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Capítulo I

A Importância dos Africanismos

O mito do passado negro é um dos principais fundamentos do preconceito de raça neste país.
Não reconhecido em sua eficácia, ele racionaliza a discriminação no contato diário entre os negros e os
brancos, influencia a modelagem de políticas que dizem respeito aos negros, e afeta as tendências de
pesquisas feitas por estudiosos cujos enfoques teóricos, métodos e sistemas de pensamento apresentados
aos alunos com ele estão harmonizados. Onde seus elementos não são aceitos em sua inteireza, não há
conflito mesmo quando, na crença popular, certos de seus princípios seguem contrários a algumas de suas
partes constituintes, já que sua aceitação é tão pouco sujeita a questionamento que contradições
frequentemente não são consideradas muito cuidadosamente. O sistema deve, portanto, ser considerado
―mitológico‖ no sentido técnico do termo, já que, como ficará evidente, ele dá aprovação a crenças
arraigadas que dão coerência aos comportamentos.

Este mito do passado negro que valida o conceito da inferioridade negra, pode ser descrito da
seguinte forma:

1. Os negros possuem um caráter naturalmente infantil, e se ajustam facilmente às mais


insatisfatórias situações sociais, a que acatam prontamente, até mesmo de bom grado, em contraste com
os índios americanos, que preferiram a extinção à escravidão;

2. Somente as variedades mais maldotadas foram escravizadas, os membros mais inteligentes das
comunidades africanas atacadas eram espertos o suficiente para escapar das redes escravagistas;

3. Já que os negros foram trazidos de todas as partes do continente africano, falavam várias
línguas, representavam corpos de costumes vastamente diversos, e, por questões políticas, foram
distribuídos pelo Novo Mundo de forma a perder sua identidade tribal, não havia como se estabelecer
entre eles um mínimo denominador comum de compreensão ou comportamento;

4. Mesmo que porventura a um número de negros suficiente de uma dada tribo fosse dada a
chance de conviver entre seus semelhantes, e que estes tivessem a vontade e a possibilidade de continuar
seus modos usuais de comportamento, as culturas da África eram tão selvagens e, na escala da civilização
humana, relativamente tão inferiores, que a superioridade evidente dos costumes europeus, observável no
comportamento de seus mestres, faria, e de fato fez, com que eles abandonassem tais tradições
aborígenes, ainda que eles numa outra circunstância as desejassem preservar;

5. Assim o negro é um homem sem passado.

Naturalmente, houve reações contra esse ponto de vista, e obras tais como Resumo das
Fundações Africanas (The African Background Outlined) de Carter Woodson e Povo Negro, Ontem e
Hoje (Black Folk, Then and Now) de W. E. B. Du Bois, foram tentativas sérias de compreender o retrato
completo do mundo negro, tanto na África quanto no Novo Mundo, em suas disposições históricas e
funcionais. Em outra categoria entre aqueles que discordam deste sistema estão escritores cujas reações,
geralmente apresentadas com parca documentação válida, centram suas atenções na África,
principalmente para provar que a ―cultura negra‖ pode tomar lugar entre as civilizações ―elevadas‖ da
humanidade. O pensamento científico já há algum tempo descredita tentativas de valoração comparativa
das culturas, de forma que essas obras hoje tem mais importância como manifestação da psicologia do
conflito inter-racial do que como contribuições para a reflexão séria. Em essência são parte da literatura
polêmica, e assim receberão pouca atenção aqui.

É também preciso reconhecer que nem todos os escritores que fizeram afirmações semelhantes
às descritas acatou todos os elementos do sistema, e mesmo quando eventualmente os acatou, talvez não
os tenha explicitado todos; a opinião popular também frequentemente diminui o teor africano de certos
aspectos do comportamento dos negros, enfatizando a natureza exótica e selvagem daqueles que
presumidamente manifestam tais aspectos. Ainda assim, no âmbito intelectual, uma longa linhagem de
especialistas treinados tem reiterado, em todo ou em parte, as presunções esboçadas acima a respeito do
passado do negro. Como consequência disso, por diversas que sejam as contribuições dos escritores
examinados, em termos metodológicos ou materiais, elas têm contribuído, com poucas exceções, para a
sustentação desta lenda com relação à qualidade e falta de resistência ao contato das heranças aborígenes
do negro. Podemos melhor começar nossa documentação deste sistema com uma série de citações
pertinentes à conclusão, o elemento final, deixando para as páginas subsequentes os excertos que visam
demonstrar a tenacidade das proposições que levam a essa conclusão.

Embora ninguém debata o relacionamento histórico entre os negros atuais dos Estados Unidos e
os da África, há pouco conhecimento científico sobre o que ocorreu com essa herança cultural africana no
Novo Mundo. Afirmações quanto à ausência ou retenção de africanismos, ainda que traçadas com base
em diversos graus de familiaridade com os padrões de vida dos negros neste país, têm uma característica
comum. A saber, a de que seus autores, sejam eles leigos ou eruditos, não só não possuem vivências de
primeira pessoa em meio as civilizações africanas em questão, mas a maioria deles também desconhece
as obras onde essas culturas estão descritas, e se porventura as conhecem, fazem pouquíssimas referências
a elas; e quando obras são citadas, geralmente são de fontes mais velhas, que hoje possuem pouco ou
nenhum valor científico.

A opinião dos estudiosos demonstra uma concepção bastante homogênea com relação aos
africanismos sobreviventes nos Estados Unidos. Os especialistas como um todo tendem a aceitar e
enfatizar a visão de que os africanismos desapareceram devido às pressões exercidas pela experiência da
escravidão sobre todos os modos aborígenes de pensamento ou comportamento. Como ponto de início
para a análise subsequente, alguns exemplos deste corpo de pensamento serão aqui fornecidos a fim de
estabelecer suas ideias principais. Representando este ponto de vista temos a seguinte afirmação de R. E.
Park, que resume nestes termos uma posição que tem mantido de forma consistente ao longo dos anos:
Minha própria impressão é de que a quantidade de tradição africana que o negro
trouxe para os Estados Unidos é muito pequena. De fato temos todos os motivos para
acreditar, parece-me, que o negro, quando chegou aos Estados Unidos, deixou para trás
quase tudo exceto sua pele escura e seu temperamento tropical. É muito difícil encontrar
hoje no sul qualquer coisa que possamos ligar diretamente com a África. 1

E. F. Frazier, em seu estudo da família negra, firma sua posição numa passagem onde, falando de
―vestígios de memórias, uma parte insignificante do crescente corpo de tradições familiares negras‖ e que
―são o que restou da herança africana‖, ele diz:

Talvez nunca antes na história um povo fora tão completamente despido de sua herança
social como os negros trazidos para a América. Outras raças conquistadas continuaram a
cultuar seus deuses familiares dentro do círculo íntimo de seus iguais. Mas a escravidão
americana destruiu os deuses familiares e dissolveu os laços de simpatia e afeição entre os
homens de mesmo sangue e família. Velhos e mulheres podem ter refletido sobre memórias
de sua terra natal africana, mas não conseguiram mudar o mundo a seu redor. Por força das
circunstâncias, tiveram que adquirir uma nova língua, adotar novos hábitos de trabalho, e
assumir, ainda que imperfeitamente, os modos populares do ambiente americano. Seus
filhos, que só conheceram o ambiente americano, logo esqueceram as poucas memórias que
lhes foram passadas, e desenvolveram motivações e modos de comportamento harmonizados
com o Novo Mundo. Os filhos de seus filhos frequentemente lembraram com ceticismo os
fragmentos das histórias sobre a África que foram preservadas em suas famílias. Mas, dos
hábitos e costumes, bem como das esperanças e medos que caracterizavam as vidas de seus
antepassados na África, nada restou.2

Outro estudioso do Negro Americano, E. B. Reuter, ao comentar o trabalho de Frazier, dá


consentimento incondicional ao ponto de vista expresso na passagem anterior, quando escreve:

Os . . . povos negros . . . foram trazidos para a América em grupos pequenos,


oriundos de várias partes do continente africano, e ao longo de um grande período de tempo.
Durante sua captura, importação e escravização perderam todos os vestígios da cultura
Africana. As línguas nativas desapareceram tão imediatamente e completamente que quase
nenhuma palavra de origem africana penetrou o inglês, e isso se deu pela dispersão, pela
separação intencional ou acidental de linhagens tribais, e pela supressão dos exercícios
religiosos. As crenças e práticas sobrenaturais desapareceram completamente; as formas
nativas da vida em família e os códigos e costumes de controle sexual foram destruídos pelas
circunstâncias da vida de escravidão; a procriação e as relações entre os sexos se reduziram a
um nível simples e primitivo, e o mesmo ocorreu com todos os elementos da herança social.3

Na análise de Charles S. Johnson sobre a vida do negro nas plantações atuais, o comentário sobre
as origens segue, da mesma forma, a posição comum:

O negro da plantação chegou aqui com uma herança cultural totalmente


despedaçada. Ele veio diretamente da África, ou indiretamente da África através das Índias
Ocidentais. Para ele não houve nenhuma preparação ou exposição organizada aos padrões
dominantes e aprovados da cultura americana. O que ele sabia da vida era o que ele aprendia
de outros escravos ou dos exemplos dados pelos capatazes brancos. Nas cidades, o contato
próximo produzia algum efeito, que muitas vezes foi percebido nas diferenças culturais entre
os serviçais negros na casa e os da mão-de-obra na plantação.
Na plantação, porém, seu contato era distante, regulado por uma ―etiqueta‖ estrita
de escravidão, e pela lei da plantação.4

O mesmo ponto de vista com relação à retenção das origens africanas foi expresso por
especialistas não acadêmicos deste campo, e por aqueles estudiosos profissionais cujo objeto de pesquisa
dizia respeito a segmentos específicos da cultura onde africanismos haviam persistido. Embree, que
traduz a homogeneidade física dos negros miscigenados dos Estados Unidos no conceito de um tipo
―americano marrom‖, e expressa a opinião de que, ―é surpreendente quão completamente o negro foi
separado de seu lar africano‖5 explica o processo nestes termos:

Arrancados de seu ambiente, os africanos se viram agrupados em casarões e


plantações americanas com companheiros negros de tribos divergentes, cujos costumes
divergiam bastante dos seus, e cujas línguas eles não conseguiam entender. Uma nova vida
precisava se estabelecer e ela foi estabelecida com o padrão do Novo Mundo. A velha
sociedade tribal foi completamente destruída. Do pertencimento a suas unidades sociais
primitivas, os negros se viram forçados à organização exigida pela plantação e pelas
exigências das famílias americanas a que estavam ligados. As únicas expressões populares
que tinham elementos comuns para todos os escravos eram as que eles encontraram na
América. Os africanos passaram a assumir a vida do jeito que era possível. Começaram a
falar inglês, e assumir a religião cristã, a entregar-se ao padrão de trabalho exigido pelas
necessidades e costumes americanos, e a se adaptar o quanto pudessem às convenções do
Novo Mundo.6

Cleanth Brooks, direcionando as técnicas de seu campo especial, a fonética, para o estudo do
dialeto negro, conclui que, ―em quase todos os casos, as formas especificamente negras acabam sendo as
formas do inglês mais velho, que os negros devem ter tomado originalmente do homem branco, e que
foram retidas depois que o branco começou a perdê-las.‖ E disso ele deriva o princípio metodológico no
qual sua pesquisa se baseia: ―Para os objetivos deste estudo, a fala do negro e a do branco serão
consideradas uma só.‖ Está bem claro que nenhum elemento africano é aceito na origem do modo
unificado de fala, presumido como totalmente europeu em sua origem, já que em seu trabalho não há
referência alguma a qualquer sistema fonético africano.7 Com relação a fala dos negros nas Sea Islands,
Guy B. Johnson não escreveu nada muito diferente:

O gullah foi tido como o mais africano de nossos dialetos, e ainda assim pode ser
reconhecido, em quase todos os detalhes, no dialeto inglês. Há uma crença popular nesse
país que afirma que a fala branca no sul deve-se aos negros. Esta ideia precisa ser invertida,
já que tanto o negro quanto os brancos no sul falam inglês como aprenderam dos ancestrais
dos últimos.8

Enfim, para tomar um exemplo de ainda outro campo, encontramos Doyle, que em seu detalhado
estudo da etiqueta em funcionamento na determinação dos padrões nas relações entre negros e brancos no
sul, mantém, por implicação, a posição convencional, ao começar sua análise histórica com o período da
escravidão, sem nada dizer a respeito de nem mesmo a possibilidade da existência de códigos de etiqueta
na África.9

Se nesta discussão fazemos afirmações que contrariam os pontos de vista citados, e de muitos
outros estudiosos com a mesma posição ainda que não tenham sido citados, é preciso reconhecer que
estas afirmações foram diretamente embasadas em fatos descobertos ao longo de um extenso período de
pesquisa. Qualquer discórdia quanto ao enfoque básico surgiu, de fato, como resultado de uma
oportunidade de investigar em primeira mão certas sociedades negras de Novo Mundo fora dos Estados
Unidos. Foi a investigação nesse âmbito maior, onde o problema dos africanismos no comportamento do
negro atual era apenas secundária, que forçou a revisão desta hipótese que, nos estágios iniciais da
pesquisa, não pensávamos questionar.10
A natureza dessa experiência será esboçada aqui, tornando mais claro como os resultados obtidos
durante a pesquisa vez após vezes reiteraram a revisão das hipóteses existentes. As citações dadas na nota
anterior representam um ponto de vista que deriva de estudos orientados no sentido da análise da mistura
racial nos Estados Unidos; ou seja, são baseados em observações feitas durante investigações onde as
questões principais estavam fora do campo sociológico em questão. Ao estudar a mistura racial, porém, se
tornou evidente que, sem dados comparativos de populações ancestrais da África, tais resultados teriam
menos valor do que se tais dados estivessem disponíveis. Portanto foram instituídas pesquisas etnológicas
focadas em descobrir precisamente as localidades de onde vieram essas populações africanas ancestrais.

Deste programa veio um estudo de campo em primeira mão dos negros de Novo Mundo na
Guiana Holandesa, no Haiti e em Trinidad. Pesquisas extensivas foram também feitas sobre a história da
escravidão, e contato próximo foi mantido com especialistas no estudo do negro nos países da América do
Sul, bem como com aqueles devotados etnológicos amadores que, levados por um desejo de conhecer
melhor o povo a seu redor em várias das colônias do Caribe, acabaram contribuindo para a coleção de
dados sobre as culturas do negro do Novo Mundo. Da necessidade de traçar origens africanas, surgiu a
pesquisa na própria África, onde, na Nigéria, na Costa Dourada, e mais especialmente em Dahomey, foi
possível estudar de primeira mão as civilizações ancestrais relevantes. Através dessa experiência em
contínua expansão cresceu o reconhecimento da necessidade de uma re-investigação científica do
problema da retenção dos africanismos no Novo Mundo – e nos próprios Estados Unidos. Foi também
através dessa mesma experiência que um sentido da importância prática das conclusões tiradas de tais
investigações para a situação inter-racial como ela existe hoje se desenvolveu, especialmente porque tais
conclusões podem fornecer àqueles preocupados com questões cotidianas uma ideia da profundidade
histórica na qual tais questões estão sedimentadas, bem como das presunções subjacentes ao pensamento
da maioria dos americanos, brancos ou negros, com relação aos valores em questão.

Neste ponto deve ser novamente enfatizado que o conhecimento exato com relação à
sobrevivência de tradições e crenças africanas no comportamento dos negros atuais nos Estados Unidos e
em todos os outros lugares do Novo Mundo, ou o efeito destas sobrevivências na vida cotidiana de seus
detentores, não está à mão. Os materiais são fragmentados e esparsos, quando não estão totalmente
ausentes; mas a controvérsia que surge quando o problema em si é levantado atesta sua vitalidade e
importância.11

O estudo progrediu o suficiente, no entanto, para indicar alguns dos principais enfoques
possíveis. Sabemos hoje que a análise dos africanismos sobreviventes entre os negros dos Estados Unidos
envolve muito mais do que a correlação comumente esboçada entre os traços do comportamento negro
neste país e os da tradição aborígene na própria África. Pelo contrário, tal análise, para ser adequada,
requer uma série de passos intermediários. Um conhecimento das origens tribais dos negros deste país é
indispensável para que a variação de costumes encontrada entre as tribos das quais se originam os
antepassados africanos possa ser adequadamente avaliada; e isso é o que mais se deve querer, uma vez
que todos que escrevem sobre o negro fazem desta variação um ponto crucial – contudo, uma variação em
termos do continente africano como um todo, e não apenas daquela área relativamente restrita da qual os
escravos vieram principalmente. Uma análise do negócio escravagista como revelado em documentos
contemporâneos e nas próprias tradições africanas, nos revelando como qualquer seleção que possa ter
sido exercida ocorreu, e qual a reação dos escravos a seus status, é igualmente essencial. Os mecanismos
de ajuste dos recém-chegados africanos a suas situações como escravos, e até que ponto estas operavam
de forma a permitir a retenção de velhos hábitos, ou a forçar a tomada de novos modos de
comportamento, ou a fazer uma mistura de velhos padrões e alternativas recém-vivenciadas, precisam
todos ser entendido tão completamente quanto os dados permitirem.

Também nenhuma investigação deste tipo deveria ficar confinada apenas aos Estados Unidos.
Uma vez que se algum critério metodológico surgiu da pesquisa exploratória, foi o de que um
conhecimento das culturas negras nas ilhas do Caribe e na América Latina é indispensável. Esta questão
foi bem colocada por Phillips:

Com relação à escravidão do negro a história das Índias Ocidentais é inseparável da


história da América do Norte. Nelas o sistema de plantação se originou e atingiu sua maior
escala, e a partir delas a instituição da escravidão se estendeu ao continente. O sistema
industrial nas ilhas, particularmente naquelas ocupadas pelos Ingleses, é, portanto, instrutivo
tanto a guisa de introdução quanto a guisa de paralelo ao regime continental.12

Também do ponto de vista do estudo dos africanismos é tão importante conhecer a variação nos
comportamentos costumeiros, tradições e crenças do negro ao longo de todo Novo Mundo quanto
compreender a variação nas culturas ancestrais da própria África, pois apenas comparando com esse pano
de fundo o estudioso pode projetar uma imagem clara do que resultou das diversas experiências históricas
e que assim constituem o controle essencial do procedimento de pesquisa. Somente com esse pano de
fundo dominado aqueles costumes da vida do negro nos Estados Unidos que se desviam do reconhecido
pela maioria podem ser realisticamente analisados.

A discussão nestas páginas, portanto, será orientada de acordo com esses princípios. Nossa
preocupação inicial é com as origens africanas, o processo de escravidão, e a reação do negro à
escravidão. A acomodação dos negros a suas circunstâncias de novo mundo e a variação resultante no
grau de aculturação em toda a área onde a escravidão existiu será então indicada, enquanto que os
aspectos da cultura do negro onde o africanismo ficou mais bem retido e aqueles onde o mínimo de
herança aborígene está manifesto, e as razões para estas diferenças, será apontada para mostrar a
complexidade do que em geral tem sido considerado um problema simples. Finalmente, passos adicionais
de pesquisa objetivando uma melhor compreensão dos processos da cultura como um todo serão
descritos, bem como faremos uma investida com relação as questões sociais que se apresentaram ao negro
nos Estados Unidos, na medida em que os elementos de conflito da situação inter-racial são afiados por
crenças que dizem respeito à qualidade da origem cultural do negro.

Antes de nos voltarmos a uma análise dos materiais disponíveis, consideremos os problemas
teóricos e questões práticas sobre as quais nosso enfoque mais amplo pode jogar alguma luz, indicando de
saída aos estudiosos da cultura para os quais os dados de nossa investigação são relevantes quais as
questões mais preocupantes.

Os problemas cujas respostas devem ser buscadas no estudo dos dados de muitas civilizações
caem em várias categorias gerais. A organização da civilização humana como um todo, e a inter-relação e
integração dos vários aspectos da cultura combinada em um corpo de tradições, tecnologias e crenças são
os pontos mais fundamentais em questão. A forma pela qual ocorre o empréstimo cultural, e quando
possível, as circunstâncias sob as quais uma troca de tradições ocorre são igualmente importantes, bem
como o problema relacionado ao grau com qual qualquer cultura representa invenções originárias dela
própria ou tomada de fontes estrangeiras. A relação entre cultura e seus detentores humanos, focada
especialmente na forma da circunstância cultural de um indivíduo condiciona não só seu modo de vida
geral, mas a organização de sua personalidade e do caráter de seus hábitos motivadores, nos últimos anos
tem ganhado relevância como um problema importante. Enfim, a questão do grau com o qual o indivíduo,
reconhecidamente em grande parte criação de sua cultura, pode influenciá-la enquanto adapta-se a seus
padrões nos leva à questão essencial das várias forças que causam mudança e conservação na cultura.

O estudo comparativo da cultura, da mesma forma que as análises intensas de civilizações


individuais, no passado tem tentado basear suas hipóteses sobre dados de povos não históricos – aqueles
povos sem escrita chamados ―primitivos‖ – que são relativamente pouco perturbados pela influência
europeia. Até recentemente, estudiosos relutaram em incluir em seus programas de investigação as
considerações de mudanças que ocorreram, e estão ocorrendo como resultado do contato desses povos
não históricos com as culturas históricas sob a expansão colonial europeia, e a progressão para o oeste da
fronteira americana. Ainda assim, para o estudo de problemas de dinâmica cultural e de integração social,
de padrões objetivos e inter-relações psicológicas, as situações de contato têm muito de valor a oferecer.
Agora podemos levar as conclusões do estudo de sociedades relativamente imperturbadas e mais estáticas
ao laboratório da mudança observável. A difusão em processo, as forças que causam estabilidade ou
instabilidade cultural, as reações de indivíduos a novas situações, o desenvolvimento de novas
orientações, o surgimento de novos sentidos e novos valores na vida – todas estas coisas podem ser
observadas quando um povo está em contato contínuo com modos de vida diferentes de seus próprios. O
que é aceito e o que é rejeitado, a influência da força em contraposição a mera exposição ou persuasão
verbal, e o efeito sobre as personalidades humanas vivendo em um sistema de diretivas duais, não
integradas, podem ser então analisados em condições ideais, de forma que dados pertinentes sejam
observados e registrados.

Estudos sociais deste tipo vieram, em anos recentes, a ser designados como estudos de
aculturação, e é como estudos de aculturação que podemos encarar a pesquisa do problema dos
africanismos sobreviventes no comportamento de negros do Novo Mundo, para que assim sua
contribuição a compreensão da natureza e dos processos da cultura como um todo ocorra da melhor forma
possível. A aculturação foi mais completamente definida como o estudo ―daqueles fenômenos que
resultam quando grupos de indivíduos de culturas diversas entram em contato contínuo de primeira mão,
com mudanças subsequentes nos padrões culturais originais de um grupo ou de ambos.‖ 13 É desnecessário
aqui examinar as implicações desta definição ou dos métodos de estudo destas situações de contato, uma
vez que esses assuntos foram tratados em outros lugares.14 Neste momento é apenas preciso lembrar que
ao levar estes dados culturais ao laboratório apresentado pela situação histórica, o cientista social pode
testar suas hipóteses com referência a condições sujeitas à validação histórica; de forma a assim obter,
portanto, algo do controle que é a essência do método científico.

Que os povos negros no Novo Mundo ofereçam oportunidades incomuns para a pesquisa foi
assinalado por vários estudiosos. Sir Harry H. Johnston, no volume em que relata uma visita às Índias
Ocidentais e aos Estados Unidos em 1910,15 mostra com clareza que rica colheita pode advir do
conhecimento do continente ancestral quando este é direcionado ao cenário do Novo Mundo. Apesar da
brevidade de sua estada, e da observação e análise de dados indisciplinadas que nesta, bem como em suas
outras obras, caracterizam os escritos deste soldado, escritor e artista, o livro é iluminador. Ele demonstra
o quanto da tradição aborígine existe nas Índias Ocidentais e nas regiões Sul Americanas, onde, em
detrimento de até mesmo suas manifestações superficiais, foi ignorada por aqueles estudiosos dos Estados
Unidos que, sem fundamentos das culturas africanas e equipados somente com a hipótese do
desaparecimento dos costumes africanos como base de referência, tenderam a minimizar a retenção dos
africanismos. W. M. Macmillan, um Sul Africano, também percebeu a proximidade da afiliação das
Índias Ocidentais com a África – embora sua preocupação tenha sido com os problemas particulares das
colônias britânicas – e ele indica a importância dos oficiais da colônia prestarem serviços nas ilhas antes
de cumprirem seu dever na própria África.16

Talvez o primeiro estudioso nos Estados Unidos a apontar a importância da pesquisa nas Índias
Ocidentais foi U. G. Weatherly. Ele enfatizou a importância de ―grupos sociais num ambiente social
ilhado,‖ particularmente onde, como aqui, um registro histórico está disponível para ajudar a determinar a
experiência do povo, e onde o contato com o mundo externo e outros fatores tais como ―revoluções
internas‖ ou ―mudanças radicais no controle vindas de fora‖ causaram ―algo mais do que um
desenvolvimento retilíneo‖. As ―pequenas ilhas das Índias Ocidentais, que vão de São Tomé até a Costa
da América do Sul,‖ de acordo com ele, ―possuem muitas destas características.‖ Para ele, a cultura atual
ali presente é o resultado do contato entre Africanos e Europeus de muitas nacionalidades, sendo que suas
experiências históricas têm sido a transferência de um poder europeu para outro, com as consequentes
conhecidas mudanças históricas nos impulsos culturais. Além disso, com a ―população europeia como um
elemento flutuante e em diminuição, permanecem ali como fatores predominantes o negro e o índio
oriental.‖ O método e o valor do estudo destas ilhas são então apresentados nos seguintes termos:

A pesquisa sistemática sobre os problemas aqui resumidos envolveria


necessariamente uma tarefa cooperativa. Seriam necessários especialistas em tecnologia
social, etnologia, cultura, história, economia agrária, psicologia e educação. O apelo mais
óbvio de um estudo desse tipo ocorreria com relação a problemas práticos: ainda que seja
possível que os resultados mais valiosos porventura viessem da oportunidade de trabalhar
com alguns dos princípios da ciência social pura. Estas comunidades, por serem isoladas e
por seu status cultural peculiar, oferecem uma aproximação melhor à experimentação social
do que os grupos cosmopolitas das áreas continentais, e são dúvida mais adequados a
elaboração de uma metodologia especial para as ciências sociais. As unidades são
suficientemente pequenas e isoladas de forma que é mais fácil lidar com elas, e as forças
sociais em operação são menos misturadas do que nos ambientes complexos de grupos
maiores.17

Park da mesma forma chamou atenção para as possiblidades de pesquisa apresentadas pelos
negros, embora ele aqui não veja o problema além dos limites dos Estados Unidos:

Para um estudo do processo de aculturação, provavelmente não há materiais mais


completos e acessíveis do que aqueles oferecidos pela história do negro americano. Nenhum
outro representante de uma ração primitiva manteve uma associação tão prolongada e íntima
com a civilização europeia, e ainda assim preservou sua identidade racial. Em nenhum outro
povo é possível hoje encontrar tantos estágios da cultura coexistindo.18

Num artigo posterior19 Park considera o recurso às Índias Ocidentais para essa pesquisa. Reuter,
que fraseia com as seguintes palavras essa concepção do problema, também acredita que o estudo
comparativo é importante:

Para este estudo científico os negros americanos são mais valiosos do que todos os
outros grupos sociais. Eles representam vários estágios de desenvolvimento cultural. Neste
grupo há homens e mulheres bem e completamente educados e definidos, pessoas que
assimilaram completamente a herança cultural europeia e, em alguns aspectos, a
incrementaram. No extremo oposto há pessoas ligeiramente separadas do nível cultural
africano. Há outros grupos que estão na América há mais tempo, mas cuja morada em
regiões isoladas e pouco desenvolvidas retardaram tanto o processo assimilativo que ainda
estão, em vário sentidos, fora da cultura moderna. Há negros na América que falam dialetos
quase incompreensíveis para forasteiros. ... Neste grupo é possível estudar a evolução das
instituições sociais e humanas por meio de seus processos. Quase todos os estágios de
evolução cultural podem ser reconhecidos em símiles no processo de transformação. O que
geralmente precisa ser estudado com um método histórico pode aqui ser estudado com um
procedimento de observação e científico.20

Do ponto de vista dos métodos, objetivos e conquistas a serem discutidos nas páginas seguintes,
estas propostas anteriores, como veremos, precisam ser consideradas pequenos rodamoinhos no rio
principal de interesse dos autores e respectivos colegas nas ciências sociais. Estas formulações certamente
não estimularam exploração alguma dos problemas esboçados; e é relativamente importante examinar a
causa ou causas que fizeram com que fosse assim.

Se novamente nos referirmos à presunção dos estudiosos americanos de que os africanismos não
sobreviveram no contato com a civilização europeia, imediatamente nos deparamos com uma pista
valiosa. Uma vez que, com esse enfoque, a questão das Índias Ocidentais não se transforma na questão:
―O que aconteceu com as heranças culturais aborígenes daqueles envolvidos no contato entre africanos e
europeus?‖ e sim em vez disso se transforma em: ―Já que a cultura africana de dissipou perante o contato
europeu, a que ponto o ajuste resultante indica aptidões inerentes para formas específicas de tradição, e
que luz a pesquisa pode jogar sobre a capacidade inata dos negros em lidar com a civilização europeia?‖ a
resposta a essa última pergunta é evidente. Não é preciso treinamento no método científico para descobrir
que os negros no Novo Mundo dominaram a cultura europeia quando houve oportunidade; ou que, onde
seus modos de comportamento divergem mais fortemente da maioria, as razões para isso poderiam ser
expressas em termos tais como "isolamento," "discriminação," e assim por diante.
Nas mentes destes estudiosos, porém, o principal problema foi o das aptidões e limitações
raciais, como, por exemplo, foi visto aqui:

O negro pertence a talvez a mais dócil e mutável de todas as raças. Ele prontamente
toma o tom e a cor de seu ambiente social, assimilando a cultura dominante com pouca
resistência. Mais do que isso, ele é comumente, embora não bem corretamente, visto como
tendo trazido da África pouco equipamento cultural próprio. Se a cultura se dissipa apenas
através do contato, há um jeito de traçar, na experiência de povos especialmente
susceptíveis, os processos de transformação que tipos diversos de associação geraram. Se a
teoria racial é correta, os traços raciais deviam aqui ter persistido; ou ao menos modificado
definidamente as novas influências que os povos europeus dominantes colocaram em contato
com o negro.21

Ainda que colocando o assunto de uma forma ligeiramente diferente, Park enfoca a questão no
mesmo nível quando, em sua discussão do problema do negro já citada, ele escreve:

Busquei neste breve esboço indicar as modificações, alterações e ocorrências


fortuitas pelas quais um temperamento racial passou como resultado de encontros com uma
cultura e vida estranhas a ele. Este temperamento, como o concebo, consiste de algumas
características elementares, ainda que distintivas, que são determinadas pela organização
física e transmitidas biologicamente. Estas características se manifestam numa disposição
solar, calorosa e social, num interesse e apego às coisas físicas externas, em contraposição a
estados subjetivos e objetos de introspecção; numa disposição para expressão, em
contraposição à ação e ao empreendimento. As mudanças que ocorreram nas manifestações
deste temperamento têm sido causadas por um impulso natural e inerente, característico de
todas as coisas vivas, de persistir e se manter quando em um ambiente diferente. Tais
mudanças ocorrem em qualquer organismo, em sua luta para viver e utilizar o ambiente em
que vive para ampliar e completar sua própria existência.22

Ora, não devemos negar que o problema do relacionamento entre a herança inata e as aptidões
culturais é importante, mas quanto mais esse problema é focado, mais dificuldades metodológicas ele
apresenta. Quando, portanto, os materiais sobre o negro do Novo Mundo são enfocados em termos desse
problema apenas – ou como, no caso de Park e Reuter, a partir do conceito de ―evolução social‖, que
inevitavelmente envolve uma tentativa de traçar ―estágios do desenvolvimento cultural‖ – os dados se
tornam complexos demais, demasiado difíceis de ver numa perspectiva trabalhável, e como consequência,
a pesquisa sugerida morre antes de nascer. Mas se uma presunção da vitalidade dos traços culturais
africanos é aceita como hipótese de trabalho a ser testada, e a área geográfica para o estudo for concebida
como incluindo os Estados Unidos, o Caribe, a América Latina, e as regiões relevantes da própria África,
diretivas atingíveis se tornam possíveis e a pesquisa é assim encorajada.

É reconhecido, para deixar claro, que não interessa como o problema seja formulado, ele leva o
estudioso para bem perto da qualidade fundamental do relacionamento entre as potencialidades biológicas
e culturais dos grupos humanos. Ainda assim, ao colocar a questão num nível cultural, essa investigação
não se torna imprescindível. A análise é mantida consistentemente no plano do comportamento
aprendido, de forma que qualquer papel que a herança inata tenha, ele não é admitido, para que não
confunda as questões da pesquisa. Assim o problema se torna relatar a presença ou ausência de
sobreviventes culturais no Novo Mundo, avaliar a intensidade de tais sobreviventes, descobrir como eles
se transformaram ou que como assumiram novos sentidos em termos da experiência histórica dos povos
em questão, e indicar até que ponto houve troca mútua entre todos os grupos que entraram em contato,
sejam eles europeus, índios ou africanos. Se certas constantes forem descobertas no comportamento de
todos os negros no Novo Mundo e também em seus parentes de Velho Mundo, então, e apenas então,
surgirá a questão sobre o grau, e se estamos lidando com um conjunto de fatores profundamente
tradicional ou dotado de motivações inerentes; ou com o problema cognato do grau com que, a vista do
cruzamento racial que ocorreu em toda parte no Novo Mundo, tais tendências inerentes persistiram.

O estudo dos resultados do cruzamento de raças é importante, e há aspectos de tal pesquisa onde,
como na questão da seleção social, os costumes precisam ser levados em conta. Mas o oposto não é
verdadeiro, e se os cientistas sociais que indicaram as potencialidades de pesquisa no estudo dos Negros
do Novo Mundo estivessem mais preocupados com seu principal campo de interesse, e menos com o
relacionamento entre raça e cultura; e se, acima de tudo, eles não tivessem presumido que o negro
apresentava uma tabula rasa cultural na qual receberam essa experiência de Novo Mundo, suas sugestões
poderiam ter estimulados os próprios estudos que eles reconheciam como úteis.

Um plano para lidar com as potencialidades de pesquisa do ―laboratório‖ histórico do Novo


Mundo através de uma investida coordenada sobre as culturas negras na África e no hemisfério ocidental
foi sugerido pela primeira vez em 1930.23 Ele previa o estudo no oeste da África para estabelecer a linha
padrão cultural através da qual as diferentes tradições de povos negros dominantes no Novo Mundo
poderiam ser avaliadas, e um estudo concomitante da vida dos negros nas Índias Ocidentais e na América
do Sul, onde a aculturação aos padrões europeus ocorreu menos rapidamente do que nos Estados Unidos.
As comunidades negras nos Estados Unidos seriam objetos posteriores de pesquisa, já que se reconhecia
que somente com base num pano de fundo mais amplo poderia ser alcançada uma investigação adequada
da presença dos africanismos e de seu funcionamento nesses grupos.

Este plano, que resumia uma reconsideração do problema dos africanismos esboçado nas páginas
anteriores, resultou essencialmente das descobertas de pesquisa de campo entre os negros da costa e das
florestas na Guiana Holandesa. Tornou-se evidente, por exemplo, mesmo durante a familiarização inicial,
que muitos dos costumes ancestrais africanos eram reconhecíveis nas tribos de negros da floresta, que
devido a seu longo isolamento, haviam vivido em contato mínimo com os europeus. Porém, para alguém
esperando alguns africanismos na floresta, e uma ausência destes na cidade costeira de Paramaribo, onde
os negros mantiveram contato contínuo e próximo não só com europeus, mas também com caraíbas,
javaneses, indianos britânicos e chineses, os resultados de um estudo mais aprofundado foram
surpreendentes. No interior, um sistema religioso africano completo, uma organização de clãs africanos
em bom funcionamento, nomes africanos para locais e pessoas, elementos africanos na vida econômica, e
um estilo de cortar a madeira que poderia ser traçado em fontes africanas, mostrava o que se poderia
encontrar em termos de instituições em qualquer cultura isolada em consideração. Na região costeira,
porém, ainda que sob europeísmos tais como o uso de roupas e dinheiro europeu, certificados de batismo
e alfabetização, numerosas instituições africanas, crenças e cânones de comportamento também foram
encontrados.24 A questão então se colocou: se é assim na Guiana, será que não seria proveitoso investigar
novamente o comportamento do negro em outras partes do Novo Mundo, com as lições dessa pesquisa
em mente? Uma revista intensa nas fontes publicadas tornou uma resposta afirmativa inescapável, e
culminou nesta descrição do que seria um enfoque mais abrangente.

A ferramenta conceitual que representa a mais intensa divergência quanto às práticas anteriores
está descrita na seguinte passagem:

É bem possível, baseados em nosso conhecimento atual, fazer um tipo de tabela


indicando até que ponto os descendentes de africanos trazidos para o Novo Mundo retiveram
africanismos no seu comportamento cultural. Se considerarmos a intensidade dos elementos
culturais nas várias regiões ao norte do Brasil (que não incluo aqui porque sobre elas há
dados insuficientes nos quais basear o juízo), podemos dizer que depois da própria África,
são os negros das florestas do Suriname que exibem a mais africana civilização. . . . Depois
destes, em nossa escala, colocaríamos os vizinhos negros das planícies costeiras das
Guianas, que, apesar de séculos de associação próxima com os brancos, retiveram uma
surpreendente quantidade de tradições africanas aborígenes, muitas das quais se combinaram
de jeitos curiosos com as tradições do grupo dominante. Em seguida em nossa escala
precisaríamos sem dúvida colocar os camponeses do Haiti . . . e associados a estes, embora
em menor grau, teríamos os habitantes do vizinho São Domingo. Desse ponto, quando
chegamos às Ilhas Ocidentais dos ingleses, holandeses, e (em alguns casos) dinamarqueses, a
proporção de elementos culturais cai perceptivelmente, . . . embora . . . entendamos que a
cultura africana não tenha, de forma alguma, sido totalmente perdida por eles. Em seguida
em nossa tabela, colocaríamos grupos isolados tais como os que os negros nas savanas da
Geórgia do Sul dos Estados Unidos, ou aqueles que vivem nas ilhas Gullah na costa da
Carolina, onde os elementos africanos da cultura são ainda mais fracos, e em seguida a vasta
massa de negros de todos os graus de mistura racial que vivem no sul dos Estados Unidos.
Finalmente chegaríamos a um grupo em que, para todos os fins e propósitos, não sobrou
nada restante da tradição africana, e que consiste de pessoas de vários graus de tipo físico
negroide, que só diferem de seus vizinhos brancos pelo fato de terem mais pigmentação em
suas peles.25

Revisões de detalhes nessa descrição, necessárias após o trabalho de uma década, precisam
obviamente ser feitas se tabularmos a intensidade dos africanismos nas várias áreas do Novo Mundo, ao
aplicarmos hoje essa ferramenta conceitual; mas a técnica em si provou em abundância sua utilidade.26
Assim, mais pesquisas concentradas foram feitas nas formas de vida religiosa dos negros no Brasil
durante a década passada do que em qualquer outra parte do Novo Mundo, e isso tornou disponíveis
materiais de primeira importância, que não estavam à mão dez anos atrás. Estudos sobre relações de raça,
e mais recentemente, sobre padrões não religiosos dos africanismos sobreviventes na cultura do negro
daquele país também começaram.27 A vida do camponês haitiano é hoje muito melhor conhecida,28 e a
importância dos sincretismos que marcam a reconciliação entre os costumes africanos e europeus em
muitos lugares desta cultura foi apontada.29 Estas discussões trazem mais relevo as sínteses
correspondentes no campo da religião que existe tanto entre os negros ―fetichistas‖ católicos do Brasil
quanto em Cuba,30 e que indicam aspectos de aculturação do negro do Novo Mundo que têm uma
importância muito maior para a compreensão dos resultados do contato cultural do que importância para
este problema em particular. Com materiais comparativos mais completos em mão, também é possível
utilizar fontes mais velhas destas regiões e da Jamaica mais efetivamente, já que no caso desta os
costumes da população dos negros foram descritos em um dos trabalhos etnográficos pioneiros na área do
negro do Novo Mundo.31
Pesquisas mais recentes no oeste da África também enfatizaram a complexidade das culturas
desta parte do continente em que um número tão imenso de negros escravos foi capturado. Este trabalho
nos leva na direção de uma solução ao enigma de como os negros, vindos de tribos diferentes e falando
línguas diferentes, por um ainda não reconhecido denominador comum na tradição e na fala, conseguiram
preservar elementos de sua herança.32 A pesquisa nas Ilhas Virgens,33 e Trinidade,34 também da mesma
forma causaram uma necessária revisão na escala de intensidade dos africanismos, pois o trabalho de
campo demonstrou o princípio de que o processo de aculturação deve ser analisado em cada localidade
nos termos das peculiaridades de seu próprio passado histórico e de seu próprio presente socioeconômico.

Dez anos atrás não pareceria possível que os africanismos sobreviventes encontrados no sul dos
Estados Unidos seriam comparáveis àqueles perceptíveis em quaisquer das ilhas das Índias Ocidentais.
Ainda assim a variação de intensidade dos africanismos nas Antilhas, enquanto sem dúvida maior do que
no sul no que diz respeito a seus elementos africanos, cobre a gama total na direção da mais completa
aculturação a padrões europeus que pode ser encontrada, não só nos estados do sul, mas também nos
estados do norte. Certamente não é comumente compreendido que a situação socioeconômica numa ilha
como Trinidade apresenta aspectos que tem sentido quando comparado com a dos negros nos Estados
Unidos – arrendamento de terras, a presença do trabalhador industrial, e assim por diante. Paralelos
impressionantes, porém, são encontrados – e, podemos esperar, não serão alvo da negligência com que os
estudiosos dessas fases do problema do negro, em sua relutância em fazer análises comparativas,
acordaram tão unanimemente.

Uma ferramenta adicional, que foi cada vez mais usada no decorrer da pesquisa, é o conceito de
―província cultural de Velho Mundo‖. Na medida em que viemos a conhecer as culturas do continente
africano inteiro, nos tornamos cientes de numerosos correspondentes culturais entre as civilizações
africanas, europeias e asiáticas. Como indicaremos adiante em nossa discussão, isto fica mais evidente no
campo do folclore, onde, por exemplo, contos de animais ao estilo dos do Tio Remus são encontradas no
ciclo Reynard da Europa medieval, nas fábulas de Esopo, no Panchatantra da Índia, nos contos Jataka da
China, e nas histórias de animais da Indonésia. Certos aspectos do uso da magia, de provações, do papel e
das formas de adivinhação, de concepções do universo (especialmente a organização das divindades em
grupos de relacionamento), de jogos, do uso de provérbios e aforismos, são também vastamente
espalhados no Velho Mundo.

Todos estes elementos, e muitos outros que não é possível detalhar aqui, têm efeito sobre o
estudo da sobrevivência dos africanismos no Novo Mundo. É a isto que precisamos nos voltar para uma
explicação do fato aparentemente surpreendente, tantas vezes encontrado, de que certos traços do negro
do Novo Mundo, e especialmente do comportamento do negro americano, são igualmente associáveis
tanto a uma origem europeia quanto africana. Isso pode muito bem ser visto como nada mais do que um
reflexo do fato de que lá no fundo, entre as diferenças destas diversas civilizações do Velho Mundo, estão
aspectos comuns, que, em formas generalizadas, podemos esperar emerjam em situações de contato
próximo entre os povos, tais como os Europeus ou Africanos, cujas heranças culturais especializadas
estão compreendidas dentro de uma unidade mais ampla.

É evidente que a pesquisa no problema dos africanismos sobreviventes nos Estados Unidos,
quando colocada em seu contexto próprio, leva o estudioso a áreas de importância para a compreensão da
natureza e dos processos da civilização humana. É também evidente que o problema não pode ser
estudado com grande eficiência senão sob os termos deste enfoque amplo; e que, acima de tudo, se for
realizar seu potencial como um meio de compreensão científica, é preciso dar um fim às afirmações sem
fundamento que dizem respeito ao desaparecimento das tradições trazidas pelos escravos de suas terras
natais. Como indicaremos adiante, a cultura africana, em vez de fraca no contato, é forte ainda que
flexível, e com uma flexibilidade que tem ela própria aprovação na tradição aborígene. O africano
mantém que é vão não buscar uma adaptação ao formato exterior, onde isso possa ser alcançado ―de certa
forma‖. Antes de discutirmos isso mais a fundo, porém, precisamos considerar a importância de nossa
análise da tenacidade cultural e da flexibilidade com aquelas questões de importância prática, sugeridas
na sessão de abertura desse capítulo, questões que nenhum estudioso do negro, por mais que seu enfoque
seja desvinculado deste, pode desconsiderar.

Voltamo-nos novamente, portanto, ao fenômeno do preconceito de raça, o fator que fornece a


racionalização para muitas das tensões inter-raciais que são a essência da preocupação do homem prático.
O preconceito de raças, quando analisado, é descoberto assentado na operação de dois fatores
proximamente inter-relacionados, um deles socioeconômico, o outro histórico e psicológico. Estes fatores
sociais e econômicos são bem reconhecidos; certamente, e é com esses que tanto os estudos práticos e
acadêmicos da vida do negro tem se preocupado em primeiro lugar, e muitas vezes exclusivamente. A
razão disto é clara. Os estresses alojados nesta área são imediatos, e pedem tão urgentemente por uma
solução que o impulso de fornecer primeiros socorros é difícil de resistir. Além disso, na superfície, pelo
menos, esses estresses podem estar conectados com a situação da escravidão; e sua acentuação durante o
regime escravista e desde sua supressão pode ser, portanto, pronta e satisfatoriamente explicada.
Finalmente, em programas de ação, muitas destas dificuldades são do tipo encontrado em formas
análogas a outros setores das configurações socioeconômicas deste país, e dessa forma podem ser
razoavelmente consideradas susceptíveis a investidas efetivas com a operação de projetos paliativos de
curto-prazo.

O efeito deste enfoque tem sido relegar ao pano de fundo a base psicológica do problema de
raça, e seus aspectos históricos menos imediatos, quando não totalmente os ignorando. Novamente, isso é
compreensível, pois fenômenos deste tipo não podem ser estudados, e muito menos avaliados, sem uma
análise longa e sustentada, como a que já foi esboçada. E isso, muito frequentemente, dá a esses
problemas um ar de distanciamento que milita contra seu apelo para aqueles buscando soluções imediatas
para necessidades urgentes. Ainda assim, estes fatores estão tão profundamente entrincheirados na
situação inter-racial quanto aqueles elementos que jazem no nível social e econômico, e são muito mais
insidiosos. À luz do pensamento atual sobre diferenças raciais em geral, eles são a causa mais efetiva na
perpetuação de todas as sombras do ranking de superioridade-inferioridade dados a brancos e negros por
membros de ambos os grupos. Aqui estamos lidando com pontos de vista que receberam sua força e
direção de gerações de reiteração de valores culturais, de valorações comparativas, de dignidade histórica.
É, portanto, neste ponto que toda a circunstância histórica, que inclui o problema dos africanismos no
comportamento do negro Americano, se torna crucial, já que a questão da herança social penetra
intimamente na determinação das presunções sobre as quais repousam as atitudes ligadas à inferioridade
do negro. E é nessas atitudes, como validadas pela série de concepções aqui agrupadas sobre o título de
‗mito que diz respeito ao passado do negro‘, que racionalizam e justificam as falhas que, perpetuadas
através das gerações, causam o desconforto atual entre os negros que sofrem por elas e causam um
sentimento difuso e todo-envolvente de mal estar, e até culpa, entre aqueles que as impõe.

Não importa que posição com relação aos africanismos esteja em consideração, a presunção de
relacionamentos funcionais entre as várias forças – herança inata e ambiente natural, por um lado, e
comportamento observável, por outro — precisa ser levada em conta. Em trabalhos dos estudiosos mais
antigos, especialmente em Nott e Glidden,35 uma inferioridade biológica inescapável foi dada como
explicação para aqueles traços de comportamento comuns no negro e então tidos como indesejáveis. Este
ponto de vista foi bem resumido por L. C. Copeland:

A dependência do sul pelo negro é ainda mais obscurecida pela crença na completa
dependência da raça negra pela raça branca no que diz respeito a apoio moral, e também
econômico. O negro é visto como uma raça infantil, protegida pelo homem branco
civilizado. É nos dito: ―Ao homem negro selvagem e não civilizado falta a capacidade de
organizar sua vida social ao nível da comunidade branca. Ele não tem limites e requer o
controle constante das pessoas brancas para mantê-lo na linha. Sem a presença da polícia
branca, os negros se voltariam uns contra os outros e se destruiriam. O homem branco é a
única autoridade que conhece.‖36

Este é o resultado final da repetição constante da inferioridade dos negros e da cultura africana,
indicada na mesma discussão nestes termos:

Ao comentar sobre os livros da época de sua juventude, Booker T. Washington


ficou surpreso com a maneira com a qual eles ―colocavam as imagens da África e da vida
Africana num contraste desnecessariamente cruel com as imagens dos americanos e
europeus civilizados e altamente aculturados.‖ Em um livro uma imagem de George
Washington era ―colocada lado a lado com um africano nu, com um anel no nariz e uma faca
na mão. Aqui, como em outros lugares, de forma a colocar a posição elevada que a raça
branca atingiu em contraste agudo com a condição inferior de um povo mais primitivo, o
melhor entre os brancos era contrastado com o pior entre os negros." Washington relatou que
ele inconscientemente foi tomado por um sentimento todo-envolvente de que deve haver
algo de errado e degradado sobre qualquer um que seja diferente do usual.37

Deixando de lado por um momento o importante comentário de Booker T. Washington de que o


contraste entre a vida Africana e a europeia ou Americana foi tornado desnecessariamente cruel, é
compreensível como negros e brancos imparciais, motivados a analisar a situação inter-racial, viessem a
sentir que todas as considerações estratégicas tornavam desejável a negação mais enfática possível da
influência africana sobre os costumes negros atuais.

Algumas das afirmações ligadas a este ponto, encontradas em obras que tiveram vasta circulação
e influência considerável, e a que essa atitude negativa era projetada para combater, podem ser citadas.
Dowd, em seu muito citado Negro na vida Americana (Negro in American Life), faz a afirmação direta,
―Em nenhum lugar na África os negros desenvolveram uma civilização,‖ e qualifica isto apenas com a
seguinte colocação:

. . . mas eles demonstraram capacidade de assimilá-la. Na região do império


Fellatah, antes da chegada dos europeus, os nativos haviam aprendido a ler e escrever em
árabe, e haviam estabelecido vários centros educacionais importantes.38

Em todas as instâncias em que esta visão da capacidade criativa inferior do negro é levantada, ela
é geralmente acoplada com uma observação sobre seu dom imitativo, que por sua vez se torna uma razão
adicional para uma política de controle rígido dos negros pelos brancos, como a que já indicamos. Mas
implicações adicionais são retiradas disso:

A característica da autodiminuição, envolvendo por si só uma falta de respeito


próprio, explica a extraordinária capacidade de imitação do negro. ―Essa imitação escrava do
branco,‖ diz Mecklin, ―até o ponto de haver a tentativa de obliterar as características físicas,
como o cabelo encaracolado, é quase patética, e extremamente importante como indicadora
da ausência de um sentimento de orgulho ou integridade de raça. Qualquer imitação de uma
raça por outra, de um tipo tão servil e generalizado ao ponto de envolver total autonegação,
há de ser desastrosa para todos os envolvidos."39

A capacidade de imitação é só uma fase do que é descrito como mente infantil do negro,
possuidora de uma disposição alegre. Embora afirmações semelhantes não sejam encontradas
frequentemente em obras mais recentes, a ideia é suficientemente atual ao ponto de merecer seu lugar no
sistema mitológico como ele se apresenta. Um exemplo deste ponto de segue nas citações de Dowd:

A mente do negro pode ser mais bem entendida pela comparação dela com a de
uma criança. Por exemplo, o negro vive no presente, seus interesses são objetivos, e suas
ações são governadas por emoções. . . . William H. Thomas, ele próprio um negro, também
percebeu os traços infantis de sua raça: ―O negro vive apenas no presente, e embora as vezes
fale de forma triste ou agite-se cheio de angústia, ele é, como uma criança, rapidamente
acalmado com conversa frívola e facilmente distraído pela fala persuasiva.‖ . . . Se a alegria
é característica das crianças e da mente do negro, também a impulsividade e os ataques de
raiva o são. O negro, como uma criança, se irrita facilmente, e é dado a brigas e discussões.
Quando enraivecido ele se torna uma "amazona furiosa, aparentemente fora de controle,
cada vez mais enlouquecido a cada momento, com olhos rodopiando, lábios arregaçados,
pisoteando, se debatendo, gesticulando."40

Um estudo que atraiu muita atenção como uma obra de referência – o excerto dela na passagem
anterior é apenas uma instância das muitas vezes em que ela é citada – foi uma das primeiras
contribuições de Odum. A posição atual deste autor segue a do grupo mais liberal de estudiosos do negro;
ainda assim o parágrafo apresentado abaixo precisa ser citado para dar um exemplo da posição ainda
tomada por muitos no que diz respeito à mentalidade do negro e o valor relativo de suas fundações
africanas. Precisa ser considerado como especialmente importante, de fato, pela posição que a obra de que
é retirado tomou na história da pesquisa do negro:

Além da infantilidade, e o afetando direta e indiretamente, estão as características


da raça. O negro tem pouca consciência de lar ou amor pelo lar. . . . Ele não tem orgulho de
ancestralidade . . . tem poucos ideais . . . pouca concepção do sentido de virtude, verdade,
honra, masculinidade, integridade. Ele é preguiçoso, desarrumado e largado . . . a tendência
migratória ou de vagabundagem parece ser natural a ele. . . . O negro evita detalhes e tarefas
difíceis. . . . Ele não conhece o valor de sua palavra ou o sentido das palavras em geral. . . . O
negro é imprevidente e extravagante; . . . ele não tem iniciativa; frequentemente ele é
desonesto e enganador. Ele é demasiadamente religioso e supersticioso . . . sua mente não
concebe fé na humanidade – ele não a compreende.41

Assim Odum concebia a mentalidade do negro em 1910; seu conceito da forma de educação
mais adequada para as crianças negras precisa também ser indicado como cogente:

. . . Faça com que as influências sobre a criança negra, pelo menos na medida em
que a escolar consiga, levem-na na direção da aceitação sem questionamentos do fato de que
ele é de uma raça diferente da branca, e que isso é assim; que sempre foi assim e sempre
será; que não é negativo não ser capaz de ser como os brancos, e que não é necessariamente
positivo imitar a vida do homem branco. . .42

No desenvolvimento de suaq tese, uma expressão de sua concepção do valor comparativo do


passado do negro africano é indicativa: ―Ao ler historias da África ele pode aprender sobre como sua
situação é melhor do que a de seus primos.‖

John Daniels, que escreveu uma história dos negros de Boston frequentemente citada, avalia a
herança aborígene nestes termos:

É claro inegável que as condições anteriores a partir das quais a população negra de
Boston se derivou, foram desde os primeiros tempos até hoje de um tipo particularmente
inferior. Os primeiros membros desta raça que apareceram nesta cidade foram trazidos, por
via das Bahamas, de sua selva africana nativa, onde seus ancestrais viviam desde tempos
imemoriais num estado de selvageria primitiva. Eles próprios selvagens, completamente
ignorantes da civilização, sem religião alguma além de uma superstição nascida do medo, e
sem qualquer concepção de moralidade através racional.43

Outro exemplo que mostra como esta posição persiste em pensamento em cantos inesperados do
mundo, é a seguinte passagem de uma revista psicanalítica, recentemente citada por J. Dollard:

Sem questionar os testes antropométricos que correspondem proximamente com


aqueles dos nativos africanos, encontramos várias qualidades indicativas de um
relacionamento. A precocidade das crianças, a puberdade precoce, o incapacidade de
sustentar ideias subjetivas, os fortes instintos sexuais e de comportamento de rebanho com
poucas inibições, a vida de sonhos simples, a fácil reversão ao estado selvagem quando
privados da influência dos limites dos brancos (como no Haiti e na Libéria), a tendência a
buscar expressão em meios rítmicos tais como música e dança, a baixa resistência a toxinas
tais como a sífilis e o álcool, a influência controladora da superstição, todas estas coisas e
muitas outras mais traem o coração selvagem por trás do exterior civilizado. Não é porque
ele veste um terno de Palm Beach em vez de uma tanga de folhas, usa uma bengala com
empunhadura de ouro em vez de uma lança, usa um telefone em vez de bater um tambor de
colina a colina e trocou o caminho da selva pelo bonde, que sua psicologia não é a africana.44
Esta citação é especialmente significativa devido a forma com a qual ela indica como, ao
empregar fraseologia e conceitos psicanalíticos, esta visão mais antiga da herança negra e do passado
negro pode ser racionalizada. Que se possa esperar que a avaliação do negro dos Estados Unidos por este
autor seja mais acurada do que sua exposição da civilização africana não é o ponto, o ponto tem a ver com
a luz que a citação joga sobre a forma com que um conceito, uma vez que tenha sido desenvolvido, pode
se apresentar de uma nova forma.

É preciso enfatizar que neste momento estamos preocupados somente com as avaliações do
passado negro que serviram para estabelecer a negação de qualquer vitalidade nos traços culturais
africanos no esquema da vida do negro americano. Algumas outras avaliações semelhantes a estas podem
ser examinadas. Hoffman, ao afirmar que os materiais usados em seu estudo do negro constituem ―uma
condenação muito severa das tentativas modernas das raças superiores de elevar as raças inferiores a suas
próprias posições elevadas‖ mostra a atitude tomada em outra dessas obras.45 A influência de Tillinghast,
que foi enorme, fica especialmente evidente nas referências ao suposto efeito do clima africano sobre a
herança cultural do negro. Duas citações podem ser dadas para exemplificar esse enfoque:

A influência direta do clima africano é avessa ao esforço persistente. Onde altas


temperaturas e baixa umidade prevalecem, a evaporação rápida do corpo o esfria, e permite
o esforço contínuo, como no caso do Egito. A alta umidade combinada com uma
temperatura baixa, como nas Ilhas Britânicas, não tem efeitos ruins. Mas o oeste africano
não possui nenhuma dessas vantagens, derrete-se sob um calor tórrido combinado com
umidade em excesso. Tais condições impossibilitam o esforço industrioso. O homem branco,
cuja capacidade para trabalho energético e prolongado na maioria das circunstâncias é
normalmente bem grande, e cujas necessidades são numerosas e insaciáveis, se descobre
irresistivelmente subjugado. Grandes recompensas aguardam aqueles que consigam colocar
um pouquinho de esforço, e ainda assim, como diz Ellis, a falta de inclinação para o trabalho
é tão grande que mesmo as vontades mais fortes raramente conseguem combatê-la. De fato,
até mesmo essa vontade ela mesma parece se tornar inerte.

Estamos agora preparados para apreciar as operações do fator vitalmente


importante da seleção natural. É óbvio que no oeste africano a seleção natural não tenderia a
desenvolver grande capacidade industriosa e aptidão, simplesmente porque estas não são
necessárias à sobrevivência. Onde um clima frio e de produção natural pobre configuram
uma ameaça constante de destruição para aqueles que não conseguirem ou não colocarem
esforço persistente, a seleção opera sua eliminação e assim preserva a eficiência. No fértil e
quente oeste africano, porém, as condições da existência têm sido fáceis demais ao longo das
eras para efetuar a seleção dos eficientes e rejeitar os ineficientes.46

Que tais afirmações não sejam mais levadas a sério atualmente não precisa nem ser mencionado,
uma vez que referências de Tillinghast a Spencer adequadamente datam sua concepção do papel da
seleção natural na determinação de traços de comportamento social. Ainda assim, a luz do número de
vezes que essa obra foi citada, isso precisa ser levado em conta.

U. B. Phillips, o mais conhecido historiador da escravidão, fraseia suas avaliações do cenário


africano da seguinte forma:

O clima de fato não só desencoraja, mas proíbe o esforço mental de caráter intenso
ou sustentado, e os negros se submeteram a essa proibição como a tantas outras, através de
incontáveis gerações, com excelente graça. . . . Seria difícil afirmar que a vida selvagem é
idílica. No entanto permanece a questão, e ela pode não ser respondida por muito tempo, de
se a forma com a qual os negros foram colocados em contato com a civilização resultou em
maior maldição ou bênção. Essa forma foi determinada, pelo menos em parte, pela natureza
do negro típico. Impulsivo e inconstante, sociável e amoroso, volúvel, dilatório e negligente,
ainda que robusto, amigável, obediente e satisfeito: foram os melhores escravos do mundo.47

N. N. Puckett se expressou de forma semelhante no que diz respeito às características africanas, e


referencia traços de comportamento inatos e aprendidos, como em outras instâncias, indistintamente:

A impulsividade é outro traço africano que nos Estados Unidos está sendo
gradualmente abandonado em favor de um maior autocontrole. . . . A preguiça é encontrada
tanto na África quanto na América; na África ela é aumentada pelo enervante ambiente
tropical. . . . Enquanto uma vida sexual bem regulada em parte resulta das fundações
culturais, ainda assim o descontrole sexual do negro, tão evidente na África e em muitas
partes do sul rural, pode ser concebivelmente uma característica racial desenvolvida pela
seleção natural no oeste africano como resultado da tenebrosa mortalidade. . . . No oeste
africano o despotismo parece angariar lealdade, orgulho e popularidade, possivelmente
porque um mestre de mente forte mostra espírito suficiente para ressentir a agressão, e
autoconfiança suficiente para proteger seus seguidores de perturbações externas. . . . Visão
estreita, indiferença e desconsideração com relação ao futuro são traços comuns não só aos
africanos e a muitos negros, mas a quase todos os povos primitivos indisciplinados. 48

Em O negro da África até a América (The Negro from Africa to America) de Weather Ford, as
valorações das fundações africanas, e a importância de conhecer quais delas são enfatizadas, seguem o
mesmo padrão, como evidente nessa passagem dos comentários introdutórios:

Acreditamos que muito da atual resposta do negro ao ambiente social é


influenciado pela herança social, não só da escravidão, mas do passado africano longínquo.
Isto de forma alguma é uma indireta no sentido de que o negro não tenha progredido muito
em relação àquele passado. De fato, ninguém pode ler a história desse fantástico progresso
sem se maravilhar muito, e essa maravilha fica ainda mais amplificada quando olhamos o
passado humilde da raça. Por outro lado, não há dúvida de que há vestígios de uma herança
social longínqua nas reações sociais atuais do negro Americano, que se não forem
compreendidos, viciarão todos os nossos juízos a seu respeito.49

A deficiência cultural do negro é explicada nestes termos:

Como os povos das montanhas do Tennessee, do Kentucky e da Carolina do Norte,


que por dois séculos ou mais do que isso foram mantidos isolados em suas montanhas e
assim ficaram dois séculos atrasados perante a procissão da civilização, da mesma forma os
povos africanos, presos pelas barreiras naturais de seu continente por milhares de anos,
ficaram muitos séculos atrás do progresso da civilização, e não exatamente por sua
capacidade inferior, mas principalmente, pelo menos, porque formaram menos contatos.50

O chamado à tolerância é consistente com a posição tomada:

O estudioso do negro americano hoje, se quiser mesmo entendê-lo no presente,


precisa encarar esta tarefa com conhecimento do passado do negro. Ele precisa estar disposto
a julgá-lo em termos da distância que andou desde que saiu de seu lar africano, em vez de
apenas compará-lo com o homem branco que teve milhares de anos de vantagem. Ele precisa
reconhecer que os traços construídos em uma raça por longos séculos não vão ser dissipados
em poucos anos ou mesmo em poucas décadas, e que a vida política e econômica do negro
americano hoje, à luz de suas origens, é nada menos do que admirável.51

Dez anos depois da publicação do volume no qual as passagens acima apareceram, o autor
obteve um colaborador e viu uma nova luz. Se o colaborador foi o responsável pela mudança de opinião,
ou se foi uma consideração mais cuidadosa de sua própria parte que causou isso, não é possível dizer, mas
um ponto de vista muito diferente é expresso no trabalho colaborativo, que, a fim de colocar as coisas em
perspectiva, também será citado:

Já que a cultura da África é, portanto, bem diferente de nossa própria, somos dados
a concluir que é inferior. Ora, não derrubamos a floresta, cavamos minerais da terra, e
desenvolvemos máquinas ponderosas, aniquilamos o espaço, subjugamos a natureza à nossa
vontade? Os africanos não fizeram nenhuma dessas coisas da forma marcante que fizemos; e
assim estamos inclinados a dizer que essa cultura é inferior e que os povos africanos são
inferiores. Os dotes dos povos podem se revelar muito mais uma capacidade de adaptar sua
cultura ao ambiente em que vivem do que uma capacidade de tomar cultura emprestada do
resto do mundo, e com base nisso podemos vir a descobrir que, ao estudarmos mais
profundamente, os povos africanos tenham muito para fazê-los dignos de nosso respeito.52

Não é estranho que os extremos a que seguem as afirmações citadas acima tenham levado à
convicção de que, já que o passado africano constitui uma deficiência séria, a melhor coisa a fazer seria
desconsiderá-lo sempre que possível; a partir do que a racionalização de que nada dessa deficiência
africana permanece é só mais um passo, especialmente uma vez que, como foi indicado, o grau de
aculturação aos padrões da maioria branca manifestado efetivamente pelos negros nos Estados Unidos é
bem grande. As citações que acima são, é claro, provenientes das penas de homens acostumados a
escrever com cuidado; eruditos, cujas palavras são calculadas para promover a busca por conhecimento, e
não para levar à ação. É desnecessário ir além de meramente lembrar as incontáveis afirmações e
repetições de afirmações que vieram de jornalistas, do clero, de políticos e daqueles outros que tomaram
como garantida a inferioridade do negro, e foram capazes de exercer suas convicções por um controle do
poder que, depois da abolição não era menor do que antes, eles usaram para manter o negro na posição da
esfera social designada a ele por sua inferioridade.

Este não é o momento em nossa discussão para investigar até que ponto as avaliações da cultura
africana são bem fundamentadas.53 Aqui podemos apenas sugerir que, para aqueles preocupados com os
melhores interesses do negro, há amplas razões para concluir que a estratégia exige uma refutação da
afirmação de que o negro tenha sempre sido, e sempre precise ser o detentor de uma tradição inferior, a
qual, já que ele nunca será capaz de simplesmente se livrar dela, vai amaldiçoá-lo a um estado perpétuo
de inferioridade. Que eles tenham errado o alvo ao buscar uma mudança de ênfase em vez de corrigir o
engano não é a questão; as razões pelas quais eles tomaram a posição que tomaram são, tendo em vista
seu ponto de vista, inatacáveis.

Ainda assim não nos é permitido concluir que esta é a única razão pela qual a presença dos
africanismos foi negada, tanto nos Estados Unidos quanto de forma geral no Novo Mundo. Um ponto de
vista etnocêntrico é comum a qualquer povo, e em nossa sociedade, se tornou estabelecido em termos da
ideia de que nenhum povo sem escrita pode sustentar o contato com a cultura euro-americana. Presume-
se, por exemplo, que as culturas primitivas – geralmente denotadas por não cientistas como ―inferiores‖
ou ―simples‖ – estão morrendo em toda parte devido a esse contato. Neste país, o desaparecimento de
muitas tribos indígenas fez muito para fortalecer este etnocentrismo; aplicado aos africanos
transplantados, cuja maleabilidade e subserviência foram utilizadas para explicar sua sobrevivência física
durante a escravidão, tomou a forma de uma aceitação automática do desaparecimento da tradição
africana face à associação com os brancos. Um caso semelhante a este pode ser citado, mais interessante
ainda porque não diz respeito aos negros dos Estados Unidos e não tem a ver com uma teoria de mérito
cultural relativo. Em 1888, William W. Newell, ao discutir o culto vodu do Haiti, disse:

Muito embora todos os escritores que aludiram a essas superstições as tenham


presumido heranças da África, serei capaz de evidenciar: primeiro, que o nome Vaudoux, ou
Vodu, deriva-se de uma fonte europeia; segundo, que as crenças a que a palavra denota são
igualmente importados da Europa; e terceiro, que a suposta seita e seus supostos ritos, em
toda probabilidade, não existem verdadeiramente, e são apenas produto da imaginação
popular.54

Quanto à última afirmação não estamos preocupados, mas ao ―estabelecer‖ suas outras
proposições, Newell curiosamente resume o método daqueles que, em vários campos, derivam as
peculiaridades dos costumes negros de fontes europeias. Ora, ele concebe o rito quase puramente africano
do vodun como mero desentendimento, por negros haitianos, da seita herética francesa dos Waldenses,
cujo nome eles pronunciavam errado, e cujo ritual teria sido distorcido pelos negros quando eles o
adotaram em detrimento de suas crenças religiosas aborígenes.

As citações dadas nas páginas de iniciais dessa discussão podem ser tomadas como típicas do
ponto de vista da maioria dos estudiosos atuais do negro. O passado africano pode talvez ser reconhecido
fragmentariamente em alguns aspectos da vida do negro contemporâneo dos Estados Unidos, mas tais
africanismos sobreviventes são tomados como objeto de estudo apenas numa concepção absolutamente
―de antiquário‖. À cultura africana pode ter sido concedido um maior grau de respeitabilidade se
comparado ao passado – embora, como vimos, o ponto de vista a partir do qual Hoffman, Tillinghast,
Dowd, Mecklin, as primeiras manifestações de Odum e Weather Ford, e outros adiantaram com respeito
ao baixo calibre dos modos de vida africanos não perdeu sua vitalidade. E a cultura africana, de toda
forma, é tida como desimportante, e assim pode ser desconsiderada no estudo da vida atual do negro
nesse país. Esse é o ponto de vista expressado no estudo de Powdermaker's de Indianola:

O negro não veio para cá despido culturalmente, mas as condições de escravidão


foram tais que uma grande parte de sua cultura aborígene sem dúvida se perdeu. Foi
separado de seus companheiros de tribo, e a ele foi ensinada uma nova língua, e dessa forma
foi forçado tanto de forma sutil quando explícita a aceitar a cultura dos mestres brancos. Sem
dúvida, há alguns resquícios da cultura africana, mas determinar exatamente quais são eles
exigiria um tipo muito diferente de pesquisa. Os elementos históricos só entram nesse ponto
de vista quando se fazem sentir em processos e atitudes atuais.55

Outros exemplos, numerosos demais para serem citados aqui, podem ser levantados em estudos
cuja preocupação é com uma única fase do problema. Krapp56, por exemplo, argumenta que toda a fala do
negro pode ser traçada ao dialeto inglês, embora esta proposição esteja de acordo com a proposição geral
de que, ―no que diz respeito à pronúncia, é duvidoso se uma única instância da pronúncia do inglês
americano normal tenha sido modificada pela influência de uma língua estrangeira‖ e que, em questão de
vocabulário, ―o inglês americano foi muito lento ao emprestar palavras de outras línguas‖57 A presunção
mais familiar, porém, não está ausente em seus escritos:
Os dialetos africanos nativos se perderam completamente. Que isso tenha
acontecido não é surpresa, pois é um axioma linguístico que quando dois grupos de pessoas
com línguas diferentes entram em contato, uma com um nível cultural relativamente alto e a
outra com um nível cultural relativamente baixo, a última se adapta livremente à fala da
primeira, e o grupo no plano cultural superior toma pouco ou quase nada emprestado do
inferior.58

Se ―alto‖ e ―baixo‖ fossem substituídos por ―dominantes‖ e ―minorias‖ como designações


culturais, haveria pelo menos uma pressuposição lógica de que tal processo poderia ocorrer – muito
embora se em instâncias suficientes para que surgisse um ―axioma linguístico‖, não é possível dizer. Mas
a afirmação como foi colocada, na medida em que toca no assunto em questão, é apenas outro exemplo
do padrão convencional de expressão no que diz respeito a herança aborígene do negro.

Segue-se logicamente, portanto, que homens de boa fé poderiam bem concluir que quanto menos
for dito dos africanismos, melhor. Mas e se a avaliação dos africanismos não for correta? E se as culturas
da África das quais os negros do Novo Mundo vieram, quando descritas em termos dos resultados do
método científico moderno, forem reveladas como sendo vastamente diferentes do estereótipo atual? E se
essas culturas se imprimiram em seus detentores, e nos descendentes desses detentores, profundamente
demais para serem erradicados, do mesmo modo que as heranças culturais dos vários grupos de
imigrantes europeus? Mais do que isso, e se descobrirmos que a herança aborígine africana, em certos
sentidos, foi até mesmo transmitida aos brancos, fazendo do contato uma troca cultural – como ocorreu
com outros grupos – em vez da herança por um povo inferior dos hábitos de um grupo superior?
Suponhamos, em resumo, que se pudesse mostrar que o negro é um homem com passado, e um passado
respeitável; e que, com o tempo, poder-se-ia disseminar o conceito de que a as civilizações da África, tais
como as da Europa, contribuíram para a cultura americana como a conhecemos hoje; e que essa ideia
possa vir talvez a ser incorporada nos cânones gerais do pensamento. Esta não seria uma medida prática,
com a tendência de dissipar as presunções que fomentam o preconceito racial?

Há outras formas mais imediatas através das quais uma perspectiva mais verdadeira no que diz
respeito aos africanismos pode ajudar de um ponto de vista prático:

Ao acatarmos que as forças econômicas e sociais atuais são predominantes na


modelagem das relações de raça, nunca devemos esquecer que os imponderáveis
psicológicos também são de primeira importância na validação da ação em qualquer nível. E
são imponderáveis desse tipo . . . que . . . agora se fortalecem com os resultados de estudos
que ignoram o único ponto de partida válido na investigação social – o pano de fundo
histórico do fenômeno sendo estudado e os fatores que causam sua existência e perpetuação.
Quando, por exemplo, vemos enormes programas de educação do negro assumidos sem
consideração alguma à possibilidade de alguma retenção dos hábitos de pensamento e fala
africanos que possam influenciar a recepção pelos negros da instrução oferecida, não
podemos deixar de nos perguntar como esperamos alcançar os objetivos desejados. Quando
somos confrontados com estudos de relação de raça feitos em completa ignorância dos
padrões característicos de motivação e de comportamento, ou com análises sociológicas da
vida em família do negro que nem tentam levar em conta sequer o acaso em que o fenômeno
sendo estudado possa de alguma forma ter sido influenciado pela transmissão de certas
tradições africanas; quando contemplamos relatos da historia da escravidão que transformam
a vida na plantação uma espécie de paraíso ao ignorar ou distorcer o fato essencial de que a
instituição só persistia com constantes precauções tomadas contra a revolta dos escravos, não
podemos deixar de nos questionar sobre o valor de tais trabalhos.59
Ainda assim, estudos deste tipo estão sendo feitos, e neles o procedimento comum do cientista,
no qual ele tentaria levar em conta todos os fatores possíveis, é invariavelmente negligenciado em favor
de uma repetição não crítica de afirmações que dizem respeito ao passado aborígene do negro. E isso,
aqui afirmamos, atinge um único resultado com uma certeza que chocaria aqueles que são a causa dessa
distorção da erudição. Já que embora muitas vezes tenha sido apontado que a cor da pele do negro o torna
um alvo muito visível para o preconceito, não é tão bem reconhecido que a opinião comum sobre a
natureza da herança cultural do negro é o que faz dele o único elemento na povoação dos Estados Unidos
que não tem um passado operativo, exceto no que diz respeito à escravidão. Há ainda outro ponto de
importância prática que não deveria ser esquecido ao avaliarmos as implicações de um estudo adequado
das fundações do negro e da retenção dos africanismos. E este é o efeito nos representantes atuais desta
raça sem passado, da destituição que sofrem ao não possuírem orgulho de tradição. Pois nenhum grupo na
população deste país se convenceu mais completamente da natureza inferior das bases africanas do que os
negros. Woodson explicou este ponto com estas palavras:

Os próprios negros aceitam como um elogio a teoria de um rompimento completo


com a África, porque acima de todas as coisas eles não se querem ser conhecidos de
nenhuma forma como semelhantes a esses ―africanos terríveis.‖ Por outro lado, os brancos se
gabam consideravelmente sobre o que preservaram das culturas ancestrais "teutônicas" ou
"anglo-saxônicas," enfatizando especialmente o que há de bom e nada dizendo sobre as
práticas indesejáveis. Se disséssemos a um homem branco que sua instituição de
linchamento é resultado do costume de fazer bradar "gritos de guerra" entre seus ancestrais
tribais na Alemanha, ou que seu costume de fazer negócios informais com estrangeiros e
cidadãos negros independentemente de proibições estatais é o eco vestigial da prática
teutônica da ―personalidade da lei‖, ele ficaria furioso. Da mesma forma reagiriam os negros
se os informarmos de que suas práticas religiosas diferem das de seus vizinhos brancos
principalmente na medida em que combinaram as superstições europeias e africanas. Estas
diferenças, é claro, tornam os negros indesejáveis àqueles que tenham outras visões
religiosas. Os judeus corajosamente mantém suas velhas práticas, enquanto os negros, que da
mesma forma apreciam seus velhos costumes, têm vergonha deles, porque eles não são
populares entre os ―teutônicos‖. 60

Não há documentação melhor do ponto de Woodson do que o seguinte comentário de um erudito


negro sobre a herança cultural de seu próprio grupo:

A tradição e a cultura do negro americano se desenvolveram a partir de sua


experiência na América e têm derivado seu sentido e importância da mesma fonte. Através
do estudo da família do negro nos tornamos capazes de ver o processo pelo qual essas
experiências passaram a ser parte das tradições e da cultura do grupo negro. Sem dúvida,
quando se estuda o negro, se descobre uma grande pobreza de tradições e padrões de
comportamento que exerçam qualquer influência real na influência e formação da
personalidade e conduta do negro. Se, como afirma Keyserling, o aspecto mais
impressionante dos chineses é a profundidade de sua cultura, a coisa mais evidente a respeito
do negro é a falta de uma cultura.61

Não é de surpreender que mencionar a África para uma plateia de negros cause tensões do
mesmo tipo que o canto de spirituals, a ―marca da escravidão‖, causariam a grupos semelhantes uma
geração atrás. A África é uma insígnia vergonhosa; a lembrança de um passado selvagem não
suficientemente remoto, bem como da selvageria europeia, difícil de colocar num altar. Ainda assim sem
uma convicção no valor do grupo a que pertencemos, isso é inevitável. Um povo que nega seu passado
não pode escapar de ser presa da dúvida quanto a seu valor hoje, e quanto a seus potenciais futuros.
Fornecer ao negro uma apreciação por seu passado é dotá-lo de necessária confiança em sua
própria posição neste país e no mundo, que ele pode mais bem atingir quando tiver disponível para si uma
fundação de fatos científicos com respeito às culturas ancestrais da África, e aos africanismos
sobreviventes no Novo Mundo. E precisamos novamente enfatizar que quando um corpo de fatos assim,
solidamente embasados, se estabelece, segue-se um fermento que, quando essa informação se difunde na
população como um todo, influencia a opinião geral no que diz respeito às capacidades e potencialidades
do Negro, e assim contribui para uma diminuição das tensões inter-raciais.

1
"The Conflict and Fusion of Cultures with Special Reference to the Negro," Journal of Negro History, 4:116, 1919.
2
The Negro Family in the United States, Chicago, 1939, pp. 21 f.
3
"The Negro Family in the United States" (book review), American Journal of Sociology, 14:799, 1940.
4
Shadow of the Plantation, Chicago, 1934, p. 3.
5
Brown America, the Story of a New Race, New York, 1931, p. II.
6
Ibid., pp. 10 f.
7
The Relation of the Alabama-Georgia Dialect to the Provincial Dialects of Great Britain, Baton Rouge, 1935, p. 64.
8
Folk Culture on St. Helena Island, South Carolina, Chapel Hill, N. C, 1930, p. 6.
9
The Etiquette of Race Relations in the South, Chicago, 1937, passim.
10
Thus, in a letter to an inquirer after African survivals in the behavior of Negroes of the United States (Mr. Joseph
Ralph of Long Beach, Calif.), written early in 1925, the following statement was made:
As to the preservation of African cultural elements, I do not believe that such are to be observed in any of the
modes of behavior of the American Negro.
In writing of the Negroes of Harlem, New York City, at about this time ("The Negro's Americanism," in Alain Locke
(ed.)» The New Negro, New York, 1925, PP- 359f-), the same position was emphasized:
What there is today in Harlem distinct from the white culture that surrounds it is, as far as I am able to see, merely a
remnant from the peasant days in the South. Of the African culture, not a trace. Even the spirituals are an
expression of the emotion of the Negro playing through the typical religious patterns of white America. ... As we
turn to Harlem we see ... it represents, as do all American communities which it resembles, a case of complete
acculturation. And so, I return again to my reaction on first seeing this center of Negro activity, as the complete
description of it: "Why, it's the same pattern, only a different shade 1"
Two years later the identical point of view was stressed ("Acculturation and the American Negro," Southwestern
Political and Social Science Quarterly, 8:216, 224, 1927) :
Perhaps the best instance which may be given of this fashion in which one people may accept and validate for
themselves the culture of another folk is contained in the Negroes of this country, particularly in the Negroes who
have migrated to the northern cities and settled there in large communities . . . The African Negro may be of the
same racial stock as some of his American brothers. But culturally, they are as widely separated as the Bostonian
whose ancestry came to this country in the Mayflower, and the descendant of the King of Ashanti who lives today in
West Africa.
In this latter paper, the relationship between physical type and ability to handle one culture as against another was
primarily the subject under discussion, and there is no reason to assume that the conclusion reached in the
argument, that such a relationship cannot be shown, is invalid. Yet the sentences quoted, when considered solely in
the light of the principal concern of our discussion here, show that Negro behavior was believed to be "the same
pattern, only a different shade" from that of the general white population in every aspect of activity.
11
The methodological challenge this research presents, one which has by no means been adequately met, is in itself
of real moment. For since no adequate attack on it is limited to any one discipline, or to any single geographic
region, it demands a constant attention to techniques of utilizing cross-disciplinary resources as the analyses move
ever more widely over the areas and the circumstances of Negro-white contact. By virtue of this fact, the problem
in its largest aspects may be thought of as a significant lead toward achieving an integration in the sciences such as
is becoming increasingly recognized as the next essential step in the development of knowledge.
12
American Negro Slavery, New York, 1918, p. 46.
13
R. Redfield, R. Linton, and M, J. Herskovits, "Memorandum for the Study of Acculturation," American
Anthropologist, 38:149-152, 1936, passim. See also M. J. Herskovits, "The Significance of the Study of Acculturation
for Anthropology," American Anthropologist, 39:250-264, 1937, passim.
14
M. J. Herskovits, Acculturation, the Study of Culture Contact, New York, 1938. See also R. Linton, Acculturation in
Seven American Indian Tribes, New York, 1940.
15
The Negro in the Neiv World, London, 1910.
16
Warning from the West Indies, London, 1938 (rev. ed.).
17
"The West Indies as a Sociological Laboratory," American Journal of Sod-ology, 29:290-291, 304, 1923-1924.
18
"The Conflict and Fusion of Cultures with Special Reference to the Negro," Journal of Negro History, 4:115, 1919.
19
"Magic, Mentality, and City Life," in: R. E. Park, The City, Chicago, 1925.
20
The American Race Problem, A Study of the Negro, New York, 1938 (2nd ed.), PP. 15-16.
21
Weatherly, op. cit., p. 292.
22
"The Conflict and Fusion of Cultures with Special Reference to the Negro," Journal of Negro History, 4:129, 1919.
23
M. J. Herskovits, "The Negro in the New World: The Statement of a Problem," American Anthropologist, 32:145-
156, 1930.
24
M. J. and F. S. Herskovits, Rebel Destiny, Among the Bush Negroes of Dutch Guiana, New York, 1934, pp. viii-xii;
Suriname Folk-Lore, New York, 1937, PP- I-I35-
25
M. J. Herskovits, "The Negro in the New World . . . ," American Anthropologist, 32:1491., 1930.
26
Cf., for example, Arthur Ramos, As Culturas Negras no Novo Mundo, Rio de Janeiro, 1937; M. J. Herskovits, "The
Social History of the Negro," in: C. Murchi-son, Handbook of Social Psychology, Worcester, Mass., 1935.
27
E.g., the numerous works of Arthur Ramos, among which may be cited O Negro Brasileiro, Rio de Janeiro, 1934, 0
Folk-Lore Negro do Brasil, Rio de Janeiro, 1935, and The Negro in Brazil, trans. Richard Pattee. Washington, D. C.,
1939; of Gilberto Freyre, especially his Casa-Grande & Sensala, Rio de Janeiro, ist ed., 1934, 2nd ed., 1936, 3rd ed.,
1938; of Edison Carneiro, Religioes Negras, Rio de Janeiro, 1936; of Jacques Raimundo, 0 Elemento Afro-Negro na
Lingua Portuguesa, Rio de Janeiro, 1933, and O Negro Brasileiro, Rio de Janeiro, 1936; of Joao Dornas Filho, A
Escravidao no Brasil, Rio de Janeiro, 1939; and the proceedings of the two Afro-Brazilian Congresses, Estudos Afro-
Brasileiros, Rio de Janeiro, 1935, Novos Estudos Afro-Brasileiros, Rio de Janeiro, 1937, and O Negro no Brasil, Rio de
Janeiro, 1940; likewise Riidiger Bilden, "Brazil, Laboratory of Civilization," The Nation, 128:71-74, 1929, and Donald
Pierson, "The Negro in Bahia, Brazil," American Sociological Review, 4*-524-533, 1939-
28
Dr. Price-Mars, Ainsi Parla I'Oncle, Port-au-Prince, 1928; J. C. Dorsainvil, Vodun et Nevrose, Port-au-Prince, 1931;
M. J. Herskovits, Life in a Haitian Valley, New York, 1937; Harold Courlander, Haiti Singing, Chapel Hill, 1940.
29
M. J. Herskovits, "African Gods and Catholic Saints in New World Negro Belief," American Anthropologist, 39:635-
643, 1937.
30
A. Ramos, O Folk-Lore Negro do Brasil; Fernando Ortiz, Los Negros Brujos, Madrid, 1917.
31
Martha Beckwith, Black Roadways, a Study in Jamaican Folk Life, Chapel Hill, 1929.
32
E.g., R. S. Rattray, Ashanti, Oxford, 1923; Religion and Art in Ashanti, Oxford, 1927; Ashanti Law and Constitution,
Oxford, 1929; Akan-Ashanti Folk Tales, Oxford, 1930; H. Labouret, "Les Tribus du Rameau Lobi," Tr. et Mem. de
I'lnstitut d'Ethnologie, No. XV, Paris, 1931; M. J. Herskovits, Dahomey, New York, 1938; C. K. Meek, A Sudanese
Kingdom, Oxford, 1931, and Law and Authority in a Nigerian Tribe, 1937; a °d the volumes of the journal Africa.
Unpublished results of field work done in West Africa under fellowship grants of the Social Science Research Council
by W. R. Bascom (among the Yoruba, 1937-1938), Joseph Greenberg (among the Hausa and Maguzawa, 1938-1939),
and by J. S. Harris (among the Ibo, 1939-1940), are also of considerable importance in filling out our knowledge of
the range of West African custom. The wealth of materials available on Gold Coast tribes alone is strikingly indicated
by the number of titles listed in A. W. Cardinall, A Bibliography of the Gold Coast, Accra (Gold Coast), not dated, esp.
Sections I-IX.
33
Carried on by J. C. Trevor in 1936, under the auspices of Northwestern and Columbia universities, and A. A.
Campbell, in 1939-1940, as Fellow of the Social Science Research Council.
34
Carried on by M. J. and F. S. Herskovits in 1939, under a grant made by the Carnegie Corporation of New York.
35
Indigenous Races of the Earth, Philadelphia, 1854; J. C. Nott, "The Diversity of the Human Race," Du Bow's
Review, 10:113-132, 1851.
36
"The Negro as a Contrast Conception," in: E. T. Thompson, Race Relations and the Race Problem, Durham, N. C.,
1939, p. 174.
37
Ibid., p. 171. The reference is to B. T. Washington, The Story of the Negro, New York, 1909, Vol. i, pp. 8f.; the
author adds, "A similar contrast was made by William McDougall in Is America Safe for Democracy? by juxtaposing a
picture of Lincoln and an African savage."
38
Pp. Sf-
39
Ibid., p. 407. The citation is from J. M. Mecklin, Democracy and Race Friction, a Study in Social Ethics, New York,
1914, p. 43.
40
Dowd, op. cit., pp. 401 f. The first citation is from William H. Thomas, The American Negro: What He Was, What
He Is, and What He May Become, New York, 1901, p. 134; the second is from H. W. Odum, Social and Mental Traits
of the Negro, New York, 1910, p. 224.
41
Ibid., p. 39-
42
Ibid., pp. 48 f.
43
In Freedom's Birthplace, a Study of the Boston Negroes, New York, 1914, pp. 399 f-
44
Caste and Class in a Southern Town, New Haven, 1937, p. 370. Citation taken from J. E. Lind, "Phylogenetic
Elements in the Psychoses of the Negro," Psychoanalytic Review, 4:3O3 f., 1917.
45
Race Traits and Tendencies of the American Negro, New York, 1896, p. 312.
46
J. A. Tillinghast, The Negro in Africa and America, New York, 1902, pp. 29 f•
47
American Negro Slavery, pp. 4 and 8. The recommendation of Tillinghast's volume already cited as a "convenient
sketch of the primitive African regime" and of Dowd's The Negro Races, New York, 1907, as "a fuller survey" causes
one to speculate regarding the carry-over of historical method, in so far as the use of source materials is concerned,
into a nonhistorical field. For both of these are what historians would call secondary or, better, tertiary sources 1
48
Folk Beliefs of the Southern Negro, Chapel Hill, 1926, pp. 8 fl., passim. References are to Tillinghast, to early
travelers such as Bosnian, and to later travelers such as Cruickshank or Miss Kingsley.
49
Pp. 20 f.
50
Ibid., p. 24.
51
Ibid., p. 42.
52
W. D. Wcathcrford and C. S. Johnson, Race Relations, New York, 1934, pp. 27 f.; the footnote reference appended
to the passage is to Franz Boas, The Mind of Primitive Man, New York, 1910, Chap. I.
53
See Chap. III.
54
"Voodoo Worship and Child Sacrifice in Hayti," Journal of American Folk-Lore, i :i7f., 1888.
55
After Freedom, New York, 1939, p. xi.
56
The English Language in America, New York, 1925 (2 vols.), and "The English of the Negro," American Mercury,
2:iQofF., 1924.
57
The English Language in America, Vol. I, pp. 6of. and 155, For an independent analysis of Krapp's position, see p.
278.
58
'The English of the Nej?ro," p. 190.
59
M. J. Herskovits, "The Ancestry of the American Negro," The American Scholar, 8:Q3f., 1938-1939-
60
Journal of Negro History, 22:367, 1937.
61
E. F. Frazier, "Traditions and Patterns of Negro Family Life in the United States," in: E. B. Reuter, Race and Culture
Contacts, New York, 1934, p. 194.

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