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Da ruptura do pacto com a transparência:


psicologias que caminham na escuridão
DOLORES GALINDO*
SAULO LUDERS FERNANDES**

Resumo: O presente trabalho busca trilhar caminhos de uma psicologia que pretende andar na
escuridão. Neste percurso produzimos interrupções estéticas que nos permitem percorrer
narrativas ficcionais, artísticas, e experiências de vidas partilhadas entre os escombros de um
mundo moderno/colonial, que apesar de ofuscar com sua luz as escuridões que os habita, faz das
sombras lugar da emergência de multiplicidades de mundos que se apresentam em nascimentos e
florescimentos. Mundos que proliferam outras temporalidades, corpos e territórios, que não
requerem a luz como condição para conhecer a realidade, mas as obscuridades que nos ensinam
que a vida e seus saberes emergem do desconhecido, do impreciso, do devaneio. Na escuridão as
ruínas deixam de requerer as relíquias de um espaço perdido no tempo para ações de atualizações
do presente, atualizações que se apresentam desde: as danças de Ana Pi, a novela de Du Bois, as
obras de Castiel Vitorino, maneiras de viver, sentir e pensar.
Palavras-chave: Psicologia; Decolonialidade; Ficção; Racialidade; Povos da Terra.
Breaking the pact with transparency: psychologies that walk in the dark
Abstract: The present work seeks to follow paths of a psychology that intends to walk in
darkness. In this journey, we produce aesthetic interruptions that allow us to go through fictional
and artistic narratives and shared life experiences among the rubble of a modern/colonial world,
which despite obscuring the darkness that inhabits them with its light, makes shadows a place for
the emergence of multiplicities of worlds that present themselves in births and flowerings. Worlds
that proliferate other temporalities, bodies and territories, which do not require light as a condition
to know reality, but the obscurities that teach us that life and its knowledge emerge from the
unknown, the imprecise, the daydream. In the darkness, the ruins no longer require the relics of a
space lost in time for actions to update the present, updates that present themselves from: Ana Pi's
dances, Du Bois's novel, Castiel Vitorino's works, ways of living, feel and think.
Key words: Psychology; Decoloniality; Fiction, Raciality; Earth Peoples.

*
DOLORES GALINDO é Doutora em Psicologia Social (PUC/SP), Professora do
Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Mato Grosso.

**
SAULO LUDERS FERNANDES é professor do curso de Psicologia da Universidade
Federal de Alagoas – Campus Arapiraca – Unidade Educacional de Palmeira dos Índios e professor
colaborador do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas. Doutor
em Psicologia pela Universidade de São Paulo.
É importante saber que o que eu estou vivendo agora é o futuro, que alguém sonhou
para mim. Há muito tempo – e é por isso que eu peço a bênção dessas pessoas mais 11
velhas. Eu estou em um avião e, ao meu arredor, todas as pessoas são negras, pela
primeira vez… O Piloto. Sua equipe. As pessoas da primeira classe. E isso me faz
entender imediatamente que essa não é uma viagem qualquer. Eu estou indo para África
subsaariana, pela primeira vez. Quando eu chego ao controle de passaporte, um senhor
me diz: “Madame, D’où venez-vouz?” E eu respondo: “Je suis brésilienne.” E ele diz:
“Mas você sabe que você é daqui, né?!” Meu olho se enche de lágrimas e, ao mesmo
tempo, eu sorrio. E ele me diz: “Seja bem-vinda de volta!” Nesse instante, percebo que
meu maior compromisso... é estar... com os dois pés bem firmes; percebo que a cor da
terra me leva de volta para Petrolândia, para Granja Verde, tantos outros bairros da
minha infância. Da janela do quarto do hotel, eu vejo o rio, Rio Níger, rio preto, e eu
tenho que tocar nesse rio… Preto. Preto. Per... Preto [...]. Preto. [...] Preto [...]. Preto.
Preto [...]. Preto [...]. Preto. [...] Preto. Preto. Preto. Preto. [...] Preto. Preto. Preto. Uma
série de palavras, que não deveriam ser novas. Uma série de lugares que deveriam ser
íntimos, uma série de histórias que deveriam ser contadas. (PI, 2017).

Interrupção. Interromper o silêncio com contudo, a ideia de “Psicologias que


as palavras de Ana Pi, principalmente caminham na escuridão”, um pouco
com as últimas palavras. Interromper o antes. Ao largo do texto, oscilamos entre
silêncio com a repetição – negro, negro, o uso da primeira pessoa do singular e da
preto, preto. Interromper com o que Ana terceira pessoa do plural, não indicando,
Pi vai nos trazendo, essa dimensão, que todavia, quem escreveu este ou aquele
é a dimensão do escuro, ela vai nos trecho. É curioso que mesmo a escrita
trazendo essa dimensão da noite, ela vai feminista com ênfase na menção às
nos trazendo essa dimensão da pessoas com as quais conversamos pode
opacidade. As palavras fazem parte do ter o efeito perverso de ocultar mulheres,
vídeo Noir Blue, da bailarina e pois parte das ideias de mulheres são
coreógrafa Ana Pi, um convite a entrar apropriadas por homens que, não
no rio Níger que corta parte do utilizando as práticas de referência,
continente africano, abastecendo o terminam por transportar palavras de
deserto do Saara. Palavras transcritas a mulheres sem as devidas menções. Este
esta folha por Douglas Gois. De acordo é um texto escrito para Luíza e Regina.
com a página da artista, “No continente
Desde a irrupção do acontecimento da
africano, Ana Pi se reconecta às suas
Pandemia de COVID-19, narrativas
origens através do gesto coreográfico,
assinalam que estamos em um mundo
engajando-se num experimento espaço-
em ruínas e uma voracidade dirigida a
temporal que une o movimento
saberes negros e indígenas se anuncia
tradicional ao contemporâneo. Em uma
fortemente num movimento de busca por
dança de fertilidade e de cura, a pele
receitas para uma boa vida. Em
negra sob o véu azul se integra ao
contraponto à voracidade, assinalemos
espaço, reencenando formas e cores que
que um mundo em ruínas – ou, o fim do
evocam a ancestralidade, o
mundo – se inscreve a partir do olhar
pertencimento, a resistência e o
ocidentalizado que espera a perpetuação
sentimento de liberdade” (PI, 2017, s/p).
através do espaço e do tempo. O que está
Uma versão inicial deste texto foi em ruínas é um mundo erigido sob os
apresentada no II Colóquio Internacional auspícios de um projeto colonial
Psicologia e Povos Tradicionais, moderno, portanto, racista, elitista,
heterocisnormativo. Quem teme as encontrará a mulher negra exausta com o
ruínas são as mesmas pessoas que filho morto de ambos no colo, e 12
desfrutam o fausto dos edifícios oferecerá a touca que traz no bolso. Para
modernos coloniais nos quais incidem as a mulher branca, a continuidade
luzes da Razão. No limite, portadores de assegurada; Para Jim e a mãe do filho de
grandes fortunas se lançam ao espaço ambos, a continuidade em perigo e o luto
sideral em novos empreendimentos por fazer num gesto inacabado.
coloniais, retornam entediados e se
Façamos uma segunda interrupção
lançam ao empreendimento de não
estética, agora, não contra o fundo do
envelhecer. Há no neocolonialismo
silêncio, mas contra a clausura do
espacial uma gramática que atualiza e
encadeamento argumentativo
exponencia os empreendimentos
acadêmico. Ouçamos dois diálogos
neocoloniais. Num movimento oposto,
extraídos da novela O Cometa, escrita
é, no final do mundo, na década de 1920,
após os grandes conflitos raciais
em contraponto à narrativa hegemônica
conhecidos como Verão Vermelho, de
colonial, que o escritor W.E.B. Du Bois,
1919, marcados por linchamentos e
na novela O cometa, narra a saga de Jim
atentados contra a população negra nos
que, justamente, parece encontrar a
Estados Unidos, conforme pontua
suspensão da supremacia racial branca
Saidiya Hartman (2020). Jim Davis, após
diante do fim dos tempos.
passar por corpos mortos de todos os
No final do mundo, após a queda de um lados, encontra a uma única mulher
Cometa em Nova Iorque, Jim encontra a dentre os escombros. Ela era branca. Jim
uma mulher branca e ambos parecem desejava, urgentemente, chegar ao
próximos e irmanados em um destino Harlem, pois não localizava a
que logo se mostrará uma bifurcação companheira e o filho recém-nascido. À
assimétrica. Jim Davis retornará aos esquerda, trecho de conversação durante
limites da segregação, a mulher branca o final do mundo e à direita, trecho de
rica retornará ao mundo da segurança; conversa após a restauração do mundo e
ruptura que se dá quando ela é da supremacia branca:
encontrada pelo pai e noivo. Jim

[Durante o Fim do mundo] [Após o Fim do mundo]

“Sempre”, ele disse. “Aqui, meu bom camarada”, disse, enfiando o


dinheiro na mão do homem, “pegue isso. Qual
“Eu sempre fui à toa”, ela disse. “Era rica”
é o seu nome?”
“Eu era pobre”, ele quase ecoou.
“Jim Davis”, veio a resposta, em uma voz
“A rica e o pobre unidos”, ela começou, ele vazia.
concluiu:
“Bom, Jim, obrigado. Sempre gostei do seu
“O senhor é o cocriador de todos” pessoal. Se você quiser um emprego algum
“Sim”, ela disse devagar, “e como nossas dia, é só me chamar.” E eles se foram.
distinções humanas parecem tolas agora”, [...]
encarando a grande cidade morta que se
“Quem foi salvo”
estendia abaixo, nadando nas sombras
apagadas. “Uma moça branca e um criolo... lá vai ela”
“Um criolo, onde está, vamos linchar o
(DU BOIS, 2021, p. 34) maldito...”
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“Cala a boca! Ele é um cara decente. Salvou
ela.”
(DU BOIS, 2021, p. 40)

A novela de W.E.B Du Bois, assim como que diz respeito a um mundo, e não
o trecho do vídeo Noir Blue que necessariamente a todos os mundos
transcrevemos, traz-nos um contraponto habitados.
às luzes da Razão ocidental, traz o Pensando desde os quilombos, Antonio
escuro, o opaco, o negro, o preto que de
Bispo dos Santos (2015) explicita que
tão preto é azul, como narra poética e
aquilo que causa medo é a possibilidade
amorosamente Ana Pi ao referir ao modo
de viver diferente dos povos politeístas
como dizem sobre a cor do seu pai num
plurais e circulares, não a cor da pele:
deslocamento da injúria. A coreografia
Noir Blue parte de uma questão [...] povos pagãos politeístas [...]
epistemológica, qual seja, a de que, em cultuam várias deusas e deuses
muitas linguagens, a cor azul era pluripotentes, pluricientes e
pluripresentes, materializados
previamente inexistente, vindo a emergir
através dos elementos da natureza
da cor preta. Diante desta pesquisa que formam o universo, é dizer, por
etimológica, Ana Pi indaga “Quais terem deusas e deuses
gestos emergem do mesmo territorializados, tendem a se
procedimento etimológico aplicado à organizar de forma circular e/ou
construção coreográfica?” e, a partir horizontal, porque conseguem olhar
desta pergunta, propõe “uma dança azul para as suas deusas e deuses em
que emerge das danças consideradas todas as direções. Por terem deusas
negras; formas tradicionais e populares, e deuses tendem a construir
bem como também das manifestações comunidades heterogêneas, onde o
contemporâneas, conectadas às matriarcado e/ou patriarcado se
desenvolvem de acordo com os
populações negras de África e da
contextos históricos. Por verem as
diáspora” (PI, 2017, tradução autores). suas deusas e deuses até elementos
Os aparatos sensíveis de visão, de escuta, da natureza como, por exemplo, a
de pele – eurocristãos monoteístas água, a terra, o fogo outros
lineares – parecem não responder, elementos que formam o universo,
quando se deparam com os modos de apegam-se à plurismos subjetivos e
concretos (SANTOS, 2015, p.39).
vida diferentes dos ocidentalizados e
embranquecidos. E mais do que isso, ao De acordo com Sarah Ahmed (2015), o
não ouvir, não ver, não perceber, não medo moderno/colonial se apresenta
cosmoperceber, reafirmam-se como um dispositivo de circulação
epistemicídios e cosmocídios. O medo afetivo-política, que se sente nos corpos,
colonial branco ocidental faz do mundo mas não se fixa neles, ou se mantém
um lugar de separação que, diante da neles: ao contrário, funciona como um
diferença hierarquizada desde a régua dispositivo de aproximação e separação
eurocristã monoteísta linear, propõe a destes, na produção da vida social: [...] o
distância e a violência alimentadas pela medo funciona para assegurar a relação entre
imputação da raiva sobre os corpos e esses corpos: os reúne e os separa mediante
modos de vida destoantes. É um medo estremecimentos que sentem na pele, na
superfície que emerge através do encontro.
(AHMED, 2015, p. 106-107, tradução a qual vinha encontrando êxito na venda
nossa). de pasteis, mulher negra que, após 14
clamores de uma mãe branca por sua
É possível se referir a povos eurocristãos filha – “Nini, uma linda menina loira,
monoteístas, ao invés de brancos, rosada, alegre e esperta” – ofereceu
seguindo a pista fornecida por Santos algumas beberagens à criança. Pois bem,
(2021): “[...] quando dizemos brancos, Nini não teria melhorado. Oito dias após
eles já se sentem importantes.” Há uma a morte de Nini, a mãe pede para ver o
armadilha, a de um pretenso lugar de fala túmulo da filha, não encontraria o corpo.
da branquitude sobre a branquitude Diante do acontecido, querem
como mais legítimo que as demais esquartejar Tia Josefa e Manoel do
pesquisas sobre branquitude realizadas Congo. Narra Azevedo (1987, p.18): “O
por não brancos e não brancas, por povo quis esquartejar os dois negros,
pesquisadores(as) e mestres(as) enquanto a mãe da linda menininha
politeístas circulares. Não é necessário morta, quase louca, contorcia-se
convocar o branco a falar sobre horrorizada — tinha comido a filha em
branquitude (se isso significar diminuir a pastéis...”. Narra-se trecho do conto de
legitimidade dos demais estudos dos autoria de Arthur Cortine, de acordo com
povos não eurocristãos politeístas sobre a autora, escritor que publicava seus
o tema), pois, basicamente, quase toda a textos na imprensa conservadora do
produção científica ocidental é um século XIX.
exemplar do roubo e da extorsão
eurocristã linear monoteísta de saberes Para Azevedo (1987), a narrativa borra
africanos e indígenas, portanto, um os limites entre ficção e cotidiano, sendo
testemunho branco ou eurocristão elusiva ao medo que recobria as camadas
monoteísta de um certo modo de ver e se brancas dos brancos bem-nascidos após
localizar no mundo. Povos politeístas a Lei Áurea. Escreve a autora que a
circulares sempre estudaram e estudam história que a interessa é a do próprio
povos eurocristãos monoteístas lineares, medo:
pois é, como mínimo, uma estratégia de
A história que me interessa aqui é a
sobrevivência diante dos ataques do próprio medo que ressalta destas
constantes, alguns deles, materializados linhas intrigantes, aparentemente
em classificações étnico-raciais que ficcionais. Sim, apenas
pouco dizem das experiências. aparentemente, pois os tênues
limites entre ficção e realidade se
Célia Azevedo (1987), na pesquisa rompem quando voltamos atrás e
historiográfica, publicada convivemos com toda uma série de
posteriormente com o título “Onda brancos ou “esfolados” bem-
negra, medo branco: o negro no nascidos e bem-pensantes que,
imaginário das elites do século XIX”, durante todo o século XIX,
que aborda a instituição do mercado de realmente temeram acabar sendo
tragados pelos negros malnascidos e
trabalho livre que veio a substituir o
mal pensantes, tal como os tenros
mercado alicerçado na escravização do pastéis de carne alva da preta Josefa
século XIX, no Brasil, depara-se com (AZEVEDO, 1987, p. 19).
notícia publicada no Correio Paulistano,
em 26 de julho de 1888, dois anos após a A fim de abordar o medo branco numa
abolição da escravatura no Brasil. A dimensão histórica, Azevedo (1987)
narrativa culmina na ameaça de encontra dificuldades metodológicas de
linchamento de Tia Josefa dos Prazeres, três ordens. A primeira delas é que o
medo deslancha ações inesperadas que do tempo moderna cede e se tece.
mais se parecem, nos termos da autora, Ultrapassemos, vai frisar Glissant, todo 15
aos filmes de Hitchcock. Segundo o trabalho de elucidação do Ocidente,
motivo, o medo é uma dimensão entendendo que esse trabalho de
raramente reconhecida por quem o vive elucidação do Ocidente se baseia em
num determinado momento histórico. uma ideia salvífica de ressurreição –
Terceiro, por ser raramente incorporado eurocristã monoteísta linear,
por quem escreve a história, persiste uma acrescentamos. Não somente um
dimensão oculta das relações sociais, questionamento da elucidação, mas
prevalecendo as explicações estruturais, também um questionamento da
elaboradas e lógicas. explicação, como um princípio universal
da ordenação e da racionalidade.
O medo incita à continuidade da
colonialidade cultural que, para Aníbal O trabalho de compreensão pode vir a ser
Quijano (2005), consiste numa um engolfamento e, por conseguinte,
apropriação dos modos de ver, dos pode, sob certas condições, ser abolido,
modos de perceber; inicia-se como uma bem como o recurso à empatia que se
repressão, segundo se anuncia como uma coaduna ao repertório político da
modalização dos regimes de percepção, tolerância e do multiculturalismo. Como
contudo, sabemos que são sempre pontua Viviane Ramos (2017), “Glissant
incompletos, sempre falhos. A fim de opõe a transparência do discurso
colocar em problematização a humanista eurocêntrico à opacidade da
colonialidade cultural, necessitamos sólida materialidade da presença de
olhar as camadas de experiência numa culturas humanas negadas ou
direção contrária ao confisco colonialista insultadas”. Para isto, como lembra ela,
cultural caminhando, na escuridão, entre recorre à imagem do aluvião e às
mundos que nunca são Um Mundo ou O camadas de “cascalho, areia ou argila
Mundo. Tal deslocamento passa, deixado por águas fluviais ou pluviais
também, por se abrir à temporalidade dos em margens de rios. A imagem do solo
seres, que não necessariamente de aluvião remete às camadas e camadas
humanos, porque – lembremos – a de histórias enterradas que, apesar de
humanidade entendida como categoria férteis, permanecem indistintas e
separada das demais é uma construção inexploradas, mas cuja insistente
moderna ocidentalocêntrica orientada presença somos incapazes de negar
por um pacto com a transparência, (RAMOS, 2017, p. 142)”.
herdeiras dos sistemas de classificação
das ciências humanas e da natureza sob Retomando o texto do colóquio que
os auspícios da objetividade mecânica. proferira há alguns anos e as críticas
posteriores, Edouard Glissant (2008)
Edouard Glissant, filósofo e poeta situa o dispositivo da compreensão como
martinicano, durante Colóquio que teve parte do domínio da transparência, pois
lugar em 27 de abril de 1987, vai propor para compreender a alguém, efetuar-se-
um direito à opacidade. Ele escreve "nós ia uma redução daquele(a) com o qual se
reivindicamos o direito a opacidade, opera a comparação, ainda que
reivindicamos o escape." Reivindica a reconhecida uma diferença. A
colocação em cena da diferença e da opacidade, de outra parte, opera por
irredução. Esse regime, epistêmico, das meio do “dar-com” que substitui o gesto
opacidades, coexiste em tramas, como da compreensão que encerra por
vai dizer Edouard Glissant, onde a flecha aberturas, mantendo o questionamento
das condições de comunicação invertido, um em relação ao outro,
intercultural que caracteriza toda a obra riscam no quadro uma estrela exuística. 16
do autor. Castiel descreve o livro Eclipse. Espaço
de liberdade perecível, derivado de
O opaco não é o obscuro, mas pode instalação homônima, como um adeus.
sê-lo e ser aceito como tal. Ele é o
Em entrevista sobre a instalação Eclipse,
não-redutível, que é a mais vivaz
das garantias de participação e con- ela narra:
fluência. Nos vemos então longe das Quando o sol morre e o nascer da lua
opacidades do Mito ou do Trágico, se inicia, eu preciso estar em um
cujo obscuro carregava exclusão e local seguro. Sinto que este
cuja transparência apresentava uma momento é um eclipse em mim. [...]
tendência a “compreender”. Há Não sei explicar o porquê, e não
neste verbo compreender o movi- sinto necessário o entendimento
mento das mãos que tomam o en- racional sobre essa experiência.
torno e o trazem a si. Gesto de fe- Todos os dias vivo eclipses. [...] E
chamento, quiçá de apropriação. ainda que sujeitos modernos tentem
Prefiramos a ele o gesto do dar-com compreender o sol e a lua com suas
que cria uma abertura na totalidade categorias identitárias, astros não
(EDOUARD GLISSANT, 2008, p. tem nada a ver com a feminilidade
54). ou masculinidade. Astros não tem
gênero ou raça e daqui de onde eu
No lugar da compreensão, a brecha, a
falo, também não possuo essas
fissura, o rastro, que se faz no chão em identidades. Sou uma animal híbrida
meio à escuridão, sem medo. É possível, de céu e mar [...]. Aqui não estou
ao menos, no plano experimental da contando uma mitologia. Estou
especulação fabulativa feminista contando a história da minha vida.
antirracista (HARAWAY, 2007) e [...] E quando eu morrer, serei
crítica (HARTMAN, 2008), abolir cultuada não pelo meu gênero ou
escalas, baseadas na diferença, raça, mas por minha escuridão
vinculadas aos processos de subjugação dérmica, meus movimentos
e processos de hierarquização racial de musculares, e meu cheiro
conhecimentos. Imaginar futuros em (VITORINO, 2021, p. 28)”.
vidas nas quais a morte se anuncia como O trabalho de Castiel Vitorino abraça a
ameaça constante (FREITAS; opacidade. Ela escreve: “Um dia entrarei
MESSIAS, 2020). num avião, ultrapassarei a atmosfera e
Uma terceira interrupção estética. serei novamente livre. No Brasil, meu
Castiel Vitorino, artista radicada no rompimento com o orgulho
Espírito Santo, da afrodiáspora Bantu no racial/negritude e o fim do orgulho de
Brasil, ao longo da sua obra, questiona os gênero/travesti é entendido
limites da transparência de gênero e como embranquecimento”. A obra de
racial. No curso Estéticas Macumbeiras, Castiel transita entre os gêneros,
refere ao projeto de nação brasileira espécies e inquere os cânones
assentando-o sobre o tripé racismo, eurocristãos monoteístas lineares na
heterocisexualidade e cristianismo proposição de uma prática clínica da
monoteísta. Em contraponto, descreve os efemeridade, de caráter exusiástico:
vórtices da heresia, desobediência e A colonialidade nomeia nossa
malandragem como saídas que tem potência exusíaca de “contraditória”
buscado. Os vórtices montam dois porque não compreende Exú (mas
triângulos que sobrepostos de modo tenta somente capturá-lo, assim
como faz com nosso corpo), e produzir um evento suspenso e
também não nos compreende por efêmero que nos impossibilite 17
completo porque há uma sonhar com a promessa de tornar-se
impossibilidade nisso, ou seja: sujeito… A criação desses eu-nós,
estamos em modificação e que Leda nos sugere, seria uma rota
transmutação constante, cruzando possível para escaparmos dos
caminhos e criando possibilidades processos de expropriação e
imprevisíveis de caminhada. A captura? (ROCHA, 2021).
colonialidade (modo de ser colonial)
atua no controle disso, pois precisa Uma estratégia colonial cultural reside
de corpos docilizados para continuar em atribuir o medo vivido por
existindo enquanto norma eurocristãos monoteístas brancos, como
(VITORINO, 2020, p. 237). parte de seu existir, a corpos politeístas e
não brancos, conforme nos aponta bell
Há, no funcionamento e circulação da hooks (2020, p.129): “O medo é a força
política do medo colonial eurocristã primária que mantém as estruturas de
monoteísta linear, tentativas de lançar a dominação. Ele promove o desejo de
hostilidade e o ódio eurocristão revertido separação […] quando somos ensinados
em medo atribuído aos corpos desviantes que a segurança está na semelhança,
da brancura estabelecida como norma, qualquer tipo de diferença parece uma
fixando estereotipias e padronizando ameaça.” Aquém do medo, há vida, vida
reivindicações por reconhecimento. O comum, produção de modos de ação
medo, do qual falamos, se apresenta ancestralmente enraizados em corpos-
como um circuito afetivo de dominação territórios que pedem passagem – e
colonial, que, ao mesmo tempo aproxima passam, avançam para o além-mar,
as Psicologias, no modo de exploração e além-terra e além-colônia. Caminham na
expropriação, dos corpos assinalados escuridão, como força potente de
colonizados, e os afasta, com as insígnias rearticulação das histórias, narrativas e
da supremacia branca, a qual faz de toda corpos:
expressão da alteridade formas de
experienciar a desigualdade étnico-racial Sim, nós (os pretos) somos
colonial. atrasados, simplórios, livres nas
nossas manifestações. É que, para
Em diálogo com as obras de Castiel nós, o corpo não se opõe àquilo que
Vitorino, Lorena Rocha (2021) refere à vocês chamam de espírito. Nós
padronização, inclusive estética, das estamos no mundo. E viva o casal
demandas de reconhecimento, como um Homem-Terra! Aliás, nossos
“pacto com a transparência” e se homens de letras nos ajudam a vos
convencer. Vossa civilização branca
pergunta como multiplicar mundos e
negligencia as riquezas finas, a
existências que não anulam os corpos sensibilidade […] A emoção é negra
negros: como a razão é grega. (FANON,
A tradição da transparência é 2008, p. 116).
ocidental, hegemônica, ligada ao As problematizações que realizamos
sujeito moderno, e como Castiel
sobre transparência e opacidade
falou, não há prosperidade sem
acumulação e sem a violência dos
conduzem-nos pensar a diferença, mas
nossos corpos pretos, uma vez que pensar essa diferença antes do advento
esse mundo se estrutura eliminando da subjugação étnico-racial e, em certa
tantos outros mundos possíveis. Se medida; logo, faz sentido que utilizemos
queremos interromper o suposto “singularidades” e “diferença” como
tempo contínuo da história e palavras que podem caminhar
conjuntamente, auxiliando-nos nesse entes, formas orgânicas e não orgânicas
percurso, em meio às ciências de existência. 18
psicológicas que caminham na
escuridão. Pensar a diferença sem o Nas experiências e experimentações
pacto com a transparência e com as friccionais nas práticas de pesquisa, o
condições do viável. É neste sentido que que nos vale é a palavra enquanto ação e
Hartman (2021) diferencia as categorias atuação, na relação com o mundo e na
do inviável e do impossível, de maneira fruição de outros mundos e devires, os já
que uma ação pode ser inviável e existentes e os por vir. Assim,
possível sem que exista uma contradição apresentam-se as narrativas como ação,
de termos. Desenvolve, também, o como forma de cocriação de existências
recurso à fabulação crítica como e de virtualidades produzidas. Por isso,
estratégia para lidar com as lacunas dos trouxemos, a este texto, o trabalho de
arquivos decorrentes da escravização e Ana Pi, Castiel Vitorino e Du Bois. Na
da dor. escuridão, na opacidade, as imagens
vazam e se movem, o confisco
representacional está em suspenso e o
Ao longo do texto, recorremos à ficção, pacto com a transparência em xeque.
na forma de interrupções estéticas, como Entendemos por pacto com a
recursos que permitem friccionar a transparência, o desejo de elucidação,
transparência pelas bordas, arestas e explicação, expropriação de saberes e
centros. Friccionar é um recurso da modos de vida politeístas circulares
antropóloga norte-americana, de racializados como não brancos desde
ascendência oriental, Anna Tsing uma perspectiva eurocristã linear
(2005), para mover-se entre mundos, monoteísta racializadas branca.
abordando o debate sobre globalização
O pacto com a transparência é uma das
sem recorrer às imagens fluidas de
expressões e dispositivos do que Maria
circulação. Transitar entre mundos é
Aparecida Bento (2002) nomeia como
habitar porosidades, fricções que
pacto narcísico da branquitude, isto é, a
permitem abertura a realidades
garantia de privilégios – raciais,
compostas entre corpos, máquinas,
epistêmicos, econômicos e outros – por
naturezas manejadas, coexistências de
meio de um acordo implícito entre
variados tempos históricos. Aquilo que
brancos(as) alimentado, sobretudo, pelo
não se encaixa em um único mundo se
medo e orientado à negação da
apresenta como uma urgência para narrar
racialização e das desigualdades
outras possibilidades de existir, diante de
decorrentes dos racismos. Neste sentido
tempos de catástrofe ecológica,
o pacto com a transparência, no que diz
pandêmica, política, da ascensão abrupta
respeito ao lugar do pesquisador(a)
dos fascismos. Friccionar arte e ciência
supõe a sua invisibilidade: olhar sem
incita à emergência das forças
ver-se. De acordo com Lourenço
disruptivas que torcem as linearidades
Cardoso (2014), a partir dos estudos de
históricas, dobram os essencialismos
Edith Piza, para o(a) pesquisador(a)
moralizantes da modernidade colonial,
questionam a humanidade forjada na branco(a) acrítico(a) deparar-se com os
norma de um corpo instrumental e próprios privilégios se assemelha a bater
mórbido; abertura às narrativas o rosto em uma porta de vidro
emergentes de modos de viver em transparente, dado que a invisibilidade
composição com animalidades, animais, seria constitutiva do seu modo de
máquinas, temporalidades, naturezas, subjetivação.
Este ensaio é um convite à continuidade revista Arquivos Brasileiros de
das pesquisas em Psicologia e políticas Psicologia, inscreve as contribuições 19
de escrita que convivem com a teóricas e trajetórias de ambas no marco
opacidade, a opacidade no texto, a da afrodiáspora:
opacidade no trabalho de pesquisa e nas Mas Neusa, como as mulheres
práticas psicológicas. Convivem com os negras e intelectuais negras, não
becos da memória, como convida pode ser psiquicamente aprisionada;
Conceição Evaristo (2017, s/n): “Tenho porque suas vozes, mesmo que
dito que Becos da memória é uma sejam em torturantes gemidos,
criação que pode ser lida como ficções alcançam a profundidade dos
da memória. E, como a memória oceanos, pois é de onde elas
esquece, surge a necessidade da sobrevivem e nascem, renascem, da
invenção.” Quando perguntada sobre o força que as fez brotar das grandes
seu método de escrita, aliada à pesquisa quedas das Cachoeiras. Neusa é de
Cachoeira... [...] A sensibilidade do
literária, histórias do cotidiano,
poeta nos une e reata o laço com
Conceição Evaristo narra que as estas mulheres. Em circunstâncias
histórias, também, ocorrem de chegar como estas, é preciso chorar. Não
sopradas ao ouvido em jogos de enganos para manter o lamento, mas para
e parecenças. Neste sentido, em exorcizar a dor. [...] As vozes e o
conferência proferida por Conceição perfume de Neusa Santos Souza e
Evaristo, em 2021, ela situa as também de Virgínia Leone Bicudo
escrevivências como um modo de escrita molham o deserto. São vozes férteis,
que emerge das vivências das mulheres como a civilização africana do Nilo.
negras, despertando a Casa Grande “dos (OLIVEIRA, 2020, p. 59).
seus sonhos injustos". A experiência da Aplacar a voracidade das Psicologias
ancestralidade – politeísta, plural, eurocristãs monoteístas em direção aos
circular – é transhistórica, inscrita na saberes negros e indígenas sob a forma
afrodiáspora e na grande Kalunga; na do sequestro, expropriação, roubo e
ocupação originária dos territórios pacto com a transparência. Como
indígenas. A partir das práticas das extinguir a voracidade sem saciá-la? Em
comunidades tradicionais de terreiro, que medida evidenciar o pacto com a
Wanderson Nascimento (2020, p. 201) transparência auxilia num processo de
pontua que a “ancestralidade não é reparação que se coloque no lugar da
apenas um laço de parentesco sanguíneo voracidade? Haveríamos de sustentar
para os terreiros, mas também um que não se trata de reivindicar as ruínas
parentesco histórico da pertença à como relíquias, tampouco de ver na
comunidade e das heranças que nos são voracidade branca, sinal de uma
trazidas pela presença de inquices, orixás fragilidade quando se trata, outrossim, de
e voduns para as nossas experiências”. ferocidade. Neste sentido, alianças
localizadas são necessárias e desejáveis,
A presença explicitada da ancestralidade
visando ao florescimento de mundos
afrodiaspórica negra aparece,
menos desiguais.
fortemente, na escrita de algumas
pesquisadoras em Psicologia, com
destaque para Regina Marques Oliveira
que num texto sobre o legado de Virgínia
Bicudo e Neuza Souza, recentemente
publicado em dossiê organizado por
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