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PENSAR ESTADO DE MINAS

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Última flor do Lácio


N
a era da informação
globalizada, a comunidade de
língua portuguesa caminha
para a ‘‘segregação digital’’


VIRGÍLIO FERNANDES ALMEIDA *

“Flor do Lácio sambódromo


Lusamérica, latim em pó
O que quer
O que pode
Esta língua?”
‘‘Língua’’, Caetano Veloso

Coincidem: 500 anos da chegada dos portugueses e a explosão do mundo eletrônico! Di-
vergem: a língua portuguesa e o linguagem do mundo eletrônico. Televisão, internet, saté-
lite, software, celular, computador e a web. Tudo e todos, cada vez mais, on line. De repen-
te, nos damos conta de que o inglês é a língua franca da era da informação. E aí lembra-
mais chance de acessar a internet que pretos e hispânicos. Conse-
qüentemente, as novas oportunidades de trabalho, as novas profis-
sões e as possibilidades de qualificação profissional se abrem primei-
ro para aqueles que têm acesso aos recursos da chamada sociedade
,
A celebração do
mos dos versos de Olavo Bilac sobre a língua portuguesa: “Última flor do Lácio, inculta e be- da informação. Ainda no domínio seco dos números, tem-se que a lín-
la/ És a um tempo esplendor e sepultura”. Seria essa visão pessimista do poeta o destino da gua inglesa é a língua nativa de 60% da população mundial que aces- descobrimento
língua portuguesa? Será que a era da informação irá sepultar a nossa língua, empobrecen- sa a internet, que hoje já passa de 200 milhões de pessoas, em todos
do-a fatalmente? Será que informação só existe em inglês? Será que o mundo digital não os cantos do planeta. Nós, que possuímos uma língua rica, musical e do Brasil
saberá apreciar a musicalidade da língua portuguesa? Será que na era dos computadores sensual, como o português, representamos apenas 1,5% da popula-
perderemos a chance de ouvir a sonoridade do português, como na poesia de Murilo Men- ção mundial on line. Corremos o risco de nos tornarmos habitantes deve buscar o
des: “Os erres do erro. O erre da culatra. O erre do erpe. O erre do tambor. Os erres da er- de uma ilha no mundo virtual da informação.
rata. Os erres do erradio”. Há, portanto, uma premência em preservar e ampliar o mundo lusó- entendimento
Já estamos praticamente no século XXI e a celebração do descobrimento do Brasil deve fono na era da informação. O português, com sua variedade fonética e
buscar também o entendimento do tempo que estamos vivendo. E suspeito que o mundo dos 150 mil palavras dicionarizadas, sendo 10% de origem indígena e 5% do tempo
dias de hoje seja quase incompreensível para a maioria de nós. A era da informação e do co- africana, é falado por 200 milhões de pessoas. No entanto, nos sete paí-
que estamos

,
nhecimento, que de uma forma ou outra atinge todos os países, é ainda uma ses de língua portuguesa – Brasil, Portugal, Moçambique, Ângo-
incógnita, de efeitos imprevisíveis. Entende-se bem o que está na super- la, Guiné-Bissau, Porto Príncipe, Macau e Goa – a maior
fície dessas transformações. É fácil argumentar com a razão dos nú- parte da população se encontra completamente à vivendo
meros, quando se pensa, por exemplo, na velocidade e no custo margem da sociedade da informação do mundo
de transmitir informação com uso das novas tecnologias. Se globalizado. Como numa reprise da expedição
enviado pelo correio tradicional, um pequeno livro de 50 dos portugueses em busca da terra desconhe-
páginas levaria de Belo Horizonte a Macau por volta de cida e da expansão do império lusitano, o
dez dias, e custaria algo em torno de R$ 60,00. Por fax, ponteiro da bússola dos novos tempos aponta para o Brasil.
em uma hora o mesmo livreto poderia ser enviado a Com seus 160 milhões de habitantes, o País parece ser a
um custo de R$ 130. No entanto, pela internet em me- grande e real esperança de se ampliar o mundo da língua
nos de 5 minutos o livro poderia estar na tela do com- portuguesa no universo virtual da era da informação.
putador do destinatário em Macau, a um custo infe- As sociedades da informação vão sendo erguidas so-
rior a R$ 1,00. bre três pilares básicos: as telecomunicações, a informá-
Por outro lado, as mudanças estruturais trazi- tica e a chamada indústria de conteúdo. As duas primei-
das pela concentração do conhecimento e da tec- ras partes desse trinômio dizem respeito básicamente
nologia, aliadas à hegemonia da língua inglesa ao desenvolvimento tecnológico e à infra-estrutura de
nos meios eletrônicos de comunicação, tendem a comunicação. A terceira perna do trinômio, a indústria
asfixiar a cultura de países em desenvolvimento, de conteúdo, deve brilhar mais que as outras, pois está
como o nosso. Os particularismos e a diversidade diretamente vinculada ao homem, suas particularidades,
de cada cultura têm de ser preservados a qualquer seus sonhos e sua cultura. No contexto da era da informa-
preço. Num recente encontro sobre o futuro da lín- ção, o termo “conteúdo” vem sendo usado para designar to-
gua portuguesa, o Prêmio Nobel de Literatura, José do e qualquer segmento da informação, abrangendo desde
Saramago, queixou-se do fim do século, da era da infor- áreas como cultura, educação, formação profissional, até a in-
mação, afirmando “que cada vez mais há miséria e igno- dústria do entretenimento. Em resumo, a indústria do conteúdo
rância no mundo, cada vez mais os que sabem muito são tem tudo a ver com a cultura de um povo, seus objetos, instituições,
minoria”. No palco do fim do século, o teatro da globalização conceitos, idéias, costumes, crenças e imagens. E o que permeia tudo c
reservou um papel intricado para países como o Brasil. isso é a língua, que deve ser cultivada e preservada como o elemento cen-
Até mesmo nos Estados Unidos o acesso às tecnologias da informação tral da identidade cultural de um povo. Como dizem os versos da música de m
e comunicação tem contribuído para aumentar a diferença entre grupos raciais Caetano: “O que quer, o que pode esta língua?”. y
e étnicos existentes na sociedade americana. A expressão “segregação digital”, cunhada O mundo globalizado e a era da informação, as grandes marcas do fim do século, apertam
numa clara alusão à segregação racial, tem sido freqüentemente usada para diferenciar países como o Brasil contra a parede. O fortalecimento da cultura brasileira, a educação ma- k
os americanos que têm acesso às tecnologias da informação e aqueles que não têm aces- ciça do povo e a inserção do País na era da informação devem ser os eixos centrais da resis-
so. Estudos do governo americano indicam que a distância entre essas duas classes de tência da língua portuguesa no século XXI. Como bem lembrou a escritora Nélida Piñon ao
cidadãos tem ampliado constantemente. Estatísticas recentes mostram que quase meta- celebrar os 500 anos da língua portuguesa no Brasil, “a convicção de que estaremos todos
de das famílias americanas têm computadores em casa e que 25% de todas as casas es- nós sujeitos ao mais penoso exílio se perdermos a memória da língua, se permitirmos que
tão conectadas à internet. Entretanto, foi constatado também que os brancos têm muito nos roubem a linguagem, os mitos e nossa inextinguível capacidade de recriá-los”.

* Virgílio Fernandes Almeida é professor titular do Departamento de Ciência da Computação da UFMG

Sábado, 25 de setembro de 1999

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