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"Escrevi o romance para resolver o choque entre uma

admiração e uma rejeição sem limites"


Adelino Gomes
29 de Maio de 2002

José Saramago, 79 anos, acabara de regressar a casa, na ilha de Lanzarote, após mais uma
das longas viagens e respectivo cortejo de compromissos que a concessão do Nobel só veio
aumentar. As datas das próximas passagens por Portugal não coincidem com os prazos
editoriais. Na impossibilidade de uma entrevista frente a frente, combina-se uma sessão de
perguntas e respostas via Internet. Com direito a "repique", por parte do entrevistador. O
tema é o livro que hoje o PÚBLICO distribui aos seus leitores. Mas Saramago aceita uma
digressão pela polémica israelo-palestiniana, em que se envolveu após ter invocado
Auschwitz quando se encontrava em Ramallah.

JOSÉ SARAMAGO - Passaram mais de 20 anos, não recordo o nome do hotel, se alguma
vez o fixei. E não se tratou de um congresso, mas de um grupo viajante, daqueles que a
Associação de Amizade Portugal-RDA organizava. Calhou-me ser o "porta-voz" da
delegação, o que significou ter a meu cargo os discursos de agradecimento em todos os
lugares e instituições que visitámos. Foi no final de um desses dias que a "coisa" aconteceu.
Tinha visto em Lisboa um filme ("Anno Domini" não sei quantos, não recordo o nome do
realizador) e, não sei porquê, ele veio-me à memória quando entrei no quarto do hotel.
Sentei-me na cama para descansar um pouco, deixei-me cair para trás e, nesse momento,
"caíram-me" do tecto as palavras "O Ano da Morte de Ricardo Reis". Tinha publicado
poucos meses antes "Levantado do Chão" e esta era a primeira ideia que me surgia para
um novo livro. A ideia do "Memorial do Convento" veio depois. Se me perguntarem porque
não os escrevi pela ordem de "nascimento", direi que me assustou o que os "pessoanos"
iriam dizer da presunção deste adventício. O "Memorial" deu-me forças e confiança para
arrostar depois com aquele Adamastor...

P - É verdade que lhe acontece muitas vezes ter o título antes de escrever uma única
palavra do livro?

R - Quase sempre. O Memorial esteve para chamar-se simplesmente "O Convento", mas
como Agustina Bessa-Luís tinha publicado "O Mosteiro", achei que devia arredondar o
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título para não parecer que andava a inspirar-me em títulos alheios. Quanto a romances
que começaram pelo título, são eles, por exemplo, "Levantado do Chão", "História do
Cerco de Lisboa", "O Evangelho segundo Jesus Cristo", "Ensaio sobre a Cegueira", "Todos
os Nomes", "A Caverna" e este em que estou a trabalhar, "O Homem Duplicado".

P - Mas para aparecer um título deve haver antes uma ideia geral para a qual ele remete.
Por exemplo, "Todos os Nomes" tem relação com uma busca de dados que andava a fazer
sobre o seu irmão Francisco de Sousa, morto aos dois anos.

R - Alguns títulos, de facto, propõem imediatamente o que chama "uma ideia geral" da
história. Não é, porém, o caso de "Todos os Nomes", que me apareceu num avião que me
levava a Brasília. Já íamos a pouca altura, eu olhava a paisagem lá em baixo e de repente
saltaram-me dentro da cabeça aquelas três palavras. Perguntei a mim mesmo que diabo
quereria aquilo dizer e pensei que, tendo escrito um romance - "Ensaio sobre a Cegueira" -
em que nenhuma personagem tem nome, poderia agora tentar outro em que apareceriam
"todos os nomes". Uma espécie de contraponto. A ligação à busca de dados sobre o meu
irmão Francisco em que andava empenhado deu-se algum tempo depois. Estava em
Amherst, no estado norte-americano de Massachusetts, hospedado em casa do professor
José Ornelas, e foi aí que se me desenhou na mente a história do funcionário do Registo
Civil.

P - E quanto a "O Ano da Morte de Ricardo Reis"? Andava às voltas com Pessoa?

R - Directamente, não andava às voltas com o Fernando Pessoa, mas todos nos lembramos
que por aqueles anos (cinquentenário da morte, centenário do nascimento) era o Pessoa
que andava às voltas connosco...

P - Começou a escrever o livro logo a seguir? Quanto tempo lhe levou? Esse tempo foi
superior ou inferior ao normal?

R - O Ricardo Reis teve de aguardar na fila que eu me livrasse do "Memorial", sobrou-lhe


portanto a espera para chegar maduro ao momento de principiar a ser escrito. Creio que o
trabalho de escrita não me ocupou mais de nove meses. Aliás, é esse, pouco mais ou
menos, o tempo de que necessito para pôr um romance em pé.

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P - Como concilia as exigências da editora (e dos leitores) com os eventuais caprichos da
inspiração?

R - A minha relação com a Editorial Caminho não é desse tipo. Eles respeitam o meu
trabalho, eu respeito o trabalho deles. Os prazos fixo-os eu a mim mesmo, não eles. E se
alguma vez me atrasei na entrega de um original, foram bastante compreensivos para
aceitar sem reserva as razões por que isso tivesse sucedido. Quanto aos leitores, não têm
eles mais remédio que esperar pacientemente. Ou impacientemente, o que será melhor
ainda...

P - Qual foi o livro que lhe levou mais tempo a escrever?

R - Talvez "História do Cerco de Lisboa".

P - E o de mais rápida elaboração?

R - "A Caverna".

P - Lembra-se do seu primeiro contacto com o heterónimo de Fernando Pessoa Ricardo


Reis?

R - Conheci Ricardo Reis por altura dos meus 17 ou 18 anos. Na Escola Industrial de
Afonso Domingues, que frequentava, havia uma biblioteca, e foi aí que se me deparou um
exemplar da revista "Athena" em que apareciam umas quantas odes assinadas com aquele
nome. Dizer que fiquei deslumbrado é pouco, tinha diante de mim a beleza em estado
puro. Nessa altura, pensei que Ricardo Reis era uma pessoa real, não sabia nada dos
heterónimos e pouquíssimo do próprio Pessoa.

P - Um espectador da vida, Ricardo Reis é, talvez de todos, o heterónimo com o qual José
Saramago se identificará menos. Porquê então este privilégio que lhe concede ao fazê-lo
"herói" do seu livro?

R - Quando mais tarde avancei no conhecimento de toda aquela "gente" - foi muito
importante para mim a antologia organizada por Adolfo Casais Monteiro, cuja segunda
edição, a que tenho, saiu em 1945 - e sobretudo comecei a penetrar mais profundamente
no espírito do Reis, achei-me diante de algo que quase por instinto rechaçava, aquela sua
ideia de que a sabedoria consiste em contentar-se cada um com o espectáculo do mundo...
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Pensava já então, e continuo a pensá-lo, que se a alguém o espectáculo do mundo contenta,
ao menos que tenha a decência de não chamar sabedoria a essa atitude. Direi que "O Ano
da Morte de Ricardo Reis" foi precisamente escrito para mostrar a Ricardo Reis o
espectáculo do mundo (de Portugal também) e perguntar-lhe se continuava a considerar
sabedoria a mera contemplação dele... Foi portanto para resolver o choque entre uma
admiração sem limites e uma rejeição sem limites que escrevi o romance.

P - O próprio Fernando Pessoa pode dizer-se que esteve nos antípodas daquilo que José
Saramago defende. Tanto no seu percurso pessoal como nas intervenções que ele foi
fazendo na vida cultural e política do país. A sua admiração por Pessoa faz esse
"distinguo"?

R - Todos sabemos que Fernando Pessoa dá para tudo. Se quisermos viver em paz com ele,
teremos de o aceitar como foram. Mas realmente é difícil suportar com serenidade certas
afirmações suas, como aquela de que a escravatura, afinal, não era um sistema assim tão
mau...

P - Já agora, o mesmo quanto ao Padre António Vieira, cultor da língua, defensor dos
índios e visionário do Quinto Império?

P - Provavelmente, para o Padre António Vieira, as visões de um Quinto Império não


passaram de uma manha política (digo "manha" no melhor sentido da palavra), hoje sem
particular significado, salvo para alguns "iluminados" que ainda imaginem por aí
grandiosos futuros para Portugal. Quanto ao Quinto Império pessoano, esse era puro
teatro. Não se vê que diabo de espiritualidade "futurante" poderia ter ele encontrado na
modorrenta Lisboa dos anos 30...

P - Da sua lista de autores preferidos, constam outros escritores em que o fascínio pela
obra literária não acompanhe a admiração pela pessoa? Pode especificar?

R - Falando de autores portugueses, confesso que não consigo ler aqueles a quem ao
mesmo tempo não estime e respeite como pessoas. Sou menos exigente se se trata de
autores estrangeiros.

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P - Tem consciência de que esse é o "drama" de numerosos fãs da sua obra, que não o
acompanham nas suas opções políticas e a quem nalguns casos essas opções repugnam
até?

R - Se me lêem apesar de as minhas opções políticas lhes repugnarem (outra coisa seria se
lhes repugnasse a pessoa que as tem), então o "drama" não é assim tão grande...

P - Alguma vez pensou em moderar a sua militância no terreno, de forma a alargar ainda
mais a base de apoio literário de que goza no mundo, sobretudo a partir do Prémio Nobel?

R - A minha base de apoio literário nasceu simplesmente daquilo que escrevo, não de uma
estratégia de autor ou de uma dosagem de ingredientes narrativos supostamente
"abrangentes", para usar um termo do calão político. Moderar aquilo a que chama "a
minha militância no terreno" para alargar ainda mais a dita base de apoio seria um cálculo
indigno. Quem me quiser, terá de aceitar-me tal qual sou. Quanto aos outros, que vivam
tão bem sem mim como eu vivo sem eles.

P - Disse uma vez numa entrevista: "Eu estou nos meus livros." Como explica que
numerosos leitores (como se viu agora em Israel) adiram aos seus livros entusiasticamente
mas reajam tão fortemente a posições políticas públicas suas?

R - Alguns críticos literários de Israel disseram que eu escrevi "Ensaio sobre a Cegueira"
pensando no Holocausto e era voz corrente que um dos meus livros, suponho que o
mesmo, havia sido lá escrito... Nada disto era verdade, simplesmente era o lado imaginário
de uma relação privilegiada entre leitores e autor que se estabeleceu em Israel e que nunca
alimentei de caso pensado. De certa maneira, consideravam-me um deles. Mesmo que para
isso tivessem de saltar por cima de alguma interpelação minha, como aquela que sobre o
conflito israelo-palestino se pode ler no "Evangelho segundo Jesus Cristo" (pp. 210-211 da
edição portuguesa) e cuja parte final aqui deixo: "Agora vais dizer-me, segundo o que te
aconselhem as tuas luzes, se, chegando nós um dia a ser poderosos, permitirá o Senhor que
oprimamos os estrangeiros que o mesmo Senhor mandou amar, Israel não poderá querer
senão o que o Senhor quer, e o Senhor, porque escolheu este povo, quererá tudo quanto for
bom para Israel, Mesmo que seja não amar a quem se devia, Sim, se essa for, finalmente, a
sua vontade, De Israel ou do Senhor, De ambos, porque são um, Não violarás o direito do
estrangeiro, palavra do Senhor, Quando o estrangeiro o tiver e lho reconheçamos, disse o
escriba." Nestas últimas palavras ("lho reconheçamos") está o nó da questão: Israel não
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reconhece o direito dos palestinos a viverem na sua própria terra, mas os judeus que leram
aquilo fizeram de conta que não era nada com eles...

P - Acha que a sua opinião sobre a situação palestiniana vale a perda de milhares de
leitores israelitas dos seus livros?

R - Ai de mim se quando vou dizer ou escrever alguma coisa começasse por pensar se com
isso irei vender mais ou vender menos livros... Em Março venderam-se em Israel 3000
exemplares de "Todos os Nomes", em Abril, depois das minhas declarações em Ramallah,
apenas 280. A conclusão é fácil: 2720 leitores andavam equivocados a meu respeito, 280
sabiam quem eu era. Estes são os que me importam.

P - Não o impressiona o argumento daqueles que lembraram que os seus leitores se


encontram em Israel e não na Palestina?

R - É um argumento estúpido e mesquinho, que denuncia uma mentalidade de avaro. A


Israel não falta dinheiro para comprar livros, mas eu não me vendo a quem compre os
meus, seja quem for e onde quer que esteja. Em todo o caso, que não se preocupem, estou
traduzido ao árabe e alguns dos livros que escrevi circularão certamente na Palestina. É
mesmo muito possível que um exemplar desses se encontre soterrado sob os escombros de
Jenin...

P - Já agora, tendo em conta o seu recente artigo "Das pedras de David aos tanques de
Golias" (na imprensa internacional e no PÚBLICO de 03-05-02): reconhece que foi
excessiva a comparação histórica que fez com a situação que prevalecia em Ramallah
durante o cerco israelita?

R - O meu artigo não retira nada às declarações que fiz em Ramallah. É simplesmente
outra visão do problema. Se a denominada comunicação social estivesse interessada em
divulgar com verdade o que eu disse na Palestina, teria de informar que não comparei os
factos de Ramallah aos factos de Auschwitz, mas sim o espírito de Auschwitz ao espírito de
Ramallah... Já era então patente a qualquer pessoa a quem a prudência não fizesse fechar
os olhos. Não sendo a prudência uma das minhas virtudes, limitei-me a antecipar o que o
exército israelita (esse que um grande intelectual judeu, o prof. Leibowitz, no princípio dos
anos 90, classificou como judeo-nazi) não fez depois mais que confirmar. E se ainda há por
aí quem tenha dúvidas, que consulte o "plano de paz" que Sharon levou a Bush para
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aprovação. Nele se contempla o reconhecimento de um Estado palestino sem capacidade
militar e com o território reduzido, em que se criarão zonas de segurança para separar
fisicamente israelitas e palestinos. O "plano" prevê um acantonamento permanente de
tropas nos territórios palestinos, grades, vedações electrificadas e portas de acesso, como
as que actualmente separam Gaza de Israel. Não é preciso ser um lince de inteligência para
perceber que a aplicação de um tal "plano de paz" transformará definitivamente o
chamado território palestino num enorme campo de concentração...

P - Voltando ao livro. Que métodos seguiu para reconstituir o ambiente de Lisboa naquele
período (segunda metade dos anos 30), para além da consulta de jornais da época,
abundantemente citados? Foi aos locais para melhor os descrever (Hotel Bragança,
Cemitério dos Prazeres, etc.)?

R - Apesar de ter apenas 13 anos em 1936, a minha lembrança do ambiente geral da cidade
naquela época mantém-se bastante viva. Essa lembrança foi o pano de fundo de que me
servi para fazer representar as minhas personagens. Mas, tal como refere, a substância dos
factos colhi-a nos jornais, principalmente "O Século", pelas características populares que
sempre o distinguiram: enquanto o "Diário de Notícias" afirmava ser o jornal de maior
tiragem, "O Século" desforrava-se dizendo ser o de maior circulação... Não só visitei o
Hotel Bragança, na Rua do Alecrim, como escolhi o quarto - o 201 - em que iria alojar-se
Ricardo Reis. Aos Prazeres fui também, claro. O resto teve de resolvê-lo a imaginação.

P - E quanto às personagens? Por exemplo as duas mulheres, Lídia e Marcenda, sendo


figuras literárias [das "Odes" de Ricardo Reis], onde foi buscar o corpo e os tiques que lhes
deu?

R - Marcenda não é uma "personagem literária" de Reis, não é sequer um nome feminino
com presença nos vocabulários onomásticos. A palavra aparece na ode "Saudoso já deste
Verão que vejo" designando uma rosa emurchecida. Achei que estava a carácter com a
"minha" personagem. Quanto a Lídia, uma vez que me tinha proposto mostrar a Ricardo
Reis o espectáculo do mundo, pensei que seria uma boa partida dar a uma criada de hotel o
nome de uma das suas quase incorpóreas musas...

P - O lançamento deste livro pelo PÚBLICO vai fazê-lo chegar a muita gente que de outra
forma não o leria. Tendo em conta que entre os seus novos leitores se deverão encontrar

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muitos estudantes, que leituras lhes aconselharia a fazer para melhor compreenderem a
história?

R - A leitura que eu próprio fiz, a da imprensa da época. Aprende-se muito a ler jornais 50
anos depois de terem sido publicados...

P - Foram vários os prémios atribuídos a "O Ano da Morte...". Qual a importância de que se
revestiu, para si e para a sua "carreira", ter sido o Prémio de Ficção Estrangeira do diário
britânico "The Independent", num ano, 1992, em que concorriam, entre outros, livros de
Gunter Grass e de Ismail Kandaré?

R - É fácil de imaginar se se souber que eu trabalhava nos Estúdios Cor quando esta
editora, no princípio dos anos 60, publicou "O Tambor" de Gunter Grass. A publicação de
"Terra do Pecado", em 1947, não tinha feito de mim um escritor, e "Os Poemas Possíveis"
só seriam publicados em 1966. Literariamente, portanto, não existia. Ganhei em 1990 o
prémio de "The Independent" em competição com Grass e, como se isto não fosse
bastante, dão-me o Nobel antes de o darem a ele. É caso para dizer que não há justiça neste
mundo...

P - Refere-se muitas vezes, nos "Cadernos de Lanzarote", à grande quantidade de leitores


que tomam a iniciativa de lhe escrever ou de o interpelar de viva voz sobre os livros que
escreve. Qual o lugar de "O Ano da Morte de Ricardo Reis" nas preferências confessadas
dos seus leitores?

R - Não faltam leitores que consideram ser "O Ano da Morte de Ricardo Reis" o meu
melhor romance, mas não se me peça que concorde com eles, uma vez que iria contrariar
aqueles outros leitores que, por razões não menos pertinentes, defendem outras
preferências.

P - Qual o lugar dele na sua lista pessoal da obra escrita até agora? Porquê?

R - Apenas direi que nada poderia consolar-me se por alguma arte diabólica o "Ricardo
Reis" desaparecesse da minha bibliografia. Não sei se é ele o melhor dos que escrevi, mas
sei que pelo menos dessa vez toquei o tecto. E toquei algo mais, se se me permite uma nota
pessoal: foi "O Ano da Morte de Ricardo Reis" que nos juntou. Refiro-me a Pilar, claro
está...

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