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João Gilberto Walmsley Melato

RA: 155900

Trabalho final de Brasil II

Professor Ricardo Pirola

De onde veio o sangue? A "querela holandesa" no Jornal de Recife


O objetivo do presente trabalho é analisar alguns aspectos da relação entre lusitanos e
brasileiros no Recife oitocentista, a partir de um debate, travado no ano de 1876, entre o
historiador Francisco Augusto Pereira da Costa, membro associado do Instituto
Arqueológico Geográfico Pernambucano, e o Sr. Alípio Augusto Ferreira da Costa, lusitano
residente no Brasil que, ao ler, no Jornal de Recife o discurso de apresentação de Costa no
IAGP, sentiu-se ofendido e resolveu respondê-lo. Através dessa análise, buscaremos
perceber como a sociedade recifense oitocentista percebia o seu passado, especificamente,
que memória ela produzia sobre o período de dominação batava no Nordeste e, a partir daí,
tentar entender aspectos da vida dos lusitanos em Recife no fim do século XIX.

Em seu discurso, que apareceu no Jornal de Recife no dia 17 de Junho de 1876 (Ed. 00137,
ano 1876)1, Pereira da Costa promove uma reabilitação integral da dominação batava, um
elogio da colonização holandesa em todos os sentidos, coisa até então inédita na
historiografia pernambucana, pois que, como explicitado pelo historiador Evaldo Cabral de
Mello, no imaginário da historiografia nativista não havia espaços para se manifestar
qualquer reserva ao episódio da restauração pernambucana. Ela era tida como uma primeira
manifestação da tradição autonomista pernambucana que culminaria na Confederação do
Equador, e “manifestar reserva no tocante a qualquer deles [episódios do processo],
sobretudo ao acontecimento fundador, equivalia a questionar o conjunto, sobre o qual
velava desde 1862 o Instituto pernambucano”2. Obviamente, as teses do novato do IAGP
não deixaram de ser respondidas e, 5 dias mais tarde, Augusto Ferreira publicou sua
resposta (Ed. 00141, ano 1876). Houve também uma réplica do presidente (Ed. 00149, ano
1876), no dia 4 de Julho, e uma intervenção pró-batava, de autor desconhecido, sob o

1
Os jornais foram acessados no site da Hemeroteca Digital Brasileira. O código que usamos aqui permite
acessar o exemplar pelo site.
2
MELLO, E. C. de. Rubro Veio: O imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008. p.
332.
pseudônimo de Ratcliff, um mártir da Confederação do Equador (Ed. 00143, ano 1876),
publicada no dia 26 de Junho.

Por quê defender os holandeses?

A argumentação de Costa vai no sentido de que o IAGP tem, em suas análises sobre a
colonização holandesa, bebido de uma fonte única: o Valoroso Lucideno, do Frei Manoel
Calado, que, diz ele, é uma fonte importante, por ser o único testemunho ocular a que
tinham acesso, mas que, por ser de uma “parcialidade a toda a prova” e escrita por um
“inimigo implacável dos holandeses”, deveria ser comparado com outras fontes, a fim de
separar “os fatos” dos “juízos pessoais”.

A ideia-central de Costa parece ser a de que os holandeses, ao reverso dos portugueses, se


importavam em “desenvolver” o Brasil, i.e, trazer para cá a “liberdade de cultos, o
desenvolvimento da ciência, das artes e da indústria!”. Diz ele:

Senhores. Quando os holandeses nada fizessem no Brasil que atestasse a sua


passagem por essas terras, quando ainda não existissem a memória e a descrição de
seus monumentos, arrasados pelos portugueses, para apagarem todos os seus
vestígios, bastava somente, para eterno padrão da sua glória, a imprensa, o livro e a
escola!!

Segundo ele, enquanto os holandeses garantiram a “liberdade religiosa”, e desenvolveram a


imprensa, essa “colossal alavanca do progresso”, os portugueses mandavam fechar
tipografias. Enquanto os holandeses abriam escolas e praticavam o livre comércio dos
livros, os portugueses fechavam escolas e submetiam livros à censura da Mesa da
Consciência e Ordem. Quando os holandeses queriam trazer plantas preciosas, os
portugueses proibiam o plantio do gengibre. Quando os holandeses queriam introduzir a
indústria fabril e manufatureira, os portugueses mandavam fechar nossas fábricas.

É interessante notar que Costa pode estar descrevendo algo que foi percebido por Mello em
seu estudo do imaginário da restauração pernambucana. Evaldo Cabral chamou isso de um
certo “discurso subterrâneo” acerca do período batavo, que seria possível surpreender nas
obras de viajantes estrangeiros:
Via de regra, a noção da superioridade holandesa exprimia-se em discurso
astutamente oblíquo (...) através da atribuição sistemática [pela imaginação popular]
ao período batavo de qualquer obra cuja concepção ou feitura escapasse à modéstia
dos meios do mestre-de-obras português ou nativo. (...) O fato é que se atribuíam ao
invasor até mesmo os trabalhos executados na administração lusitana.3

O texto segue, dando exemplos dessa atribuição. O que importa perceber, no entanto, é que
talvez a “memória de seus monumentos”, a que se refere Costa, não seja somente aquela
dos monumentos destruídos pelos lusitanos. É possível que ele esteja sugerindo a
sobrevivência do legado batavo mesmo naqueles monumentos que eram, então, atribuídos
aos holandeses. Talvez, por discursar diante de historiadores, ele não se arriscou a citá-los.

Sua conclusão é a de que, na expulsão dos holandeses, ao invés de abolir o senhorio, os


pernambucanos escolheram um senhor pior. Diz ele, ainda, que Portugal trouxe ao Brasil
“ladrões, assassinos e prostitutas”. Retenhamos essa informação4.

A réplica lusitana

Passemos agora à resposta dada por Alípio Ferreira. Publicada no dia 22 de Junho, a réplica
começa exortando à “mocidade brasileira” que pare de atribuir todas as chagas que atingem
o Brasil à ex-metrópole portuguesa, pois “55 anos de vida independente com que conta o
Império” basta para que seus filhos remedeiem “todos esses males reais ou imaginários”.
Assim, Ferreira atribui à reabilitação da colonização holandesa que é feita por Pereira da
Costa uma motivação de ódio anti-lusitano, porque, diz ele, “o amor da justiça, da
igualdade e da fraternidade” não veio ainda substituir “o ódio de raça e baixos preconceitos
de parte da mocidade brasileira contra os portugueses”.

Novamente, assim, os documentos parecem comprovar a análise de Evaldo Cabral de


Mello, que insere esse debate também num contexto de rivalidades raciais e ódio anti-
lusitano. Ele nos cita um documento, escrito pelo Gabinete Português de Leitura:

3
MELLO, E. C. de. Rubro Veio: O imaginário da restauração pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008. p.
305-306.
4
Todas as informações e citações referentes ao discurso de Costa foram retiradas do Jornal de Recife, dia 17
de Junho de 1876 (Ed. 00137, ano 1876)
Para uma destas seitas [antilusitanas], tudo que é português e moderno é mesquinho,
e nós, os portugueses, particularmente os que residimos no Brasil, os representantes
do mercantilismo sórdido ou do materialismo que rebaixa o senso moral até ao
extremo onde não germina uma ideia boa, elevada e nobre5.

A ameaça de morte sutilmente inserida na réplica de Ferreira nos dá uma ideia da seriedade
da richa entre portugueses e brasileiros, afinal, o replicador diz que Costa de fato
conseguirá cumprir tudo que prometeu fazer pelo IAGP, isso se não lhe for cortado “o
dourado fio da existência”.

O Sr. Alípio Ferreira, em sua réplica, dirá que não faz sentido trocar a fonte do Valoroso
Lucideno pela de qualquer fonte holandesa, afinal, os holandeses não são melhor capazes
de imparcialidade do que os portugueses. Ele cita, também, a visão de Odorico Mendes,
“brasileiro ilustrado”, de que a colonização portuguesa é que permitiu ao Brasil o seu
desenvolvimento enquanto nação e que foi muito mais benéfica ao Brasil do que se
houvesse sido colonizado por franceses ou holandeses.

Cita, também, um instituto numismático holandês, que atribui aos portugueses a


“inauguração da era moderna”. O argumento gira em torno disto, do papel dos portugueses
na Renascença, inclusive para se contrapor à afirmação de Costa de que os portugueses
trouxeram “assassinos, ladrões e prostitutas”:

Não, Sr. Costa; os povoadores do Brasil não foram, por honra sua própria,
assassinos e prostitutas, porque Portugal foi sempre um dos países mais virtuosos e
humanitários; e é por estes dois atributos que espero ver a minha pátria ocupar no
mundo o papel que já ocupou.

Além disso, Ferreira também indaga a Costa se, tendo os nomes Pereira e Costa, ele não
seria português, portanto, filho de assassinos ou de uma prostituta. E, caso contrário,
concluiria-se que Costa é ou preto ou índio. Note-se aqui que, ao menos na leitura de
Ferreira, é degradante ser considerado descendente de nativos ou uma pessoa da cor preta.
Hebe Mattos, em seu trabalho sobre a escravidão no Brasil oitocentista, dirá que é

5
Gabinete Português de Leitura APUD MELLO, E. C. de. Rubro Veio: O imaginário da restauração
pernambucana. São Paulo: Alameda, 2008. p. 341.
justamente no oitocentos que surge o racismo tal qual o conhecemos hoje 6. Não sabemos,
infelizmente, a posição de Pereira da Costa sobre essa provocação – tendo em vista que ele
respondeu somente que “sobre minha ascendência, eu nada responderei” em sua tréplica
posterior.

Uma intromissão

Na contenda entre nossos dois debatedores, um fato curioso ocorreu. Um terceiro


personagem, anônimo que atendia pelo pseudônimo de Ratcliff, publicou sua intervenção
no Jornal de Recife, no dia 26 de Junho. Muito mais curta que as outras, a intervenção do
anônimo – que a partir de agora chamaremos por seu pseudônimo, Ratcliff – não diz muito
sobre o debate entre os historiadores (como nos diz a intervenção de Pereira da Costa), mas
pode nos dizer um pouco sobre o clima político e social da época.

Ratcliff começa sua intervenção dizendo que Ferreira está muito longe de “refutar o
luminoso e histórico discurso do Sr. Costa” e que “a verdade é invencível”. Ratcliff busca
menosprezar os “heróis” citados por Alípio Ferreira em sua réplica – por exemplo, a
decisão de Fernandes Vieira de lutar contra os holandeses é atribuída a uma tentativa de
fuga com um dinheiro que ele teria recebido da Companhia Holandesa. Na mesma linha, D.
João VI é criticado por ter sido um “herói que com a aproximação do exército francês
abandonou seu povo... e pernas para que te quero!”.

Ele reforça, também, a ideia expressada por Pereira da Costa de que as artes se
desenvolveram no Brasil apesar dos portugueses. Diz ele que esse desenvolvimento se
deve a Francisco de Rego Barros, que mandou contratar artistas estrangeiros, entre eles
alemães e franceses (não é possível ler todas as nacionalidades por conta de estragos no
documento). Ratcliff pergunta, então, o que é que os brasileiros devem a Portugal? E ele
próprio responde:

Pergunto ainda a S. S. [Sua Senhoria], já que é tão erudito: Quem trouxe a


escravidão ao Brasil e quem se envolveu mais nesse nefasto, torpe e desumano
comércio? (...) Os brasileiros têm muita razão em atribuir os seus males aos

6
Todas as informações e citações referentes à réplica de Alípio Ferreira foram retiradas do Jornal de Recife
em sua edição do dia 22 de Junho de 1876. (Ed. 00141, ano 1876)
portugueses, porquanto entronizaram aqui a cúria romana com todo o seu ódio;
trouxeram-lhe a monarquia e seus velhos preconceitos.

A memória que se forma parece ser a de uma Holanda liberal em oposição a um Portugal
absolutista. O imaginário é claro: de um lado, o atraso, a escravidão, a monarquia e o
catolicismo dos partidários da monarquia absoluta; de outro, as artes, a liberdade, o
protestantismo e a “vocação laboral” dos liberais. É possível inclusive questionar a
afirmação de que somente os portugueses trouxeram esse “desumano comércio” 7 às terras
brasilianas, tendo-se em vista que os batavos também lançaram mão da escravidão africana
como um dos elementos centrais da organização econômica do Brasil holandês.

Sobre o clima hostil da época, é interessante notar que, paralelamente à acusação implícita
de “covardia” a Dom João VI, é feita uma outra acusação de covardia, dessa vez explícita,
ao próprio Alípio Ferreira: “V. S [Vossa Senhoria] fez bem em declarar no seu artigo que
não voltava mais à imprensa; receou a luta. Atirou e fugiu”. Observe-se que há aqui tanto
um questionamento da postura intelectual de Alípio Ferreira, que não quer sustentar o
debate, quanto algo além, relativo às lógicas próprias de uma briga ou uma contenda
violenta: Ferreira “receou a luta”, “atirou e fugiu”, e portanto é um covarde, mas também
“fez bem” ao fazer isso, ficando nítido também um tom de ameaça, sugerindo a
possibilidade de serem realizadas represálias caso Alípio Ferreira volte a publicar suas
ideias na imprensa.

Propositalmente, deixamos a análise do pseudônimo escolhido (“Ratcliff”) ao último


momento da abordagem da intervenção de nosso escritor anônimo. O motivo foi uma
simples decisão de analisar o texto de forma linear, mas animada pela ideia de que essa
leitura possa nos revelar mais coisas dessa escolha nominal.

João Guilherme Ratcliff foi um mártir da Confederação do Equador que, como vimos, era
percebida pela tradição nativista como o ponto culminante de uma tendência autonomista
de Pernambuco, que começava na expulsão dos holandeses. No entanto, o escritor anônimo
do artigo que acabamos de descrever atribui à Confederação uma ligação com a tradição

7
Note-se que, posteriormente a 1850 e anteriormente a 1888, a condenação parece recair principalmente
sobre o comércio/tráfico de escravos e não tanto sobre a escravidão em si, o que talvez livre nosso
interlocutor de se posicionar sobre o tema da abolição
batava, e não com a tradição lusitana. Trata-se, portanto, de uma verdadeira inversão do
simbolismo convencional.

Se colocado em conjunto com o resto de nossa análise, esse elemento parece ser revelador:
aos portugueses devem ser atribuídos os males dos brasileiros, e nosso autor está disposto a
combater esses males, seja recuperando a memória da dominação batava, que segundo a
sua visão era benéfica aos brasileiros, seja em uma luta física de fato: a escolha do nome e
as acusações de covardia (e as ameaças) a Alípio Ferreira sugerem que Ratcliff está
disposto a morrer pela pátria, assim como fez a figura que lhe inspirou o pseudônimo. Lutar
pela pátria significa, para ele, combater a maléfica influência portuguesa. A análise dos
símbolos da intervenção nos revela um clima tenso que beira o despontar de uma luta
física8.

A tréplica

Nossa afirmação anterior parece ser confirmada pela postura de Pereira da Costa, que
começa sua tréplica justamente tentando acalmar um pouco os ânimos: “Não pretendia
entreter polêmica alguma relativa às ideias contidas em meu monumental discurso”, diz ele,
“ainda que esperasse tranquilamente uma resposta daqueles que sempre se julgam
ofendidos com a linguagem da pura verdade”.

Busca-se, assim, afastar a polêmica da hostilidade imediata, mas não deixa-se de responder
às ironias (“monumental discurso”) do adversário nem de cutuca-lo a partir da ideia de que
estaria falando “a verdade”. Também tenta-se trazer a discussão ao mérito “intelectual” e
afastá-la das paixões: Costa diz que esperou ver uma “refutação completa de tudo quanto
disse”, que foi “baseado e estudado na própria história”.

De certa maneira, Costa ressoa argumentos utilizados por Ratcliff: cita-se um documento
que comprova que a metrópole portuguesa teria intervido ativamente de forma a impedir
melhoramentos na condição de vida dos escravos (convenientemente, não há nenhuma
menção ao trato dispensado pelos colonizadores holandeses aos escravos africanos nas
regiões brasileiras por eles administradas). Uma distinção importante, e que permeia todo

8
Todas as informações e citações do artigo de Ratcliff foram retiradas do Jornal de Recife, em sua edição de
26 de Junho de 1876. (Ed. 00143, ano 1876)
artigo de Costa, é feita entre “Portugal nação” e “Portugal metrópole”, entre “governo
português” e “povo português”.

Assim, torna-se fácil para Costa rebater boa parte dos argumentos de Alípio Ferreira. Não
se trata de discutir a grandeza de Portugal enquanto nação e as vastas contribuições que o
povo português deu à Renascença, mas de “fazer o paralelo entre o modo porque a Holanda
e Portugal governaram o Brasil”.

Ao fazer isso, no entanto, Costa é obrigado a contornar um aspecto de sua intervenção


anterior: se havia afirmado que os portugueses haviam trazido para cá ladrões, assassinos e
prostitutas, como poderia agora simplesmente reconhecer as virtudes do povo português e
dizer que seu problema era, na verdade, apenas com o governo? Ele explica:

Com estes [os que vieram espontaneamente] não se entende o que dissemos; porém
os que eram mandados pelo governo da metrópole, eram ladrões e assassinos. E
para provarmos oferecemos a S. S. (...) uma carta escrita pelo Donatário de
Pernambuco, Duarte Coelho, em 20 de Dezembro de 1546, a D. João III, “quando
os degradados, graças às penas da legislação e o mal entendido selo do governo do
Brasil, começavam a ser enviados para cá em maior número aumentando a triste
situação das capitanias”.

Após essa evidência documental, Costa prossegue na distinção entre povo e governo: cita
os administradores portugueses no Brasil e sua corrupção; cita (e admira) os intelectuais
portugueses que Ferreira já citou, mas protesta contra o descaso e mau-trato que o governo
de Portugal teria tido para com eles. O argumento é forte: só condenando-se o governo
português é que seria possível reconhecer os méritos daquelas personalidades ilustres de
Portugal.

Também com evidências documentais, o membro-sócio do IAGP sustenta que:

Sim, Sr. Alípio; os homens notáveis pela sua sabedoria, ilustração e ciência,
Portugal não consentia que se passassem ao Brasil, e até aos estrangeiros que
vinham enriquecer as ciências, e anunciar a grandiosa riqueza do nosso território, o
governo recomendava todo o cuidado e vigilância como aconteceu e como se
recomendou o sábio Humboldt ao governador do Pará.
Assim, fica completo o contraste: enquanto os holandeses trouxeram para cá homens
ilustrados, tipografia e plantas preciosas; os portugueses impediram o avanço da ciência e
das artes e proibiram a vinda dos próprios lusitanos ilustrados. A distinção entre povo e
governo serve, assim, para reforçar o próprio argumento do treplicador contra as objeções
do replicador, mas também pode ser um artifício para se diferenciar da postura de Ratcliff,
numa linha de que aquele que precisa ser combatido não é o português, e sim o governo e a
administração portugueses.

A exigência de que a discussão atente-se ao mérito intelectual volta na conclusão do texto


de Costa, que acusa Alípio Ferreira de “não ter discutido nenhum dos pontos em questão” e
utilizar de uma “polêmica insultuosa”, que seria “indigna de um cavaleiro que se preza”.
Francisco Augusto Pereira da Costa exige que a discussão se atenha ao “terreno histórico-
literário”, assim condenando, não só a postura de seu replicador, mas também
implicitamente a de seu apoiador Ratcliff.

Breve conclusão

As coisas miúdas são a chave que o historiador tem para compreender a realidade passada.
O discurso nostálgico à dominação batava, aqui analisado, não sobreviveu no tempo.
Talvez tenha sido útil na consolidação do imaginário liberal, mas já não se vê uma apologia
da dominação batava em nenhum dos elementos políticos e historiográficos da sociedade
brasileira (o próprio Pereira da Costa viria a mudar de ideia posteriormente).

A análise desse discurso e das reações a ele, no entanto, nos permitiram desvendar aspectos
importantes do clima político-social da época. A questão da abolição, o aparecimento do
racismo e do chauvinismo étnico, o sentimento anti-lusitano presente na sociedade
pernambucana etc.

No entanto, talvez o maior mérito desse pequeno trabalho seja lançar luz às maneiras sobre
a qual a memória é um campo de disputa. A “nostalgia” é uma arma perigosa nas mãos de
determinados projetos políticos e, na sociedade brasileira atual, vem aparecendo no debate
político na forma da nostalgia da ditadura civil-militar de 1964-85. Nesse sentido, nosso
próprio trabalho olha para o passado com os olhos do presente, assim como fizeram Pereira
da Costa, Alípio Ferreira e Ratcliff, que tanto criticamos por fazê-lo. É possível que essa
seja a sina do historiador – mas, desde que ele consiga articular a utilidade política e
identitária atual com a seriedade científica, tão pretendida pelos historiadores
contemporâneos aos que foram aqui analisados (incluindo eles mesmos), a ciência histórica
terá possibilidades de se renovar e contribuir, tanto para o conhecimento do passado,
quanto para a reflexão crítica atual.

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