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Tangas Marajoaras Andre Prous
Tangas Marajoaras Andre Prous
André Prous*
A. Pessoa Lima**
PROUS, A.; LIMA, A.P. De Cobras e Lagartos: as tangas marajoaras. R. Museu Arq.
Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.
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R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.
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ritualmente. Algumas linhas adiante, os mesmos peças monocromas); a maioria estando exposta
pesquisadores sugerem – de forma algo contra- ao público, desenhamos e fotografamos a face
ditória – que a variação de frequência relativa visível e pudemos consultar suas fichas, mas não
dessas duas categorias seria de ordem cronológi- as pudemos manusear.
ca. Estes autores são os únicos a comentar a face Não estudamos a coleção do Museu Nacio-
interna dessas peças de vestuário, verificando nal, que vem sendo analisada por T. Andrade
que as vermelhas apresentam engobo interno e Lima. Da coleção do Museu Paraense Emilio
externo, enquanto as policromas não apresen- Goeldi, vimos 14 tangas policromas e 13 apenas
tam engobo na parte central da face interna. D. engobadas. Através da bibliografia, pudemos
Pahl Schaan (2001), por sua vez, interpretou o observar os desenhos das tangas do Peabody
motivo superior como representação de genitá- Museum, do American Museum of Natural
lia feminina e, a partir da sugestão de um zoó- History, da Heyde Foundation, do National Mu-
logo, considerou os motivos da segunda banda seum of Natural History, de algumas peças do
imediatamente abaixo da primeira, como sendo Museu Nacional do Rio de Janeiro (Hartt 1876);
representações esquematizadas de desenhos de H. Torres 1929; D. Schaan 2001), em sua maior
peles de cobra. D. Schaan, no entanto, se inte- parte provenientes de Pacoval do Arari. B. Me-
ressou particularmente pelas tangas, numa ótica ggers e C. Evans (1957) publicaram duas peças
de “arqueologia de gênero”. Considera que as policromas e as três vermelhas provenientes
tangas de cerâmica seriam reservadas a mulheres das suas escavações em Camutin; H. Palmatary
da elite – por serem essas encontradas essencial- (1950) ilustra oito peças policromas (além de
mente em tesos maiores, supostamente habi- dois fragmentos) e uma vermelha – então con-
tados pelos dirigentes da sociedade Marajoara. servadas na coleção Oliveira (Recife) – além de
Pela associação preferencial das tangas monocro- duas peças do Museu Etnográfico de Estocolmo.
máticas com as urnas funerárias e considerando Em sua dissertação de Mestrado, J. Troufflard
que sua curvatura seria menor, esta arqueóloga (2010) apresentou duas peças pintadas con-
supõe que pertenceriam a mulheres adultas e servadas no Museu Nacional de Etnologia de
casadas, enquanto as menores, policromas e Lisboa, e três do Museu Dr. Rocha, de Figueira
de forte curvatura, seriam usadas por meninas da Foz. D. Schaan forneceu-nos generosamente
durante a puberdade. sua documentação fotográfica pessoal, da qual
Várias coleções comportam tangas – in- constavam 17 peças que ainda desconhecíamos
teiras ou fragmentos – no Brasil e no exterior, e 16 fragmentos de Camutins. S. Rostain nos
parte da quais pudemos estudar diretamente. brindou com o desenho de sua autoria da tanga
A maior coleção parece ser aquela do ex- conservada no Museu Barbier-Mueller, de Gene-
tinto Banco Santos. Atualmente depositada no bra. Na INTERNET, finalmente, conseguimos
MAE-USP, comporta 53 peças inteiras desenha- consultar as fotografias de outras três tangas
das e dois fragmentos, assim como 59 apenas policromas e de uma engobada, sem indicação
engobadas de vermelho (das quais algumas pare- da coleção de origem. Daqui para frente, as
cem ser falsificações). Segundo Barreto (2009), peças provenientes dessas diversas fontes serão
as peças seriam provenientes do rio Anajás, no designadas pelo número que lhes atribuímos
oeste da região ocupada pelos tesos marajoara; dentro do nosso catálogo próprio.
esta coleção será daqui para frente designada Pretendemos, em futuro próximo, publicar
pela sigla MAE/BS. Analisamos as coleções um catálogo descritivo e ilustrado deste material.
do Museu do Marajó em Cachoeira do Arari
(oito tangas pintadas e numerosos fragmentos),
cujas peças seriam provenientes, sobretudo, 2. A matéria e a morfologia das tangas
da região de São Sebastião do Arari – na parte
central do domínio marajoara. Visitamos as Não é nosso propósito estudar as caracterís-
exposições do Forte do Presépio e do Museu das ticas técnicas de fabricação das tangas; apenas
Gemas em Belém (nove tangas pintadas e várias registramos que a grande maioria das peças
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fraturadas apresenta indícios de uma queima (um pouco mais de 2 cm para furos
totalmente oxidante, e uma cor de superfície laterais, um pouco mais de 1,5 cm para o
alaranjada. Pereira de Freitas (2009) realizou furo inferior.
uma análise por Fluorescência X das pastas
Tipo morfológico 2: Reúne quase ¼
de alguns exemplares conservados no Museu
das peças com desenhos. A altura destas
Nacional, verificando que se agrupam em dois
tangas é a mesma do tipo anterior (entre
conjuntos – mesmo assim, bastante parecidos.
9 e 13,5cm), mas os braços laterais são
Isto não é de se estranhar, na medida em que as
bem mais compridos, terminando quase
argilas são provavelmente todas procedentes dos
em ponta cônica alongada. As peças fi-
mesmos alúvios transportados pela correnteza
cam assim com largura maior, geralmen-
do curso inferior e da foz do rio Amazonas.
te entre 14 e 18 cm (as exceções medindo
Às duas categorias morfológicas já reconhe-
entre 12 e 13, ou entre 19 e pouco mais
cidas pelos pesquisadores acrescentamos outra,
de 20 cm). A relação largura/compri-
que pudemos observar na coleção depositada
mento é de cerca de 7/10. O raio de
no MAE-USP e no Museu de Cachoeira do
curvatura antero-posterior tende a ser
Arari, sendo que uma peça semelhante aparece
um pouco menor que no tipo anterior:
também registrada numa prancha de Meggers
deitada, a peça levanta-se raramente mais
& Evans (1957). Compararemos rapidamente
de 4,2 cm, embora as duas exceções al-
estas três formas básicas, considerando tratar-se
cancem o maior arqueamento individual
de formas aparentadas a triângulos, com um
entre todas as tangas (5,2 cm). A relação
lado superior horizontal e dois lados oblíquos –
entre a flecha e a largura é da ordem de
direito e esquerdo – simétricos.
¼. O lado superior das peças deste tipo
Tipo morfológico 1: Congrega quase morfológico apresenta quase sempre um
três quartos das peças com desenhos abaulamento central – discreto, porém
pintados. Corresponde a peças a grosso perfeitamente visível – enquanto os la-
modo triangulares, com dimensões me- dos oblíquos apresentam uma reentrân-
nores em relação aos demais tipos. Tem cia cuja cava costuma ser mais marcada
largura entre 11 e 17 cm (tendo a grande e de curva mais contínua que aquela do
maioria entre 12 e 14 cm) e altura entre tipo anterior. Este abaulamento talvez
8,6 e 13,6 cm ( geralmente entre 9,5 e 12 não seja procurado intencionalmente;
cm). A relação entre altura e largura é da poderia apenas decorrer da preparação
ordem de 12/14. O lado superior é reto, das “pontas” laterais. Com efeito, estas
sendo os vértices laterais rombudos. O são arredondadas para apresentar um
ramo inferior tende a ser mais largo que formato quase cilíndrico, deixando em
aquele do tipo 2. Os lados oblíquos apre- relevo a parte central que se mantém
sentam-se suavemente cavados. Quando achatada.
a peça é colocada numa superfície plana,
Os furos laterais podem ser bastante
o ponto mais alto levanta-se acima desta
distantes das extremidades (até 3,4 cm),
entre 3,5 e 5 cm, o que corresponde a
provavelmente para diminuir os riscos de
cerca de 1/3 da largura da peça. Trata-se
quebra das pontas delgadas – acidente
da mais forte curvatura antero-posterior
muito frequente nas peças deste formato.
(ou arqueamento) relativa média entre os
três tipos. Algumas dessas peças apresen- Tipo morfológico 3: Muito mais raro,
tam, em sua parte central, uma discre- é representado por sete peças de tama-
tíssima saliência em calota de esfera, nho semelhante, cuja largura e altura são
aumentando a capacidade volumétrica quase equivalentes (11 a 13 cm de altura
do artefato. Os furos de suspensão estão e 12 cm de largura). Os lados pratica-
colocados a pouca distância das pontas mente não são cavados e os vértices são
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fologia 1 quanto de morfologia 2. Talvez se trate tripartido e não quadripartido. Os três registros
de tangas que eram destinadas a receber dese- superior, médio e inferior costumam, então, ser
nhos, mas cuja decoração não foi terminada. de altura equivalente, e o espaço de separação
entre cada um é muito maior que nas demais
peças.
O espaço e os elementos gráficos O registro inferior corresponde ao estreito
ramo inferior da peça, ponta na qual se abre o
O espaço terceiro furo de suspensão. É marcado geralmen-
te por linhas simples que não chegam a formar
A não ser raras exceções, a face externa das figuras.
tangas pintadas foi dividida pelas artistas (con- Veremos mais adiante que cada um desses
sideraremos a priori – embora sem nenhuma registros é decorado de forma específica.
certeza – tratar-se de mulheres; por isto utiliza- Em cinco peças apenas verifica-se a unifica-
remos o feminino daqui para diante) em três ção dos campos “médio”, “principal” e “infe-
ou quatro faixas horizontais de largura desigual, rior” através de uma decoração contínua.
delimitadas por linhas horizontais e geralmente As pintoras marajoara tendo horror ao
separadas uma das outras por um estreito espa- vazio, os espaços que separam os temas signifi-
ço não desenhado. cativos estão ornados por pequenos elementos
O registro superior corresponde à maior adventícios que não parecem ter outra que
largura da peça; costuma ter cerca de 2 centí- função que a de preencher os interstícios.
metros de altura nas peças de forma 1; é muito Os desenhos são elaborados para se inse-
mais estreito na forma 2, enquanto é bem mais rirem na forma triangular da tanga, segundo
largo (ocupa quase um quarto da altura dela) um eixo vertical em relação ao qual as figuras
nas tangas de forma 3. Neste registro abrem-se apresentam uma simetria espelhada. Apenas cin-
os dois furos superiores de suspensão. Apresen- co peças fogem a esta regra, por seguirem uma
ta quase sempre um elemento central reproduzi- lógica de diagonalização. Enfim, notamos que
do lateralmente em posição inclinada, de forma os elementos de desenho não se completam nos
simétrica. limites do suporte, mas ficam em aberto – da
O segundo registro, que denominamos mesma forma que uma paisagem vista de uma
médio, é decorado por um friso. Nas peças de janela acaba sendo “recortada” pelos limites da
morfologia 1, este é o mais estreito de todos mesma.
os campos decorativos; nas peças de forma A face interna das tangas pintadas não apre-
2, acaba sendo reduzido a uma simples linha senta decoração, mas quase sempre uma faixa
reforçada de separação. Nas peças de morfologia periférica de mesma cor que o engobo externo,
3, pelo contrário, desloca-se para a parte central aplicada por pincel de forma muitas vezes pouco
da tanga, torna-se muito largo e o registro mais cuidadosa. Na grande maioria das peças, esta fai-
vistoso. xa tem entre 0,5 e 1,5cm de largura, mas pode
O registro principal ocupa a parte central ser também um pouco mais invasiva. Em cerca
da peça; é a faixa decorada mais alta de todas e de um quarto das peças, no entanto, existe um
que ocupa a maior superfície, sendo mais alta verdadeiro banho de cor geralmente esbranqui-
– embora menos larga – que as duas anteriores. çada, mas eventualmente vermelha ou até cinza
Este registro costuma apresentar um motivo ou preta (de carvão?) que recobre toda a face
principal inserido num retângulo vertical e cen- interna. Sobre este banho é frequente ter sido
tral, flanqueado por elementos laterais simétri- acrescentada a faixa periférica de cor branca ou
cos inscritos em quadriláteros. creme.
As tangas de forma 3 e algumas poucas No entanto, a maior parte das tangas
peças de forma 1, no entanto, não apresentam apresenta hoje, no triângulo central interno, a
o grande registro “principal” na parte central cor natural da cerâmica – apenas intensificada
da peça. Nestes exemplares, o espaço gráfico é pelo alisamento ou por um leve polimento. Em
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poucos casos, quando a faixa periférica é mais código, pois ficou rapidamente evidente que o
larga que 1,5 cm e apresenta limites indecisos colorido se modificava com o tempo e a exposi-
e alguns vestígios de tinta aparecem no triân- ção ao intemperismo. De um setor ao outro do
gulo central, pode-se perguntar se as peças não campo decorado, uma mesma linha pode passar
teriam sido engobadas internamente. A tinta na progressivamente de um tom escuro (marrom
parte central teria então desaparecido em razão quase preto, como se fosse de manganês) para
dos processos de limpeza. A fragilidade das um vermelho vivo ou vice-versa; ou de um
tintas, no entanto, torna improvável que esses vermelho forte para uma cor desbotada (desde
artefatos tenham sido normalmente lavados. alaranjado para rosado, ou ocre amarelado),
As tangas não pintadas – apenas engobadas chegando a descolorir-se completamente. Esta
externamente – apresentam as mesmas caracte- variação pode depender da diluição da tinta,
rísticas internas; no entanto, não chegamos a de fenômenos de oxidação, da exposição à luz
registrá-las sistematicamente. (Fig. 3). e de eventuais contatos acidentais com água ou
com o suor. É também possível que certas peças
Tintas, cores e sua aplicação com tons particularmente esmaecidos, hoje
amarelado claro ou quase creme tenham sido
As tangas que apresentam desenhos em pintadas com pigmentos vegetais (urucum?),
sua parte externa foram sempre decoradas por mas nenhuma análise foi realizada até agora
aplicação de tinta, nunca por incisões ou exci- para identificar os componentes das tintas. O
sões (enquanto estas técnicas são frequentes nas engobo das peças com desenhos é sempre de
vasilhas marajoaras decoradas). cor clara: branco ou creme; por vezes marfim,
De fato, e embora se fale tradicionalmente rosado, amarelado ou cinzento. As peças apenas
de “tangas policromas”, os desenhos são sempre engobadas de vermelho, por sua vez, apresen-
vermelhos, aplicados sobre engobo claro. Trata- tam esta cor em tons geralmente escuros (ver-
-se, de fato, de desenhos monocromos. melho vinho). O aspecto fosco ou levemente
Os traços dos desenhos aparecem exclu- brilhante depende provavelmente das condições
sivamente em tons de vermelho, que variam de preservação. Uma tinta branca (levemente
desde uma cor escura, quase marrom, até um cinzenta ou amarelada) foi por vezes utilizada
ocre claro. Não registramos as cores exatas com para preencher o espaço entre os traços para-
lelos que compõem as linhas du-
plas de um dos estilos gráficos;
em outros casos, parece ter sido
utilizada para este mister a mes-
ma tinta dos desenhos, apenas
mais diluída – produzindo um
tom levemente rosado.
Uns poucos traços brancos
discretos, como se fossem guias
para um esboço, ocorrem em
uma peça que mereceria um
estudo especial. Os traços de
desenho nunca são muito finos;
embora haja algumas peças que
apresentem desenhos mais deli-
cados de 0,5 mm de largura, os
traços da maioria delas medem
entre 0,8 e 1,2 mm; em raros
exemplares têm quase 2mm de
Fig. 3. organização dos campos decorativos. largura.
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O segundo tema possível, encontrado temas podem ter sido vistos como aparentados,
apenas em algumas peças, corresponde a um pois uma série de “X” ou ampulhetas pode ser
alinhamento de pequenos V, geralmente reu- lida como um duplo zigue-zague. Raros exempla-
nidos em uma única linha em zigue-zague. Nas res apresentam outra formula, na qual o motivo
tangas que apresentam esta particularidade, este nunca deixa de comportar uma estrutura algo
registro forma uma faixa extremamente estreita parecida com o zigue-zague.
ao longo da borda. De fato, o zigue-zague é o O tema mais frequente (ocupa 34 % dos
tema normal do registro médio. Podemos dizer campos médios observados) é, portanto, o zigue-
que, nessas tangas com zigue-zague na borda -zague. Pode aparecer na forma de uma linha
superior, o registro médio substitui o registro quebrada – simples ou dupla; pode ser flan-
superior; apenas sete peças, dentro dos mais de queada por triângulos isósceles que preenchem
140 exemplares observados, apresentam este o espaço superior e inferior; ou trata-se de um
tema deslocado – entre as quais quatro são mi- espaço vazio ziguezagueante entre dois alinha-
niaturas, provavelmente brinquedos de crianças mentos de triângulos – eventualmente adorna-
– ou peças de treino para pintoras inexperien- do por um elemento em forma de tridente. O
tes. (Fig. 5). zigue-zague também pode entrar na composição
de um motivo que evoca para nós – e para
O registro médio diversos grupos indígenas – um favo de mel ou
a escama hexagonal de casco de tartaruga, cujos
O registro médio costuma ser o mais estreito compartimentos internos (meios alvéolos, ou
de todos nas tangas de forma 1. Nas peças de for- meias escamas) são marcados por “aspas”.
ma 3, pelo contrário, torna-se tão larga quanto as O segundo motivo mais frequente (30%)
demais, e ocupa o espaço central. Nas tangas de corresponde ao desenho em forma de X ou
forma 2, este campo praticamente desaparece. de ampulheta. Este motivo também apresenta
Pode-se utilizar, nesta faixa um de dois mo- variantes: as ampulhetas podem ser separadas
tivos principais – morfologicamente parecidos: por traços verticais; por um traço horizontal –
zigue-zague, ou ampulhetas. De fato, esses dois geralmente reforçado por aspas transversais que
podem dar-lhe um aspecto bio-
morfo. Um desenho apresenta
até apêndices laterais que refor-
çam esta impressão. Ou então,
duas das extremidades dos X são
prolongadas por volutas (esta ca-
tegoria também pode apresentar
uma morfologia discretamente
antropomorfa, evocando um
corpo deitado); também podem
ser realçados os losangos virtuais
entre dois módulos em X.
Em 34% das tangas (inclu-
sive na quase totalidade daque-
las de forma 3), este registro é
assinalado apenas por duas linhas
retas paralelas muito próximas
ente si, reforçadas com aspas
ou, por vezes, unidas por curtos
traços transversais. Este duplo
alinhamento tem por função mar-
Fig. 5. Tema do campo superior. car a separação entre o registro
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superior e o registro principal, não se tratando da coleção T. Wild). Em 13% das tangas, a boca é
realmente de um registro decorativo. Apenas figurada por uma espiral ou um losango marca-
quatro peças apresentam uma quarta modalidade, do por uma cruz; ou, ainda, por um triângulo
na qual o friso é formado por elementos estrutu- pequeno (10%); uma figura sauromorfa é também
rados por linhas oblíquas. Esta fórmula cria um utilizada no lugar da boca (em 10% dos rostos).
dinamismo visual original que contrasta com as Apenas 6% dos artefatos cujo campo
simetrias de translação ou de espelhamento nor- principal evoca um rosto não possuem nariz
malmente utilizadas pelos marajoaras. (Fig. 6). figurado. Nas demais tangas, este apêndice é
frequentemente (58%) representado por uma
O registro principal figura zoomorfa vertical com os quatro membros
dobrados. Esta geralmente apresenta um corpo
Encontramos apenas duas categorias de alongado filiforme e espécies de antenas ou man-
decoração no campo principal. A primeira con- díbulas; sua forma evoca a silueta de um louva-
siste em uma composição em simetria espelhada -deus (apesar de ter apenas quatro membros).
cujos elementos compõem um rosto (provavel- Outras vezes, o corpo é retangular e o animal
mente humano), combinado com outros ele- se parece com uma barata, também de quatro
mentos figurativos (Prous 2007). A outra, muito patas; quando o tronco é biconvexo, a figura
rara, privilegia eixos oblíquos e pode evoluir lembra um sauro – jacaré ou lagarto. Em várias
para uma simetria rotativa. tangas, o nariz é figurado obviamente por uma
cobra de cabeça triangular. Em vez de uma figura
Os rostos zoomorfa, o nariz pode ser representado por um
espaço em forma de T invertido (⊥); o ramo ho-
A grande maioria (mais de 80%) das tangas rizontal do ⊥, eventualmente decorado por duas
pintadas evoca uma ou várias caras – humana ou espirais pequenas representando as narinas.
animal – cujos elementos são tratados de forma Os olhos são indicados por grandes figuras
convencional. A boca pode ser (menos de 20% em espiral ou por espaço quadrangulares (mais
das peças) sugerida apenas pelas mais altas das raramente, triangulares) preenchidos por peque-
linhas horizontais que ocupam o campo inferior. nos elementos: cruz ou figura vertical biomorfa,
No entanto, costuma ser indicada de forma mais cuja morfologia tanto pode sugerir um lagarto
evidente por um desenho poligonal. Por exemplo, quanto um inseto ou o corpo de um peixe.
por um retângulo com traço horizontal interno; Excepcionalmente, em algumas tangas, os olhos
em alguns casos, avistam-se nele triângulos que estão figurados por um pequeno retângulo com
acreditamos representarem os dentes (uma fór- apêndices biomorfos. Numa tanga muito original,
mula que encontramos até agora apenas em peças os olhos são figurados por dois rostos que parecem
interligados por uma dupla linha
hachurada – talvez uma represen-
tação de uma serpente bicéfala.
Nota-se de passagem que não
ocorre representação de escorpião
no lugar do olho, ao contrário do
que ocorre nas vasilhas marajo-
aras antropomorfas. Em alguns
casos, os olhos, nas tangas, são
figuras quadrangulares que, elas
mesmas, evocam caras menores
(com olhos, nariz e boca). Esses
elementos quadrangulares são por
vezes repetidos lateralmente, evo-
Fig. 6. Tema do campo médio. cando possivelmente as orelhas.
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Tais jogos de utilização de animais para figurar te). Mesmo assim, veremos que a figura humana
um órgão, representações encaixadas uma na está presente nestas peças, embora de forma
outra (como se fossem bonecas russas) com minia- discreta. (Figs. 7, 8a e 8b).
turização e ressonâncias múltiplas
evocam os kennings típicos de
várias culturas andinas desde o
período Chavin. Finalmente,
notemos que, quando ocorre, o
elemento “cabeça de cobra” cos-
tuma apresentar-se repetido, em
simetria vertical espelhada.
Várias peças apresentam
siluetas antropomorfas inseridas
no meio da representação de
rosto: duas delas apresentam
um corpo inteiro em posição
semelhante à figura amazônica
“tangawa”; um fragmento apre-
senta um indivíduo filiforme
com braços dobrados e dedos;
sobretudo, antropomorfos com
os quatro membros divergentes
formando um X podem ser visto
nas tangas de olho gigante. Um
desenho poderia evocar a parte
central de um corpo feminino.
Uma última peça apresenta
quatro silhuetas humanas: uma
delas, de tipo “tangawa” é cruza-
da por outro corpo em forma de
Y com forquilha dupla; entre os
membros divergentes da primei-
ra figura ainda se veem peque-
nas figuras antropomorfas com
a cabeça colocada diretamente
acima das pernas (lembrando
algumas gravuras rupestres
encontradas nos afluentes de
margem esquerda do Baixo
Amazonas).
As tangas cujo registro
central não evoca um rosto são
aquelas que apresentam uma
divisão tripartida (incluindo,
portanto, as peças de forma
3) ou um campo unificado,
fugindo do modelo “normal” de
decoração tetrapartido (grupo
“tripartido” descrito mais adian- Fig. 7. Elementos zoomorfos do registro principal.
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As composições oblíquas
unificando os campos médio e
principal
O registro inferior
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Outra fórmula (17% das peças observadas) o que forma uma mancha colorida em meia-lua
é quase exclusiva das tangas que reunimos no cujo peso equilibra visualmente a peça quando
grupo de “divisão tripartida” (ver adiante). vista em exposição. No entanto, deve-se frisar
Privilegia linhas verticais que seguem o eixo que esta mancha vermelha não devia ser visível
morfológico da parte inferior, combinando-se, quando a peça estava instalada no corpo, com a
no entanto, com curtos traços horizontais per- pessoa em pé ou sentada. Este ponto vermelho
pendiculares. Muito mais raras são representa- terminal não aparece em nenhuma peça de
ções de cobra (5% dos registros inferiores) ou de forma 2 e apenas num exemplar de forma 3.
seres antropomorfos (9% dos mesmos), simples (Fig. 9).
ou geminados; nestes casos, os mesmos ofídios
ou antropomorfos estão também presentes no A face interna
campo principal. Poucas tangas apresentam
fórmulas originais, não repetitivas. A face interna das tangas nunca apresenta
A extremidade semi-circular do vértice desenhos; no entanto, a mesma tinta utilizada
inferior das peças de forma 1 costuma ser externamente como engobo é aplicada (de
pintada de vermelho (em 40% dos exemplares), forma por vezes cuidadosa, outras vezes, com
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poderiam ser interpretadas como narinas. A vez, talvez tenha sido pintada por um homem.
miniatura da coleção Oliveira recebeu apenas Com efeito, há uma tradição bastante geral
uma figura, em forma de ampulheta. Na quarta de os homens e mulheres das terras baixas
tanguinha, uma figura biomorfa ocupa o sul-americanas desenharem de forma dife-
centro de simetria de uma das tangas, como no renciada. As mulheres expressando-se através
tema do “nariz-lagarto”; no entanto, o traçado de estilos geometrizantes e através de figuras
é largo e curvilíneo. Em todas as três miniatu- ortogonais, enquanto os homens tendem a
ras do MAE/BS pode se verificar a segurança fazer desenhos mais livres e curvilineares (Ri-
do traço: os pintores sabem usar seu pincel; beiro 1961). A decoração da tanga do Museu
no entanto, a execução dos traços ou a realiza- de Cachoeira do Arari, por sua vez, apresenta
ção dos elementos manifestam um desvio em uma tosca evocação de rosto, mas riscada com
relação aos padrões gráficos. Assim sendo, não traços grossos e inseguros, cujo desenho revela
pensamos atribuir estes “deslizes” à incapaci- uma pessoa ainda pouco habilidosa. Maior que
dade de crianças que estariam aprendendo a as anteriores (embora com curvatura muito
decorar as tangas; acreditamos que elas tenham fraca) e com furos apresentando marcas de
sido pintadas por pessoas já desenvolvidas desgaste, esta peça poderia ter sido utilizada
e com bom controle motor. As duas peças por uma pessoa mais crescida. Uma última
nas quais se verificam o desvirtuamento dos tanga irregular, de dimensões normais, porém
elementos gráficos, porém com utilização das de arqueamento muito fraco (3,7cm), carece
normas gráficas de desenho poderiam, talvez, do registro típico do campo superior. Abaixo
ser creditadas a mulheres. Estas preparariam do zigezague, mostra uma decoração do campo
para suas criancinhas tangas decoradas, mas principal aberrante, embora enquadrada por
privadas de elementos significativos proibidos dois grandes “olhos“ quadrangulares semelhan-
para pessoas não iniciadas. Sugerimos que a tes àqueles das tangas do grupo “Camutin”.
peça decorada de forma curvilínea, por sua (Fig. 10).
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O quanto as tangas foram utilizadas? Vimos que B. Meggers e C. Evans já tinham ob-
servado nesta perspectiva os furos de várias peças
Fragilidade das tintas – porém sem diferenciar as formas de desgaste,
nem os orifícios laterais e inferiores entre si, nem
Inicialmente, salientaremos o fato de que comparando as marcas existentes nas faces inter-
as tintas dos desenhos parecem frágeis: traços na e externa. Decidimos prestar atenção, portan-
de alguns desenhos apresentam indícios de to, aos orifícios de suspensão das tangas – seja
diluição dos pigmentos por terem sido as tangas apenas engobadas, seja com superfície desenhada
expostas a respingos de água (antigos ou recen- – que pudemos observar pessoalmente (mais de
tes). Uma pessoa nos confirmou ter lavado uma 140 peças). De qualquer forma, é preciso salien-
peça com muito cuidado, sem ter conseguido tar que, para se interpretar de forma mais segura
impedir o desaparecimento dos traços. Esta as marcas “de utilização”, seria necessário conhe-
instabilidade implicaria a impossibilidade de
cer a força abrasiva dos cordões (quantidade de
utilização no exterior das casas, pelo menos du-
fitólitos nas fibras) e a dureza das tangas, além de
rante a estação chuvosa (de longa duração nesta
se esperar o resultado do trabalho de experimen-
região equatorial) ou durante atividades que im-
tação com réplicas usadas por pessoas vivas. Não
pliquem contato com água ou um escorrimento
apresentaremos aqui nenhuma quantificação
abundante de suor na face externa da peça. O
dos dados que registramos, em razão do caráter
problema seria menor no caso das tangas apenas
incompleto e preliminar das nossas observações.
engobadas, que poderiam receber facilmente
Com efeito, não registramos de forma objetiva o
um novo banho vermelho. De qualquer forma,
grau de profundidade do desgaste; faltam uma ou
Mordini observa que os desenhos de uma das
peças da sua coleção de fragmentos apresentam duas extremidades de muitas peças – e, portanto,
sinais de terem sido repintados. Tivemos a mes- as perfurações correspondentes; outras estão
ma impressão ao examinar uma das tangas do tampadas ou preenchidas por sedimentos; enfim,
Museu Goeldi; no entanto, pareceu-nos que os duvidamos da autenticidade de várias tangas
traços em branco vislumbrado na parte central apenas engobadas. Mesmo assim, estamos em
desta peça, erodida, poderiam apenas resultar condições de apresentar algumas considerações
da queda dos pigmentos vermelhos; estes teriam de ordem geral.
levado consigo a parte superficial e patinada ou Os furos são muito pequenos (orifícios en-
suja do engobo, deixando aparecer a cor mais tre 1,5 e 2,3mm de diâmetro; geralmente entre
clara do caulim (?) original. Se isto for, não ha- 1,8 e 2,0mm) – excluindo-se algumas peças de
veria pintura nova sobre traços anteriores (não autenticidade duvidosa. O fato de quase todos
se entende, inclusive, porque teriam pintado eles estarem preenchidos por terra impediu
desenhos em branco sobre um fundo claro), verificar se haveria estreitamento interno (seção
mas percepção do negativo dos traços pintados, bicônica ou cilíndrica). De qualquer forma, os
hoje desaparecidos. Caso esta observação nossa cordões de suspensão tinham que ser muito
valha para a peça comentada por Mordini, não finos (com diâmetro máximo de cerca de 2mm).
haveria motivo para acreditar que as tangas Os furos superiores (dos ramos laterais) apresen-
decoradas seriam pintadas com desenhos várias tam um desgaste mais marcado na face externa,
vezes – nem haveria, portanto, comprovação de que se manifesta pelo desenvolvimento lateral e
utilizações repetidas. pouco oblíquo de uma goteira ou canaleta. Esta
pode existir apenas na espessura do engobo ou
Desgaste dos furos de suspensão aprofundar-se na pasta da cerâmica. Pode ser
apenas esboçada – sobretudo na face interna.
À primeira vista, parece óbvio que o grau de Bem mais raramente, nota-se um desgaste perifé-
desgaste dos furos de suspensão poderia fornecer rico ao redor do orifício externo ou interno.
indicações sobre a frequência de utilização das O furo inferior, por sua vez, apresenta um
tangas – uso quotidiano, ou restrito a circuns- padrão de desgaste desenvolvido essencialmen-
tâncias ocasionais e, provavelmente, cerimoniais. te na face interna, onde estes furos inferiores
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André Prous
A. Pessoa Lima
apresentam um micro desgaste periférico (con- as peças policromas quanto aquelas simples-
tornando todo o furo, ou apenas presente em mente engobadas apresentam a mesma varia-
metade ou dois terços da sua periferia), eventu- ção de desgastes; por este critério, teriam sido
almente prolongado para baixo por um esboço utilizadas com a mesma intensidade. Diante
de goteira. Na face externa, o desgaste é mais destas informações contraditórias e na falta de
raro que nos furos superiores e se manifesta estudos experimentais, é prudente não arriscar
também, sobretudo, na forma de micro desca- conclusões sobre a frequência de utilização das
mações; algumas peças, no entanto, apresentam tangas. Seria, sem dúvida, importante realizar
uma canaleta externa dirigida para baixo, em um estudo especifico dos sistemas de suspensão,
geral apenas incipiente. após limpeza cuidadosa dos orifícios.
O desgaste em forma de canaleta parece-
Forma de amarração -nos contraditório com uma utilização da tanga
por uma pessoa em movimento: o balancear das
Destas observações, e como não existe cadeiras deveria friccionar o cordão num arco de
desgaste linear atravessando a largura das peças, círculo cujo epicentro seria o furo, abrindo uma
podemos deduzir que as duas extremidades zona de desgaste angular, em forma de leque,
de um mesmo cordão seriam amarradas aos com desgaste maior na bissetriz. Ora, com duas
furos superiores; ou então, dois cordões dife- exceções (inclusive uma peça possivelmente falsi-
rentes presos cada um a uma das extremidades ficada) os maiores desgastes superiores externos
superiores estariam amarrados atrás do corpo. são direcionados linearmente, sendo a canaleta
Pode-se supor que estes cordões seriam fixados rigorosamente reta, estreita, e de bordas parale-
por um nó interno e sairiam pela face externa; las. Tal canaleta somente poderia ser causada por
seriam puxados para o exterior de forma pouco uma fricção linear reta, unidirecional, semelhan-
oblíqua em relação à horizontal. A localização e te àquela produzida por uma serra; ora, isto não
o desenvolvimento maior das canaletas sugerem corresponde ao movimento complexo decorrente
que os cordões superiores seriam submetidos de um corpo humano em movimento.
a uma pressão relativamente forte. O cordão Outras observações, “de senso comum”,
inferior, por sua vez, também seria segurado podem ser equivocadas, tais como aquela que
por um nó interno; seria, salvo exceções, menos atribuiria uma frequência maior de utilização
esticado – formando-se mais desgaste interno e a peças com marcas de desgaste maior nos
periférico em razão da movimentação transver- orifícios. Por exemplo, a ausência de desgaste na
sal do corpo. Chegamos a pensar que os furos parte externa dos furos superiores pode resultar
de algumas tangas, que apresentam canaletas não da falta de uso, mas da utilização da peça
muito longas e profundas, poderiam ter sido por uma pessoa corpulenta (comunicação verbal
feitos voluntariamente pelas fabricantes (para de A. de Tugny). O cordão, neste caso, ficaria
manter os cordões) ou por colecionadores (para pressionado para fora, e não para dentro da
passar arames e suspender as peças em mostru- tanga, não havendo razão para que imprima
ários de parede – como parece ter ocorrido na sua marca na cerâmica. Ou seja, apenas uma
coleção Oliveira fotografada por Mordini), mas experimentação intensiva permitiria se chegar
isto parece improvável para a maioria das peças. a uma conclusão sobre as condições de utiliza-
Como muitas tangas não apresentam des- ção destas peças. Remetemos o leitor ao artigo
gaste visível a olho nu poder-se-ia também supor publicado neste volume (Rodrigues et al.), que
que teriam sido pouco usadas. Na coleção do apresenta as primeiras experiências que realiza-
Museu Paraense Emílio Goeldi, por exemplo, mos no Museu de História Natural da UFMG.
a porcentagem de peças com furos apresentan-
do marcas de desgaste é maior entre as tangas Outros indícios possíveis de utilização
policromas do que entre as monocrômicas
observadas – ao contrário do que ocorreu nas O desgaste dos furos não é a única forma
peças observadas por Meggers & Evans. Tanto de alteração registrada na cerâmica. Nota-se
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R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.
em várias tangas (sejam elas com desenhos ou Para que estas tangas de cerâmica?
apenas cobertas por um banho de cor) uma
É difícil avaliar a intensidade de produ-
erosão particularmente marcada na parte inferior
ção de tangas ao longo dos muitos séculos de
da face interna – embora remonte por vezes
existência da cultura Marajoara, pois quase
lateralmente, e na parte inferior externa das
todas são provenientes de escavações antigas
tangas. Manifesta-se por uma série de pequenas
ou ilegais. Podemos notar que as peças apenas
descamações em forma de micro cupules que
cobertas de vermelho são menos numerosas que
tornam a superfície rugosa, lembrando o aspecto
as com desenhos nas coleções, mas são provavel-
das paredes de igaçabas supostamente utilizadas
mente sub-representadas em razão do seu menor
para preparar bebidas fermentadas (Skibo 1992). valor estético. Poderia se comparar o número
Inicialmente prestamos pouca atenção a este fe- de vasilhas decoradas marajoara e de tangas
nômeno, que nos parecia decorrer de uma erosão conhecidas, mas um tal trabalho ultrapassaria
natural ou, em alguns casos, de bruscas variações os limites desta pesquisa. Segundo D. Schaan
de temperatura pós-deposicionais (cupules térmi- (2007), nas maiores urnas – que são também as
cas). A situação recorrente dos locais afetados, no mais decoradas – encontrar-se-iam apenas tangas
entanto, levou-nos a considerar a possibilidade de vermelhas. A partir desta observação, sugere que
tratar-se de uma alteração relacionada ao contato as peças monocromas seriam destinadas às mu-
com o suor corporal, que deve ter sido particular- lheres maduras, enquanto as desenhadas teriam
mente intenso nesta faixa periférica. A acidez das sido feitas para as meninas em fase iniciática.
secreções também poderia ter contribuído a estas Esta interpretação baseia-se provavelmente na
transformações. O cuidado em se pintar inter- ideia corrente de que todas as tangas vermelhas
namente a periferia (em contato mais estreito seriam de tipo 2, enquanto as de tipo 1 seriam
com o corpo) e a ponta inferior (mais submetida policromas – o que mostramos ser absolutamen-
ao calor corporal) pode ser interpretado como te inexato. De fato, as seis tangas encontradas
uma forma de diminuir a erosão das superfícies. em urnas de Camutins, listadas por D. Schaan
Este tipo de alteração ocorre tanto em peças e são todas de forma 1. A. Mattos (1938: 150) cita
fragmentos vermelhos quando pintados. (Fig. 11). o texto no qual Derby diz ter achado duas tan-
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gas em Pacoval "Em dous casos achei dentro das Elementos estilísticos
igaçabas as chamadas tangas... a igaçaba tinha
sido enterrada dentro de outra maior, e a tanga Tentamos verificar a existência de elementos
achava-se no espaço entre as duas... a igaçaba re- que permitiriam agrupar as tangas em categorias
presentava uma mulher". Infelizmente, o trecho tipológicas combinando suas características mor-
citado não esclarece a forma das tangas, nem se fológicas e decorativas. A partir da observação de
elas eram decoradas ou apenas engobadas. De uma dezena de peças, Mordini já tinha contras-
fato, com tão poucas referências, não se pode tado as pinturas de Pacoval com as do Teso do
afirmar uma relação exclusiva entre enterra- Severino. As primeiras seriam caracterizadas pela
mentos e tangas monocromas. Muito menos se presença de módulos claros sobre fundo escuro
pode pensar que as últimas seriam fabricadas na parte superior (tema hoje interpretado como
para o ritual funerário, já que várias apresentam genitália) e por uma elaboração gráfica mais
marcas de utilização. tosca; as do teso do Severino não apresentariam
Afinal, qual poderia ser a razão de se usar o motivo referido. Por outro lado, os desenhos
tangas de cerâmica, provavelmente muito mais deste sítio seriam mais elaborados que aqueles
incômodas que as proteções vegetais normal- de Pacoval. Infelizmente a ausência de origem
mente utilizadas pelas indígenas? A resposta mais precisa para quase 90% das tangas que pudemos
provável é que se trataria de peças de alto valor observar não nos permite aplicar a mesma linha
simbólico utilizadas em rituais e/ou para expor de raciocínio para os diversos sítios da ilha.
o status de quem as trazia. Citando Steward e Assim, apresentaremos a seguir algumas ob-
Métraux, B. Meggers e C. Evans (1957) referem-se servações sobre a recorrência de associação entre
à existência de tangas de cerâmica entre índios de pares de elementos morfológicos, temáticos e
língua Pano do Ucayali (alta Amazônia peruana) gráficos, sem saber se eles traduzem mudanças
– no final do século XIX: “Tossmann (1928 & temporais, oposições sociais, ou idiossincrasias
1930) reports that a group of pubescent Chama de fabricantes.
girls were assembled at full moon, while men and O primeiro ponto que destacaremos é que
women danced all night and drank from special a oposição mencionada por todos os autores
zoomorph pots. Next morning, the girls were entre tangas com cava profunda (nossa forma 2)
painted, stupefied with drink, then each laid on e engobo simples, e tangas pouco cavadas (nossa
a bench where an older woman cut off and burial forma 1) e decoração policroma não pode ser
the clitoris and labia. Reich (1903) adds that sustentada em nível geral. Com efeito, 36% das
the girl was deflowered with a clay penis repre- peças pintadas apresentam morfologia de tipo 2
senting his fiancé. The girl was then isolated in (extremidades laterais pontudas e compridas, e
her hutt for one month, wearing an egg shaped cavas geralmente profundas), enquanto a maio-
piece of pottery as a pubic cover.” (Steward & ria (57%) das peças que receberam somente um
Métraux 1948: 585). Implicitamente, Meggers e banho vermelho são de forma 1.
Evans sugerem uma utilização algo parecida para Isto não significa que as observações feitas
pelo menos parte das tangas marajoaras. Uma anteriormente tenham sido erradas. Apenas
apresentação de D. Schaan (com. pessoal) mostra acreditamos que esta divisão entre cavadas /
uma tanga associada a uma vasilha zoomorfa, engobadas e não cavadas / pintadas possa ter
a um banco e a um pênis de cerâmica, todos ocorrido em determinados sítios (por exemplo,
procedentes de tesos de Marajó. A coincidência Pacoval e Camutins) e/ou épocas, enquanto
merece ser apontada, mas é obviamente difícil, outras comunidades locais não diferenciariam a
no estágio atual dos conhecimentos, demonstrar decoração em função do suporte. Isto explicaria
a existência de uma origem comum para ocorrên- que a maioria das peças conservadas no Museu
cias observadas nas duas regiões mais afastadas da Goeldi obedeça à oposição proposta tradicio-
bacia amazônica e separadas no tempo por mais nalmente, enquanto isto não ocorre nas outras
de meio-milênio – uma distância temporal que coleções, cujas peças provavelmente venham,
era desconhecida em 1957. pelo menos em parte, de outros tesos.
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Há outras duas peças muito parecidas, com senta o mesmo tema vertical e axial zoomorfo
linhas duplas e o mesmo tratamento “barro- que as peças do grupo Camutins, porém mais
co”, mas não apresentam o “nariz” zoomorfo; filiforme ainda, marcado em seu centro por um
consideramo-nas, no entanto, aparentadas a este quadrilátero ou hexágono. Os membros não
grupo. são dobrados junto do corpo, mas se apresen-
tam estendidos lateralmente, com apenas suas
Grupo dos corpos “imbricados” extremidades dobradas. Ao mesmo tempo, os
interstícios entre os traços delimitam no centro
Esta categoria comporta vinte peças e vários da peça duas superfícies simetricamente opostas
fragmentos, todas de forma 1, com organização que evocam uma silhueta antropomorfa, de
geral muito parecida com a do grupo “Camu- membros dobrados abertos. Esta mesma silhueta
tins”. O aspecto visual é, no entanto, bem aparece em outros grupos, de forma mais evi-
diferente – em parte pela utilização de linhas dente, seja em posição central, seja como motivo
simples e não dupla, e também, pela simplicida- inferior. Lateralmente, os dois quadriláteros que
de maior dos elementos de reforço, que contras- sugerem orelhas apresentam internamente uma
ta com o aspecto barroco das tangas do grupo versão reduzida do rosto central. Em algumas
“Camutins”. Distinguimos duas variantes. peças, elementos de reforço nas linhas em forma
O motivo do registro superior é sempre cha- de gancho as fazem parecer com patas de insetos.
pado. Na variante principal, o registro interme- Outra variante agrupa apenas três peças,
diário é sempre ocupado por ampulhetas – estas, cujo registro médio é formado por um zigue-
separadas por traços (seja verticais seja, mais -zague, enquanto a figura zoomorfa central é
frequentemente, horizontais) eventualmente tratada de forma original.
pisciformes. Em todas as pecas, o registro prin- Quatro peças apresentam elementos tanto
cipal apresenta a face canônica, com um rosto do grupo “Camutins” (parte dos traços dupli-
central. Os olhos costumam ser indicados por cados; morfologia do animal que representa o
elementos muito pequenos e discretos: ponto, nariz), quanto do grupo de “Corpos imbrica-
micro quadrilátero ou micro-círculo, no meio de dos”. De fato, podemos considerar que os dois
uma “órbita” formada por uma linha quebrada grupos anteriores são muito próximos e formam
terminada em gancho. O nariz deste rosto apre- um “supergrupo” (“A”). (Fig. 12).
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delas, tão parecidas entre si que somente podem ção das peças tripartidas, fica difícil identificar
ser diferenciadas pelo seu registro superior), o tema decorativo do registro inferior em alguns
quatro cabeças reptilianas juntam-se no centro exemplares, mas trata-se geralmente da evocação
do rosto para circunscrever a boca. Em outros de um ou dois corpos humanos de formato
dois exemplares, o corpo das serpentes circunda retangular e membros dobrados, definidos pelo
o rosto, enquanto as cabeças sobem no meio espaço entre polígonos desenhados (quadriláteros
dele para figurar o nariz. Nos demais artefatos, ou hexágonos). Diminutos rostos pentagonais
a cabeça de cobra também figura o nariz, porém podem também ser reconhecidos neste campo.
cada uma de forma original. Nota-se, numa tan- Pastilhas de tinta substituem as costumeiras
ga, que o zigue-zague do registro médio determi- “aspas” de reforço de linha. Várias destas tangas
na triângulos com elementos internos que, eles apresentam uma tinta muito mais espessa que
mesmos, parecem aludir a uma cabeça ofídica. aquela utilizada nas demais categorías decora-
O campo superior das peças deste grupo tivas. Mesmo assim, os desenhos destas peças
pode tanto apresentar elementos chapados costumam ser bastante alterados e a cor da
quanto hachurados. O campo médio nunca tinta esmaecida – como se os pigmentos fossem
mostra ampulhetas; o zigue-zague apresenta particularmente frágeis.
fórmulas variadas; o campo inferior também.
Mesmo a estrutura do campo principal apre- Grupo da boca dentuda
senta grande variabilidade; apenas o sub-grupo
formado por três peças segue um padrão estrito Cinco peças, todas incompletas, apresentam
(com mesma forma de olho, boca etc.). uma face cuja boca, largamente aberta, apresen-
Consideramos que os dois grupos anterio- ta dentes triangulares enquanto o nariz é repre-
res (nariz em ⊥ e nariz de cobra) formam, eles sentado por um largo retângulo completamente
também, um supergrupo (“B”). pintado. Este nariz está sempre ligado por um
traço curto vertical à última das linhas que
Grupo com decoração tripartida formam o registro médio. Nos maiores fragmen-
tos, que apresentam o registro superior, este tem
São dezesseis peças, inclusive todas aque- seus elementos quadrangulares e reticulados.
las de forma 3. Apresentam uma morfologia Isto, além do fato de o registro “médio” estar
geral mais arredondada que as demais (mesmo ocupado por simples linhas paralelas, sugere
quando entram na categoría 1). O campo supe- que o suporte seja de forma 2.
rior é muito largo; nunca apresenta elementos
quadrangulares, mas triângulos particularmente Grupo com diagonais dominantes
estreitos e pontudos, sempre pintados com tinta
chapada. O tema “ampulheta” é característico Este grupo reúne peças bastante diferentes
do segundo registro (aparece até na única peça umas das outras, que não apresentam uma
que apresenta sigue-zague, entre as dobras do figuração de rosto e cuja estrutura é caracteri-
mesmo). Este segundo registro é normalmente zada pela obliquidade. Em quase todas aparece
muito largo e migra para a faixa central da peça. o registro superior clássico, mas, abaixo deste,
Volutas elaboradas com ganchos e cujas linhas o campo decorativo é unificado. Quatro destas
costumam ser reforçadas por pastilhas de tinta tangas têm a forma 2, sendo duas delas muito
adornam as extremidades ou os interstícios parecidas entre si, utilizando os mesmos ele-
entre os elementos em forma de X. mentos escalonados – diferenciam-se apenas na
Em razão da situação central do registro forma de simetria utilizada. Numa quarta peça,
“médio”, o registro principal migra para a parte o tema da ampulheta, tratado de forma original,
inferior da peça, e as tangas deste grupo não invade o campo principal enquanto na quinta,
apresentam as costumeiras linhas horizontais são losangos com cruz central que monopolizam
que marcam o registro inferior nas outras a cena. Duas formosas tangas apresentam três
categorias. Em razão da frequente má preserva- alinhamentos de elementos poligonais cujo
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encaixe por meio de linhas diagonais provoca diversas tangas apresentam entre si semelhanças
um efeito muito original dentro do universo estruturais ou temáticas suficientes para sugerir a
estudado. (Fig. 14) existência de outros grupos, que novos achados
poderão eventualmente validar, caso o número de
Tangas não classificadas em grupos exemplares característicos aumente.
Por exemplo, duas tangas de forma 1, apre-
Quase um terço das peças com o campo sentam uma dissimetria dinâmica no zigue-zague
principal legível não se insere nos grupos que pro- do registro médio quebrado, onde o zigue-zague
pomos. Todas elas, no entanto, compartilham o é tratado também de forma não canônica. O
código geral que tentamos desvendar: organização campo principal de uma peça apresenta uma
tetrapartida, elementos canônicos dos registros compartimentação vertical com simetria de
superior, médio e inferior. O rosto aparece sempre translação, sem que haja sugestão de um rosto.
no campo principal, porém existe neste registro Infelizmente, o registro principal de outra peça
uma variabilidade que expressa um grau de liber- quebrada não pode ser reconstituído de forma
dade maior para os(as) pintores(as). Mesmo assim, satisfatória, porém a parte visível é parecida.
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Quatro tangas também formam um con- pientes cerâmicos: temas e fórmulas decorativas.
junto homogêneo, no qual o elemento central Não pretendemos dedicar mais de algumas li-
é muito discreto, privilegiando-se dois com- nhas a este ponto. Inicialmente, pode-se frisar a
partimentos laterais retangulares em forma de ausência dos relevos (incisões e excisões associa-
“portas” decoradas. das ou não à pintura) comuns entre as vasilhas
Três tangas propõem um modelo muito espe- decoradas. Esta diferença, no entanto, pode-se
cífico, no qual três quadrados de tamanhos seme- justificar pela pouca espessura das tangas e sua
lhantes, todos marcados por uma cruz, represen- forma de uso. Para serem bem visíveis, incisões
tam os olhos e a boca. O nariz e as sobrancelhas, teriam de ser muito profundas, fragilizando as
por sua vez, são representados por uma forma peças que são pouco espessas. A ausência de gra-
que sugere um membro dobrado tridigitado. O vuras deve refletir, portanto, uma razão técnica
registro inferior de duas destas tangas apresenta e não uma exigência ideológica.
um zigue-zague (repetindo o tema do seu registro Quanto aos temas zoomorfos, são de identi-
médio) – uma exclusividade destas peças. ficação particularmente delicada nas tangas em
razão da sua forte estilização.
As peças “gêmeas” Duas figuras frequentemente representadas
são comuns às tangas e às vasilhas – particular-
Alguns exemplares são tão parecidos entre mente, os sauros (sejam eles lagartos ou jacarés)
si que parecem não apenas apontar regras com- e as cobras. As representações que para nós
partilhadas, mas reproduzir um mesmo modelo lembram “insetos”, com antenas bem destacadas
com variantes apenas de detalhe mínimo. Al- também ocorrem tanto em vasilhas quanto em
guns dos casos mais evidentes encontram-se no tangas. A. Roosevelt, por exemplo (1991, fig.
grupo das peças “imbricadas”, nas quais apenas 1.18, -d), reproduz uma figura que só pode ser
um detalhe varia entre duas peças (seja a forma interpretada como uma borboleta com antenas
da boca: retângulo ou losango), seja a posição espiraladas e asas representadas por cobras enro-
das antenas/patas anteriores da figura biomorfa ladas. A mesma figura que identificamos como
(abertas ou fechadas), seja a “ampulheta” (com “barata” ocupa uma posição central num prato
elementos vazios ou preenchidos por tinta) etc.. exposto no Museu do Forte em Belém.
As tangas com decoração diagonalizada, com Outros temas presentes nas vasilhas não
representações de quatro cobras, ou de rosto se encontram nas tangas. Por exemplo, a figura
com boca e olhos quadrados fornecem também da coruja, tal como é representada nas urnas
bons exemplos. Outras duas peças se distinguem Joanes Pintado; apenas um fragmento evoca
apenas pela orientação de um pequeno elemen- para nós esta ave, porém de forma totalmente
to, que representa o “olho” das faces. diferente. É possível, no entanto, que os grandes
Estas semelhanças tanto podem expressar blocos quadrangulares ou losângicos, que for-
a existência de “pares” de objetos necessários mam os “olhos” dos rostos no campo principal
para certas cerimônias, quanto a repetição de das tangas, tenham sido uma forma de lembrar
um modelo por uma mesma pintora – ou um o tamanho desses órgãos neste animal noturno.
membro do seu “ateliê”. De fato, levando em Neste caso, a coruja estaria onipresente, porém
conta a falta de informações sobre a origem de de forma totalmente diferente daquela encontra-
muitos exemplares, não se pode sequer descar- da na maioria das urnas. O mesmo ocorre com
tar a priori a existência de falsificações recentes o escorpião – tema destacado em algumas cerâ-
a partir de um modelo antigo. micas (por exemplo, no casco de representações
de tartaruga); sobretudo, como mostrou Magalis
(1975), um desenho esquemático deste animal
Tangas e recipientes pintados é muito utilizado em estatuetas e nas urnas (do
tipo 2 de Barreto (2009) para representar o glo-
Pode-se indagar se a decoração das tangas bo ocular. Ora, este artrópode parece totalmen-
obedece às mesmas regras encontradas em reci- te ausente das tangas – apesar de um pequeno
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entre duas categorias – uma delas, pintada que os arqueólogos gostam de imaginar asso-
e a outra, apenas engobada – embora esta ciada ao xamanismo ou às linhagens aristocrá-
especialização possa ter existido em determi- ticas do Baixo e Médio Amazonas (o que não
nados sítios. Existem três morfologias carac- significa que estas instituições não tenham
terísticas com algumas fórmulas decorativas existido durante a Fase Marajoara). Talvez co-
exclusivas ou preferenciais de uma das três. bra e lagarto, com seu corpo filiforme, sejam
Por outro lado, mostramos a importância do uma alegoria do cordão umbilical. Afinal, o
motivo “ampulhetas” ao lado do zigue-zague ventre feminino (supostamente representa-
no segundo registro e da diferenciação entre do no registro superior) é o receptáculo do
as várias formas de tratar estes motivos do qual os humanos (representados pela cara do
friso superior. De fato, eles não nos parecem registro principal) surgem, com intermediação
remeter a desenhos de peles de cobra, embora do cordão (presente na forma da cobra no re-
a sinuosidade do zigue-zague possa aludir a gistro médio e talvez representado pela espiral
um corpo reptiliano. Em contrapartida, as em certas faces). Freudianos não deixariam de
alusões a seres vivos são bem mais claras no sugerir um simbolismo sexual para a cobra.
registro principal. Acreditamos ter consegui- Notemos a ausência também do peixe-boi, de
do contribuir ao entendimento da temática peixes e de roedores no vocabulário gráfico. Ir
que caracteriza as tangas marajoaras, particu- além destas observações significaria entrar em
larmente com a identificação do rosto como conjecturas impossíveis de serem testadas atu-
elemento central – e, provavelmente, princi- almente, divagações incapazes de esconderem
pal – da quase totalidade das tangas pintadas. nossa impossibilidade de acessar o significado
Este rosto é formado da combinação de vários do código marajoara. Em compensação, está
elementos canônicos, alguns dos quais são ao nosso alcance o reconhecimento dos ele-
zoomorfos. Entre estes, os mais facilmente mentos que o constituem e a estrutura da sua
identificáveis são cobras e lagartos; outros articulação.
seres, embora apresentem por vezes quatro
patas, são provavelmente insetos. De fato, as Implicações das categorias de decoração
fórmulas decorativas são pouco numerosas,
embora a criatividade das pintoras se expresse Um dos nossos propósitos principais, a
através dos detalhes da sua execução. determinação de estilos cronológicos e/ou
regionais, foi frustrado pela falta de elementos
Implicações simbólicas da temática para avaliar sua idade. Os primeiros coleto-
res (Hartt 1876; Derby 1879; Netto 1885)
Como interpretar os temas figurativos notaram que, em Pacoval, as cerâmicas que
que parecem predominar? Não há dúvida que apresentariam a decoração de maior qualidade
cobra e sauros sejam personagens essenciais encontrar-se-iam exclusivamente nos níveis
em todas as mitologias amazônicas atuais e mais antigos (Kern 2008); mesmo assim, não
pré-históricas, e ambos são bem representados falavam especificamente das tangas. B. Meggers
nas vasilhas marajoara. Por oposição, frisamos e C. Evans resgataram esta observação, que
a pouca visibilidade nas tangas – se não a total reforçava sua hipótese da importação seguida
ausência – das representações de ave (talvez, de degenerescência da cultura marajoara. A
no entanto, figurada num único fragmen- hipótese de um rápido declínio da arte gráfica
to), do escorpião e da onça. Mesmo raro no não se tendo sustentado e na falta de qualquer
ambiente alagadiço da planície oriental de Ma- datação de tangas achadas em escavações,
rajó, o grande carnívoro não está ausente da não há como saber se as observações feitas no
ilha e devia ser bem conhecido dos moradores século XIX aplicam-se às peças de vestuário;
dos tesos. Voláteis, por sua vez, não faltam em nem se correspondem aos acasos de uma única
nenhuma parte da ilha. O bestiário das tangas escavação, ou a uma realidade pré-histórica no
não privilegia, portanto, a dupla de animais sítio de Pacoval.
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sendo destruídos pelo pisoteio das manadas de do MAE-USP. D. Schaan (UFPA), que nos
búfalo e pelas escavações ilegais. As delicadas forneceu a ilustração de uma das suas apresen-
tangas atualmente disponíveis para estudo, em tações; A. Delpuech (Musée du Quai Branly,
sua maioria retiradas dos tesos sem contextu- Paris), que proporcionou uma cópia dos artigos
alização antes de chegar às instituições ou aos de Mordini. A. de Tugny (UFMG), com quem
colecionadores, perderam a maior parte do seu discutimos a morfologia das tangas. Rosângela
poder para guiar nossos passos no caminho do de Oliveira, para a revisão do texto. T. Fossari
redescobrimento da sociedade marajoara. e Vanilde Guizoni, do Museu Universitário da
UFSC. D. Schaan, que nos ofereceu generosa-
mente cópia da sua documentação. A Diretoria
Agradecimentos dos Museus do Arari (Maria José da Conceição
Gama; Sandra Solange Souza; José E. Rabelo de
Agradecemos aos colegas e responsáveis que Souza; Otaci Gemaque), bem como a Claudia e
nos abriram suas coleções e aos técnicos que Paulo Câmara. Aos Diretores e funcionários dos
nos ajudaram: V. Guapindaia, Regina Farias, Museus das Gemas (Ana Cristina ResqueMei-
Edna Moutinho Amauri Matos e Jorge Mardock relles) e do Forte (Samuel Sostenes; Dauseane
Neto, do MPEG; M.B. Florenzano, V. Wesolo- Ferras) de Belém. A Dona Inez, viúva do famoso
wski, Luis Carlos Borges e Ana Carolina Vieira, oleiro de Icoaraci, Mestre Cardoso.
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