandes investidores que, basta um pouco de memória, são os heróis e aliados de
hoje... e os traidores de amanhã.
Parece que, com o embate neoliberal, não foram derrubadas só as regras não-
escritas da política do México e dos referenciais do político como "homem de
Estado". Entre os restos do naufrágio de toda a classe política mexicana também
jazem: a dignidade, a decência...e a vergonha.
Sei que mais de um usará citações de Lênin para justificar o que se faz e desfaz.
Afinal, Lênin serve para tudo... até para contradizê-lo. Mas estamos meio longe da
Rússia Czarista, do Palácio de Inverno e da Duma.
Felipe Calderón Hinojosa, curto não só de estatura, se perde nas fotos os abundam
os verde-oliva e os cinzas. "Vamos ganhando!", diz, mas todos nós sabemos quem
está incluído neste plural e quem não.
A cada dia que passa, há mais sangue nas ruas e nos campos do México, e ele
oferece no exterior o mesmo México fictício que herdou de Fox. E, descaradamente,
explica aos possíveis compradores: "Os rapazes (referindo-se aos soldados e aos
policiais) estão limpando o lugar. Claro, fazem um pouco de barulho, mas logo
ficará tudo limpo. Sobretudo de mexicanos, que são o principal estorvo. Você vai
ver como, logo, onde antes havia um país, haverá um terreno baldio e vai poder
investir no que quiser".
Ah! E a mídia: vamos escolher entre Espino e Calderón. Agora quem será o menos
ruim?
Por isso hoje estamos aqui com vocês. Porque acreditamos, e entre nós "acreditar"
é um sinônimo de "fazer", e fazer um sinônimo de "lutar", e "lutar" um sinônimo de
"sonhar", que é possível construir outra forma de fazer política, e que sua
sustentação principal é a ética, outra ética.
Antes, tenho tratado de explicar que nós zapatistas somos guerreiros e guerreiras,
e isso não só quer dizer que nos assumimos como lutadores, às vezes na defensiva,
às vezes na ofensiva. Mas também que temos uma ética que pouco ou nada tem a
ver com o que se ensina ou se pretende ensinar nas salas de aula, nos livros ou nas
mesas redondas com afastamentos incluídos, mas sim com um compromisso.
Nossa posição tem merecido o desprezo e a crítica dos novos defensores do
indefinível, ou seja, da ação de uma classe política que ao lodo e ao sangue que
mancham suas mãos une agora o cinismo de apresentar sua claudicação como
"maturidade", "modernidade" e "realismo".
E, paradoxalmente, lembro agora que nos ofereceram comodidades para esta mesa
quadrada (talvez por isso é áspera), a nós que, desde que saímos, temos sido
constantes e sonantes incômodos para este setor do pensamento.
Uma vez, José Martí disse que o homem verdadeiro não olha de que lado se vive
melhor, mas sim de que lado está o dever. Agora se poderia dizer que o homem e a
mulher de baixo e à esquerda não olham de que lado vão as pesquisas, mas sim de
que lado está o dever. E o dever, para nós zapatistas, é nossa ética, a ética do
guerreiro.
Já falei de sua origem, das fontes em que saciamos nossa sede para ser o que
somos e seremos.
Agora, só quero lembrar quanto segue. A ética do guerreiro poderia ser resumida
nos seguintes pontos:
2. Estar a serviço de uma causa materializada. Não se trata de lutar por quimeras,
nem de se enganar sobre o inimigo, a batalha, as derrotas, a vitória. Sabemos que
há e haverá sofrimentos, alguns sem nenhum alívio possível, como a dor da morte
de Aléxis Benhumea, nosso companheiro e estudante desta universidade,
assassinado pelo governo um ano atrás. E há outros que requerem um paciente
cultivo da raiva, como saber de nossas companheiras e companheiros presos de
Atenco: Nacho, Magdalena, Mariana, para mencionar só três delas e deles. Mas
sabemos também que essas e estas dores que não cicatrizam têm rumo, destino,
fim. E que esta grande causa que nos motiva não inibe ou subordina as causas de
todos os tamanhos, mas é exatamente nelas que se materializa.
4. Existir para o bem da humanidade, ou seja, para a justiça. Atenção: não disse
"para tomar o poder", nem "para obter um cargo público", nem para "passar à
história", nem "para resolver de cima o que é de baixo". Quero dizer, ao contrário,
nomear e trazer pra cá esta outra grande ausente no caminho de baixo: a justiça. E
não porque ela esteja escondida em algum lugar, esperando que alguém que se
acha iluminado a encontre, venha e a presenteie, e nossos calendários se encham
de monumentos, bustos e estátuas, mas sim porque é algo que se constrói como se
constrói tudo o que nos faz serem humanos, ou seja, coletivamente.
Em nossa ética, então, trata-se de não pensar indignamente, para não atuar
desonestamente. Aprender sempre, sempre preparar-se, conhecer todos os
caminhos possíveis, seus passos, suas velocidades, seus ritmos. Não para todos
andarem, mas sim para saber de todos, caminhar com todos e chegar com todos.
Não é o hoje, o imediato, o efêmero que vemos. Nosso olhar chega mais longe, até
lá, onde se vêem um homem ou uma mulher qualquer despertar com a nova e
terna angústia de saber que devem decidir sobre o seu destino, que caminham pelo
dia com a incerteza que dá a responsabilidade de encher de conteúdo a palavra
"liberdade".
Olhamos até lá, até o tempo e o lugar onde alguém presenteia alguma coisa a
alguém. E é tão longe que não se chega a distinguir se é uma flor veerrrmelha ou
uma estrela ou um sol aquilo que se tende de uma para outra mão. Nossa ética tem
este destino.
Não só por isso, mas também por isso, é que sabemos que vamos ganhar... Muito
agradecido.