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Quero morar um dia neste quarto

Onde esta criança corre entre os móveis


Procurando a si mesma, pensativa, nas gavetas.
Quero me deitar e não pensar em mais nada
Que não seja me afundar nestes lençóis.
Não quero olhar pela janela, nada lá fora me interessa.
Quero viver aqui e agora, nos mistérios desta casa bagunçada.

A gente cresce e muitas vezes não vê


E se maltrata, e se entristece, e se perde em escuros corredores.
Sua luz clareia horizonte, só você não vê.
Seja mais criança que confia e conhece o mundo com os dedos e a boca,
Sem medo.
Me interessa a confusão destas entrelinhas.
Elas no fundo também são minhas.

Não me ensinaram a caminhar, no entanto caminho.


Não me ensinaram a querer, no entanto quero.
Não me ensinaram a amar, no entanto amo.

A gente cresce e muitas vezes não crê


Em toda a nossa força
E nos esquecemos do nosso infinito.
Não olhamos a beleza da encosta florida,
Seguindo a estrada montanha acima
Por medo das quedas, do abismo.
Da união de abismos surgem grandes vales, e rios,
E campina, e flor, e chuva morna que refresca.
Basta o abraço que respira junto
E o hálito quente de um beijo sorrido.
Basta a sorte de um novo encontro.

TARDES DE DOMINGO

Logo cedo já se sabe o fim deste dia morno


Em que o sofá é um inimigo acolhedor e manso,
Armado com promessas de merecido descanso
Destes seis confrontos, desta semana entre tiros.
Domigo não é o sétimo dia, mas o primeiro,
Alternando, insistente, o trabalho, celular e cinzeiro.
Logo cedo caminho lento neste dia morno.

Luta que se batalha sozinho.


Aos murros encaro monstros que têm meu rosto.
Preguiça, preguiça e sono estão na face deste bicho.
Lutar contra ele é lutar comigo.
Luta, luta que se batalha sozinho.

Tenho medo destas horas inúteis que não param


Trazendo, quando as sombras crescem, por detrás dos móveis,
Um fazer, que não sei como, de coisas impossíveis.
O olhar frio e feroz do passado me reprova
E a vista esperançosa da velhice me implora
Que não me esqueça que a vida voa e as horas passam.
E então a memória viva daqueles que se foram
E de suas mãos de pedra, construtoras de pontes,
E dos pés que desafiam e vencem mundos e horizontes,
Que partem de escuras selvas a cidades eternas,
Trazem vida e cor a este meu rosto assim tão grave.
E são corda para a subida, e rugido suave,
Mantendo unidos mente e dedos, ainda que doam.

Amarro então ao pulso minha flecha


E a atiro ao topo branco da montanha,
Para que possam ver de lá, com calma, o que o sol alcança
E ser um súdito fiel da luz do dia.
Guerra, guerra contra o tédio da tarde vazia.

LIVRE ESCRITA

Escrever é quase tão difícil


Quanto ser amado quando se ama.
Nem sempre a musa deita nua em nossa cama.
Queria que escrever fosse vício.

Que a palavra chegasse como míssil.


Que entender e dizer não fosse sacrifício.
Que a letra não esgotasse a doce lágrima.

Queria por meus olhos nessa página.


Vaiar, de longe, esta peça trágica.
E, me encarando, escancarar a lógica
Dessa bela e furiosa tristeza que sinto.

Sentados nessa sala, face-a-face,


Digerindo ódio, de onde a letra nasce,
Correndo, como loucos, de rimas fáceis,
Tocando um ao outro em lugares proibidos,

É muito fardo, em minhas pernas, nosso peso.


É longo trago, é muito verso, é grito preso.
Presença intolerável de mim mesmo.
Tão destrambelhados, eu e tu, sozinhos!

Fúria, destrua minha casa, eu te permito.


Somente por algumas horas, eu não minto
Quando busco teu abraço, faminto,
Quando abro meu peito à tua faca.

Fere minha terra com esta tua enxada


E faz canal que dê vazão à essa enxurrada.
Encha de flores as clareiras desta mata
E risca do meu verso a palavra "aflito".

CONEXÃO ENTRE NÓS DOIS

Conexão é sua mão assim, tocando a minha


E o roçar de nossas coxas nuas que senti.
É nossa falta na distância que se compartilha.
Sou eu sentado aqui, tão só, pensando em ti.
Mas como podem as duas pontas desta linha
Se entrelaçarem, se tecerem, nesse unir
De bocas e braços, se cada pé caminha
Passos que se alongam, opostos, longe daqui?

Te digo, irmão, o toque dos olhares é partilha


De duas vontades que se enxergam, ao descobrir
Que termina lá no cume toda trilha

Em que o destino de estar junto é se cumprir,


E se cruzam os amores em que a liberdade brilha
E que, com coragem, seguem o coração de si.

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