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R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.

De Cobras e Lagartos: as tangas marajoaras

André Prous*
A. Pessoa Lima**

PROUS, A.; LIMA, A.P. De Cobras e Lagartos: as tangas marajoaras. R. Museu Arq.
Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.

Resumo: As tangas em cerâmica são emblemáticas da Fase Marajoara.


Estudando mais de 140 exemplares decorados e dezenas de peças simples,
identificamos as regras que regem a organização da decoração, assim como
as fórmulas gráficas utilizadas em cada registro decorativo. Mostramos que
os desenhos do campo decorativo principal são figurações altamente estiliza-
das de rostos, representados através do sistema de kennings. A coincidência
entre tipo morfológico, organização do espaço pictural, recursos gráficos e
elementos figurativos permite inserir as tangas em sete grupos tipológicos,
cujo significado (cronológico, regional, social) é discutido dentro do contexto
marajoara. Apresentamos as marcas de utilização, enquanto nossos colabora-
dores realizam réplicas em cerâmica e utilizam-nas par verificar sua adequação
à anatomia feminina.

Palavras-chave: Tangas de cerâmica – Fase Marajoara – Arqueologia amazô-


nica – Pintura em cerâmica.

Introdução Archivos do Museu Nacional já apresentava


um artigo sobre estes artefatos (Hartt 1871,

D esde o final do século XIX, as tangas


em cerâmica encontradas nos tesos
da ilha de Marajó atraíram a atenção dos
1876). (Fig. 1)1
Desde então, as tangas Marajoara são
mencionadas em todas as publicações que
primeiros estudiosos da arqueologia amazô- tratam da arqueologia da foz do rio Ama-
nica. A tal ponto que uma delas era reprodu- zonas ou da arte pré-histórica brasileira
zida em 1871 na revista American Naturalist em geral. Esses trabalhos, no entanto, não
e que, no Brasil, o primeiro volume dos

(1) As ilustrações (fotografias e desenhos) são dos autores. O


desenho da Fig. 15 é reproduzido de Schaan 2001; o da Fig.
(*) Universidade Federal de Minas Gerais. CNPq; Mis- 7 é reproduzido de Ramos 1932. As peças que ilustram as
são Arqueológica Franco-Brasileira de Minas Gerais. pranchas estão conservadas nas coleções do MAE/USP, do
<aprous80@gmail.com> Museu Paraense Emílio Goeldi, do Museu Nacional (dese-
(**) Setor de Arqueologia pré-histórica da UFMG, Mestrando nhos), do Museu Universitário da UFSC, do Museu Pe. Galo
na UFPA. <lima.angelo@gmail.com> de Cachoeira do Arari e do Museu do Forte.

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Fig. 1. Mapa dos sítios da Fase Marajoara.

focalizaram essencialmente as tangas (Barata, 1. Revisão bibliográfica e levantamento de


1952; Meggers e Evans 1957; Barbosa Rodri- coleções
gues 1892; Costa 1939; Herança 1984), ou
apresentaram apenas uma amostra reduzida O. Derby e seu colega Bechley, visitando o
(Hartt 1876; Mordini 1929; Palmatary 1950), teso de Pacoval nos anos de 1870, encontraram
mesmo quando tratavam de interpretar esses uma tanga de cerâmica pintada, que foi depo-
artefatos (Schaan 2003). Os autores pouco sitada no Museu de Etnografia Comparada do
se interessaram pelos grafismos desenha- Peabody Museum (Cambridge, Mass.). Logo
dos no campo decorativo principal; foram depois, C. Hartt (1871) publicou desenhos
simplesmente qualificados como geométricos legendados deste tipo de peças. Mordini (1929 e
– enquanto, desde o primeiro olhar, tivemos 1934), comentando uma dezena desses artefatos
a certeza de que a maioria das peças apresen- proveniente das escavações realizadas pelo cole-
tava representações da figura humana. Desta cionador C. E. de Oliveira, notou a recorrência
forma, parecia haver espaço para um trabalho do motivo retangular / triangular da banda
mais abrangente que pudesse se sustentar a decorada superior das tangas provenientes de
partir de um universo maior, quantitativa- Pacoval, e sua ausência nas tangas encontradas
mente representativo. Uma oportunidade no teso do Severino. Também salientou outra
de consultar a coleção do Museu Paraense diferença entre a produção dos dois sítios, consi-
Emílio Goeldi ressuscitou um antigo projeto derando a arte de Pacoval mais arcaica (tanto na
nosso de abordar a iconografia marajoara. qualidade da queima quanto na realização dos
Iniciamos então um levantamento geral das desenhos) que aquela do Severino. Interpretou
tangas depositadas em Museus e coleções, o desenho central de uma das tangas deste sítio
através de desenhos feitos à mão, fotografias como uma possível representação esquemática
e observações sistemáticas. Esta pesquisa foi de corpo humano – de fato, a peça menciona-
completada por uma revisão (provavelmente da pode sugerir uma pessoa com os membros
incompleta) da bibliografia e de sites da IN- escolhidos. Salientou também a oposição morfo-
TERNET – dois deles, inclusive, destinados a lógica entre as tangas policromas (mais pesadas
vender peças. Desta forma, o presente ensaio e com maior cava) e aquelas apenas cobertas por
se apoia num universo de 149 exemplares um engobo vermelho. Em função de grau de
pintados, 77 fragmentos com desenhos diag- desgaste dos orifícios de suspensão, B. Meggers
nósticos e 94 tangas monocromas (incluindo e C. Evans (1957) afirmam que as primeiras
algumas falsificações e imitações). seriam mais usadas no cotidiano e as outras,

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ritualmente. Algumas linhas adiante, os mesmos peças monocromas); a maioria estando exposta
pesquisadores sugerem – de forma algo contra- ao público, desenhamos e fotografamos a face
ditória – que a variação de frequência relativa visível e pudemos consultar suas fichas, mas não
dessas duas categorias seria de ordem cronológi- as pudemos manusear.
ca. Estes autores são os únicos a comentar a face Não estudamos a coleção do Museu Nacio-
interna dessas peças de vestuário, verificando nal, que vem sendo analisada por T. Andrade
que as vermelhas apresentam engobo interno e Lima. Da coleção do Museu Paraense Emilio
externo, enquanto as policromas não apresen- Goeldi, vimos 14 tangas policromas e 13 apenas
tam engobo na parte central da face interna. D. engobadas. Através da bibliografia, pudemos
Pahl Schaan (2001), por sua vez, interpretou o observar os desenhos das tangas do Peabody
motivo superior como representação de genitá- Museum, do American Museum of Natural
lia feminina e, a partir da sugestão de um zoó- History, da Heyde Foundation, do National Mu-
logo, considerou os motivos da segunda banda seum of Natural History, de algumas peças do
imediatamente abaixo da primeira, como sendo Museu Nacional do Rio de Janeiro (Hartt 1876);
representações esquematizadas de desenhos de H. Torres 1929; D. Schaan 2001), em sua maior
peles de cobra. D. Schaan, no entanto, se inte- parte provenientes de Pacoval do Arari. B. Me-
ressou particularmente pelas tangas, numa ótica ggers e C. Evans (1957) publicaram duas peças
de “arqueologia de gênero”. Considera que as policromas e as três vermelhas provenientes
tangas de cerâmica seriam reservadas a mulheres das suas escavações em Camutin; H. Palmatary
da elite – por serem essas encontradas essencial- (1950) ilustra oito peças policromas (além de
mente em tesos maiores, supostamente habi- dois fragmentos) e uma vermelha – então con-
tados pelos dirigentes da sociedade Marajoara. servadas na coleção Oliveira (Recife) – além de
Pela associação preferencial das tangas monocro- duas peças do Museu Etnográfico de Estocolmo.
máticas com as urnas funerárias e considerando Em sua dissertação de Mestrado, J. Troufflard
que sua curvatura seria menor, esta arqueóloga (2010) apresentou duas peças pintadas con-
supõe que pertenceriam a mulheres adultas e servadas no Museu Nacional de Etnologia de
casadas, enquanto as menores, policromas e Lisboa, e três do Museu Dr. Rocha, de Figueira
de forte curvatura, seriam usadas por meninas da Foz. D. Schaan forneceu-nos generosamente
durante a puberdade. sua documentação fotográfica pessoal, da qual
Várias coleções comportam tangas – in- constavam 17 peças que ainda desconhecíamos
teiras ou fragmentos – no Brasil e no exterior, e 16 fragmentos de Camutins. S. Rostain nos
parte da quais pudemos estudar diretamente. brindou com o desenho de sua autoria da tanga
A maior coleção parece ser aquela do ex- conservada no Museu Barbier-Mueller, de Gene-
tinto Banco Santos. Atualmente depositada no bra. Na INTERNET, finalmente, conseguimos
MAE-USP, comporta 53 peças inteiras desenha- consultar as fotografias de outras três tangas
das e dois fragmentos, assim como 59 apenas policromas e de uma engobada, sem indicação
engobadas de vermelho (das quais algumas pare- da coleção de origem. Daqui para frente, as
cem ser falsificações). Segundo Barreto (2009), peças provenientes dessas diversas fontes serão
as peças seriam provenientes do rio Anajás, no designadas pelo número que lhes atribuímos
oeste da região ocupada pelos tesos marajoara; dentro do nosso catálogo próprio.
esta coleção será daqui para frente designada Pretendemos, em futuro próximo, publicar
pela sigla MAE/BS. Analisamos as coleções um catálogo descritivo e ilustrado deste material.
do Museu do Marajó em Cachoeira do Arari
(oito tangas pintadas e numerosos fragmentos),
cujas peças seriam provenientes, sobretudo, 2. A matéria e a morfologia das tangas
da região de São Sebastião do Arari – na parte
central do domínio marajoara. Visitamos as Não é nosso propósito estudar as caracterís-
exposições do Forte do Presépio e do Museu das ticas técnicas de fabricação das tangas; apenas
Gemas em Belém (nove tangas pintadas e várias registramos que a grande maioria das peças

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fraturadas apresenta indícios de uma queima (um pouco mais de 2 cm para furos
totalmente oxidante, e uma cor de superfície laterais, um pouco mais de 1,5 cm para o
alaranjada. Pereira de Freitas (2009) realizou furo inferior.
uma análise por Fluorescência X das pastas
Tipo morfológico 2: Reúne quase ¼
de alguns exemplares conservados no Museu
das peças com desenhos. A altura destas
Nacional, verificando que se agrupam em dois
tangas é a mesma do tipo anterior (entre
conjuntos – mesmo assim, bastante parecidos.
9 e 13,5cm), mas os braços laterais são
Isto não é de se estranhar, na medida em que as
bem mais compridos, terminando quase
argilas são provavelmente todas procedentes dos
em ponta cônica alongada. As peças fi-
mesmos alúvios transportados pela correnteza
cam assim com largura maior, geralmen-
do curso inferior e da foz do rio Amazonas.
te entre 14 e 18 cm (as exceções medindo
Às duas categorias morfológicas já reconhe-
entre 12 e 13, ou entre 19 e pouco mais
cidas pelos pesquisadores acrescentamos outra,
de 20 cm). A relação largura/compri-
que pudemos observar na coleção depositada
mento é de cerca de 7/10. O raio de
no MAE-USP e no Museu de Cachoeira do
curvatura antero-posterior tende a ser
Arari, sendo que uma peça semelhante aparece
um pouco menor que no tipo anterior:
também registrada numa prancha de Meggers
deitada, a peça levanta-se raramente mais
& Evans (1957). Compararemos rapidamente
de 4,2 cm, embora as duas exceções al-
estas três formas básicas, considerando tratar-se
cancem o maior arqueamento individual
de formas aparentadas a triângulos, com um
entre todas as tangas (5,2 cm). A relação
lado superior horizontal e dois lados oblíquos –
entre a flecha e a largura é da ordem de
direito e esquerdo – simétricos.
¼. O lado superior das peças deste tipo
Tipo morfológico 1: Congrega quase morfológico apresenta quase sempre um
três quartos das peças com desenhos abaulamento central – discreto, porém
pintados. Corresponde a peças a grosso perfeitamente visível – enquanto os la-
modo triangulares, com dimensões me- dos oblíquos apresentam uma reentrân-
nores em relação aos demais tipos. Tem cia cuja cava costuma ser mais marcada
largura entre 11 e 17 cm (tendo a grande e de curva mais contínua que aquela do
maioria entre 12 e 14 cm) e altura entre tipo anterior. Este abaulamento talvez
8,6 e 13,6 cm ( geralmente entre 9,5 e 12 não seja procurado intencionalmente;
cm). A relação entre altura e largura é da poderia apenas decorrer da preparação
ordem de 12/14. O lado superior é reto, das “pontas” laterais. Com efeito, estas
sendo os vértices laterais rombudos. O são arredondadas para apresentar um
ramo inferior tende a ser mais largo que formato quase cilíndrico, deixando em
aquele do tipo 2. Os lados oblíquos apre- relevo a parte central que se mantém
sentam-se suavemente cavados. Quando achatada.
a peça é colocada numa superfície plana,
Os furos laterais podem ser bastante
o ponto mais alto levanta-se acima desta
distantes das extremidades (até 3,4 cm),
entre 3,5 e 5 cm, o que corresponde a
provavelmente para diminuir os riscos de
cerca de 1/3 da largura da peça. Trata-se
quebra das pontas delgadas – acidente
da mais forte curvatura antero-posterior
muito frequente nas peças deste formato.
(ou arqueamento) relativa média entre os
três tipos. Algumas dessas peças apresen- Tipo morfológico 3: Muito mais raro,
tam, em sua parte central, uma discre- é representado por sete peças de tama-
tíssima saliência em calota de esfera, nho semelhante, cuja largura e altura são
aumentando a capacidade volumétrica quase equivalentes (11 a 13 cm de altura
do artefato. Os furos de suspensão estão e 12 cm de largura). Os lados pratica-
colocados a pouca distância das pontas mente não são cavados e os vértices são

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perfeitamente arredondados. A curva- friso superior estreito, enquanto o mesmo (com


tura antero-posterior é muito variável a mesma temática) é de largura média nas peças
(entre 2,4 e 4,2 cm). Todas as peças que de forma 1; este campo é mais largo ainda nas
apresentam esta morfologia ostentam peças de forma 3 ou com decoração tripartida.
a mesma fórmula decorativa tripartida O segundo friso, por sua vez, é praticamente
(descrita adiante). ausente – substituído por uma simples linha re-
Variante forçada na forma 2, enquanto se torna o campo
de decoração principal na forma 3, etc. Desde o
Nota-se que algumas peças apresen- século XIX, os autores afirmam que as tangas de
tam uma morfologia parecida em sua extremidades pontudas (nossa “forma 2”) não
parte superior com aquela das peças do apresentariam decoração pintada, recebendo
grupo 1, mas com uma altura equivalen- apenas um banho vermelho), enquanto aquelas
te à largura; sua cava é pouco pronun- de forma 1 seriam sempre decoradas com dese-
ciada. Não se trata de um acaso, mas de nhos. O estudo das diversas coleções mostra, no
uma variante significativa, pois estas mes- entanto, que esta oposição não é válida.
mas tangas apresentam uma organização As peças de tipo morfológico 3 são, por sua
tripartida do espaço decorativo diferente vez, todas policromas – com exceção de uma delas,
do que ocorre nos demais artefatos deste que pudemos observar apenas a partir de uma
grupo1 - sendo semelhante àquela das ilustração pouco legível), qualificada de “plain” por
peças do grupo 3. (Fig. 2). Meggers e Evans (1957); talvez esta seja inacabada.
Algumas características de decoração são Nota-se que, entre as poucas tangas apenas
correlacionadas à morfologia e à decoração. Por engobadas de branco depositadas nos Museus
exemplo, as peças de forma 2 apresentam um Goeldi e do Forte, há tanto exemplares de mor-

Fig 2. Morfologias das tangas.

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fologia 1 quanto de morfologia 2. Talvez se trate tripartido e não quadripartido. Os três registros
de tangas que eram destinadas a receber dese- superior, médio e inferior costumam, então, ser
nhos, mas cuja decoração não foi terminada. de altura equivalente, e o espaço de separação
entre cada um é muito maior que nas demais
peças.
O espaço e os elementos gráficos O registro inferior corresponde ao estreito
ramo inferior da peça, ponta na qual se abre o
O espaço terceiro furo de suspensão. É marcado geralmen-
te por linhas simples que não chegam a formar
A não ser raras exceções, a face externa das figuras.
tangas pintadas foi dividida pelas artistas (con- Veremos mais adiante que cada um desses
sideraremos a priori – embora sem nenhuma registros é decorado de forma específica.
certeza – tratar-se de mulheres; por isto utiliza- Em cinco peças apenas verifica-se a unifica-
remos o feminino daqui para diante) em três ção dos campos “médio”, “principal” e “infe-
ou quatro faixas horizontais de largura desigual, rior” através de uma decoração contínua.
delimitadas por linhas horizontais e geralmente As pintoras marajoara tendo horror ao
separadas uma das outras por um estreito espa- vazio, os espaços que separam os temas signifi-
ço não desenhado. cativos estão ornados por pequenos elementos
O registro superior corresponde à maior adventícios que não parecem ter outra que
largura da peça; costuma ter cerca de 2 centí- função que a de preencher os interstícios.
metros de altura nas peças de forma 1; é muito Os desenhos são elaborados para se inse-
mais estreito na forma 2, enquanto é bem mais rirem na forma triangular da tanga, segundo
largo (ocupa quase um quarto da altura dela) um eixo vertical em relação ao qual as figuras
nas tangas de forma 3. Neste registro abrem-se apresentam uma simetria espelhada. Apenas cin-
os dois furos superiores de suspensão. Apresen- co peças fogem a esta regra, por seguirem uma
ta quase sempre um elemento central reproduzi- lógica de diagonalização. Enfim, notamos que
do lateralmente em posição inclinada, de forma os elementos de desenho não se completam nos
simétrica. limites do suporte, mas ficam em aberto – da
O segundo registro, que denominamos mesma forma que uma paisagem vista de uma
médio, é decorado por um friso. Nas peças de janela acaba sendo “recortada” pelos limites da
morfologia 1, este é o mais estreito de todos mesma.
os campos decorativos; nas peças de forma A face interna das tangas pintadas não apre-
2, acaba sendo reduzido a uma simples linha senta decoração, mas quase sempre uma faixa
reforçada de separação. Nas peças de morfologia periférica de mesma cor que o engobo externo,
3, pelo contrário, desloca-se para a parte central aplicada por pincel de forma muitas vezes pouco
da tanga, torna-se muito largo e o registro mais cuidadosa. Na grande maioria das peças, esta fai-
vistoso. xa tem entre 0,5 e 1,5cm de largura, mas pode
O registro principal ocupa a parte central ser também um pouco mais invasiva. Em cerca
da peça; é a faixa decorada mais alta de todas e de um quarto das peças, no entanto, existe um
que ocupa a maior superfície, sendo mais alta verdadeiro banho de cor geralmente esbranqui-
– embora menos larga – que as duas anteriores. çada, mas eventualmente vermelha ou até cinza
Este registro costuma apresentar um motivo ou preta (de carvão?) que recobre toda a face
principal inserido num retângulo vertical e cen- interna. Sobre este banho é frequente ter sido
tral, flanqueado por elementos laterais simétri- acrescentada a faixa periférica de cor branca ou
cos inscritos em quadriláteros. creme.
As tangas de forma 3 e algumas poucas No entanto, a maior parte das tangas
peças de forma 1, no entanto, não apresentam apresenta hoje, no triângulo central interno, a
o grande registro “principal” na parte central cor natural da cerâmica – apenas intensificada
da peça. Nestes exemplares, o espaço gráfico é pelo alisamento ou por um leve polimento. Em

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poucos casos, quando a faixa periférica é mais código, pois ficou rapidamente evidente que o
larga que 1,5 cm e apresenta limites indecisos colorido se modificava com o tempo e a exposi-
e alguns vestígios de tinta aparecem no triân- ção ao intemperismo. De um setor ao outro do
gulo central, pode-se perguntar se as peças não campo decorado, uma mesma linha pode passar
teriam sido engobadas internamente. A tinta na progressivamente de um tom escuro (marrom
parte central teria então desaparecido em razão quase preto, como se fosse de manganês) para
dos processos de limpeza. A fragilidade das um vermelho vivo ou vice-versa; ou de um
tintas, no entanto, torna improvável que esses vermelho forte para uma cor desbotada (desde
artefatos tenham sido normalmente lavados. alaranjado para rosado, ou ocre amarelado),
As tangas não pintadas – apenas engobadas chegando a descolorir-se completamente. Esta
externamente – apresentam as mesmas caracte- variação pode depender da diluição da tinta,
rísticas internas; no entanto, não chegamos a de fenômenos de oxidação, da exposição à luz
registrá-las sistematicamente. (Fig. 3). e de eventuais contatos acidentais com água ou
com o suor. É também possível que certas peças
Tintas, cores e sua aplicação com tons particularmente esmaecidos, hoje
amarelado claro ou quase creme tenham sido
As tangas que apresentam desenhos em pintadas com pigmentos vegetais (urucum?),
sua parte externa foram sempre decoradas por mas nenhuma análise foi realizada até agora
aplicação de tinta, nunca por incisões ou exci- para identificar os componentes das tintas. O
sões (enquanto estas técnicas são frequentes nas engobo das peças com desenhos é sempre de
vasilhas marajoaras decoradas). cor clara: branco ou creme; por vezes marfim,
De fato, e embora se fale tradicionalmente rosado, amarelado ou cinzento. As peças apenas
de “tangas policromas”, os desenhos são sempre engobadas de vermelho, por sua vez, apresen-
vermelhos, aplicados sobre engobo claro. Trata- tam esta cor em tons geralmente escuros (ver-
-se, de fato, de desenhos monocromos. melho vinho). O aspecto fosco ou levemente
Os traços dos desenhos aparecem exclu- brilhante depende provavelmente das condições
sivamente em tons de vermelho, que variam de preservação. Uma tinta branca (levemente
desde uma cor escura, quase marrom, até um cinzenta ou amarelada) foi por vezes utilizada
ocre claro. Não registramos as cores exatas com para preencher o espaço entre os traços para-
lelos que compõem as linhas du-
plas de um dos estilos gráficos;
em outros casos, parece ter sido
utilizada para este mister a mes-
ma tinta dos desenhos, apenas
mais diluída – produzindo um
tom levemente rosado.
Uns poucos traços brancos
discretos, como se fossem guias
para um esboço, ocorrem em
uma peça que mereceria um
estudo especial. Os traços de
desenho nunca são muito finos;
embora haja algumas peças que
apresentem desenhos mais deli-
cados de 0,5 mm de largura, os
traços da maioria delas medem
entre 0,8 e 1,2 mm; em raros
exemplares têm quase 2mm de
Fig. 3. organização dos campos decorativos. largura.

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A tinta mostra-se geralmente pouco espessa; O registro superior


no entanto, várias tangas com decoração tripar-
tida e de forma 3 apresentam uma tinta excep- Já salientamos que as pintoras determina-
cionalmente espessa (n° 45, 116). vam a altura do registro gráfico superior em
função da categoria morfológica da tanga (maior
Os elementos gráficos para a forma 3, estreita no caso da forma 2 e
intermediária para a forma 1). Apenas dois tipos
Os traçados são lineares, privilegiando as de motivos são utilizados nesta faixa.
linhas retas; estas são paralelas ou, quando se O mais comum (ocorre em mais de 80% das
cortam, fazem-no geralmente em ângulo reto. peças) corresponde ao que seria uma evocação da
Formam desenhos lineares (cruzes) ou figuras genitália feminina. Trata-se de um retângulo aber-
geométricas fechadas (triângulos, quadriláteros, to na parte de cima, pintado bem no centro da
hexágonos), ou espiraladas (estas não são feitas faixa superior da tanga, que apresenta dois traços
com uma única linha curva, mas por uma suces- verticais paralelos em seu centro. Este mesmo tema
são de segmentos retos ou levemente curvos). As se repete lateralmente, só que inclinado de forma
linhas podem ser reforçadas de várias formas: por simétrica, de cada lado do modulo central, como
duplicação (duas linhas paralelas próximas uma da se formassem pernas abertas. Estes elementos são
outra, com preenchimento do interstício por uma separados uns dos outros seja por elementos trian-
tinta clara) ou por acréscimo de “aspas” transver- gulares (87% das tangas de forma 1) que podem
sais. Quando várias linhas duplas estão adjacentes, apresentar uma base bem larga ou bem estreita
articulam-se sempre como se fossem duas réguas dependendo do tipo de decoração do campo
em contato apenas com um ponto, não se tocan- principal, seja por quadriláteros (a quase totalidade
do nunca através da superfície terminal de uma das tangas de morfologia 2). Nas peças de forma 1,
das duas. Linhas oblíquas costumam ser marcadas tantos os triângulos quanto os quadriláteros estão
de um lado por pequenos triângulos que lhes dão sempre chapados, enquanto nas peças de forma
um aspecto escalonado. Nos ângulos, pequenos 2, costumam ser reticulados (em mais de 85% das
quadrados marcam a junção entre ocorrências), embora alguns sejam chapados.
traços perpendiculares, enquanto
triângulos diminutos marcam as
junções oblíquas – como se faz
para caracterizar os ângulos na
geometria moderna. As poucas
linhas curvas compõem o tronco
das figuras zoomorfas ou formam
volutas que adornam as extremi-
dades de figuras simples angulosas
– particularmente, “ampulhetas”,
eventualmente reforçadas por
pastilhas.
Algumas superfícies são
chapadas ou preenchidas por
hachuras, mas este recurso cos-
tuma ser reservado ao registro
superior. Nos demais campos
decorativos, as figuras lineares
predominam visualmente (a
não ser nas cinco peças “diago-
nalizadas”), sendo muitas vezes
exclusiva. (Fig. 4). Fig. 4. Elementos gráficos.

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O segundo tema possível, encontrado temas podem ter sido vistos como aparentados,
apenas em algumas peças, corresponde a um pois uma série de “X” ou ampulhetas pode ser
alinhamento de pequenos V, geralmente reu- lida como um duplo zigue-zague. Raros exempla-
nidos em uma única linha em zigue-zague. Nas res apresentam outra formula, na qual o motivo
tangas que apresentam esta particularidade, este nunca deixa de comportar uma estrutura algo
registro forma uma faixa extremamente estreita parecida com o zigue-zague.
ao longo da borda. De fato, o zigue-zague é o O tema mais frequente (ocupa 34 % dos
tema normal do registro médio. Podemos dizer campos médios observados) é, portanto, o zigue-
que, nessas tangas com zigue-zague na borda -zague. Pode aparecer na forma de uma linha
superior, o registro médio substitui o registro quebrada – simples ou dupla; pode ser flan-
superior; apenas sete peças, dentro dos mais de queada por triângulos isósceles que preenchem
140 exemplares observados, apresentam este o espaço superior e inferior; ou trata-se de um
tema deslocado – entre as quais quatro são mi- espaço vazio ziguezagueante entre dois alinha-
niaturas, provavelmente brinquedos de crianças mentos de triângulos – eventualmente adorna-
– ou peças de treino para pintoras inexperien- do por um elemento em forma de tridente. O
tes. (Fig. 5). zigue-zague também pode entrar na composição
de um motivo que evoca para nós – e para
O registro médio diversos grupos indígenas – um favo de mel ou
a escama hexagonal de casco de tartaruga, cujos
O registro médio costuma ser o mais estreito compartimentos internos (meios alvéolos, ou
de todos nas tangas de forma 1. Nas peças de for- meias escamas) são marcados por “aspas”.
ma 3, pelo contrário, torna-se tão larga quanto as O segundo motivo mais frequente (30%)
demais, e ocupa o espaço central. Nas tangas de corresponde ao desenho em forma de X ou
forma 2, este campo praticamente desaparece. de ampulheta. Este motivo também apresenta
Pode-se utilizar, nesta faixa um de dois mo- variantes: as ampulhetas podem ser separadas
tivos principais – morfologicamente parecidos: por traços verticais; por um traço horizontal –
zigue-zague, ou ampulhetas. De fato, esses dois geralmente reforçado por aspas transversais que
podem dar-lhe um aspecto bio-
morfo. Um desenho apresenta
até apêndices laterais que refor-
çam esta impressão. Ou então,
duas das extremidades dos X são
prolongadas por volutas (esta ca-
tegoria também pode apresentar
uma morfologia discretamente
antropomorfa, evocando um
corpo deitado); também podem
ser realçados os losangos virtuais
entre dois módulos em X.
Em 34% das tangas (inclu-
sive na quase totalidade daque-
las de forma 3), este registro é
assinalado apenas por duas linhas
retas paralelas muito próximas
ente si, reforçadas com aspas
ou, por vezes, unidas por curtos
traços transversais. Este duplo
alinhamento tem por função mar-
Fig. 5. Tema do campo superior. car a separação entre o registro

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superior e o registro principal, não se tratando da coleção T. Wild). Em 13% das tangas, a boca é
realmente de um registro decorativo. Apenas figurada por uma espiral ou um losango marca-
quatro peças apresentam uma quarta modalidade, do por uma cruz; ou, ainda, por um triângulo
na qual o friso é formado por elementos estrutu- pequeno (10%); uma figura sauromorfa é também
rados por linhas oblíquas. Esta fórmula cria um utilizada no lugar da boca (em 10% dos rostos).
dinamismo visual original que contrasta com as Apenas 6% dos artefatos cujo campo
simetrias de translação ou de espelhamento nor- principal evoca um rosto não possuem nariz
malmente utilizadas pelos marajoaras. (Fig. 6). figurado. Nas demais tangas, este apêndice é
frequentemente (58%) representado por uma
O registro principal figura zoomorfa vertical com os quatro membros
dobrados. Esta geralmente apresenta um corpo
Encontramos apenas duas categorias de alongado filiforme e espécies de antenas ou man-
decoração no campo principal. A primeira con- díbulas; sua forma evoca a silueta de um louva-
siste em uma composição em simetria espelhada -deus (apesar de ter apenas quatro membros).
cujos elementos compõem um rosto (provavel- Outras vezes, o corpo é retangular e o animal
mente humano), combinado com outros ele- se parece com uma barata, também de quatro
mentos figurativos (Prous 2007). A outra, muito patas; quando o tronco é biconvexo, a figura
rara, privilegia eixos oblíquos e pode evoluir lembra um sauro – jacaré ou lagarto. Em várias
para uma simetria rotativa. tangas, o nariz é figurado obviamente por uma
cobra de cabeça triangular. Em vez de uma figura
Os rostos zoomorfa, o nariz pode ser representado por um
espaço em forma de T invertido (⊥); o ramo ho-
A grande maioria (mais de 80%) das tangas rizontal do ⊥, eventualmente decorado por duas
pintadas evoca uma ou várias caras – humana ou espirais pequenas representando as narinas.
animal – cujos elementos são tratados de forma Os olhos são indicados por grandes figuras
convencional. A boca pode ser (menos de 20% em espiral ou por espaço quadrangulares (mais
das peças) sugerida apenas pelas mais altas das raramente, triangulares) preenchidos por peque-
linhas horizontais que ocupam o campo inferior. nos elementos: cruz ou figura vertical biomorfa,
No entanto, costuma ser indicada de forma mais cuja morfologia tanto pode sugerir um lagarto
evidente por um desenho poligonal. Por exemplo, quanto um inseto ou o corpo de um peixe.
por um retângulo com traço horizontal interno; Excepcionalmente, em algumas tangas, os olhos
em alguns casos, avistam-se nele triângulos que estão figurados por um pequeno retângulo com
acreditamos representarem os dentes (uma fór- apêndices biomorfos. Numa tanga muito original,
mula que encontramos até agora apenas em peças os olhos são figurados por dois rostos que parecem
interligados por uma dupla linha
hachurada – talvez uma represen-
tação de uma serpente bicéfala.
Nota-se de passagem que não
ocorre representação de escorpião
no lugar do olho, ao contrário do
que ocorre nas vasilhas marajo-
aras antropomorfas. Em alguns
casos, os olhos, nas tangas, são
figuras quadrangulares que, elas
mesmas, evocam caras menores
(com olhos, nariz e boca). Esses
elementos quadrangulares são por
vezes repetidos lateralmente, evo-
Fig. 6. Tema do campo médio. cando possivelmente as orelhas.

240
André Prous
A. Pessoa Lima

Tais jogos de utilização de animais para figurar te). Mesmo assim, veremos que a figura humana
um órgão, representações encaixadas uma na está presente nestas peças, embora de forma
outra (como se fossem bonecas russas) com minia- discreta. (Figs. 7, 8a e 8b).
turização e ressonâncias múltiplas
evocam os kennings típicos de
várias culturas andinas desde o
período Chavin. Finalmente,
notemos que, quando ocorre, o
elemento “cabeça de cobra” cos-
tuma apresentar-se repetido, em
simetria vertical espelhada.
Várias peças apresentam
siluetas antropomorfas inseridas
no meio da representação de
rosto: duas delas apresentam
um corpo inteiro em posição
semelhante à figura amazônica
“tangawa”; um fragmento apre-
senta um indivíduo filiforme
com braços dobrados e dedos;
sobretudo, antropomorfos com
os quatro membros divergentes
formando um X podem ser visto
nas tangas de olho gigante. Um
desenho poderia evocar a parte
central de um corpo feminino.
Uma última peça apresenta
quatro silhuetas humanas: uma
delas, de tipo “tangawa” é cruza-
da por outro corpo em forma de
Y com forquilha dupla; entre os
membros divergentes da primei-
ra figura ainda se veem peque-
nas figuras antropomorfas com
a cabeça colocada diretamente
acima das pernas (lembrando
algumas gravuras rupestres
encontradas nos afluentes de
margem esquerda do Baixo
Amazonas).
As tangas cujo registro
central não evoca um rosto são
aquelas que apresentam uma
divisão tripartida (incluindo,
portanto, as peças de forma
3) ou um campo unificado,
fugindo do modelo “normal” de
decoração tetrapartido (grupo
“tripartido” descrito mais adian- Fig. 7. Elementos zoomorfos do registro principal.

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R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.

As composições oblíquas
unificando os campos médio e
principal

Como mencionamos anterior-


mente, cinco peças excepcionais
apresentam um campo decorativo
unificado, no qual nunca aparece
a evocação de um rosto. Em três
delas, a composições é dominada
por eixos diagonais. Duas destas
tangas são, à primeira vista, tão
parecidas entre si que podem ser
creditadas a um mesmo autor,
ou à reprodução de um mesmo
modelo. Apresentam um motivo
escalonado formado por triângu-
los aplicados em linhas diagonais;
este motivo é reproduzido várias
vezes por simetria de translação
(numa delas) ou rotativa (na
outra). Uma terceira tanga tem
a seu espaço subdividido pelo cru-
zamento de linhas diagonais com
outras, horizontais; cada comparti-
mento assim criado é marcado por
um pequeno triângulo interno.
As duas últimas peças apresentam
um tema talvez derivado do moti-
vo em “favo de mel”.

O registro inferior

O registro inferior é aquele que


costuma apresentar a decoração
mais simples. Na maioria dos casos
(55% das peças observadas com
os desenhos deste campo ainda
legíveis, particularmente entre as
tangas de forma 1), trata-se apenas
de duas a cinco linhas horizontais
simples (28%) ou duplas (18%) ou,
ainda alternando-se duplas e sim-
ples (9% dos casos), bem espaçadas
entre si. Normalmente, uma dessas
linhas passa pelo furo inferior da
b tanga. A horizontalidade das linhas
se contrapõe à verticalidade do
Figs. 8 a e 8 b. Elementos antropomorfos - Faces. ramo inferior da peça.

242
André Prous
A. Pessoa Lima

Outra fórmula (17% das peças observadas) o que forma uma mancha colorida em meia-lua
é quase exclusiva das tangas que reunimos no cujo peso equilibra visualmente a peça quando
grupo de “divisão tripartida” (ver adiante). vista em exposição. No entanto, deve-se frisar
Privilegia linhas verticais que seguem o eixo que esta mancha vermelha não devia ser visível
morfológico da parte inferior, combinando-se, quando a peça estava instalada no corpo, com a
no entanto, com curtos traços horizontais per- pessoa em pé ou sentada. Este ponto vermelho
pendiculares. Muito mais raras são representa- terminal não aparece em nenhuma peça de
ções de cobra (5% dos registros inferiores) ou de forma 2 e apenas num exemplar de forma 3.
seres antropomorfos (9% dos mesmos), simples (Fig. 9).
ou geminados; nestes casos, os mesmos ofídios
ou antropomorfos estão também presentes no A face interna
campo principal. Poucas tangas apresentam
fórmulas originais, não repetitivas. A face interna das tangas nunca apresenta
A extremidade semi-circular do vértice desenhos; no entanto, a mesma tinta utilizada
inferior das peças de forma 1 costuma ser externamente como engobo é aplicada (de
pintada de vermelho (em 40% dos exemplares), forma por vezes cuidadosa, outras vezes, com

Fig. 9. Registro inferior.

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grandes pinceladas irregulares) no contorno nhecimento que temos do padrão morfológico


interno das peças, deixando geralmente de cor corporal das populações indígenas de Marajó
natural apenas um triângulo central – quase – já que estas desapareceram – seria realizar
sempre bem polido, ressaltando o contraste simulações computadorizadas com auxílio de
entre esta parte alaranjada ou vermelha e a peri- bio-antropólogos e técnicos de informática.
feria pintada de cor branca ou creme. Algumas Por enquanto, parece haver consenso implí-
peças, no entanto, tiveram o triângulo central cito de que estas tangas de cerâmica teriam sido
da face interna enegrecido. utilizadas por pessoas de sexo feminino; talvez
esta opinião seja precipitada, já que ninguém
parece ter verificado a possibilidade de algumas
Utilização e função das tangas delas se adaptarem ao corpo de uma criança de
qualquer sexo.
Quem utilizou e quem fez as tangas e sua
decoração? Haveria peças não “funcionais”, feitas por ou
para crianças?
Não há razão de se questionar a identifica-
ção das peças como proteção pubiana; segundo Três tangas da coleção MAE/BS – cuja
H. Palmatary, algumas teriam até sido encon- autenticidade não questionamos – assim como
tradas fixadas em urnas antropomorfas no local outra (n° 100), ilustrada por Mordini (1929) e
que representa a parte inferior do tronco – mas Palmatary (1950) e uma última, do Museu do
trata-se de relatos não controlados. Arari se destacam pelo seu tamanho diminuto
No entanto, faz falta um estudo especial (quatro delas) e sua decoração inusitada (todas
para avaliar objetivamente quem seriam os usu- elas). Poderiam ser brinquedos para crianças;
ários, confirmando sugestões já apresentadas, embora várias tenham perdido suas extremi-
porém nunca reforçadas por argumentos concre- dades laterais, sua largura original pode ser
tos e questões ainda não levantadas até o nosso estimada entre 8 e 10 cm, enquanto sua altura
estudo. Seria a forma 1 adequada para corpos varia entre 8 e 9 cm. A sua morfologia é “nor-
jovens e esbeltos, enquanto a forma 2, menor, mal” (uma delas apresenta a forma 1, os outras,
seria mais adequada para pessoas adultas e/ou a forma 2). Os três exemplares do MAE/BS
mais corpulentas? Eram estes artefatos feitos sob apresentam um campo superior incomum: tra-
medida ou haveria padrões quase estandardi- ços verticais ou barras inclinadas aludindo ao
zados, como sugerem os gráficos que fizemos a tema em ziguezague, porém com os elementos
partir das principais medidas? Qual seria a fun- em descontinuidade; não apresentam cam-
ção do abaulamento superior que caracteriza a po médio. A tanguinha da coleção Oliveira,
maioria das tangas de tipo 2? Poderiam ser estas ilustrada por Mordini e Palmatary, por sua vez,
peças utilizadas no cotidiano? Não pretendemos não apresenta nenhum dos dois campos mais
resolver aqui estas importantes questões, embo- altos. Nestas quatro peças, o campo principal
ra tenhamos consultado a seu respeito colegas propõe elementos “clássicos”, porém tratados
da área de bioantropologia e da moda, de forma de forma “diferente”. Numa delas se reconhece
preliminar. Antes de se emitir uma opinião bem a representação de uma “cara”, mas os olhos
fundamentada, seria necessário conseguir que são tratados na forma de X barrados em seu
várias pessoas de idades e constituição física centro por um colchete. Trata-se obviamente
diferentes experimentassem estas peças arque- de uma alusão ao tema ampulheta do campo
ológicas, o que parece muito complicado de se médio costumeiro, desvirtuado da sua situação
realizar. Testes de utilização preliminares, no en- (normalmente na segunda faixa), da sua função
tanto, foram realizados com réplicas por jovens (normalmente, cada X deveria ser um elemento
pesquisadoras de nossa equipe e seu resultado de friso) e com execução irregular (o colchete
está publicado neste volume (Rodrigues et al. mediano). O nariz em T é também executado
2011). Outra possibilidade, apesar do desco- de forma anormal, com exageração do que

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André Prous
A. Pessoa Lima

poderiam ser interpretadas como narinas. A vez, talvez tenha sido pintada por um homem.
miniatura da coleção Oliveira recebeu apenas Com efeito, há uma tradição bastante geral
uma figura, em forma de ampulheta. Na quarta de os homens e mulheres das terras baixas
tanguinha, uma figura biomorfa ocupa o sul-americanas desenharem de forma dife-
centro de simetria de uma das tangas, como no renciada. As mulheres expressando-se através
tema do “nariz-lagarto”; no entanto, o traçado de estilos geometrizantes e através de figuras
é largo e curvilíneo. Em todas as três miniatu- ortogonais, enquanto os homens tendem a
ras do MAE/BS pode se verificar a segurança fazer desenhos mais livres e curvilineares (Ri-
do traço: os pintores sabem usar seu pincel; beiro 1961). A decoração da tanga do Museu
no entanto, a execução dos traços ou a realiza- de Cachoeira do Arari, por sua vez, apresenta
ção dos elementos manifestam um desvio em uma tosca evocação de rosto, mas riscada com
relação aos padrões gráficos. Assim sendo, não traços grossos e inseguros, cujo desenho revela
pensamos atribuir estes “deslizes” à incapaci- uma pessoa ainda pouco habilidosa. Maior que
dade de crianças que estariam aprendendo a as anteriores (embora com curvatura muito
decorar as tangas; acreditamos que elas tenham fraca) e com furos apresentando marcas de
sido pintadas por pessoas já desenvolvidas desgaste, esta peça poderia ter sido utilizada
e com bom controle motor. As duas peças por uma pessoa mais crescida. Uma última
nas quais se verificam o desvirtuamento dos tanga irregular, de dimensões normais, porém
elementos gráficos, porém com utilização das de arqueamento muito fraco (3,7cm), carece
normas gráficas de desenho poderiam, talvez, do registro típico do campo superior. Abaixo
ser creditadas a mulheres. Estas preparariam do zigezague, mostra uma decoração do campo
para suas criancinhas tangas decoradas, mas principal aberrante, embora enquadrada por
privadas de elementos significativos proibidos dois grandes “olhos“ quadrangulares semelhan-
para pessoas não iniciadas. Sugerimos que a tes àqueles das tangas do grupo “Camutin”.
peça decorada de forma curvilínea, por sua (Fig. 10).

Fig. 10. Miniaturas e suporte para treino.

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O quanto as tangas foram utilizadas? Vimos que B. Meggers e C. Evans já tinham ob-
servado nesta perspectiva os furos de várias peças
Fragilidade das tintas – porém sem diferenciar as formas de desgaste,
nem os orifícios laterais e inferiores entre si, nem
Inicialmente, salientaremos o fato de que comparando as marcas existentes nas faces inter-
as tintas dos desenhos parecem frágeis: traços na e externa. Decidimos prestar atenção, portan-
de alguns desenhos apresentam indícios de to, aos orifícios de suspensão das tangas – seja
diluição dos pigmentos por terem sido as tangas apenas engobadas, seja com superfície desenhada
expostas a respingos de água (antigos ou recen- – que pudemos observar pessoalmente (mais de
tes). Uma pessoa nos confirmou ter lavado uma 140 peças). De qualquer forma, é preciso salien-
peça com muito cuidado, sem ter conseguido tar que, para se interpretar de forma mais segura
impedir o desaparecimento dos traços. Esta as marcas “de utilização”, seria necessário conhe-
instabilidade implicaria a impossibilidade de
cer a força abrasiva dos cordões (quantidade de
utilização no exterior das casas, pelo menos du-
fitólitos nas fibras) e a dureza das tangas, além de
rante a estação chuvosa (de longa duração nesta
se esperar o resultado do trabalho de experimen-
região equatorial) ou durante atividades que im-
tação com réplicas usadas por pessoas vivas. Não
pliquem contato com água ou um escorrimento
apresentaremos aqui nenhuma quantificação
abundante de suor na face externa da peça. O
dos dados que registramos, em razão do caráter
problema seria menor no caso das tangas apenas
incompleto e preliminar das nossas observações.
engobadas, que poderiam receber facilmente
Com efeito, não registramos de forma objetiva o
um novo banho vermelho. De qualquer forma,
grau de profundidade do desgaste; faltam uma ou
Mordini observa que os desenhos de uma das
peças da sua coleção de fragmentos apresentam duas extremidades de muitas peças – e, portanto,
sinais de terem sido repintados. Tivemos a mes- as perfurações correspondentes; outras estão
ma impressão ao examinar uma das tangas do tampadas ou preenchidas por sedimentos; enfim,
Museu Goeldi; no entanto, pareceu-nos que os duvidamos da autenticidade de várias tangas
traços em branco vislumbrado na parte central apenas engobadas. Mesmo assim, estamos em
desta peça, erodida, poderiam apenas resultar condições de apresentar algumas considerações
da queda dos pigmentos vermelhos; estes teriam de ordem geral.
levado consigo a parte superficial e patinada ou Os furos são muito pequenos (orifícios en-
suja do engobo, deixando aparecer a cor mais tre 1,5 e 2,3mm de diâmetro; geralmente entre
clara do caulim (?) original. Se isto for, não ha- 1,8 e 2,0mm) – excluindo-se algumas peças de
veria pintura nova sobre traços anteriores (não autenticidade duvidosa. O fato de quase todos
se entende, inclusive, porque teriam pintado eles estarem preenchidos por terra impediu
desenhos em branco sobre um fundo claro), verificar se haveria estreitamento interno (seção
mas percepção do negativo dos traços pintados, bicônica ou cilíndrica). De qualquer forma, os
hoje desaparecidos. Caso esta observação nossa cordões de suspensão tinham que ser muito
valha para a peça comentada por Mordini, não finos (com diâmetro máximo de cerca de 2mm).
haveria motivo para acreditar que as tangas Os furos superiores (dos ramos laterais) apresen-
decoradas seriam pintadas com desenhos várias tam um desgaste mais marcado na face externa,
vezes – nem haveria, portanto, comprovação de que se manifesta pelo desenvolvimento lateral e
utilizações repetidas. pouco oblíquo de uma goteira ou canaleta. Esta
pode existir apenas na espessura do engobo ou
Desgaste dos furos de suspensão aprofundar-se na pasta da cerâmica. Pode ser
apenas esboçada – sobretudo na face interna.
À primeira vista, parece óbvio que o grau de Bem mais raramente, nota-se um desgaste perifé-
desgaste dos furos de suspensão poderia fornecer rico ao redor do orifício externo ou interno.
indicações sobre a frequência de utilização das O furo inferior, por sua vez, apresenta um
tangas – uso quotidiano, ou restrito a circuns- padrão de desgaste desenvolvido essencialmen-
tâncias ocasionais e, provavelmente, cerimoniais. te na face interna, onde estes furos inferiores

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André Prous
A. Pessoa Lima

apresentam um micro desgaste periférico (con- as peças policromas quanto aquelas simples-
tornando todo o furo, ou apenas presente em mente engobadas apresentam a mesma varia-
metade ou dois terços da sua periferia), eventu- ção de desgastes; por este critério, teriam sido
almente prolongado para baixo por um esboço utilizadas com a mesma intensidade. Diante
de goteira. Na face externa, o desgaste é mais destas informações contraditórias e na falta de
raro que nos furos superiores e se manifesta estudos experimentais, é prudente não arriscar
também, sobretudo, na forma de micro desca- conclusões sobre a frequência de utilização das
mações; algumas peças, no entanto, apresentam tangas. Seria, sem dúvida, importante realizar
uma canaleta externa dirigida para baixo, em um estudo especifico dos sistemas de suspensão,
geral apenas incipiente. após limpeza cuidadosa dos orifícios.
O desgaste em forma de canaleta parece-
Forma de amarração -nos contraditório com uma utilização da tanga
por uma pessoa em movimento: o balancear das
Destas observações, e como não existe cadeiras deveria friccionar o cordão num arco de
desgaste linear atravessando a largura das peças, círculo cujo epicentro seria o furo, abrindo uma
podemos deduzir que as duas extremidades zona de desgaste angular, em forma de leque,
de um mesmo cordão seriam amarradas aos com desgaste maior na bissetriz. Ora, com duas
furos superiores; ou então, dois cordões dife- exceções (inclusive uma peça possivelmente falsi-
rentes presos cada um a uma das extremidades ficada) os maiores desgastes superiores externos
superiores estariam amarrados atrás do corpo. são direcionados linearmente, sendo a canaleta
Pode-se supor que estes cordões seriam fixados rigorosamente reta, estreita, e de bordas parale-
por um nó interno e sairiam pela face externa; las. Tal canaleta somente poderia ser causada por
seriam puxados para o exterior de forma pouco uma fricção linear reta, unidirecional, semelhan-
oblíqua em relação à horizontal. A localização e te àquela produzida por uma serra; ora, isto não
o desenvolvimento maior das canaletas sugerem corresponde ao movimento complexo decorrente
que os cordões superiores seriam submetidos de um corpo humano em movimento.
a uma pressão relativamente forte. O cordão Outras observações, “de senso comum”,
inferior, por sua vez, também seria segurado podem ser equivocadas, tais como aquela que
por um nó interno; seria, salvo exceções, menos atribuiria uma frequência maior de utilização
esticado – formando-se mais desgaste interno e a peças com marcas de desgaste maior nos
periférico em razão da movimentação transver- orifícios. Por exemplo, a ausência de desgaste na
sal do corpo. Chegamos a pensar que os furos parte externa dos furos superiores pode resultar
de algumas tangas, que apresentam canaletas não da falta de uso, mas da utilização da peça
muito longas e profundas, poderiam ter sido por uma pessoa corpulenta (comunicação verbal
feitos voluntariamente pelas fabricantes (para de A. de Tugny). O cordão, neste caso, ficaria
manter os cordões) ou por colecionadores (para pressionado para fora, e não para dentro da
passar arames e suspender as peças em mostru- tanga, não havendo razão para que imprima
ários de parede – como parece ter ocorrido na sua marca na cerâmica. Ou seja, apenas uma
coleção Oliveira fotografada por Mordini), mas experimentação intensiva permitiria se chegar
isto parece improvável para a maioria das peças. a uma conclusão sobre as condições de utiliza-
Como muitas tangas não apresentam des- ção destas peças. Remetemos o leitor ao artigo
gaste visível a olho nu poder-se-ia também supor publicado neste volume (Rodrigues et al.), que
que teriam sido pouco usadas. Na coleção do apresenta as primeiras experiências que realiza-
Museu Paraense Emílio Goeldi, por exemplo, mos no Museu de História Natural da UFMG.
a porcentagem de peças com furos apresentan-
do marcas de desgaste é maior entre as tangas Outros indícios possíveis de utilização
policromas do que entre as monocrômicas
observadas – ao contrário do que ocorreu nas O desgaste dos furos não é a única forma
peças observadas por Meggers & Evans. Tanto de alteração registrada na cerâmica. Nota-se

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em várias tangas (sejam elas com desenhos ou Para que estas tangas de cerâmica?
apenas cobertas por um banho de cor) uma
É difícil avaliar a intensidade de produ-
erosão particularmente marcada na parte inferior
ção de tangas ao longo dos muitos séculos de
da face interna – embora remonte por vezes
existência da cultura Marajoara, pois quase
lateralmente, e na parte inferior externa das
todas são provenientes de escavações antigas
tangas. Manifesta-se por uma série de pequenas
ou ilegais. Podemos notar que as peças apenas
descamações em forma de micro cupules que
cobertas de vermelho são menos numerosas que
tornam a superfície rugosa, lembrando o aspecto
as com desenhos nas coleções, mas são provavel-
das paredes de igaçabas supostamente utilizadas
mente sub-representadas em razão do seu menor
para preparar bebidas fermentadas (Skibo 1992). valor estético. Poderia se comparar o número
Inicialmente prestamos pouca atenção a este fe- de vasilhas decoradas marajoara e de tangas
nômeno, que nos parecia decorrer de uma erosão conhecidas, mas um tal trabalho ultrapassaria
natural ou, em alguns casos, de bruscas variações os limites desta pesquisa. Segundo D. Schaan
de temperatura pós-deposicionais (cupules térmi- (2007), nas maiores urnas – que são também as
cas). A situação recorrente dos locais afetados, no mais decoradas – encontrar-se-iam apenas tangas
entanto, levou-nos a considerar a possibilidade de vermelhas. A partir desta observação, sugere que
tratar-se de uma alteração relacionada ao contato as peças monocromas seriam destinadas às mu-
com o suor corporal, que deve ter sido particular- lheres maduras, enquanto as desenhadas teriam
mente intenso nesta faixa periférica. A acidez das sido feitas para as meninas em fase iniciática.
secreções também poderia ter contribuído a estas Esta interpretação baseia-se provavelmente na
transformações. O cuidado em se pintar inter- ideia corrente de que todas as tangas vermelhas
namente a periferia (em contato mais estreito seriam de tipo 2, enquanto as de tipo 1 seriam
com o corpo) e a ponta inferior (mais submetida policromas – o que mostramos ser absolutamen-
ao calor corporal) pode ser interpretado como te inexato. De fato, as seis tangas encontradas
uma forma de diminuir a erosão das superfícies. em urnas de Camutins, listadas por D. Schaan
Este tipo de alteração ocorre tanto em peças e são todas de forma 1. A. Mattos (1938: 150) cita
fragmentos vermelhos quando pintados. (Fig. 11). o texto no qual Derby diz ter achado duas tan-

Fig. 11. Desgastes de utilização.

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gas em Pacoval "Em dous casos achei dentro das Elementos estilísticos
igaçabas as chamadas tangas... a igaçaba tinha
sido enterrada dentro de outra maior, e a tanga Tentamos verificar a existência de elementos
achava-se no espaço entre as duas... a igaçaba re- que permitiriam agrupar as tangas em categorias
presentava uma mulher". Infelizmente, o trecho tipológicas combinando suas características mor-
citado não esclarece a forma das tangas, nem se fológicas e decorativas. A partir da observação de
elas eram decoradas ou apenas engobadas. De uma dezena de peças, Mordini já tinha contras-
fato, com tão poucas referências, não se pode tado as pinturas de Pacoval com as do Teso do
afirmar uma relação exclusiva entre enterra- Severino. As primeiras seriam caracterizadas pela
mentos e tangas monocromas. Muito menos se presença de módulos claros sobre fundo escuro
pode pensar que as últimas seriam fabricadas na parte superior (tema hoje interpretado como
para o ritual funerário, já que várias apresentam genitália) e por uma elaboração gráfica mais
marcas de utilização. tosca; as do teso do Severino não apresentariam
Afinal, qual poderia ser a razão de se usar o motivo referido. Por outro lado, os desenhos
tangas de cerâmica, provavelmente muito mais deste sítio seriam mais elaborados que aqueles
incômodas que as proteções vegetais normal- de Pacoval. Infelizmente a ausência de origem
mente utilizadas pelas indígenas? A resposta mais precisa para quase 90% das tangas que pudemos
provável é que se trataria de peças de alto valor observar não nos permite aplicar a mesma linha
simbólico utilizadas em rituais e/ou para expor de raciocínio para os diversos sítios da ilha.
o status de quem as trazia. Citando Steward e Assim, apresentaremos a seguir algumas ob-
Métraux, B. Meggers e C. Evans (1957) referem-se servações sobre a recorrência de associação entre
à existência de tangas de cerâmica entre índios de pares de elementos morfológicos, temáticos e
língua Pano do Ucayali (alta Amazônia peruana) gráficos, sem saber se eles traduzem mudanças
– no final do século XIX: “Tossmann (1928 & temporais, oposições sociais, ou idiossincrasias
1930) reports that a group of pubescent Chama de fabricantes.
girls were assembled at full moon, while men and O primeiro ponto que destacaremos é que
women danced all night and drank from special a oposição mencionada por todos os autores
zoomorph pots. Next morning, the girls were entre tangas com cava profunda (nossa forma 2)
painted, stupefied with drink, then each laid on e engobo simples, e tangas pouco cavadas (nossa
a bench where an older woman cut off and burial forma 1) e decoração policroma não pode ser
the clitoris and labia. Reich (1903) adds that sustentada em nível geral. Com efeito, 36% das
the girl was deflowered with a clay penis repre- peças pintadas apresentam morfologia de tipo 2
senting his fiancé. The girl was then isolated in (extremidades laterais pontudas e compridas, e
her hutt for one month, wearing an egg shaped cavas geralmente profundas), enquanto a maio-
piece of pottery as a pubic cover.” (Steward & ria (57%) das peças que receberam somente um
Métraux 1948: 585). Implicitamente, Meggers e banho vermelho são de forma 1.
Evans sugerem uma utilização algo parecida para Isto não significa que as observações feitas
pelo menos parte das tangas marajoaras. Uma anteriormente tenham sido erradas. Apenas
apresentação de D. Schaan (com. pessoal) mostra acreditamos que esta divisão entre cavadas /
uma tanga associada a uma vasilha zoomorfa, engobadas e não cavadas / pintadas possa ter
a um banco e a um pênis de cerâmica, todos ocorrido em determinados sítios (por exemplo,
procedentes de tesos de Marajó. A coincidência Pacoval e Camutins) e/ou épocas, enquanto
merece ser apontada, mas é obviamente difícil, outras comunidades locais não diferenciariam a
no estágio atual dos conhecimentos, demonstrar decoração em função do suporte. Isto explicaria
a existência de uma origem comum para ocorrên- que a maioria das peças conservadas no Museu
cias observadas nas duas regiões mais afastadas da Goeldi obedeça à oposição proposta tradicio-
bacia amazônica e separadas no tempo por mais nalmente, enquanto isto não ocorre nas outras
de meio-milênio – uma distância temporal que coleções, cujas peças provavelmente venham,
era desconhecida em 1957. pelo menos em parte, de outros tesos.

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De Cobras e Lagartos: as tangas marajoaras.
R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.

A presença de tangas apenas engobadas tema do quadrúpede. Ainda se podem procurar


com branco (e não com tinta vermelha) nos rios oposições a partir de traços técnicos de desenho
Câmara e Goiapí (Simões 1967; algumas peças – os desenhos elaborados com traços duplos ou
também recobertas por um banho de cor creme feitos com linha simples etc. As seguir tentamos
ocorrem na coleção T. Wild) sugere também a elaborar uma classificação cujas categorias não
possibilidade de haver códigos locais diferentes. fossem determinadas por uma única variante,
No entanto, a raridade destas tangas brancas mas pela convergência de várias características
autoriza outra hipótese: poderiam ser suportes associadas entre si. Desta forma, determinamos
destinados à pintura, porém abandonados antes “grupos” – categorias provisórias de peças que
de se realizar a decoração. nos parecem, de forma ainda bastante intuitiva,
Outros elementos, estes relacionados aos apresentar semelhanças significativas entre si.
temas pintados ou a forma de representação, po-
dem ser correlacionados com maior segurança à Os grupos de peças parecidas entre si
morfologia dos suportes. Já vimos, por exemplo,
que os módulos triangulares e quadrangulares
do motivo “genitália” no registro superior são Grupo “Camutins”
completamente pintados (por aplicação de tinta
chapada) nas tangas de forma 1, enquanto são Esta categoria estilística de decoração bem
quadriculados nas tangas de morfologia 2. definida corresponde a 16 tangas e alguns frag-
Notamos também que o registro médio mentos, cujos desenhos são feitos com traços
(temas do zigue-zague e da ampulheta) ocorre duplos. Todas elas apresentam um tema central
sistematicamente em posição alta na forma 1 zoomorfo filiforme alongado (quase sempre
(estando então bastante estreito), enquanto ele sauromorfo) de membros geralmente dobrados;
se torna muito largo e ocupa a posição central esta figura atravessa verticalmente o campo
na forma 3. Na forma 2, quase desaparece, principal, representando o “nariz” do rosto. A
sendo reduzido a uma simples linha dupla. Por parte central do corpo pode ser alargada em
outro lado, a variante “casco de tartaruga” ou círculo ou quadrilátero de tamanho reduzido.
“favo de mel” no zigue-zague do registro médio Figuras vagamente pisciformes menores, de
é geralmente associada ao rosto que apresenta corpo geralmente biconvexo, estão dispostas ho-
o nariz em forma de ⊥ (de base larga). A este rizontalmente nos quadriláteros laterais (“olhos”
mesmo nariz costuma estar associada uma do rosto). Em várias peças assim decoradas, a
boca de forma losângica. A maioria das bocas organização dos elementos, embora mantendo
quadradas marcadas por uma cruz interna, por a simetria espelhada predominante nas tangas,
sua vez, é dominada por um nariz cujas narinas não deixa de apresentar também uma simetria
são terminadas por um grafismo em forma de de translação no sentido vertical, com várias
tri-dígito (extremidade de pata?). linhas de “lagartos deitados”. Não existe relação
Parece prematuro definir estilos, enquanto obrigatória entre a utilização dos traços duplos
não podemos confirmar sua operacionalidade a e a forma do suporte, embora a grande maio-
partir da cronologia ou de uma repartição geo- ria das tangas assim pintadas tenha suporte
gráfica específica. De fato, haveria várias formas de forma 2, com o tema do registro superior
de se agrupar as peças tipologicamente a partir quadriculado e sem friso de campo médio (nem
da decoração. Por exemplo, poder-se-ia privilegiar ziguezague, nem ampulhetas); algumas outras,
determinados temas, opondo as peças que os pos- no entanto, foram pintadas em suporte de for-
suem e aquelas que não o apresentam. Desta for- ma 1, apresentam as figuras superiores chapadas
ma se contrastariam as composições com e sem e o registro médio decorado por ziguezague.
“nariz biomorfo”; as tangas com ampulhetas ver- A esta categoria pertencem peças provenien-
sus peças com zigue-zague no segundo registro; os tes das escavações de B. Meggers e C. Evans no
exemplares que ostentam explicitamente a figura teso 1 de Camutins – por isto a denominação
da cobra no campo principal e os que preferem o do grupo.

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André Prous
A. Pessoa Lima

Há outras duas peças muito parecidas, com senta o mesmo tema vertical e axial zoomorfo
linhas duplas e o mesmo tratamento “barro- que as peças do grupo Camutins, porém mais
co”, mas não apresentam o “nariz” zoomorfo; filiforme ainda, marcado em seu centro por um
consideramo-nas, no entanto, aparentadas a este quadrilátero ou hexágono. Os membros não
grupo. são dobrados junto do corpo, mas se apresen-
tam estendidos lateralmente, com apenas suas
Grupo dos corpos “imbricados” extremidades dobradas. Ao mesmo tempo, os
interstícios entre os traços delimitam no centro
Esta categoria comporta vinte peças e vários da peça duas superfícies simetricamente opostas
fragmentos, todas de forma 1, com organização que evocam uma silhueta antropomorfa, de
geral muito parecida com a do grupo “Camu- membros dobrados abertos. Esta mesma silhueta
tins”. O aspecto visual é, no entanto, bem aparece em outros grupos, de forma mais evi-
diferente – em parte pela utilização de linhas dente, seja em posição central, seja como motivo
simples e não dupla, e também, pela simplicida- inferior. Lateralmente, os dois quadriláteros que
de maior dos elementos de reforço, que contras- sugerem orelhas apresentam internamente uma
ta com o aspecto barroco das tangas do grupo versão reduzida do rosto central. Em algumas
“Camutins”. Distinguimos duas variantes. peças, elementos de reforço nas linhas em forma
O motivo do registro superior é sempre cha- de gancho as fazem parecer com patas de insetos.
pado. Na variante principal, o registro interme- Outra variante agrupa apenas três peças,
diário é sempre ocupado por ampulhetas – estas, cujo registro médio é formado por um zigue-
separadas por traços (seja verticais seja, mais -zague, enquanto a figura zoomorfa central é
frequentemente, horizontais) eventualmente tratada de forma original.
pisciformes. Em todas as pecas, o registro prin- Quatro peças apresentam elementos tanto
cipal apresenta a face canônica, com um rosto do grupo “Camutins” (parte dos traços dupli-
central. Os olhos costumam ser indicados por cados; morfologia do animal que representa o
elementos muito pequenos e discretos: ponto, nariz), quanto do grupo de “Corpos imbrica-
micro quadrilátero ou micro-círculo, no meio de dos”. De fato, podemos considerar que os dois
uma “órbita” formada por uma linha quebrada grupos anteriores são muito próximos e formam
terminada em gancho. O nariz deste rosto apre- um “supergrupo” (“A”). (Fig. 12).

Fig. 12. Tipologia: Supergrupo “A”.

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Grupo do “nariz alargado” por uma linha em zigue-zague. Os dois rostos


estão espelhados no sentido vertical em vez de
É formado por dezenove peças – quase estarem dispostos em simetria de translação. Em
todas de forma 1 – e quatro fragmentos, que duas destas tangas e dois fragmento, os olhos es-
podem ser agrupados em dois subconjuntos. No piralados, em vez de serem pequenos, dispostos
registro principal podem-se ver uma ou três re- na parte alta dos rostos e inscritos num qua-
presentações principais de rostos, caracterizados drado, tornam-se muito grandes e se localizam
por um elemento em forma de T invertido (⊥) nos ângulos da peça. O espaço entre estes dois
bem delimitado, abaixo do qual se destaca um grandes losangos laterais permite vislumbrar a
losango ou um pequeno hexágono – fechado ou silhueta de um corpo humano, cuja cabeça é
espiralado. figurada por um dos elementos em ⊥.
Existem duas variantes. Na primeira (va- Uma tanga parece apresentar uma estru-
riante “a”), o registro superior apresenta seus tura semelhante àquela deste grupo, embora o
elementos chapados. O zigue-zague do registro “nariz” seja menos alargado e representado por
médio é quase sempre realizado na forma do uma cobra. (Fig. 13).
motivo “favo de mel / casco de tartaruga”,
que aparece quase exclusivamente nas tangas Grupo das cabeças com nariz de cobra
pintadas deste subgrupo. Os três rostos princi-
pais, alinhados na parte mais alta do registro Quinze peças inteiras e dois fragmentos
principal. O elemento em ⊥ poderia estar destacam-se por apresentar grandes cabeças
representando apenas o nariz; neste caso, a triangulares de cobra (duas ou quatro, depen-
boca – aberta – poderia ser sugerida pela espiral dendo da tanga) que fazem às vezes de nariz. De
ou pelo losango imediatamente inferior. Outra fato, elas compartilham muitas características
leitura é, no entanto, possível: o ramo vertical (inclusive olhos em volutas) com o grupo do
do ⊥ figurando o nariz, enquanto o ramo hori- “nariz alargado”, a cabeça de cobra substituindo
zontal evocaria uma boca fechada (ou semiaber- o elemento em forma de ⊥. Em três peças (duas
ta: duas peças apresentam este
ramo horizontal barrado por
pequenos traços que poderiam
representar dentes). Neste caso,
a espiral inferior não repre-
sentaria nenhum elemento da
face. Os olhos são evocados por
elementos espiralados; os olhos
de 2 rostos vizinhos são reuni-
dos por um elemento de ligação
que permite a leitura de outras
faces – independentes dos rostos
com “nariz alargado”. Esta du-
pla leitura é semelhante àquela
que se observa nas urnas de
tipo Joanes Pintado da cultura
Marajoara, onde diversos rostos
– que compartilham os mesmos
elementos – podem ser reconhe-
cidos quando se gira a peça.
Na variante “b”, não existe
o tema clássico do campo supe-
rior; o topo da tanga é ocupado Fig. 13. Tipologia: supergrupo “B”.

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A. Pessoa Lima

delas, tão parecidas entre si que somente podem ção das peças tripartidas, fica difícil identificar
ser diferenciadas pelo seu registro superior), o tema decorativo do registro inferior em alguns
quatro cabeças reptilianas juntam-se no centro exemplares, mas trata-se geralmente da evocação
do rosto para circunscrever a boca. Em outros de um ou dois corpos humanos de formato
dois exemplares, o corpo das serpentes circunda retangular e membros dobrados, definidos pelo
o rosto, enquanto as cabeças sobem no meio espaço entre polígonos desenhados (quadriláteros
dele para figurar o nariz. Nos demais artefatos, ou hexágonos). Diminutos rostos pentagonais
a cabeça de cobra também figura o nariz, porém podem também ser reconhecidos neste campo.
cada uma de forma original. Nota-se, numa tan- Pastilhas de tinta substituem as costumeiras
ga, que o zigue-zague do registro médio determi- “aspas” de reforço de linha. Várias destas tangas
na triângulos com elementos internos que, eles apresentam uma tinta muito mais espessa que
mesmos, parecem aludir a uma cabeça ofídica. aquela utilizada nas demais categorías decora-
O campo superior das peças deste grupo tivas. Mesmo assim, os desenhos destas peças
pode tanto apresentar elementos chapados costumam ser bastante alterados e a cor da
quanto hachurados. O campo médio nunca tinta esmaecida – como se os pigmentos fossem
mostra ampulhetas; o zigue-zague apresenta particularmente frágeis.
fórmulas variadas; o campo inferior também.
Mesmo a estrutura do campo principal apre- Grupo da boca dentuda
senta grande variabilidade; apenas o sub-grupo
formado por três peças segue um padrão estrito Cinco peças, todas incompletas, apresentam
(com mesma forma de olho, boca etc.). uma face cuja boca, largamente aberta, apresen-
Consideramos que os dois grupos anterio- ta dentes triangulares enquanto o nariz é repre-
res (nariz em ⊥ e nariz de cobra) formam, eles sentado por um largo retângulo completamente
também, um supergrupo (“B”). pintado. Este nariz está sempre ligado por um
traço curto vertical à última das linhas que
Grupo com decoração tripartida formam o registro médio. Nos maiores fragmen-
tos, que apresentam o registro superior, este tem
São dezesseis peças, inclusive todas aque- seus elementos quadrangulares e reticulados.
las de forma 3. Apresentam uma morfologia Isto, além do fato de o registro “médio” estar
geral mais arredondada que as demais (mesmo ocupado por simples linhas paralelas, sugere
quando entram na categoría 1). O campo supe- que o suporte seja de forma 2.
rior é muito largo; nunca apresenta elementos
quadrangulares, mas triângulos particularmente Grupo com diagonais dominantes
estreitos e pontudos, sempre pintados com tinta
chapada. O tema “ampulheta” é característico Este grupo reúne peças bastante diferentes
do segundo registro (aparece até na única peça umas das outras, que não apresentam uma
que apresenta sigue-zague, entre as dobras do figuração de rosto e cuja estrutura é caracteri-
mesmo). Este segundo registro é normalmente zada pela obliquidade. Em quase todas aparece
muito largo e migra para a faixa central da peça. o registro superior clássico, mas, abaixo deste,
Volutas elaboradas com ganchos e cujas linhas o campo decorativo é unificado. Quatro destas
costumam ser reforçadas por pastilhas de tinta tangas têm a forma 2, sendo duas delas muito
adornam as extremidades ou os interstícios parecidas entre si, utilizando os mesmos ele-
entre os elementos em forma de X. mentos escalonados – diferenciam-se apenas na
Em razão da situação central do registro forma de simetria utilizada. Numa quarta peça,
“médio”, o registro principal migra para a parte o tema da ampulheta, tratado de forma original,
inferior da peça, e as tangas deste grupo não invade o campo principal enquanto na quinta,
apresentam as costumeiras linhas horizontais são losangos com cruz central que monopolizam
que marcam o registro inferior nas outras a cena. Duas formosas tangas apresentam três
categorias. Em razão da frequente má preserva- alinhamentos de elementos poligonais cujo

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encaixe por meio de linhas diagonais provoca diversas tangas apresentam entre si semelhanças
um efeito muito original dentro do universo estruturais ou temáticas suficientes para sugerir a
estudado. (Fig. 14) existência de outros grupos, que novos achados
poderão eventualmente validar, caso o número de
Tangas não classificadas em grupos exemplares característicos aumente.
Por exemplo, duas tangas de forma 1, apre-
Quase um terço das peças com o campo sentam uma dissimetria dinâmica no zigue-zague
principal legível não se insere nos grupos que pro- do registro médio quebrado, onde o zigue-zague
pomos. Todas elas, no entanto, compartilham o é tratado também de forma não canônica. O
código geral que tentamos desvendar: organização campo principal de uma peça apresenta uma
tetrapartida, elementos canônicos dos registros compartimentação vertical com simetria de
superior, médio e inferior. O rosto aparece sempre translação, sem que haja sugestão de um rosto.
no campo principal, porém existe neste registro Infelizmente, o registro principal de outra peça
uma variabilidade que expressa um grau de liber- quebrada não pode ser reconstituído de forma
dade maior para os(as) pintores(as). Mesmo assim, satisfatória, porém a parte visível é parecida.

Fig. 14. Tipologia (3).

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André Prous
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Quatro tangas também formam um con- pientes cerâmicos: temas e fórmulas decorativas.
junto homogêneo, no qual o elemento central Não pretendemos dedicar mais de algumas li-
é muito discreto, privilegiando-se dois com- nhas a este ponto. Inicialmente, pode-se frisar a
partimentos laterais retangulares em forma de ausência dos relevos (incisões e excisões associa-
“portas” decoradas. das ou não à pintura) comuns entre as vasilhas
Três tangas propõem um modelo muito espe- decoradas. Esta diferença, no entanto, pode-se
cífico, no qual três quadrados de tamanhos seme- justificar pela pouca espessura das tangas e sua
lhantes, todos marcados por uma cruz, represen- forma de uso. Para serem bem visíveis, incisões
tam os olhos e a boca. O nariz e as sobrancelhas, teriam de ser muito profundas, fragilizando as
por sua vez, são representados por uma forma peças que são pouco espessas. A ausência de gra-
que sugere um membro dobrado tridigitado. O vuras deve refletir, portanto, uma razão técnica
registro inferior de duas destas tangas apresenta e não uma exigência ideológica.
um zigue-zague (repetindo o tema do seu registro Quanto aos temas zoomorfos, são de identi-
médio) – uma exclusividade destas peças. ficação particularmente delicada nas tangas em
razão da sua forte estilização.
As peças “gêmeas” Duas figuras frequentemente representadas
são comuns às tangas e às vasilhas – particular-
Alguns exemplares são tão parecidos entre mente, os sauros (sejam eles lagartos ou jacarés)
si que parecem não apenas apontar regras com- e as cobras. As representações que para nós
partilhadas, mas reproduzir um mesmo modelo lembram “insetos”, com antenas bem destacadas
com variantes apenas de detalhe mínimo. Al- também ocorrem tanto em vasilhas quanto em
guns dos casos mais evidentes encontram-se no tangas. A. Roosevelt, por exemplo (1991, fig.
grupo das peças “imbricadas”, nas quais apenas 1.18, -d), reproduz uma figura que só pode ser
um detalhe varia entre duas peças (seja a forma interpretada como uma borboleta com antenas
da boca: retângulo ou losango), seja a posição espiraladas e asas representadas por cobras enro-
das antenas/patas anteriores da figura biomorfa ladas. A mesma figura que identificamos como
(abertas ou fechadas), seja a “ampulheta” (com “barata” ocupa uma posição central num prato
elementos vazios ou preenchidos por tinta) etc.. exposto no Museu do Forte em Belém.
As tangas com decoração diagonalizada, com Outros temas presentes nas vasilhas não
representações de quatro cobras, ou de rosto se encontram nas tangas. Por exemplo, a figura
com boca e olhos quadrados fornecem também da coruja, tal como é representada nas urnas
bons exemplos. Outras duas peças se distinguem Joanes Pintado; apenas um fragmento evoca
apenas pela orientação de um pequeno elemen- para nós esta ave, porém de forma totalmente
to, que representa o “olho” das faces. diferente. É possível, no entanto, que os grandes
Estas semelhanças tanto podem expressar blocos quadrangulares ou losângicos, que for-
a existência de “pares” de objetos necessários mam os “olhos” dos rostos no campo principal
para certas cerimônias, quanto a repetição de das tangas, tenham sido uma forma de lembrar
um modelo por uma mesma pintora – ou um o tamanho desses órgãos neste animal noturno.
membro do seu “ateliê”. De fato, levando em Neste caso, a coruja estaria onipresente, porém
conta a falta de informações sobre a origem de de forma totalmente diferente daquela encontra-
muitos exemplares, não se pode sequer descar- da na maioria das urnas. O mesmo ocorre com
tar a priori a existência de falsificações recentes o escorpião – tema destacado em algumas cerâ-
a partir de um modelo antigo. micas (por exemplo, no casco de representações
de tartaruga); sobretudo, como mostrou Magalis
(1975), um desenho esquemático deste animal
Tangas e recipientes pintados é muito utilizado em estatuetas e nas urnas (do
tipo 2 de Barreto (2009) para representar o glo-
Pode-se indagar se a decoração das tangas bo ocular. Ora, este artrópode parece totalmen-
obedece às mesmas regras encontradas em reci- te ausente das tangas – apesar de um pequeno

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elemento quadrangular com dois ou quatro Reproduções de felinos, de veados, de


apêndices que ocorre para preencher espaços grandes roedores, de outras aves afora a
vazios em algumas peças lembrar vagamente este coruja em geral, de sirênios e de peixes estão
tema. (Fig. 15) ausentes da decoração – tanto de vasilhas

Fig. 15. Tangas, figurinhas e vasilhas: elementos comuns.

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André Prous
A. Pessoa Lima

e modelagens quanto das tangas. Mesmo Possíveis elementos de diferenciação entre


considerando que o desenho de uma peça sítios e regiões
poderia a rigor ser considerado felino e que
os olhos aproximadamente “pisciformes” de É de se lamentar que muitas tangas encon-
certos rostos possam aludir a animais aquá- tradas nas coleções não tenham origem precisa
ticos. Finalmente, nenhuma figura animal conhecida. Sabe-se que tangas ou fragmentos
parece estar representada exclusivamente não foram achados em todos os sítios – mesmo
nas tangas. Estes objetos, portanto, integram entre aqueles que foram sondados pelos arqueó-
parte do bestiário geral marajoara (cobra, logos. Entre os tesos mencionados encontram-se
sauro e insetos) predominante nas outras Bacuri Alto (Ryden, apud Meggers & Evans
categorias de artefatos em cerâmica, do qual 1957), dois dos tesos de Camutins (sítios J. 14
se excluem, no entanto, a tartaruga, a coruja e J 15 – Meggers & Evans ibidem; Hart 1885),
e o escorpião. Talvez esses últimos estejam li- Fortaleza (Farabee 1915, apud Meggers & Evans
gados mais especificamente à morte, enquan- op. cit.), Teso dos Bichos (Steere, apud Meggers
to a cobra (parecida com o cordão umbilical, & Evans op. cit.; Roosevelt 1991), Laranjeiras
enrolada como a espiral representada no e Matinados (Holridge 1939, apud Meggers
ventre das estatuetas femininas marajoaras) & Evans op. cit.); Teso do Severino (Mordini,
seria ligada à vida. Derby, Ferreira Penna 1879; Lange 1914 apud
A maior diferença entre a decoração pin- Meggers & Evans op. cit.); Pacoval (Hartt, 1876;
tada das vasilhas e aquela das tangas talvez seja Lange, 1914). Parte dessas peças pode ser identi-
o fato de que não se utilizou a cor preta nas ficada na bibliografia e através dos catálogos de
últimas. Com efeito, as superfícies coloridas museus.
que contrastam com os traços lineares verme- A única coleção proveniente de escava-
lhos são geralmente ressaltadas em preto nos ção que permita esboçar uma abordagem
pratos e nas urnas, enquanto são também ver- quantitativa é aquela reunida por B. Meggers
melhas (muitas vezes, hachuradas) nas tangas. e C. Evans (1957). Nela, a maioria dos 110
A presença de desenhos por linhas duplas com fragmentos (equivalentes a pelo menos 40
tinta clara intersticial encontra-se em ambos os peças, portanto) vem de peças monocromas,
casos. Esta oposição, provavelmente expresse na proporção de cerca de três a quatro peças
uma distinção entre o sentido simbólico das vermelhas para uma pintada (respectivamente
cores; é tentador imaginar o vermelho mais 83 e 27 exemplares). Nas mesmas escavações os
ligado com a juventude e a vida e a cor escura pesquisadores encontraram, associadas a urnas
com a morte; mas, neste caso, como explicar o funerárias (seja no interior, seja a proximidade
engobo vermelho das tangas encontradas em imediata), sete tangas – das quais duas, com
sepultamentos? desenhos. Caso estes achados sejam represen-
Os elementos decorativos e a estruturação tativos, peças decoradas e engobadas ocorre-
do espaço nas tangas apresentam também riam na mesma proporção de 1/3 a 1/4 tanto
similitudes com aqueles das vasilhas, apesar em contexto funerário quanto em ambiente
da forma radicalmente diferente dos suportes. supostamente doméstico – contrariamente à
A divisão do espaço em campos horizontais, opinião vigente. Steere, por sua vez, afirma que
comum na cerâmica globular de qualquer algumas urnas do Teso dos Bichos continham
cultura, é mantida no espaço triangular das belas tangas “beautifully polished and orna-
tangas. A inserção de conjuntos significativos mented”; Hilbert (1952, citado por Meggers &
em espaços quadrangulares, já notada por C. Evans 1957) retirou seis tangas de dois aterros
Barreto (2009); a simetria ao mesmo tempo de Camutins “mostly red slipped” – o que
por espelhamento e translação; os jogos de significa que um ou dois exemplares eram pin-
kennings; os elementos de reforço de linhas e tados sobre engobo branco. O. Derby retirou
de preenchimento dos espaços vazios etc. são duas tangas de uma urna, sendo pelo menos
os mesmos. uma delas decorada.

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Não sabemos qual é a porcentagem de de cobra” e outra, com estrutura oblíqua. Em


urnas marajoara que continha tangas; se ambos Pacoval, não há peças típicas do grupo “Camu-
os sexos fossem enterrados nos tesos e todas as tins”, a única tanga aparentada a esta categoria
mulheres fossem acompanhadas por este artefa- evidencia uma estrutura absolutamente original,
to, cerca da metade dos enterramentos adultos e o que nos parecem representações de cobras
deveria apresentar o objeto. Infelizmente, raros bicéfalas (tema que encontramos em duas peças
são os casos de identificação de restos ósseos. proto-tupiguarani encontradas no Rio Grande
Voltando à pesquisa de Meggers e Evans, nota- do Norte e que demonstram certo parentesco
-se que dos quinze conjuntos funerários escava- estilístico com a arte marajoara). A figura do
dos em Camutins nos tesos J 14 e J 15, quatro lagarto não ocorre nas peças identificadas como
apresentaram tangas. Caso esta amostra seja provenientes de Pacoval.
representativa e alguns sepultamentos sejam de Em compensação, o grupo “imbricado” é re-
crianças, isto seria condizente com a possibilida- presentado por três exemplares neste sítio, onde
de de que a maioria das mulheres levaria uma se encontram também um exemplo de “nariz
proteção pubiana para o outro mundo. alargado”, dois com “nariz de cobra” e uma
Para avaliar a possibilidade de certos elemen- peça com estrutura oblíqua. As demais tangas
tos decorativos serem específicos de algum sítio de Pacoval fogem dos grupos que definimos –
ou conjunto de sítios podemos comparar as cinco talvez sejam representativos de categorias típicas
tangas e alguns fragmentos decorados encontra- do leste da ilha, até agora pouco representadas
dos em Camutins (teso J. 15) com as 13 tangas e nas coleções. Com efeito, elas formam pares
um fragmento provenientes de Pacoval, e com as com tangas com decoração parecida. As tangas
quatro tangas e fragmentos do Teso do Severino. do Teso do Severino, por sua vez, incluem uma
No teso J. 15 de Camutins, o registro peça com desenho de “nariz de cobra” e outra,
superior (tema “genitalia”) é, sobretudo, com o “nariz alargado”–porém tratados estilis-
formado por elementos cheios (triangulares ou ticamente de forma original. A figura 105, por
trapezoidais); apenas duas peças os apresentam sua vez, sugere a silhueta de um corpo – possi-
hachurado. Em Pacoval, tanto pode apresentar velmente antropomorfo – o que não escapou à
elementos cheios (geralmente triangulares) – observação de Mordini.
quanto faltar por completo (em pelo menos três Nota-se que nenhum desses sítios proporcio-
peças), não havendo nenhum caso de elemento nou decoração tripartida ou rostos de “boca den-
hachurado no registro superior. Quanto ao Teso tuda” – sugerindo a existência de outro(s) sítio(s)
do Severino, Mordini já tinha observado nele a ou conjuntos regionais com pintura diferenciada.
ausência deste registro. As peças tripartidas encontram-se na coleção
Quando se observa o registro médio, veri- MAE/BS e no Museu de Cachoeira do Arari;
fica-se em Camutins (J. 15) a preponderância segundo C. Barreto, as peças que compõem a
do zigue-zague (10/12 – com diversas variantes primeira seriam provenientes de três fazendas si-
de realização) no registro médio – embora duas tuadas ao longo do rio Anajás – provavelmente a
peças apresentem o tema da ampulheta e duas jusante dos sítios de Camutins e Monte Carmelo,
peças do grupo Camutins o tenham marcado onde formam um grupo sul-ocidental de tesos.
apenas por linhas paralelas. Em Pacoval, as Quanto às tangas de boca dentada, encontradas
ampulhetas e o zige-zague aparecem equilibrados apenas na coleção da UFSC e reunidas por Tom
(quatro ocorrências cada um), faltando este Wild, seriam oriundas de uma única região, que
registro em três peças. estamos tentando ainda determinar.
O campo principal nas peças de Camutins
(teso J 15) apresenta, sobretudo, a organização
típica do supergrupo “Camutins”/“imbricados”, Conclusões e divagações várias
com peças de nariz formado por lagartos e olhos
pisciformes. Nota-se também a presença de uma Verificamos, portanto, que as diferenças
peça de “nariz alargado”, uma peça com “nariz morfológicas não se limitam a uma oposição

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entre duas categorias – uma delas, pintada que os arqueólogos gostam de imaginar asso-
e a outra, apenas engobada – embora esta ciada ao xamanismo ou às linhagens aristocrá-
especialização possa ter existido em determi- ticas do Baixo e Médio Amazonas (o que não
nados sítios. Existem três morfologias carac- significa que estas instituições não tenham
terísticas com algumas fórmulas decorativas existido durante a Fase Marajoara). Talvez co-
exclusivas ou preferenciais de uma das três. bra e lagarto, com seu corpo filiforme, sejam
Por outro lado, mostramos a importância do uma alegoria do cordão umbilical. Afinal, o
motivo “ampulhetas” ao lado do zigue-zague ventre feminino (supostamente representa-
no segundo registro e da diferenciação entre do no registro superior) é o receptáculo do
as várias formas de tratar estes motivos do qual os humanos (representados pela cara do
friso superior. De fato, eles não nos parecem registro principal) surgem, com intermediação
remeter a desenhos de peles de cobra, embora do cordão (presente na forma da cobra no re-
a sinuosidade do zigue-zague possa aludir a gistro médio e talvez representado pela espiral
um corpo reptiliano. Em contrapartida, as em certas faces). Freudianos não deixariam de
alusões a seres vivos são bem mais claras no sugerir um simbolismo sexual para a cobra.
registro principal. Acreditamos ter consegui- Notemos a ausência também do peixe-boi, de
do contribuir ao entendimento da temática peixes e de roedores no vocabulário gráfico. Ir
que caracteriza as tangas marajoaras, particu- além destas observações significaria entrar em
larmente com a identificação do rosto como conjecturas impossíveis de serem testadas atu-
elemento central – e, provavelmente, princi- almente, divagações incapazes de esconderem
pal – da quase totalidade das tangas pintadas. nossa impossibilidade de acessar o significado
Este rosto é formado da combinação de vários do código marajoara. Em compensação, está
elementos canônicos, alguns dos quais são ao nosso alcance o reconhecimento dos ele-
zoomorfos. Entre estes, os mais facilmente mentos que o constituem e a estrutura da sua
identificáveis são cobras e lagartos; outros articulação.
seres, embora apresentem por vezes quatro
patas, são provavelmente insetos. De fato, as Implicações das categorias de decoração
fórmulas decorativas são pouco numerosas,
embora a criatividade das pintoras se expresse Um dos nossos propósitos principais, a
através dos detalhes da sua execução. determinação de estilos cronológicos e/ou
regionais, foi frustrado pela falta de elementos
Implicações simbólicas da temática para avaliar sua idade. Os primeiros coleto-
res (Hartt 1876; Derby 1879; Netto 1885)
Como interpretar os temas figurativos notaram que, em Pacoval, as cerâmicas que
que parecem predominar? Não há dúvida que apresentariam a decoração de maior qualidade
cobra e sauros sejam personagens essenciais encontrar-se-iam exclusivamente nos níveis
em todas as mitologias amazônicas atuais e mais antigos (Kern 2008); mesmo assim, não
pré-históricas, e ambos são bem representados falavam especificamente das tangas. B. Meggers
nas vasilhas marajoara. Por oposição, frisamos e C. Evans resgataram esta observação, que
a pouca visibilidade nas tangas – se não a total reforçava sua hipótese da importação seguida
ausência – das representações de ave (talvez, de degenerescência da cultura marajoara. A
no entanto, figurada num único fragmen- hipótese de um rápido declínio da arte gráfica
to), do escorpião e da onça. Mesmo raro no não se tendo sustentado e na falta de qualquer
ambiente alagadiço da planície oriental de Ma- datação de tangas achadas em escavações,
rajó, o grande carnívoro não está ausente da não há como saber se as observações feitas no
ilha e devia ser bem conhecido dos moradores século XIX aplicam-se às peças de vestuário;
dos tesos. Voláteis, por sua vez, não faltam em nem se correspondem aos acasos de uma única
nenhuma parte da ilha. O bestiário das tangas escavação, ou a uma realidade pré-histórica no
não privilegia, portanto, a dupla de animais sítio de Pacoval.

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De Cobras e Lagartos: as tangas marajoaras.
R. Museu Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.

Não foi apenas a falta de quadro cronológico As tangas e a sociedade marajoara


a prejudicar a pesquisa, mas também a desastrosa
ausência de identificação do local de origem para Vimos que a construção da grande maioria
cerca de 80 % das peças. Desta forma, a tipologia das decorações é submetida a uma rigorosa
que esboçamos, e que poderia ter sido reforçada simetria espelhada, que combina com a organi-
ou modificada por eventuais coincidências na zação da peça ao redor de uma representação de
distribuição geográfica, teve de se apoiar essencial- face humana. Algumas peças, no entanto, fogem
mente em semelhanças formais. Assim agrupamos de forma consciente e elaborada a esta simetria
os artefatos em função de semelhanças maiores óbvia, privilegiando a obliquidade. É tentador,
ou menores nos temas, na disposição dos mes- lembrando-se do texto clássico de C. Lévi-
mos no espaço gráfico, ou das técnicas gráficas -Strauss (1958) sobre as pinturas corporais Ka-
utilizadas. O que poderiam indicar estes agrupa- díweu, interpretar esta situação como a expres-
mentos? As tangas “parecidas” entre si poderiam são de uma sociedade ainda fundamentalmente
indicar uma mesma autoria (neste caso, haveria igualitária, mas na qual já apontaria a tentação
artesãos especializados em sua fabricação e/ou da hierarquização. Não cairemos, no entanto,
decoração?). Também poderiam expressar divisões nesta tentação, que justificaria um discurso tão
sociais (hipótese levantada por D. Schaan) dentro vazio quanto instigante – mesmo porque a maio-
de uma mesma localidade; digamos, por exemplo, ria das tangas apresenta uma decoração absolu-
que ostentar um “nariz-lagarto” seja privilégio tamente simétrica – o que não implica, também,
das moças de uma metade social (numa estrutura negar uma possibilidade de hierarquização na
social dual), de um clã, ou aos membros de uma sociedade marajoara. Contra-exemplos seriam
categoria hierárquica, enquanto o “nariz com numerosos para mostrar a vaidade de tais asso-
narinas largas” seria a marca de outra metade ou ciações. Quanto à complexidade dos desenhos
categoria social. Finalmente, os grupos ou varian- e sua qualidade gráfica, usá-las para afirmar que
tes dos mesmos poderiam remeter a espaços geo- implicam uma especialização dos seus autores,
gráficos politicamente diferenciados. Para que se elemento que os neo-evolucionistas gostam de
possam avaliar estas diversas possibilidades, seria associar com uma “complexidade emergente” e
necessário verificar vários pontos. Em primeiro, um “estagio”cacical. Caçadores-coletores aborí-
se vários grupos temáticos e/ou estilísticos teriam genes da Austrália desde a pré-história (através
coexistido num mesmo local (sítio ou território) e das pinturas rupestres do norte do país) até hoje
no mesmo período, ou se eles seriam mutuamen- (através das suas pinturas em casca) demonstram
te exclusivos, pelo menos em determinados sítios. amplamente a maestria que qualquer indivíduo
Talvez isto seja possível dentro de alguns anos, bem dotado e experiente pode alcançar nas
quando novas técnicas permitirem identificar artes da sua sociedade. Aliás, quem hoje negaria
com precisão a procedência das argilas, e datar a a complexidade das sociedades de caçadores
queima das tangas a partir de técnicas não destru- aborígenes, quando avaliadas por padrões que
tivas. Por enquanto, tivemos que nos contentar não são exclusivamente os nossos? Assim, os
em considerar apenas duas dezenas de tangas não belos desenhos das tangas marajoaras não nos
datadas, provenientes de apenas três sítios – o que informam sobre as contradições internas da so-
restringe muito a credibilidade das nossas observa- ciedade que as produziu. Podemos, no entanto,
ções. Vimos que estas sugerem de fato a existência desvendar aos poucos seu código gráfico: foi esta
de algumas diferenças entre as peças de Camutins tarefa que procuramos iniciar. Somente depois
(talvez representantes de uma fácies ocidental) de avançar mais nesta via e depois de realizadas
e de Pacoval (seria representativo de uma fácies muitas escavações extensas em novos sítios,
oriental?), sendo difícil caracterizar a produção tornar-se-á possível estudar modas temporais,
do Teso de Severino, pelo reduzido número de regionalismos, rituais e possivelmente, perceber
peças. Talvez dois grupos, não representados entre segmentos sociais dentro do mundo marajoara.
as peças com certeza atribuídas a esses três sítios, Para tanto, é necessário que seja assegurada uma
sejam específicos de outros tesos. efetiva proteção dos sítios, vários dos quais vêm

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André Prous
A. Pessoa Lima

sendo destruídos pelo pisoteio das manadas de do MAE-USP. D. Schaan (UFPA), que nos
búfalo e pelas escavações ilegais. As delicadas forneceu a ilustração de uma das suas apresen-
tangas atualmente disponíveis para estudo, em tações; A. Delpuech (Musée du Quai Branly,
sua maioria retiradas dos tesos sem contextu- Paris), que proporcionou uma cópia dos artigos
alização antes de chegar às instituições ou aos de Mordini. A. de Tugny (UFMG), com quem
colecionadores, perderam a maior parte do seu discutimos a morfologia das tangas. Rosângela
poder para guiar nossos passos no caminho do de Oliveira, para a revisão do texto. T. Fossari
redescobrimento da sociedade marajoara. e Vanilde Guizoni, do Museu Universitário da
UFSC. D. Schaan, que nos ofereceu generosa-
mente cópia da sua documentação. A Diretoria
Agradecimentos dos Museus do Arari (Maria José da Conceição
Gama; Sandra Solange Souza; José E. Rabelo de
Agradecemos aos colegas e responsáveis que Souza; Otaci Gemaque), bem como a Claudia e
nos abriram suas coleções e aos técnicos que Paulo Câmara. Aos Diretores e funcionários dos
nos ajudaram: V. Guapindaia, Regina Farias, Museus das Gemas (Ana Cristina ResqueMei-
Edna Moutinho Amauri Matos e Jorge Mardock relles) e do Forte (Samuel Sostenes; Dauseane
Neto, do MPEG; M.B. Florenzano, V. Wesolo- Ferras) de Belém. A Dona Inez, viúva do famoso
wski, Luis Carlos Borges e Ana Carolina Vieira, oleiro de Icoaraci, Mestre Cardoso.

PROUS, A.; LIMA, A.P. Ceramic Pubic Covers from Marajo Island, Brazil. R. Museu
Arq. Etn., São Paulo, n. 21, p. 231-263, 2011.

Abstract: Ceramic pubic covers (tangas) are characteristics of Marajoara


Phase, at the mouth of the Amazon river. We have studied more than 140
painted tangas and 84 plain ones. Rules for drawing, spacial organization have
been perused. We show that the central figure is a highly schematic face represen-
tation, made using a kenning system. The morphology of the tangas, the pictural
organization and the thematic elements are correlated, so it is possible to propose
seven typological categories. Their significance (chronological, regional or social)
is discussed, though the lack of datings and scarcity of accurate information on
the origin of the artifacts prevent us to reach satisfactory results. We have also
studied use wear on the archaeological covers. Our collaborators have produced
ceramic tanga replicas and experimented their use in several ways.

Keywords: Ceramic pubic covers – Marajoara Phase – Amazonian archaeol-


ogy - Painted ceramics.

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Recebido para publicação em 2 de dezembro de 2011.

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