1) O documento discute a influência de Agostinho na hermenêutica filosófica, especialmente nas obras de Heidegger e Gadamer.
2) Agostinho foi um dos primeiros filósofos a abordar conceitos hermenêuticos em obras como "Confissões" e em seu tratado "De doctrina christiana".
3) Heidegger e Gadamer valorizaram a abordagem existencial de Agostinho à hermenêutica e sua ênfase na disposição espiritual correta do intérprete.
1) O documento discute a influência de Agostinho na hermenêutica filosófica, especialmente nas obras de Heidegger e Gadamer.
2) Agostinho foi um dos primeiros filósofos a abordar conceitos hermenêuticos em obras como "Confissões" e em seu tratado "De doctrina christiana".
3) Heidegger e Gadamer valorizaram a abordagem existencial de Agostinho à hermenêutica e sua ênfase na disposição espiritual correta do intérprete.
1) O documento discute a influência de Agostinho na hermenêutica filosófica, especialmente nas obras de Heidegger e Gadamer.
2) Agostinho foi um dos primeiros filósofos a abordar conceitos hermenêuticos em obras como "Confissões" e em seu tratado "De doctrina christiana".
3) Heidegger e Gadamer valorizaram a abordagem existencial de Agostinho à hermenêutica e sua ênfase na disposição espiritual correta do intérprete.
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica.
Tradução: Benno Dischinger. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1999, 336p.
PRÉ-HISTÓRIA DO HERMENÊUTICO
Agostinho: a universalidade do Logos interior
Com Agostinho (354-430) aproximamo-nos, por primeira vez nesta investigação, de um filósofo que, embora num grau até agora pouco valorizado, foi calorosamente acolhido pelos representantes da hermenêutica contemporânea. Isto vale tanto de Heidegger como também de Gadamer. O jovem Heidegger, que se dedicava à fenomenologia da religião, manifestara bem cedo seu interesse por Agostinho. No semestre de verão de 1921 ele deu um curso sobre Agostinho e o neoplatonismo, por enquanto inédito, e ainda no ano de 1930, uma conferência, igualmente inédita, com o título: 'Augustinus: Quid est tempus? Confessiones lib. IX'. As referências a Agostinho em 'Ser e Tempo', bem como nos cursos publicados, parecem predominantemene positivas, o que é de realçar-se, uma vez que o Heidegger de então já estava comprometido com o programa de uma destruição crítica da história da ontologia ocidental. Segundo o testemunho de Gadamer, Heidegger admirava em Agostinho um jurado, embora não o mais importante, para a sua concepção do "sentido ratificador" (Vollzugssinn) da elocução, 70 que ele contrapunha à tradição metafísico-idealista. Isso porque a Agostinho foi atribuída a distinção de princípio entre o actus signatus, a elocução predicativa, e sua concretização no actus exercitus, uma palavra mágica, recorda-se Gadamer, com a qual Heidegger enfeitiçava os seus ouvintes de então, em Freiburgo e Marburgo, e, não por último, o próprio Gadamer. Uma profunda recepção de Agostinho também pode comprovar-se em Gadamer. No prefácio já foi mencionado um colóquio, no qual Gadamer relacionou retroativamente com Agostinho a pretensão de universalidade da hermenêutica. A ele foi igualmente dedicado um capítulo decisivo de 'Verdade e Método'. Decisivo não é dizer demasiado, porque ali Gadamer permitiu a Agostinho ir além do esquecimento da linguagem da ontologia grega, a qual se caracterizava por uma compreensão técnico-nominalista da linguagem. Gadamer pôde mostrar em Agostinho — e sua imensa relevância emerge disso — que este esquecimento da linguagem não foi total na tradição. O pensamento agostiniano do verbum já teria feito jus, na tradição, ao ser da linguagem. Na compreensão da palavra como incarnação processual de um espírito, que, no entanto, está plenamente presente na palavra e contudo aponta para algo diverso, delineia-se a universalidade da ação hermenêutica sobre a linguagem. Até aonde podemos constatar, Heidegger, como também Gadamer, foram espiritualmente estimulados sobretudo pelas 'Confissões' e o 'De Trinitate'. Acontece, porém, que Agostinho, além disso, foi também autor de um tratado hermenêutico, o ‘De doctrina christiana’, do qual G. Ebeling afirmou, não sem razão, que ele foi "a obra historicamente mais eficaz da hermenêutica". Que Heidegger também a prezava bastante, transparece de imediato do esboço, infelizmente sintético, da história da hermenêutica, que ele delineia 71 no início de suas lições do semestre de verão de 1923, sobre a hermenêutica da facticidade. Ali ele propõe com entusiasmo o início do 3 º livro do 'De doctrina christiana', tanto em latim como também em alemão: "Augustinus fornece a primeira hermenêutica de grande estilo: (segue o texto latino, do qual só reproduzimos a tradução:). Com que disposição deve a pessoa aproximar-se da interpretação de passagens não transparentes da Sagrada Escritura: no temor de Deus, no único cuidado de procurar nas Escrituras a vontade de Deus; impregnado de piedade, para que não tenha prazer em contendas de palavras; revestido de conhecimento da linguagem, para que não fique preso em palavras e maneiras de falar desconhecidas; guarnecido com o conhecimento de determinados objetos e ocorrências naturais, que foram aduzidas como ilustração, para que não minimize sua força compulsória, subsidiado pelo conteúdo de verdade ... Heidegger diferencia claramente esta hermenêutica de "grande estilo", da posterior, segundo sua opinião mais formal, de um Schleiermacher: "Schleiermacher limitou, então, a ideia da hermenêutica, encarada de forma abrangente e viva (cf. Agostinho!) a uma 'arte (doctrina artis) da compreensão'..." Até que ponto é adequado reconhecer, em Agostinho, "a ideia da hermenêutica encarada de forma viva e abrangente,"? Heidegger ficou, certamente, impressionado pela inconfundível conexão que Agostinho, no mencionado proêmio, propõe entre o conteúdo a ser entendido e a zelosa postura da pessoa que procura entender, no único cuidado de buscar a verdade viva. Esta conexão empresta à hermenêutica agostiniana um traço "existencial" inconfundível, que se reencontra em todos os seus escritos e há muito tempo lhe conferiu a fama de um proto-existencialista. O querer entender as Escrituras não é nenhum processo indiferente, meramente epistêmico, que se passa entre um sujeito 72 e um objeto, ele atesta a básica inquietação e maneira de ser de um ente que aspira por sentido. Além disso, para nossos objetivos é particularmente notório, no texto de Agostinho, que ele limita a sua investigação hermenêutica ao problema das "passagens obscuras" da Sagrada Escritura (ad ambigua Scripturarum). Pois Agostinho parte da inicial clareza das Escrituras, a qual é acessível até aos pequenos." Com isto ele se afasta de Orígenes, para quem tudo podia ser alegórico nas Escrituras. Em Agostinho, uma meditação hermenêutica explícita só é necessária onde a compreensão de passagens obscuras desperta dificuldades. No 'De doctrina christiana' (sobretudo em seu 3 º livro) só se vai tratar de mediar instruções (praecepta) para poder lidar com o problema das passagens obscuras. Destas orientações, com base nas quais poder-se-ia mostrar que Agostinho não é apenas o pai da hermenêutica existencialista, mas também da hermenêutica regulamentada, não podemos ocupar-nos in extenso. Um pequeno esboço pode aqui ser suficiente. Agostinho lembra, inicialmente, que toda ciência tem três fundamentos: a fé, a esperança e o amor. Disto deve-se deduzir que, em toda obediência a regras, a luz que se faz necessária para penetrar nas passagens obscuras da Sagrada Escritura, só pode vir de Deus. Tudo se refere, pois, à disposição espiritual do intérprete, sobretudo à 'caritas'. Quem quiser aproximar-se das Escrituras com amor e cautela, lerá, em primeiro lugar, todos os livros canônicos, para adquirir ao menos algum conhecimento dos mesmos, embora ainda não entenda tudo. Por esta via ele se familiarizará com a linguagem da S. Escritura e assim se habilitará para iluminar as passagens obscuras com auxílio das claras. Esta orientação, aparentemente banal, segundo a qual as passagens mais obscuras devem ser explicadas por passagens paralelas mais claras, será aduzida por Agostinho com relativa 73 frequência. Agostinho também recomenda cultivar o conhecimento das línguas hebraica e grega. Ele sublinha, além disso, o proveito que se pode obter da multiplicidade das interpretações 62 e traduções para a penetração em passagens obscuras. Um elemento histórico-crítico insere-se, também, em sua hermenêutica: o cristão crítico procurará sempre um significado coerente com Deus e não conceberá ao pé dl letra as fábulas supersticiosas das Escrituras. O contexto histórico deve igualmente ser considerado, sobretudo no trato com o Antigo Testamento. Também se procurará entender que houve épocas, nas quais um homem podia viver castamente com muitas mulheres (como a relação de Abraão e Sara, que Paulo já conduzira a uma interpretação alegórica), enquanto hoje um homem com uma única mulher pode levar uma vida bem desenfreada. Toda a ambiguidade da Escrituras, que sua hermenêutica, ainda inominada, toma em consideração, consiste, segundo Agostinho, na confusão entre o sentido próprio e o sentido figurado. 64 Aqui também, além da regra da caridade, que Agostinho conjura sistematicamente em toda a parte, deve ajudar a regra universal, que passagens obscuras devam ser esclarecidas por passagens paralelas claras: Também não se deve entender literalmente o que foi pensado metaforicamente. Para clarear as metáforas da S. Escritura em seu espírito, Agostinho recomenda que se adquira o conhecimento da retórica, para dominar os diversos "tropoi" ou expressões idiomáticas do discurso (da ironia até a catacrese). Agostinho renuncia, no entanto, voluntariamente a uma exaustiva explicação de todas as expressões idiomáticas, tão amplamente difundidas, que nenhuma inteligência pode captá-las todas. Assim encerra Agostinho o 3º livro (uma pequena interrupção, que durou trinta anos, ocorreu em meio ao 3 º livro) de seu tratado com um apelo à oração, porque é a partir de Deus que o espírito deve iluminar a letra. 74 Desta forma, chega ao fim assim se expressa o último parágrafo — o que tínhamos a dizer sobre a relação dos sinais com as palavras ou com o pensamento (de signis, quantum ad verba pertinet). O final do 3º livro evoca uma relação entre sinal (signum) e verbum, que se deve complementar a partir do 'De trinitate' de Agostinho, uma vez que a hermenêutica da linguagem de Gadamer se relaciona expressamente com esta doutrina. A inserção dessa relação no contexto desta obra está de fato cunhada num problema teológico: como permite o Filho de Deus ser de tal forma pensado como Verbum ou Logos, sem conceber o Verbum como simples exteriorização sensível de Deus, que teria como consequência um subordinacionismo trinitário? Agostinho recorre, para este fim, no 15º e último livro do 'De trinitate', à distinção estoica entre um Logos ou Verbum interior e outro exterior. O discurso ou pensamento originário é interior, é a linguagem do coração, diz Agostinho. Este dizer interior ainda não tem nenhuma forma sensível ou material, ele é puramente intelectual ou universal, isto é, aqui neste contexto: ele ainda não assumiu a forma de uma linguagem particular, sensitiva ou histórica. Quando, por exemplo, ouvimos uma palavra humana numa língua particular, está claro que não procuramos entender sua forma particular, eventual, porém o verbum ou a razão que nela se corporifica de forma imperfeita, é claro, como cada encarnação de um espírito entre nós humanos. Trata-se, pois, de transcender a linguagem sensível e expressada, para atingir o verdadeiro Verbum humano (sed transeunda sunt haec, ut ad illud perveniatur hominis verbum). 0 que se aspira alcançar, é o Verbo, que não se deixa proferir em nenhum tom, que, não obstante, inabita qualquer linguagem e precede qualquer sinal, para o qual pode ser "traduzido". Quando esta palavra íntima (verbum intimum) da alma, ou do coração, 75 assume a forma sensível de uma linguagem concreta, ela não é expressada como ela é, porém, como de fato pode ser vista ou ouvida por nosso corpo (nam quando per sonum dicitur, vel per aliquod corporale signum, non dicitur sicut est, sed sicut potest videri audirive per corpus). O ganho teológico, que Agostinho pode haurir desta doutrina, é considerável. Também para Cristo, o Verbo de Deus, vale, per analogiam, esta distinção. O Verbo divino, que numa determinada época veio ao mundo histórico, não pode ser confundido com o Verbo, que é eterno em Deus. Esta distinção permite a Agostinho pensar, tanto a diferença, como também a igualdade do Verbo, historicamente revelado, com Deus. Como ao dizer humano precede uma palavra interior, assim preexistia em Deus, antes da criação e da aparição terrestre de Cristo, um Verbo, que a tradição entendia como a sapientia ou o auto- conhecimento de Deus. Também com este Verbo ocorre, que ele, num tempo determinado, assumiu uma forma sensível, para comunicar-se com os homens. Da mesma forma como nossa linguagem não transmite nenhuma cópia exata de nossos pensamentos íntimos, também deve ocorrer com Deus, que o Verbo manifestado sensivelmente, segundo seu substrato exterior e contingente, deve ser separado do Verbo divino, como ele é em si. Não obstante — e isto só existe em Deus — esta manifestação era essencialmente igual com a sapientia divina, de modo que Deus podia estar plenamente presente na manifestação externa de sua Palavra. Esta igualdade essencial entre o pensamento e a palavra concreta, entre nós humanos não ocorre jamais, e nisto marca Agostinho o limite de sua analogia com a palavra humana. Porque o Verbo de Deus significa o perfeito autoconhecimento de Deus. O verbo humano não dispõe de uma posse de si, comparável a esta. Só muito raramente o nosso verbo é o reflexo de um conhecimento seguro. 76 Agostinho pergunta, se nosso verbo resulta tão só daquilo que nós sabemos apenas através de nossa ciência? Não ocorre antes, que nós dizemos muita coisa, sem possuir clareza definitiva sobre o saber aí empregado? Em oposição ao Verbo divino, nosso verbo não é possuidor de nenhuma auto evidência definitiva. Isto provém do fato de que nosso ser não desabrocha num puro e verdadeiro autoconhecimento (quia non hoc est nobis esse, quod est nosse). Nosso verbo colhe sempre de um saber implícito, um "je ne sais quoi" (quiddam mentis nostrae), para ajudar seu pensamento a expressar-se, Este je ne sais quoi — Agostinho deve pensar aqui na linguagem concreta — não é algo formado com firmeza, já que não brota de nenhuma visão clara, porém algo indefinidamente formável (hoc formabile nondumque formatum). Agostinho destaca, aqui, sobretudo, a oposição à auto presença divina, da qual dá testemunho o Verbo do Filho. Mas, nós só podemos interessar-nos pelas consequências hermenêuticas dessa concepção, na forma como elas obtiveram acesso parcial na hermenêutica contemporânea. Gadamer deduziu inicialmente dessa concepção uma lembrança do fato de a palavra, que se procura compreender, não visar apenas o pronunciado, porém o que foi designado por este sinal, ou seja, o entendido ou pensado, enfim, a palavra da própria razão em sua universalidade. Mas, o que significa essa palavra interior para o filosofar contemporâneo? Pensa-se numa representação mental, caso em que nos ameaçaria uma recaída num mentalismo, num psicologismo e assemelhados? Com Gadamer devemos, pois, "interrogar a coisa, perguntando o que deve ser esta 'palavra interior"'. É preciso partir da observação de Agostinho, de que o signo, graças ao qual nós procuramos expressar algo, ou o nosso 'espírito', tem em si algo contingente ou material. Ele sempre só traz à tona um aspecto do enunciável, 77 e não todo o contexto. A doutrina do verbum cordis alertanos a não tomar este sinal linguístico como algo definitivo. Ele sempre apresenta apenas uma tradução (interpretatio) imperfeita, que permanece orientada para uma fala ulterior, caso se deseje tentar a visualização da coisa toda: "A palavra interior não se relaciona, pois, com nenhuma linguagem determinada e ela simplesmente não tem o caráter de um prévio esvoaçar de palavras que provêm da memória, mas é o objeto pensado até o fim (forma excogitata). Enquanto se trata de um pensar até o fim, também lhe deve ser atribuído um momento processual. Este momento processual é o da busca da palavra e da compreensão que lhe corresponde. Cada elocução constitui, apenas, um recorte do diálogo, do qual vive a linguagem. O "objeto pensado até o fim", o actus exercitus, ou a concretização do falar, que não se deixa aprisionar no palpável actus signatus do discurso realmente externado, vive unicamente neste diálogo que anseia por compreensão. Gadamer aprendeu de Agostinho, que o significado transmitido pela linguagem, "não é um significado lógico abstraível da elocução, mas" representa "o entrelaçamento que nela ocorre. A fixação do pensamento ocidental sobre a elocução (ou o enunciado) significa, pois, um encurtamento da linguagem no que se refere à sua dimensão decisiva, isto é, no enquadramento de cada discurso num diálogo. A concentração logicista sobre o enunciado abstrai do irrecusável caráter de resposta da palavra, de sua orientação para algo anterior, ou seja, para uma pergunta. Nesta dialética da pergunta e da resposta encontra-se a verdadeira universalidade da linguagem, da qual se alimenta a pretensão de universalidade da hermenêutica, que a eleva para a esfera do pensamento. Ela foi inconfundivelmente concebida, embora pouco entendida por Gadamer no tratado que se intitula precisamente "A universalidade do fenômeno hermenêutico" 78 (1966), como o 'fenômeno hermenêutico originário", "de que não existe nenhum enunciado possível, que não possa ser entendido como resposta a uma pergunta, e que somente assim pode ser entendido". Esta visão dialógica é um eco da doutrina agostiniana do verbum cordis, por meio da qual Gadamer quer superar o esquecimento ocidental da linguagem, ou seja, a fixação sobre o enunciado como algo último, sob abstração do caráter de acontecimento do significado. A verdade da elocução não está nela mesma, nos sinais escolhidos em cada momento, porém no todo que ela descerra: "Não se pode tomar a palavra apenas como um sinal direcionado para um determinado significado, mas simultaneamente se deve perceber tudo aquilo que ela traz consigo." Já na sua tese pioneira de 1957, ‘Was ist Wahrheit?’ (O que é verdade?), Gadamer desejara libertar a pretensão de verdade da linguagem do solo do enunciado: "Não existe nenhuma elocução, que se possa conceber unicamente segundo o conteúdo que ela propõe, caso se queira concebê-la em sua verdade. Cada elocução é motivada. Cada elocução tem pressupostos, que ela não expressa." A partir disso já se delineia que a universalidade da linguagem não pode ser a da linguagem falada, porém a da "palavra interior", como desajeitadamente, é claro, a gente pode expressar-se com Agostinho. Isso implica tudo, menos um negligenciamento da linguagem concreta. Importa, apenas, assentar esta linguagem em seu adequado horizonte hermenêutico. Uma palavra do "espírito", nós não a podemos perceber, mas vislumbrar, quando nos compete compreender um assunto linguístico. A universalidade da hermenêutica não é sequer tangenciada, quando, por exemplo com J. Habermas, se aponta para experiências pré-linguísticas ou fronteiras da linguagem. Acontece que a hermenêutica é, precisamente, um 79 pensar as fronteiras da linguagem até o fim. Porque “a insuficiência da linguagem atesta sua capacidade de buscar expressão para tudo”. Uma hermenêutica oriunda de Agostinho não necessita ser ensinada sobre os horizontes da linguagem pronunciada. A universalidade que ela significa é a da busca de compreensão, da tentativa, ou da capacidade de encontrar expressões para tudo. Pois a tese principal de Gadamer é que a elocução tem, em princípio, limites, que provêm de nossa finitude histórica e de nossa orientação para a espessura de uma linguagem já existente, porém aberta. "Vemos, pelos exemplos, qual o limite que, em princípio, tem um enunciado. Ele nunca pode dizer tudo o que deve ser dito. (...) Platão chamou o pensamento de conversação interior da alma consigo mesma. Aqui a estrutura da coisa se torna bem manifesta. Chama-se conversação, porque é pergunta e resposta, porque a gente se autoquestiona, como se pergunta a um outro, e se diz do mesmo modo como um outro nos diz alguma coisa. Agostinho já apontara para esse modo de falar. Cada um é, de certa forma, uma conversação consigo mesmo. Também quando está conversando com outros, ele deve permanecer em conversação consigo mesmo, enquanto está pensando. A linguagem não se concretiza, por conseguinte, em expressões, e sim como conversação, como unidade de sentido que se constrói com base em perguntas e respostas. Somente desta forma a linguagem adquire sua plena conformação. Com esta concepção agostiniano-gadameriana sobre a universalidade do Lógos interior, podemos encerrar nosso breve relance sobre a história pré- reformatória da hermenêutica. Do cume desta universalidade podemos, sem dúvida, associar-nos ao juízo de Ebeling sobre a restante Idade Média: "Em perspectiva hermenêutica, aproximadamente um século após Agostinho, não surgiram, de forma duradoura, outros novos questionamentos ou pontos de vista." 80 Seria, porém, sem dúvida injusto, propor novamente o costumeiro juízo depreciativo sobre o "obscuro' milênio da Idade Média. Para fugir a este preconceito corrente, resultante de um desconhecimento, seria bom que se tomasse em consideração a excelente e apaixonada obra em quatro volumes de Henri de Lubac sobre a hermenêutica medieval, bem como a apresentação global de Brinkmann. 81