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GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica.

Tradução: Benno
Dischinger. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1999, 336p.

PRÉ-HISTÓRIA DO HERMENÊUTICO

Agostinho: a universalidade do Logos interior


Com Agostinho (354-430) aproximamo-nos, por primeira vez nesta
investigação, de um filósofo que, embora num grau até agora pouco valorizado, foi
calorosamente acolhido pelos representantes da hermenêutica contemporânea. Isto
vale tanto de Heidegger como também de Gadamer. O jovem Heidegger, que se
dedicava à fenomenologia da religião, manifestara bem cedo seu interesse por
Agostinho. No semestre de verão de 1921 ele deu um curso sobre Agostinho e o
neoplatonismo, por enquanto inédito, e ainda no ano de 1930, uma conferência,
igualmente inédita, com o título: 'Augustinus: Quid est tempus? Confessiones lib. IX'.
As referências a Agostinho em 'Ser e Tempo', bem como nos cursos publicados,
parecem predominantemene positivas, o que é de realçar-se, uma vez que o
Heidegger de então já estava comprometido com o programa de uma destruição
crítica da história da ontologia ocidental. Segundo o testemunho de Gadamer,
Heidegger admirava em Agostinho um jurado, embora não o mais importante, para a
sua concepção do "sentido ratificador" (Vollzugssinn) da elocução,
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que ele contrapunha à tradição metafísico-idealista. Isso porque a Agostinho foi
atribuída a distinção de princípio entre o actus signatus, a elocução predicativa, e
sua concretização no actus exercitus, uma palavra mágica, recorda-se Gadamer,
com a qual Heidegger enfeitiçava os seus ouvintes de então, em Freiburgo e
Marburgo, e, não por último, o próprio Gadamer.
Uma profunda recepção de Agostinho também pode comprovar-se em
Gadamer. No prefácio já foi mencionado um colóquio, no qual Gadamer relacionou
retroativamente com Agostinho a pretensão de universalidade da hermenêutica. A
ele foi igualmente dedicado um capítulo decisivo de 'Verdade e Método'. Decisivo
não é dizer demasiado, porque ali Gadamer permitiu a Agostinho ir além do
esquecimento da linguagem da ontologia grega, a qual se caracterizava por uma
compreensão técnico-nominalista da linguagem. Gadamer pôde mostrar em
Agostinho — e sua imensa relevância emerge disso — que este esquecimento da
linguagem não foi total na tradição. O pensamento agostiniano do verbum já teria
feito jus, na tradição, ao ser da linguagem. Na compreensão da palavra como
incarnação processual de um espírito, que, no entanto, está plenamente presente na
palavra e contudo aponta para algo diverso, delineia-se a universalidade da ação
hermenêutica sobre a linguagem.
Até aonde podemos constatar, Heidegger, como também Gadamer, foram
espiritualmente estimulados sobretudo pelas 'Confissões' e o 'De Trinitate'.
Acontece, porém, que Agostinho, além disso, foi também autor de um tratado
hermenêutico, o ‘De doctrina christiana’, do qual G. Ebeling afirmou, não sem razão,
que ele foi "a obra historicamente mais eficaz da hermenêutica". Que Heidegger
também a prezava bastante, transparece de imediato do esboço, infelizmente
sintético, da história da hermenêutica, que ele delineia
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no início de suas lições do semestre de verão de 1923, sobre a hermenêutica da
facticidade. Ali ele propõe com entusiasmo o início do 3 º livro do 'De doctrina
christiana', tanto em latim como também em alemão: "Augustinus fornece a primeira
hermenêutica de grande estilo: (segue o texto latino, do qual só reproduzimos a
tradução:). Com que disposição deve a pessoa aproximar-se da interpretação de
passagens não transparentes da Sagrada Escritura: no temor de Deus, no único
cuidado de procurar nas Escrituras a vontade de Deus; impregnado de piedade, para
que não tenha prazer em contendas de palavras; revestido de conhecimento da
linguagem, para que não fique preso em palavras e maneiras de falar
desconhecidas; guarnecido com o conhecimento de determinados objetos e
ocorrências naturais, que foram aduzidas como ilustração, para que não minimize
sua força compulsória, subsidiado pelo conteúdo de verdade ...
Heidegger diferencia claramente esta hermenêutica de "grande estilo", da
posterior, segundo sua opinião mais formal, de um Schleiermacher: "Schleiermacher
limitou, então, a ideia da hermenêutica, encarada de forma abrangente e viva (cf.
Agostinho!) a uma 'arte (doctrina artis) da compreensão'..." Até que ponto é
adequado reconhecer, em Agostinho, "a ideia da hermenêutica encarada de forma
viva e abrangente,"? Heidegger ficou, certamente, impressionado pela inconfundível
conexão que Agostinho, no mencionado proêmio, propõe entre o conteúdo a ser
entendido e a zelosa postura da pessoa que procura entender, no único cuidado de
buscar a verdade viva. Esta conexão empresta à hermenêutica agostiniana um traço
"existencial" inconfundível, que se reencontra em todos os seus escritos e há muito
tempo lhe conferiu a fama de um proto-existencialista. O querer entender as
Escrituras não é nenhum processo indiferente, meramente epistêmico, que se passa
entre um sujeito
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e um objeto, ele atesta a básica inquietação e maneira de ser de um ente que aspira
por sentido.
Além disso, para nossos objetivos é particularmente notório, no texto de
Agostinho, que ele limita a sua investigação hermenêutica ao problema das
"passagens obscuras" da Sagrada Escritura (ad ambigua Scripturarum). Pois
Agostinho parte da inicial clareza das Escrituras, a qual é acessível até aos
pequenos." Com isto ele se afasta de Orígenes, para quem tudo podia ser alegórico
nas Escrituras. Em Agostinho, uma meditação hermenêutica explícita só é
necessária onde a compreensão de passagens obscuras desperta dificuldades. No
'De doctrina christiana' (sobretudo em seu 3 º livro) só se vai tratar de mediar
instruções (praecepta) para poder lidar com o problema das passagens obscuras.
Destas orientações, com base nas quais poder-se-ia mostrar que Agostinho não é
apenas o pai da hermenêutica existencialista, mas também da hermenêutica
regulamentada, não podemos ocupar-nos in extenso. Um pequeno esboço pode
aqui ser suficiente.
Agostinho lembra, inicialmente, que toda ciência tem três fundamentos: a fé, a
esperança e o amor. Disto deve-se deduzir que, em toda obediência a regras, a luz
que se faz necessária para penetrar nas passagens obscuras da Sagrada Escritura,
só pode vir de Deus. Tudo se refere, pois, à disposição espiritual do intérprete,
sobretudo à 'caritas'. Quem quiser aproximar-se das Escrituras com amor e cautela,
lerá, em primeiro lugar, todos os livros canônicos, para adquirir ao menos algum
conhecimento dos mesmos, embora ainda não entenda tudo. Por esta via ele se
familiarizará com a linguagem da S. Escritura e assim se habilitará para iluminar as
passagens obscuras com auxílio das claras. Esta orientação, aparentemente banal,
segundo a qual as passagens mais obscuras devem ser explicadas por passagens
paralelas mais claras, será aduzida por Agostinho com relativa
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frequência. Agostinho também recomenda cultivar o conhecimento das línguas
hebraica e grega. Ele sublinha, além disso, o proveito que se pode obter da
multiplicidade das interpretações 62 e traduções para a penetração em passagens
obscuras. Um elemento histórico-crítico insere-se, também, em sua hermenêutica: o
cristão crítico procurará sempre um significado coerente com Deus e não conceberá
ao pé dl letra as fábulas supersticiosas das Escrituras. O contexto histórico deve
igualmente ser considerado, sobretudo no trato com o Antigo Testamento. Também
se procurará entender que houve épocas, nas quais um homem podia viver
castamente com muitas mulheres (como a relação de Abraão e Sara, que
Paulo já conduzira a uma interpretação alegórica), enquanto hoje um homem com
uma única mulher pode levar uma vida bem desenfreada.
Toda a ambiguidade da Escrituras, que sua hermenêutica, ainda inominada,
toma em consideração, consiste, segundo Agostinho, na confusão entre o sentido
próprio e o sentido figurado. 64 Aqui também, além da regra da caridade, que
Agostinho conjura sistematicamente em toda a parte, deve ajudar a regra universal,
que passagens obscuras devam ser esclarecidas por passagens paralelas claras:
Também não se deve entender literalmente o que foi pensado metaforicamente.
Para clarear as metáforas da S. Escritura em seu espírito, Agostinho recomenda que
se adquira o conhecimento da retórica, para dominar os diversos "tropoi" ou
expressões idiomáticas do discurso (da ironia até a catacrese). Agostinho renuncia,
no entanto, voluntariamente a uma exaustiva explicação de todas as expressões
idiomáticas, tão amplamente difundidas, que nenhuma inteligência pode captá-las
todas. Assim encerra Agostinho o 3º livro (uma pequena interrupção, que durou
trinta anos, ocorreu em meio ao 3 º livro) de seu tratado com um apelo à oração,
porque é a partir de Deus que o espírito deve iluminar a letra.
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Desta forma, chega ao fim assim se expressa o último parágrafo — o que tínhamos
a dizer sobre a relação dos sinais com as palavras ou com o pensamento (de signis,
quantum ad verba pertinet).
O final do 3º livro evoca uma relação entre sinal (signum) e verbum, que se
deve complementar a partir do 'De trinitate' de Agostinho, uma vez que a
hermenêutica da linguagem de Gadamer se relaciona expressamente com esta
doutrina. A inserção dessa relação no contexto desta obra está de fato cunhada
num problema teológico: como permite o Filho de Deus ser de tal forma pensado
como Verbum ou Logos, sem conceber o Verbum como simples exteriorização
sensível de Deus, que teria como consequência um subordinacionismo trinitário?
Agostinho recorre, para este fim, no 15º e último livro do 'De trinitate', à distinção
estoica entre um Logos ou Verbum interior e outro exterior. O discurso ou
pensamento originário é interior, é a linguagem do coração, diz Agostinho. Este dizer
interior ainda não tem nenhuma forma sensível ou material, ele é puramente
intelectual ou universal, isto é, aqui neste contexto: ele ainda não assumiu a forma
de uma linguagem particular, sensitiva ou histórica. Quando, por exemplo, ouvimos
uma palavra humana numa língua particular, está claro que não procuramos
entender sua forma particular, eventual, porém o verbum ou a razão que nela se
corporifica de forma imperfeita, é claro, como cada encarnação de um espírito
entre nós humanos. Trata-se, pois, de transcender a linguagem sensível e
expressada, para atingir o verdadeiro Verbum humano (sed transeunda sunt haec,
ut ad illud perveniatur hominis verbum). 0 que se aspira alcançar, é o Verbo, que não
se deixa proferir em nenhum tom, que, não obstante, inabita qualquer linguagem e
precede qualquer sinal, para o qual pode ser "traduzido". Quando esta palavra
íntima (verbum intimum) da alma, ou do coração, 75
assume a forma sensível de uma linguagem concreta, ela não é expressada como
ela é, porém, como de fato pode ser vista ou ouvida por nosso corpo (nam quando
per sonum dicitur, vel per aliquod corporale signum, non dicitur sicut est, sed sicut
potest videri audirive per corpus).
O ganho teológico, que Agostinho pode haurir desta doutrina, é
considerável. Também para Cristo, o Verbo de Deus, vale, per analogiam,
esta distinção. O Verbo divino, que numa determinada época veio ao mundo
histórico, não pode ser confundido com o Verbo, que é eterno em Deus. Esta
distinção permite a Agostinho pensar, tanto a diferença, como também a igualdade
do Verbo, historicamente revelado, com Deus. Como ao dizer humano precede uma
palavra interior, assim preexistia em Deus, antes da criação e da aparição terrestre
de Cristo, um Verbo, que a tradição entendia como a sapientia ou o auto-
conhecimento de Deus. Também com este Verbo ocorre, que ele, num tempo
determinado, assumiu uma forma sensível, para comunicar-se com os homens. Da
mesma forma como nossa linguagem não transmite nenhuma cópia exata de nossos
pensamentos íntimos, também deve ocorrer com Deus, que o Verbo manifestado
sensivelmente, segundo seu substrato exterior e contingente, deve ser separado do
Verbo divino, como ele é em si. Não obstante — e isto só existe em Deus — esta
manifestação era essencialmente igual com a sapientia divina, de modo que Deus
podia estar plenamente presente na manifestação externa de sua Palavra.
Esta igualdade essencial entre o pensamento e a palavra concreta, entre
nós humanos não ocorre jamais, e nisto marca Agostinho o limite de sua analogia
com a palavra humana. Porque o Verbo de Deus significa o perfeito
autoconhecimento de Deus. O verbo humano não dispõe de uma posse de si,
comparável a esta. Só muito raramente o nosso verbo é o reflexo de um
conhecimento seguro.
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Agostinho pergunta, se nosso verbo resulta tão só daquilo que nós sabemos apenas
através de nossa ciência? Não ocorre antes, que nós dizemos muita coisa, sem
possuir clareza definitiva sobre o saber aí empregado? Em oposição ao Verbo
divino, nosso verbo não é possuidor de nenhuma auto evidência definitiva. Isto
provém do fato de que nosso ser não desabrocha num puro e verdadeiro
autoconhecimento (quia non hoc est nobis esse, quod est nosse). Nosso verbo colhe
sempre de um saber implícito, um "je ne sais quoi" (quiddam mentis nostrae), para
ajudar seu pensamento a expressar-se, Este je ne sais quoi — Agostinho deve
pensar aqui na linguagem concreta — não é algo formado com firmeza, já que não
brota de nenhuma visão clara, porém algo indefinidamente formável (hoc formabile
nondumque formatum). Agostinho destaca, aqui, sobretudo, a oposição à auto
presença divina, da qual dá testemunho o Verbo do Filho.
Mas, nós só podemos interessar-nos pelas consequências hermenêuticas
dessa concepção, na forma como elas obtiveram acesso parcial na hermenêutica
contemporânea. Gadamer deduziu inicialmente dessa concepção uma lembrança do
fato de a palavra, que se procura compreender, não visar apenas o pronunciado,
porém o que foi designado por este sinal, ou seja, o entendido ou pensado, enfim, a
palavra da própria razão em sua universalidade. Mas, o que significa essa palavra
interior para o filosofar contemporâneo? Pensa-se numa representação mental, caso
em que nos ameaçaria uma recaída num mentalismo, num psicologismo e
assemelhados? Com Gadamer devemos, pois, "interrogar a coisa, perguntando o
que deve ser esta 'palavra interior"'. É preciso partir da observação de Agostinho, de
que o signo, graças ao qual nós procuramos expressar algo, ou o nosso 'espírito',
tem em si algo contingente ou material. Ele sempre só traz à tona um aspecto do
enunciável,
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e não todo o contexto. A doutrina do verbum cordis alertanos a não tomar este sinal
linguístico como algo definitivo. Ele sempre apresenta apenas uma tradução
(interpretatio) imperfeita, que permanece orientada para uma fala ulterior, caso se
deseje tentar a visualização da coisa toda: "A palavra interior não se relaciona, pois,
com nenhuma linguagem determinada e ela simplesmente não tem o caráter de um
prévio esvoaçar de palavras que provêm da memória, mas é o objeto pensado até o
fim (forma excogitata). Enquanto se trata de um pensar até o fim, também lhe deve
ser atribuído um momento processual.
Este momento processual é o da busca da palavra e da compreensão que lhe
corresponde. Cada elocução constitui, apenas, um recorte do diálogo, do qual vive a
linguagem. O "objeto pensado até o fim", o actus exercitus, ou a concretização do
falar, que não se deixa aprisionar no palpável actus signatus do discurso realmente
externado, vive unicamente neste diálogo que anseia por compreensão. Gadamer
aprendeu de Agostinho, que o significado transmitido pela linguagem, "não é um
significado lógico abstraível da elocução, mas" representa "o entrelaçamento que
nela ocorre. A fixação do pensamento ocidental sobre a elocução (ou o enunciado)
significa, pois, um encurtamento da linguagem no que se refere à sua dimensão
decisiva, isto é, no enquadramento de cada discurso num diálogo. A concentração
logicista sobre o enunciado abstrai do irrecusável caráter de resposta da palavra, de
sua orientação para algo anterior, ou seja, para uma pergunta. Nesta dialética da
pergunta e da resposta encontra-se a verdadeira universalidade da linguagem, da
qual se alimenta a pretensão de universalidade da hermenêutica, que a eleva para a
esfera do pensamento. Ela foi inconfundivelmente concebida, embora pouco
entendida por Gadamer no tratado que se intitula precisamente "A universalidade do
fenômeno hermenêutico"
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(1966), como o 'fenômeno hermenêutico originário", "de que não existe nenhum
enunciado possível, que não possa ser entendido como resposta a uma pergunta, e
que somente assim pode ser entendido". Esta visão dialógica é um eco da doutrina
agostiniana do verbum cordis, por meio da qual Gadamer quer superar o
esquecimento ocidental da linguagem, ou seja, a fixação sobre o enunciado como
algo último, sob abstração do caráter de acontecimento do significado.
A verdade da elocução não está nela mesma, nos sinais escolhidos em cada
momento, porém no todo que ela descerra: "Não se pode tomar a palavra apenas
como um sinal direcionado para um determinado significado, mas simultaneamente
se deve perceber tudo aquilo que ela traz consigo." Já na sua tese pioneira de 1957,
‘Was ist Wahrheit?’ (O que é verdade?), Gadamer desejara libertar a pretensão de
verdade da linguagem do solo do enunciado: "Não existe nenhuma elocução, que se
possa conceber unicamente segundo o conteúdo que ela propõe, caso se queira
concebê-la em sua verdade. Cada elocução é motivada. Cada elocução tem
pressupostos, que ela não expressa." A partir disso já se delineia que a
universalidade da linguagem não pode ser a da linguagem falada, porém a da
"palavra interior", como desajeitadamente, é claro, a gente pode expressar-se com
Agostinho. Isso implica tudo, menos um negligenciamento da linguagem concreta.
Importa, apenas, assentar esta linguagem em seu adequado horizonte
hermenêutico. Uma palavra do "espírito", nós não a podemos perceber, mas
vislumbrar, quando nos compete compreender um assunto linguístico.
A universalidade da hermenêutica não é sequer tangenciada, quando, por
exemplo com J. Habermas, se aponta para experiências pré-linguísticas ou
fronteiras da linguagem. Acontece que a hermenêutica é, precisamente, um
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pensar as fronteiras da linguagem até o fim. Porque “a insuficiência da linguagem
atesta sua capacidade de buscar expressão para tudo”. Uma hermenêutica oriunda
de Agostinho não necessita ser ensinada sobre os horizontes da linguagem
pronunciada. A universalidade que ela significa é a da busca de compreensão, da
tentativa, ou da capacidade de encontrar expressões para tudo. Pois a tese principal
de Gadamer é que a elocução tem, em princípio, limites, que provêm de nossa
finitude histórica e de nossa orientação para a espessura de uma linguagem já
existente, porém aberta. "Vemos, pelos exemplos, qual o limite que, em princípio,
tem um enunciado. Ele nunca pode dizer tudo o que deve ser dito. (...) Platão
chamou o pensamento de conversação interior da alma consigo mesma. Aqui a
estrutura da coisa se torna bem manifesta. Chama-se conversação, porque é
pergunta e resposta, porque a gente se autoquestiona, como se pergunta a um
outro, e se diz do mesmo modo como um outro nos diz alguma coisa. Agostinho já
apontara para esse modo de falar. Cada um é, de certa forma, uma conversação
consigo mesmo. Também quando está conversando com outros, ele deve
permanecer em conversação consigo mesmo, enquanto está pensando. A
linguagem não se concretiza, por conseguinte, em expressões, e sim como
conversação, como unidade de sentido que se constrói com base em perguntas e
respostas. Somente desta forma a linguagem adquire sua plena conformação.
Com esta concepção agostiniano-gadameriana sobre a universalidade do
Lógos interior, podemos encerrar nosso breve relance sobre a história pré-
reformatória da hermenêutica. Do cume desta universalidade podemos, sem dúvida,
associar-nos ao juízo de Ebeling sobre a restante Idade Média: "Em perspectiva
hermenêutica, aproximadamente um século após Agostinho, não surgiram, de forma
duradoura, outros novos questionamentos ou pontos de vista."
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Seria, porém, sem dúvida injusto, propor novamente o costumeiro juízo depreciativo
sobre o "obscuro' milênio da Idade Média. Para fugir a este preconceito corrente,
resultante de um desconhecimento, seria bom que se tomasse em consideração a
excelente e apaixonada obra em quatro volumes de Henri de Lubac sobre a
hermenêutica medieval, bem como a apresentação global de Brinkmann.
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