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Morte

Desde os tempos antigos eles estiveram juntos, como o começo e o fim de tudo, uma fazia
a floresta fervilhar e outro fazia os animais se calarem, essa a minha história, uma história
sob um homem que foi condenado a nunca poder se reunir com seu amado.
As vezes tenho um vislumbre de sua presença do seu rosto, porém não posso mais ouvir
a sua voz, ou sentir o seu cheiro tão suave que é apagado pelos outros cheiros do mundo.
Dizem que o mundo é justo e que cada grande clã tem a sua própria nobreza, os elfos são
sábios, os anões abeis, os dragões imponentes, as fadas bondosas e os homens destemidos,
mas para mim isso é uma piada de mal gosto contada por um bêbado em uma taverna de
beira de estrada.
De tempos em tempos a calamidade se espalha por esse mundo, os demônios do mundo
inferior se erguem e tiranos cruéis começam o seu longo reinado, que perdura por mais
luas do que qualquer homem pode viver.
Me pergunto onde existe justiça nesse mundo, me pergunto a onde existe beleza nesse
ciclo de guerras e mortes, porém não posso deixar de me alegrar quando eles chegam,
pois são nessas eras que fico mais perto dele, do único que é verdadeiramente justo.
Eu era um jovem elfo a muitas luas quando o destino nos colocou frente a frente, apesar
de não ter mudado em nada a minha aparência ainda assim não sou mais como antes.
Se você atravessar a floresta das fadas, para além do deserto de sal você encontrará o mar
vermelho sangue o único lugar dos oito oceanos no qual as criaturas abissais nadam sob
o brilho do sol, e se seguir ainda mais em direção a estrela vermelha da constelação de
grifo você encontrara uma ilha em forma de lua minguante onde as arvores não dão folhas
tendo como único adorno o mar infinito de flores coloridas que cobriam os seus galhos.
Essa era a morada do meu amor, o lugar para onde todas as flores jogadas aos mortos
tornavam a ganhar vida para alegra-lo em sua solidão.
No meu mundo existe um velho ditado “Se deseja que a morte se afaste do seu leito, viaje
até a sua morada e lhe entregue um elfo de sangue puro”, é uma péssimo ditado mais
muitos acreditam não lembro quantos dos meus desapareciam na calada da noite
sequestrados por reis que temiam o fim esperado.
Eu nunca tive sorte na vida de certa forma sou um azarado alguém que quando nasceu
não caiu nas boas graças de nenhum deus, um dia minha vila foi atacada por mercadores
de escravos, as vezes quando estou só no silencio da noite ainda escuto os seus gritos,
como sussurros no fundo da minha mente.
Depois de vendido como escravo, passei por muitas coisas, lembro dos gritos e das
ofensas “limpa isso direito inútil, “lamba as minhas botas” era uma situação
desesperadora, imagine a sensação de não ser capaz de decidir o que comer, o que vestir,
quando dormir, eu não me pertencia, eu não era mais eu mesmo.
Mas no final o que me causou mais dor foi ver os outros definharem, um a um os outros
elfos adoeceram e morreram, cobertos de lodo jogados em valas moribundos, para
servirem de comida para os ratos.
Não sei como sobrevive aqueles dias sombrios, como não morri depois de ter a minha
pele das gostas esfolada por tentar fugir ou quanto quebraram o meu pulso por derrubar
uma taça de cristal.
Porém isso não importa, o que importa foi que sobrevive, mas como eu já disse não estou
nas boas graças de nenhum deus para conseguir me livrar desse tormento, depois de anos
de escravidão fui oferecido, como presente ao novo tirano da região e assim começou o
meu tormento.
Eles não me espancavam e me davam de comer, queriam garantir que eu estivesse forte
para a viagem, se bem que a maior parte do tempo era transportado com um saco na
cabeça com as mãos amaradas.
Me lembro quando cheguei no deserto de sal, mesmo de capôs eu conseguia sentir o sal
em minha língua, dizem que esse deserto surgiu quando a grande besta Leviatã, bateu a
sua calda no meio do mar estreito e com isso jogou todo sal daquelas águas para essa terra
onde hoje nem animal vive.
Eles me deram pouca água, queriam se banquetear para matar cede, o sal era tanto que
por vezes a minha pele ressecava e meus lábios secos sangravam, mas como o ser sofrido
que era sobrevive a essa jornada, para por fim atravessar o mar de sangue.
Quando me colocou no bote foi a única vez que o tirano ousou a me tocar, para ele eu era
repulsivo, mas se perguntasse diria que a criatura mais nojenta que vi em vida foi ele.
Com as mãos amarradas sob o brilho do sol do meio dia meu bote foi empurrado para o
oceano vermelho, depois de muito me debater consegui ficar sentado, mas já não via sinal
da costa tudo que via era o vermelho infinito das águas.
Acho que essa foi a primeira vez na vida que estive completamente só, não existe
torturador, nem companheiro apenas eu, o oceano e as criaturas que nele se escondiam.
Se pudesse escolher apenas uma palavra, para descrever esse momento seria felicidade,
sei que parece estranho se sentir livre preso em um frágil boto no meio do oceano, mas
olhe pelo meu lado pela primeira vez em anos, não tinha ninguém para me fazer sofrer ou
para me punir apenas eu preso a mim mesmo.
Depois de várias horas nessa recém descoberta ilusão de liberdade, percebi que o
crepúsculo não chega e que nem mesmo sabia onde estava o sol na imensidão sem nuvens
do céu azul sobre a minha cabeça, porem onde as grandes constelações brilhavam.
Nesse momento tive certeza de para onde iria e de quem finalmente iria conhecer, me
perguntei como ele seria, se seria alto ou baixo, se teria presas como uma fera ou se seria
desprovido de corpo, etéreo como uma fada ou aparição da encruzilhada.
Foi com esses pensamentos que eu dormi o mais profundo e tranquilo sono da minha
vida, mesmo que já tenha dormido centenas de milhares de luas depois desse dia, quando
acordei o sol ainda brilhava, porém o barco tinha atracado em uma ilha em forma de lua
minguante.
O cheiro perfumado das flores invadiu o meu nariz aguçado, ao olhar para a praia percebi
que ela era feita da mais fina e branca areia que já tinha visto, me perguntava se a
mancharia se pisasse nessa praia.
Aquele lugar era como nas lendas um recanto de beleza e paz, enquanto admirava o local,
pude ver um grande lobo negro descer da colina em minha direção, seus olhos eram de
um verde esmeralda e seus pelo negro parecia tão sedoso como o da grande rainha dos
elfos.
Ele veio em minha direção e nesse momento sabia que ia morrer, porém não senti medo,
senti alivio em perceber que tudo isso ia acabar, fechei os olhos e me entreguei de bom
grado para que ele me matasse.
Porém a dor não veio, meu sangue não fluiu para fora do meu peito e ele não se deliciou
com aminha morte, quando abri os olhos a grande fera havia sumido e a minha frente
tinha um homem de cabelos negros, de mais de um e noventa de altura com uma pele
bronzeada que me encarava como se me avaliasse.
“Por que não me teme?” Ele me perguntou por fim.
“Já sofri muito nas mãos fervorosas da vida sei que agora poderei ter alguma paz” eu
respondi fazendo com que seus belos olhos verdes demonstrassem compaixão por uma
pobre criatura como eu.
“A vida é demasiada cruel me prendendo nesse lugar, para que as suas criações não
conheçam a minha justiça”
“Mas você leva tantos, como pode estar preso nesse lugar” eu indaguei.
“Eu não os levo, ela que simplesmente os abandona os trazendo para as minhas garras”
“Triste existência é a sua morte, mas por que não me leva? Não aplica a justiça que tanto
almeja levar ao mundo?”
“Não acho que não tenha pecados que mereçam punição, mas o que viveu já castigo muito
além do merecido, saia desse bote e me faça companhia”
Ele me pegou em seus braços se desfez das cordas que me amarravam e me levou para
ver o resto da ilha, enquanto em seus braços pude sentir o seu cheiro, ele era doce e suave,
muito diferente do que se esperava da morte.
Como se lesse os meus pensamentos ele respondeu.
“O cheiro fétido que sente nos cemitérios e no horror das batalhas não é o meu, é o cheiro
da vida, dos vermes e das enfermidades comendo a carne”
Não sei porque me sentia seguro em seus braços, enquanto via a ilha percebi o quão
solitário deveria ser ficar preso naquele lugar, não havia canto dos pássaros ou o som belo
de farfalhar das arvores, a vida tinha infligido a morte uma punição demasiada cruel.
Depois de um tempo a presença dele para mim se tornou puramente agradável, seu corpo
me aquecia e em sua fala via gentileza, ele não parecia um deus cruel ou insensível que
mataria de forma indiscriminada, durante o nosso tempo junto muitas vezes o que levou
a essa punição mas ele nunca me disse.
Durante o meu tempo acordado ele falava sobre os segredos do mundo, sobre como eram
os primeiros seres e até mesmo como nasciam e morriam os deuses nesses momentos eu
era como uma criança deslumbrada com histórias.
Minhas cicatrizes ainda estavam em minha pele e o meu corpo ainda era magro e fraco,
mesmo assim ele me acariciava em sua forma de lobo e me abraçava para que eu me sente
protegido dos sofrimentos da vida.
Um dia enquanto olhávamos as grandes constelações, sem aviso nenhum ele colocou sua
cabeça no meu ombro e contou a história do início dos tempos de quando só existiam três.
“No começo, bem no começo antes de Leviatã sair do seu ovo, ou dos primeiros deuses
nascerem do fogo primordial, só existia nós três, a senhora da vida Lisandra, o mestre da
ausência Ragnar e eu o fim de todas as coisas. Lisandra sempre foi possesiva e por muitas
vezes cometia excessos, criava mundos inteiros transbordando de vida para que suas
bestas devorassem, em muitos casos eram existências presas em desespero, Ragnar e eu
sempre compartilhamos de uma paixão pelo equilíbrio sempre contraponto a natureza
mais cruel de Lisandra, de certa forma nós nos amávamos, o fim leva ao vazio e o vazia
a um lugar a ser preenchido”
“Acho que o nosso amor deixou ela com inveja, sempre teve lugar para ela em meu
coração, mas a vida é por muitas vezes egoísta e cruel, ela nos convenceu a tomar forma
física para que finalmente pudéssemos sentir o toque um do outro, porém a única maneira
disso acontecer era entrando nos seus domínios, ainda consigo sentir o gosto dos lábios
de Ragnar antes dela nos separar irrevogável mente, para me prender ela criou essa ilha
enquanto o tempo se tornou a barreira que impede ele de me alcançar, desde então nunca
mais pude sequer sentir a sua existência”
Nesse momento ele já não era um ser cósmico ou algo do tipo, era só o homem que eu
amava mesmo sentido que esse sentimento já mais poderia ser reciproco, porém mesmo
assim eu virei o seu rosto e o beijei com todo o amor que tinha e ele me retribuiu, me
fazendo por um breve momento o elfo mais feliz desta terra.
Porém como ele havia me dito a vida era ciumenta e demasiada cruel, ela não suportou
que a morte finalmente não estava mais só, um vento forte me envolveu que quando dei
por mim estava no deserto de sal nas bordas do oceano vermelho.
“Você ousou a profanar a morte e negar a mim a sua mãe, então farei o rio da vida se
derramar sobre você e então jamais poderá encontra-lo” foi o que a mulher de vestido
branco que jazia de pé sobre o oceano de sangue me falou.
Essa foi a minha punição por amar a morte em sua solidão, jamais poderia velo de novo
ou sentir os seus braços, viverei eternamente para ver os meus amantes morrerem sendo
levados para junto do meu amado que sofre sozinho sem mim.
A vida sempre foi cruel comigo, mas me fazer viver até o fim dos tempos é um tormento
maior que o chicote ou o desprezo, pois sei que tudo é transitório e nada mais me importa,
pois nada eternidade me tornei frio e vazio.

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