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Visão histórica e paradigmas da ciência:

da pré-história à modernidade

Caroline da Graça Jacques


Guiomar da Rosa Bortot
TEMA

1
A sociedade ocidental contemporânea é o resultado de um longo processo histórico.
As transformações sociais ocorrem por meio de mudanças nos sistemas econômicos,
pelas alterações nas relações políticas, pela emergência de novas crenças e valores,
mas, sobretudo, pelas modificações nos paradigmas das ciências.

Assim, como a história da humanidade, a ciência é também um processo dinâmico e


inacabado, repleto de tensões e rupturas que promove mudanças nas formas como
nós compreendemos e explicamos os fenômenos naturais e sociais que nos cercam.
Nesse sentido, o objetivo do presente capítulo é apresentar o conceito de paradigma
científico, bem como refletir sobre a evolução do pensamento científico. Dessa forma,
poderemos apresentar as transformações paradigmáticas que ocorreram nas
diferentes eras da história da humanidade.

Paradigmas Científicos: definições fundamentais

O termo paradigma tem sua origem da palavra grega parádeima que significa modelo
ou padrão. Os paradigmas funcionam como uma lente através da qual os seres
humanos compreendem a realidade. Por meio dessa lente pode-se distinguir entre
o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, o que é aceito ou não pela comunidade
científica e a população em geral. Apesar da maioria das pessoas não ter o costume
de refletir sobre os paradigmas da ciência, a ciência embasa nosso modo de viver na
atualidade (VASCONCELOS, 2002; BEHRENS; OLIARI, 2007).

No âmbito dos estudos da história das ciências, o físico Thomas Kuhn (1922-1996) foi
um dos primeiros autores a reconhecer o papel desempenhado pelos paradigmas na
pesquisa científica. Para Kuhn (2001, p. 13), paradigmas são “as realizações científicas
universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e
soluções modelares para uma comunidade de praticantes de ciência.” O autor
destaca, ainda, que os paradigmas são o conjunto de crenças e valores subjacentes
à prática científica. Quando os fenômenos não se encaixam dentro de determinado
paradigma científico, ocorrem as anomalias, responsáveis pela crise na ciência. Trata-
se do surgimento de uma autêntica revolução científica que gera novas descobertas e
novos modelos paradigmáticos (KUHN, 2001; BEHRENS; OLIARI, 2007).

As crises paradigmáticas geram certo mal-estar nas comunidades científicas, pois se


trata de um momento de negação das certezas e verdades científicas vigentes. Por
outro lado, faz emergir para alguns cientistas a consciência de um momento oportuno
para a revisão e renovação de suas concepções. Portanto, a mudança de paradigma
é um processo lento, difícil e a adesão ao novo modelo não pode ser forçada, pois
implica na mudança e na ruptura de ideias e antigos conceitos até então vistos como
cientificamente válidos (CARDOSO, 1995; BEHRENS; OLIARI, 2007).

Anteriormente, destacamos que a ciência é uma das formas, não a única, de


História dos Paradigmas Científicos: da pré-história à modernidade

conhecimento produzido pelo homem para explicar a natureza e a realidade social.

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Os tipos de conhecimentos variam ao longo da história humana, assim como as
concepções inerentes aos paradigmas científicos estão em constante mutação. Nesta
seção, apresentaremos as diferentes visões históricas do conhecimento desde a pré-
história até a emergência da sociedade moderna, marcada pela racionalidade técnica-
científica e predomínio da razão.

Na pré-história, o pensamento mágico e os mitos eram as formas encontradas pelos


hominídeos para explicar os fenômenos da natureza. A verdade era sobrenatural,
revelada por inspiração divina. Os rituais realizados pelos xamãs e membros do clã
excerciam um papel fundamental na medida em que permitiam o contato com o
sobrenatural. Para Vasconcellos (2002), o mito é uma forma de conhecimento
inspirada pelos deuses, sem a preocupação de colocá-lo à prova. É nesse período
que a humanidade constrói as primeiras noções de paradigma ou de teorias do
conhecimento, que permitem explicar e organizar a natureza, a vida, a morte e o mundo
psíquico tendo como base a dicotomia entre a esfera do sagrado (ou sobrenatural) e
a esfera do profano, ou seja, do cotidiano (CARDOSO, 1995; DURKHEIM, 1996).

Na Antiguidade Clássica, entre os séculos VIII e VI a.C. surge a Era da Teoria do


Conhecimento Clássico. Durante esse período, o postulado da razão humana - o
racionalismo - emerge como eixo primordial para a teoria do conhecimento. Para os
filófosos da antiguidade clássica, a natureza tem uma ordem, uma causa e um efeito
e tudo se explica como parte da dinâmica da natureza, pois a verdade está nela
contida. Assim, a busca pela verdade se dá pela razão humana em relação à dinâmica
da natureza. Nesse período, a abordagem racional, discursiva e demonstrativa
caracterizava o conhecimento científico (BEHRENS; OLIARI, 2007). As percepções
relativas ao mundo sensível das aparências deveriam ser rechaçadas. Trata-se,
segundo as autoras, de “uma forma de conhecer o mundo, uma forma aceita como
correta e aceitável e que só pode ser válida se puder ser comprovada.” (BEHRENS;
OLIARI, 2007, p. 56).

Nesse período, surgem filósofos como Sócrates (469-399 a.C.), Platão (427-347 a. C.)
e Aristóteles (384-322 a. C.). O primeiro acreditava na supremacia da argumentação
e do diálogo. Foi responsável pela criação do método maiêutico, uma técnica que
pressupõe que a verdade está latente em todo o ser humano, podendo vir à tona na
medida em que se responde a uma série de perguntas simples, porém, perspicazes.
Sócrates é, ainda hoje, um grande influenciador nos campos da epistemologia e da
lógica. A autorreflexão “conhece-te a ti mesmo” é atribuída ao filósofo grego que,
originalmente, não deixou obras escritas, sendo a sua filosofia conhecida através das
obras de Platão, Aristófanes e Xenofonte (PLATÃO, 1972; RUSSELL, 2004). Platão,
discípulo de Sócrates, propôs o Idealismo, método no qual os mundos das ideias, do
intelecto e da razão constituíam a verdadeira realidade. Foi o fundador da Academia,
uma instituição de ensino voltada às investigações científicas e, ao mesmo tempo,
um centro de preparação para a política como busca da verdade e da justiça. Por sua
vez, Aristóteles desenvolveu a lógica, defendendo o intelecto e a reflexão como as
fontes principais de conhecimento (RUSSELL, 2004). De fato, segundo Appolinário
(2012), Aristóteles destacou a supremacia da razão sobre os sentidos ao criar a base
da ciência do discurso dividida em quatro eixos: a poética, a retórica, a dialética e a
analítica que, hoje, denominamos lógica.

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A emergência da civilização romana e a adoção do cristianismo como religião oficial do
Império Romano, em 380 d.C., pelo imperador bizantino Teodósio I, foram decisivas
para o surgimento de uma nova teoria do conhecimento e de um novo paradigma
científico. Um dos principais filósofos da época, Agostinho de Hipona (354-430)
apropriou-se do racionalismo de Platão e Aristóteles não mais para compreender a
dinâmica da natureza ou das relações políticas, mas para defender a doutrina cristã.
Para Agostinho, Deus conduz tudo o que ocorre no universo e a Ele pertence o
domínio do conhecimento. Nesse sentido, o esclarecimento e a verdade são frutos da
razão humana, mas, somente alcançados a partir da iluminação divina (AGOSTINHO,
1996). Agostinho não nega o racionalismo dos filósofos da Antiguidade Clássica, mas
os supera promovendo uma mudança de paradigma da ciência: a verdade da razão
era a verdade da fé. Sobre essa questão Lara (1991, p. 25) destaca: “reconheciam
os medievais que a razão humana pode descobrir muita coisa, pois pode pesquisar,
raciocinar, inventar. Mas existem verdades supremas que a razão não chega a
conhecer, pensavam eles. Essas Deus revelou. Estão na Bíblia.”

Portanto, a Idade Média nos apresenta uma nova teoria do conhecimento: o


Teocentrismo. Segundo esse modelo, a racionalidade do pensamento é legítima,
contudo, acima dela figura oponente a fé. A consequência direta é a emergência e
consolidação da Igreja Católica como instituição social que monopoliza o conhecimento
no campo das artes (arte romântica e arte gótica), da ciência (Geocentrismo) e também
da política (Direito Divino dos Reis).

No século XIII, São Tomás de Aquino (1225-1274) dá os passos iniciais para a


superação do modelo teocêntrico de conhecimento. Para ele, o conhecimento é fruto
da iluminação divina, da razão e dos sentidos. O homem é livre porque é racional,
condição que o distingue de todos os outros seres. O argumento de Tomás de Aquino
abrirá as portas para a Renascença.

O período conhecido como Renascença, perdurou aproximadamente entre os séculos


XIV e XVII, foi marcado por grandes transformações sociais na cultura, economia,
política e religião. Trata-se do fim do medievo e da sociedade feudal e o surgimento da
Idade Moderna. O modelo teocêntrico é paulatinamente substituído pelo paradigma
antropocêntrico no qual o indivíduo, a razão, o empirismo, a matemática e a ciência
formam a base do conhecimento.

De acordo com Japiassú (1995), Francis Bacon (1561-1626) mesmo não sendo um
cientista, foi um importante pensador ao traçar as linhas fundamentais da ciência
moderna. Suas contribuições foram fundamentais para a emergência do novo
paradigma. Para Bacon, a ciência deveria contribuir para a melhoria das condições de
vida do ser humano. Contudo, o filósofo inglês considerava que o conhecimento em si
não possuía nenhum valor, mas apenas os resultados práticos que dele emanavam.
Em uma de suas obras - Novum Organum - Bacon defendeu a tese de que o princípio
de todo o conhecimento era a observação da natureza. Entretanto, a observação
deveria ser livre de certos preconceitos, os quais ele denominou ídolos. Trata-se de
uma importante contribuição científica, pois Bacon inseriu pela primeira vez uma teoria
do erro, ou seja, a ideia de que o método deveria ser desenvolvido a partir de uma
preocupação permanente com sua integridade. A primeira conclusão

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de Bacon era de que a subjetividade humana e os preconceitos poderiam distorcer a
coleta e a análise metódica dos dados que vem da realidade empírica observável
(APPOLINÁRIO, 2012).

A criação do método indutivo foi outra grande contribuição de Francis Bacon. A partir
de uma observação rigorosa dos fatos individuais, o cientista elabora a classificação
dos fenômenos para em seguida determinar suas causas, por meio de experimentos.
Trata-se, portanto, da definição de uma conclusão geral, a partir da observação de
uma série de fatos particulares.

A contribuição de Francis Bacon é inegável para a ciência moderna, contudo, Nicolau


Copérnico (1473-1543) e Galileu Galilei (1564-1642) são, efetivamente, celebrados
como os responsáveis pela revolução científica. Copérnico confronta a hegemonia
da igreja católica ao questionar um dogma de mais de mil anos: o homem e a Terra
não são o centro do universo. As bases da teoria Heliocêntrica estão postas uma vez
que para Copérnico era a Terra que girava em torno do Sol. A contribuição de Galileu
confirma a teoria de Copérnico e apresenta dois aspectos que insistem em perdurar
até este século, ou seja, a abordagem empírica da ciência e o uso de uma descrição
matemática da natureza (BEHRENS; OLIARI, 2007). De acordo com Appolinário
(2012, p. 25) “devemos a Galileu o estabelecimento do método científico moderno,
composto pelas etapas de observação, geração de hipóteses, experimentação,
mensuração, análise e conclusão.”

Ainda, na Renascença, convém destacar a contribuição do filósofo símbolo do


Iluminismo, René Descartes (1596-1650). Considerado o pai do racionalismo
moderno, o filósofo defendia que nem a fé, nem a tradição ou o conhecimento sensível
são dignos de crédito. Apenas a razão humana é compatível com a verdade. Nesse
sentido, Descartes defendeu a matemática como a forma mais rigorosa de raciocínio
a ser aplicada em qualquer tipo de investigação científica. Segundo Behrens e Oliari
(2007, p. 58) “o paradigma cartesiano prega a crença na legitimidade dos fatos que
são perfeitamente conhecidos e sobre os quais não se têm dúvidas, devendo-se para
isso dividir e estudar a menor parte, partindo destas para o entendimento do todo.”
Portanto, o eixo principal do pensamento cartesiano é a concepção de que os
fenômenos podem ser analisados e compreendidos se forem reduzidos às partes que
os constituem. Ao conhecer uma parte de um sistema, o pesquisador chegará ao
conhecimento de seu funcionamento. Assim, separa-se o corpo da mente,
privilegiando sempre a mente como sendo superior aos aspectos do corpo. O universo
material e os seres vivos são reduzidos a visão de uma máquina com funcionamento
e engrenagens perfeitas, sendo governado por leis matemáticas exatas (CAPRA,
1996 apud BEHRENS; OLIARI, 2007). Nesse paradigma científico, a racionalidade
instrumental figura oponente: o homem é o senhor do mundo, pois a ele pertence o
domínio do cálculo, o direito de transformar, explorar e servir-se da natureza.

O paradigma cartesiano começa a ser questionado no início do século XX e acelera


a ruptura com ênfase nas suas últimas décadas. O surgimento do paradigma da
complexidade tem como foco a visão do ser humano de forma complexa e integral.
Um novo movimento na física (física quântica), na ecologia (ecodesenvolvimento) e
na medicina (medicina humanizada) são alguns exemplos da emergência de um

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novo modelo de ciência. A proposta da nova visão depende do avanço do paradigma
da ciência que impulsiona a revisão do processo fragmentado do conhecimento na
busca de reintegração do todo. Nesse sentido, a interdisciplinaridade desponta como
modelo para a investigação científica (BEHRENS; OLIARI, 2007).

TEMA

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A história do pensamento científico, os modelos paradigmáticos vigentes, as crises e
revoluções na ciência integram uma jornada impressionante e maravilhosa da nossa
civilização. Olhar para o passado e traçar as características fundamentais dos
paradigmas da ciência e das diferentes teorias do conhecimento não são tarefas
simples. De fato, a história da ciência é muito mais rica e complexa do que esse
capítulo consegue revelar.

Nosso texto esteve orientado para a apresentação da história do pensamento


científico com base em dois pilares fundamentais: o racionalismo (razão) e o
empirismo (experiência). Diferentes filósofos e cientistas enfatizaram o papel que a
razão e o intelecto humano, assim como a experimentação e o método detém para a
produção do conhecimento e das verdades científicas. A história da ciência e de seus
paradigmas não terminam com a emergência do modelo cartesiano. Ao contrário, a
ciência continua a avançar e novos modelos são criados a fim de construir respostas
que permitam compreender melhor a dinâmica e as incertezas da vida.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1996.

APPOLINÁRIO. Fábio. Metodologia da Ciência: filosofia e prática da pesquisa. 2.


ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012.

BEHRENS, Marilda Aparecida; OLIARI, Anadir. A evolução dos paradigmas na


educação: do pensamento científico tradicional a complexidade. Diálogo Educ.,
Curitiba, v. 7, n. 22, p. 53-66, set./dez. 2007. Disponível em < https://periodicos.
pucpr.br/index.php/dialogoeducacional/article/view/4156> Acesso em: 10 ago.
2017.

CARDOSO, Clodoaldo. A canção da inteireza: uma visão holística da educação.


São Paulo: Summus, 1995.

KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 16. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2001.

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DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico
na Austrália. São Paulo: M. Fontes, 1996.

JAPIASSÚ, Hilton. Francis Bacon: o profeta da ciência moderna. São Paulo: Letras
e Letras, 1995.

LARA, Thiago Adão. Caminhos da razão no ocidente: a filosofia ocidental do


renascimento aos nossos dias. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.

PLATÃO. Diálogos. O banquete. Fédon. Sofista. Político. Tradução de José


Cavalcanti de Souza, Jorge Peleikat e João Cruz Costa. São Paulo: Abril, 1972.

RUSSELL, Bertrand. História do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro,


2004.

VASCONCELLOS, Maria José Esteves. Pensamento sistêmico: novo paradigma da


ciência. Campinas: Papirus, 2002.

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